Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6253/17.8T9VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA LUÍSA ARANTES
Descritores: DIFAMAÇÃO
HONRA
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
DIREITO DE CRÍTICA
POLÍTICO
Nº do Documento: RP202004296253/17.8T9VNG.P1
Data do Acordão: 04/29/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: JULGADO PROCEDENTE O RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O bem jurídico protegido pelo crime de difamação é a honra, a qual tem de ser vista numa dupla perspectiva: a honra interior, que se reconduz ao juízo valorativo que cada pessoa faz de si mesma e a honra exterior, equivalente à representação que os outros têm sobre o valor de uma pessoa, ou seja, a reputação, o bom nome, a consideração que uma pessoa goza no meio social.
II - O direito ao bom - nome e reputação, com consagração constitucional [art.26.º da CRP] conflitua, por vezes, com o princípio constitucional da liberdade de expressão [art.37.º da CRP], o qual se traduz no direito de exprimir e divulgar livremente o pensamento, bem como o direito de informar, sem impedimentos ou discriminações.
III - Porém, os direitos ao bom - nome e reputação e à livre expressão, que têm, em princípio, igual valor, não podem ser entendidos em termos absolutos e, em caso de conflito, têm de ser harmonizados nas circunstâncias concretas.
IV - O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem entendido, em vários arestos, que “a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de todas as sociedades democráticas, sendo uma das condições primordiais para o seu progresso e para o desenvolvimento de cada um”.
V - Ora, uma das manifestações da liberdade de expressão é o direito que cada pessoa tem de exercer o direito de crítica, nomeadamente, a nível político.
VI - O Presidente de uma Junta de Freguesia, exercendo um cargo público, tem uma maior exposição e tem de se sujeitar à crítica, a qual é comunitariamente aceite, ainda que se recorra a expressões contundentes, desagradáveis, grosseiras.
VII - Nesta decorrência, pese embora as expressões proferidas sejam agressivas e contundentes, uma vez que foram proferidas no âmbito de uma campanha eleitoral em que arguido e denunciante faziam parte de listas concorrentes, estão cobertas pela liberdade de expressão constitucionalmente garantida e por esta razão tem de se considerar não provado que o arguido tivesse agido com a consciência da punibilidade da sua conduta, daí decorrendo a sua absolvição, crime e cível.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 6253/17.8T9VNG.P1
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:
I – RELATÓRIO
No processo comum (com intervenção do tribunal singular) n.º6253/17.8T9VNG do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia, J3, por sentença proferida em 3/7/2019 e depositada a mesma data, o arguido B… foi condenado pela prática de um crime de difamação agravada p. e p. pelos arts.180.º, n.º1, 183.º, n.º1, alínea a) e 184.º, por referência ao art.132.º, n.º2, alínea l), todos do C.Penal, na pena de 160 dias de multa, à taxa diária de €6,00, e ainda no pagamento ao demandante C… da quantia de €750,00.
Inconformado com a decisão, o arguido interpôs recurso, extraindo da motivação, as seguintes conclusões (transcrição):
1.
Na sentença em análise, ora recorrida, o Tribunal a quo não apreciou nem valorou correctamente a matéria fáctica produzida, nem tão pouco fez uma adequada subsunção da mesma às normas jurídicas.
2.
O Tribunal a quo na sentença ora recorrida incorreu em erro de julgamento, logo fez uma incorrecta aplicação do direito.
3.
A prova produzida em julgamento foi manifestamente insuficiente para dar como provados determinados factos. Houve por assim dizer insuficiência de provas produzidas para alicerçar a convicção do Tribunal acerca de determinados factos. O Tribunal a quo tirou uma conclusão ilógica, arbitrária, tendo realizado uma incorrecta apreciação da prova.
4.
Ora, de acordo com o artº 127º do C.P.P., salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é produzida segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
5.
Na sentença ora posta em crise, a matéria dada como provada e relativamente ao crime de difamação agravada, salvo melhor opinião, encontra-se erradamente julgada.
6.
Assim, o arguido/recorrente discorda da sentença proferida e, em concreto, da sua condenação e fundamentação jurídica que lhe serve de fundamento.
7.
Ora, conforme se infirma do artigo 127.º do Código de Processo Penal, “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
8.
O Princípio da Livre Apreciação da Prova sendo um dos princípios norteadores da função jurisdicional, concede ao Julgador a possibilidade de, na sua busca pela verdade material, não ficar sujeito à rígida prova tarifada, podendo usar de uma certa, mas não ilimitada, margem de discricionariedade na formação do seu concreto juízo.
9.
Todavia, esse seu juízo terá sempre de ser fundamentado, encontrando arrimo e obstáculo, na coadunação da prova com as chamadas regras de experiência comum.
10.
Este princípio garantidamente não habilita (nem tampouco poderia permitir) a mera arbitrariedade, fundando-se antes em factores vários, tais como: a lógica, a experiência, a contradição, a imprecisão, a indefinição, a independência, a razão de ciência.
11.
O Tribunal a quo, que proferiu a decisão da qual ora se recorre, fazendo alegadamente uso dos princípios referidos, interpretou, no entendimento do Recorrente, de modo erróneo e de forma pouco precisa e objectiva os relatos do Arguido B…, da testemunha por este arrolada, bem como fez uma errada interpretação do vídeo em causa nos presentes autos que, entre si e em sede de Audiência de Discussão e Julgamento, levariam, salvo o devido respeito à Absolvição do aqui Recorrente.
12.
Com efeito, salvo devido respeito por entendimento diferente, não decorre do vídeo, que o aqui Arguido tenha tido a pretensão/intenção de atacar pessoalmente o Ofendido C…, mas sim, que num apelo ao voto e em véspera de eleições, tenha chamado atenção aos cidadãos, para alguns comportamentos políticos menos próprios do ofendido, enquanto Presidente da Junta de uma freguesia.
13.
Assim, o discurso proferido pelo aqui Arguido, foi apenas e tão só o de criticar a actuação política do ofendido.
14.
Estamos perante um caso de contornos nitidamente políticos, não só por os factos se reportarem a um momento político - plena campanha eleitoral para as eleições autárquicas - em que são intervenientes ativos o ofendido (candidato à Junta de Freguesia) e o arguido (elemento de outra lista candidata à mesma Junta de Freguesia), mas também porque o caso ocorreu em discurso de apelo ao voto antes das eleições.
15.
Assim qualquer das intervenções do ofendido ou do arguido teve nítidas razões políticas.
16.
Este contexto, eminentemente político, em que o caso se verificou e que foi, aliás, razão e fundamento do mesmo, não pode ser olvidado e deve ser tomado em consideração na apreciação dos factos.
17.
Na campanha eleitoral foi notória a luta política, bem como os exacerbados ânimos dos contendores, nervosismo e exaltações com eventuais excessos de linguagem.
18.
Mas tudo não passou de dura e, talvez, rude luta política, sem que houvesse da parte do arguido a intenção de infligir ataques meramente pessoais, lesando a honra do ofendido, sem qualquer relação com o combate político em que ambos se moviam.
19.
Sendo que para melhor compreensão do supra alegado, basta atentar ao teor do discurso proferido supra transcrito.
20.
Salvo devido respeito, que é muito, o Tribunal “a quo”, não procedeu à devida contextualização das expressões, retiradas aleatoriamente, de todo um discurso, que conforme supra se mencionou, não demonstra um ataque pessoal, mas sim um ataque meramente politico.
21.
Mais se diga que, nos dizem as regras da experiência que as “ expressões contundentes e agressivas, desagradáveis e descorteses, próprias de uma retórica política mais radical, proferidas num contexto político de campanha eleitoral, são comunitariamente toleradas e não devem ser consideradas ofensivas numa dimensão jurídico-penalmente relevante.”[1]
22.
Pelo que, não se pode concordar com o entendimento do Tribunal “ A Quo” pois, a imputação dos factos da acusação ao Arguido, é desprovida de qualquer fundamento real.
23.
Considera-se assim que, in casu, existiu erro de julgamento, na medida em que houve uma incorrecta apreciação da prova produzida, determinando o Tribunal a quo indevidamente como provados, factos que deveriam ter sido julgados como não provados e não cuidando de analisar com a diligência que se lhe impõe os depoimentos prestados, bem como o vídeo aqui em causa.
24.
Pelo que, é opinião do aqui Recorrente que existe, na parte respeitante ao Ofendido C… e todas as testemunhas arroladas nos presentes autos, uma violação flagrante do Princípio da Livre Apreciação da Prova, o que deverá conduzir à absolvição do Arguido, conforme devidamente explanado infra.
25.
Da análise da motivação da Sentença em crise são evidentes variadas contradições entre a prova produzida nos autos e a decisão final proferida pelo Tribunal a quo, tendo sido ignorada pelo Julgador muita da prova produzida em sede de Audiência de Julgamento.
26.
Ora, salvo o devido respeito que é muito, não se percebe como os factos 3 a 6 foram dados como provados, porque para além do depoimento do Ofendido, não existe outro elemento de prova nos autos que corrobora na íntegra a versão apresentada por aquele.
27.
No entendimento do Recorrente estes factos contêm em si mesmos graves e insanáveis contradições com a prova produzida nos autos, designadamente com o vídeo aqui em crise, com as declarações do Arguido e com o depoimento prestado pela testemunha D… em Audiência de Julgamento, bem como com as declarações do Ofendido, o que impede, necessariamente, que, em conjunto, possam servir para fundar a convicção do Tribunal a quo, como o foram.
28.
Mas sempre se diga, que ao considerar (e bem!) como provado o facto 7. (“As expressões supra referidas foram proferidas no contexto de uma campanha política.”), salvo devido respeito, no entendimento do aqui Recorrente, acaba por existir uma contradição insanável entre este facto dado como provado com os factos 3 a 6 também dados como provados.
29.
Isto porque, o Tribunal “A quo” ao dar como provado que as expressões em causa, foram proferidas em sede de campanha política, não poderia, salvo devido respeito dar como provado que o arguido as utilizou para atingir a honra e a consideração pessoal do Ofendido.
30.
Salvo o devido respeito, o Tribunal “a quo” dá simultaneamente como provados factos contraditórios, padecendo a sentença recorrida de vício de contradição insanável.
31.
O Tribunal a quo desconsiderou as declarações prestadas pelo arguido, concluindo que, não se tratou de um ataque politico mas pessoal ao Ofendido.
32.
É inelutável que o aqui Recorrente perante todo este cenário e enquadramento tem visto todos os seus direitos gravemente coartados, com especial incidência nos seus direitos fundamentais com assento na Constituição da República Portuguesa.
33.
A Mma. Juiz a quo fundou tal decisão num pressuposto erróneo e que não é compaginável com a verdade constante dos presentes autos, na medida em que do discurso proferido no vídeo aqui em causa, facilmente se depreende que surgiu no âmbito de uma campanha politica “mais acalorada” entre os representantes de partidos adversários.
34.
Pelo que, em face ao que fica exposto, devem os factos vertidos nos pontos 3 a 6 da Matéria de Facto Provada serem, ao contrário do que consta na decisão recorrida, considerados como factos não provados, por inexistência de prova suficiente e segura sobre a sua ocorrência.
35.
Com o discurso proferido, não quis o arguido ofender a honra e consideração do ofendido, mas fazer apenas um ataque eminentemente político, com um âmbito próprio de campanha eleitoral, pretendendo, assim, mobilizar eleitores para o voto num outro candidato de outra lista.
36.
O próprio ofendido foi um interveniente provocador e motivador da resposta do arguido, o que também se deve salientar, pois o combate político assume por vezes características ocultas e consequências imprevisíveis se não cuidarmos de procurar conhecer as verdadeiras origens das situações.
37.
Mas isso é uma coisa que pode ser qualificada, eventualmente, como própria de alguma rudeza de linguagem, e outra coisa bem diferente, radicalmente diferente, e muito mais grave, é estarmos perante uma atitude ilícita, da prática de um crime de difamação.
38.
São, obviamente, situações diametralmente opostas e não confundíveis, merecendo aquela, eventualmente, a censura política e esta, se fosse o caso, mas não é, censura penal.
39.
Assim, o enquadramento jurídico dos factos efectuado pela sentença, merece, salvo devido respeito censura.
40.
Pois o bem jurídico protegido no crime de difamação apresenta essencialmente uma vertente pessoal e a liberdade de expressão é verdadeiramente um direito essencial na organização da nossa sociedade.
41.
Quanto a esta matéria deve tomar-se em consideração a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e muito especialmente o seu artigo 10º.
42.
O entendimento jurisprudencial quanto às questões relacionadas com o dilema que se coloca quanto à defesa da honra e à liberdade de expressão, profundamente escalpelizadas e exemplarmente decididas, entre outros, pelo Tribunal da Relação de Évora de 13.12.11, Proc. 99/08.1TAGLG.E1, de 28.05.13, Proc. 552/09.0GCSTB.E1, e de 01.07.14, Proc. 53/11.6TAEZ.E2, não permite quaisquer dúvidas.
43.
A Convenção é absolutamente clara ao consagrar o direito à liberdade de expressão no seu artigo 10º, com as únicas restrições indicadas no seu n.º 2, as quais não se aplicam ao caso dos autos.
44.
A Convenção faz uma clara opção na definição da maior relevância do valor “liberdade de expressão” sobre o valor da “honra”, ou seja, a ponderação de valores é normativa, pois já foi feita pela Convenção com uma clara preferência pela “liberdade de expressão”.
45.
Assim, no conflito de direitos que se verifica no caso em apreço, deve prevalecer a liberdade de expressão sobre o direito à honra.
46.
As expressões em causa, nos presentes autos não são suscetíveis de preencher o crime de difamação, sendo atípicas, desde logo porquanto foram proferidas no quadro legítimo do direito fundamental à liberdade de expressão e do direito à informação por se verificar um interesse público, sempre no âmbito da crítica política e fora do ataque pessoal.
47.
O arguido proferiu as ditas expressões sem qualquer intenção de ofender C…, estando absolutamente convicto de que a utilização daquelas expressões era legítima.
48.
Com efeito, as expressões utilizadas são expressões de uso comum nas circunstâncias como a do caso concreto, não podendo sequer ser consideradas exageradas ou insultuosas.
49.
Acresce que as expressões utilizadas não dizem respeito / não têm qualquer ligação à esfera privada do Ofendido, tendo sido utilizadas para justificar opinião política, dizendo respeito apenas e de forma direta/imediata com o cargo de Junta de Freguesia, que é como quem diz com o interesse público que o arguido, na qualidade de candidato a tal cargo, tem que zelar.
50.
A linguagem utilizada pelo arguido tinha única e exclusivamente que ver com as características do ofendido sempre em relação ao cargo de interesse público que este exercia como Presidente da Junta.
51.
Existia assim um relevante interesse público-social e imediato, desde logo por ambos serem candidatos ao exercício de uma função pública (Presidente de Junta).
52.
O arguido disse o que pensava da sua actuação, em termos que ainda se podem considerar enquadrados no discurso político, sem daí extravasarem para atingirem o assistente na sua honra e consideração.
53.
Não deve considerar-se ofensivo da honra e consideração de outrem tudo aquilo que o queixoso entenda que o atinge, de certos pontos de vista, mas aquilo que razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores individuais e sociais.
54.
Para quem exerce cargo ou função de natureza política - como é o caso de Presidente de Junta - os limites da crítica admissível são mais amplos.
55.
Assim, “Os agentes políticos, enquanto personagens públicas, expõem-se a um controlo dos seus atos, gestos e atitudes, devendo, por isso, revelar uma maior tolerância quando sujeitos à crítica, ainda que esta nada tenha a ver com a gestão pública, desde que respeite a factos que possam ser relevantes para o escrutínio a que se submetem.(…) Com efeito, no âmbito de uma discussão política, em vésperas de eleições, com os ânimos exaltados e temperamentos nervosos, em que os adversários utilizam as armas que têm ao seu dispor para vencer as eleições, deve prevalecer a liberdade de expressão sobre a defesa da honra, no âmbito da tutela penal (…)”[2]
56.
Ao condenar o arguido, incorreu o tribunal, salvo o devido respeito, em erro na qualificação jurídica dos factos, porquanto, em nosso entender, da prova produzida não se vislumbra qualquer censura penal, por não integrar o crime de difamação agravada, previsto e punido pelos art.ºs 180 n.º 1 e 183 n.º 1 al.ª a), ambos do CP.
57.
Resultando, assim, por força da referida decisão de condenação e sua fundamentação, violados entre outros, os artigos 32º nº 2, 37º, 202 º nº 2, 205º nº 1, 215º nº 1 da Constituição da República Portuguesa, 410º nº 2, e 127º do C. Processo Penal e o artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, por errónea interpretação e aplicação daquelas normas legais.
58.
Pelo exposto, a douta sentença recorrida deverá ser reformada, de acordo com o que antecede, absolvendo-se o arguido, da prática de um crime de difamação agravada, previsto e punido pelos art.ºs 180 n.º 1 e 183 n.º 1 al.ª a), ambos do CP, e absolvendo o arguido do pedido de indemnização civil formulado nos autos, pelo Ofendido.
59.
A sentença objeto do presente recurso deve, assim, ser revogada, em consequência, deve ser substituída por outra que absolva o arguido pela prática do crime de que se encontrava acusado, bem como do pedido de indemnização civil.
O Ministério Público respondeu são recurso, pugnando pela sua improcedência (fls.154 a 164).
O demandante não apresentou resposta.
Remetidos os autos ao Tribunal da Relação e aberta vista para efeitos do art.416.º, n.º1, do C.P.Penal, o Sr.Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso merece provimento, existindo erro notório na apreciação da prova (fls.172 a 176).
Cumprido o disposto no art.417.º, n.º2, do C.P.Penal, o demandante apresentou resposta, concluindo que a sentença recorrida deve ser confirmada (fls.181 a 182).
Colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
II – FUNDAMENTAÇÃO
Decisão recorrida
Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos:

1. No dia 29 de Setembro de 2017, pelas 11h06m, o arguido B… publicou na página da internet denominada Facebook, com o endereço https://www.facebook.com/profile.php?id=100015028486321&fret=ts, um vídeo de 9 (nove) minutos e 26 (vinte e seis) segundos, no qual tecia alguns considerandos relativamente ao Presidente da Junta de Freguesia da União de Freguesias de …, Vila Nova de Gaia, em exercício, C….
2. Assim, no mencionado vídeo, o arguido proferiu as seguintes expressões:
- aos 00:01:45 minutos: “uma campanha de difamação pública, uma campanha de infâmia e da calúnia, praticada pelo actual presidente da Junta que é um psicopata político, que lhe meteram um brinquedo nas mãos e ele sem saber ler nem escrever está a fazer um trabalho péssimo a denegrir e tirar importância política que a freguesia tem (…)”;
– aos 00:03:30 minutos: “(…) ele é a excepção à regra, não sabe respeitar os valores de Abril, não sabe respeitar ninguém, chantageia as pessoas, é um mentiroso compulsivo (…)”;
– aos 00:015:47 minutos: “(…) próprio de quem não foi fruto da liberdade de Abril e que estaria muito mais próximo da Coreia do Norte ou então daquele saudoso, negativamente como é óbvio, ditador alemão que deu cabo do mundo. É na presença de um indivíduo desses que nós estamos (…)”;
– aos 00:08:05 minutos: “(…) o voto é secreto, sei que há muitas pessoas e colectividades em Pedroso que estão chantageadas e perseguidas por este senhor (…)”;
– aos 00:08:34 minutos: “(…) deixem lá o tiraninho, não lhe deiam gás (…)”.
3. Conhecia o arguido a idoneidade das expressões supra vertidas para atingir a honra, consideração pessoal e, sobretudo, profissional, de C…, enquanto líder autárquico e homem público, o que sucedeu, como visava.
4. Por outro lado, sabia que aquele vídeo, ao ser publicado, como foi, no dia 29 de Setembro de 2017, na página da internet denominada Facebook, seria visualizado por um número indeterminado de pessoas.
5. Sempre de forma livre, voluntária e consciente actuou o arguido, conhecendo a ilicitude penal da sua conduta.
6. Em consequência da conduta do demandado o demandante sentiu-se humilhado, envergonhado, enxovalhado e revoltado.
7. As expressões supra referidas foram proferidas no contexto de uma campanha política.

8. O arguido trabalha na construção civil, auferindo o salário mínimo nacional. Vive em casa emprestada com uma companheira, que faz alguns trabalhos de limpeza, auferindo montante mensal não apurado.
9. O arguido nunca antes foi condenado pela prática de qualquer infracção criminal.
*
Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a causa.
*
III – Motivação
Os factos dados como provados assentam numa apreciação crítica e global de toda a prova produzida no seu conjunto.
Assim, e quanto aos factos constantes da acusação, o Tribunal atendeu ao vídeo aqui em causa (que visualizou), conjugadamente com as regras da normalidade e da experiência comum. Face a tal prova, conquanto o arguido - não pondo em causa que proferiu as expressões constantes da acusação - tenha defendido o contrário (dizendo que as suas afirmações foram meramente políticas, um mero “desabafo” e não um ataque a C…; o que foi igualmente referido por D…, amigo do arguido e à data dos factos também do MIPS, que frisou que aquele apenas proferiu o discurso em causa em sede de campanha, nunca tendo querido ofender pessoalmente C…), o Tribunal não pode tirar outra conclusão que não a seja a de que aquele quis ofender e prejudicar a honra de C…. Com efeito, se é certo que o contexto é o de luta política, temos que salientar que o arguido não se limitou a criticar a actividade, a obra ou os procedimentos desenvolvidos por aquele, tendo utilizado também expressões e feito imputações - entre o mais, o arguido chamou a C… “psicopata político”, “mentiroso compulsivo” e “tiraninho” e comparou-o a Hitler – que têm que considerar-se um ataque pessoal, que o atingem (e só podem ter tido esse intuito) directamente na sua honorabililidade e dignidade.
No tocante aos factos enunciados no ponto 6 o Tribunal atendeu aos depoimentos do próprio demandante e de E…, que os confirmaram (decorrendo também das regras da normalidade e da experiência comum que expressões como as que foram proferidas provocam esses sentimentos).
Quanto à situação económica e familiar do arguido aceitaram-se as suas declarações.
Relativamente à ausência de antecedentes criminais do arguido atendeu-se ao certificado junto aos autos a fls. 81.
A matéria constante do pedido de indemnização civil que não consta nem do elenco dos factos provados nem dos não provados é conclusiva ou irrelevante para a decisão a proferir, motivo pelo qual a ela não se fez referência.
Apreciação
Atento o disposto no art.412.º, n.º1, do C.P.Penal, o âmbito do recurso é delimitado pelo teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso, como são os vícios da sentença previstos no art.410.º, n.º2, do C.P.Penal.
Face às conclusões apresentadas, as questões trazidas à apreciação deste tribunal são as seguintes:
- impugnação da matéria de facto dada como provada sob os pontos 3 a 6, tendo havido violação do princípio da livre apreciação da prova,
- não preenchimento do crime de difamação, sendo as expressões utilizadas, atípicas e proferidas no âmbito político.
O conhecimento do recurso vai iniciar-se pelo tratamento desta última questão enunciada, porquanto a merecer deferimento, torna-se inútil o tratamento das demais questões suscitadas.
O arguido foi condenado pela prática de um crime de difamação agravada p. e p. pelos arts.180.º, n.º1, 183.º, n.º1, alínea a) e 184.º, por referência ao art.132.º, n.º2, alínea l), todos do C.Penal.
Dispõe o art. 180.º do C.Penal:
«1. Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.
2. A conduta não é punível quando:
a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e
b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.
3. Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do nº 2 do artigo 31º, o disposto no número anterior não se aplica quando se tratar de imputação de facto relativo à intimidade da vida privada e familiar.
4. A boa-fé referida na alínea b) do nº 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação.»
Por sua vez, os arts.183.º, n.º1, alínea a), e 184, preceituam sobre os termos da agravação das penas no crime de difamação do C.Penal.
O bem jurídico protegido pelo crime de difamação é a honra, a qual tem de ser vista numa dupla perspectiva: a honra interior, que se reconduz ao juízo valorativo que cada pessoa faz de si mesma e a honra exterior, equivalente à representação que os outros têm sobre o valor de uma pessoa, ou seja, a reputação, o bom nome, a consideração que uma pessoa goza no meio social. Como escreve o Prof.Beleza dos Santos, in “Algumas Considerações Jurídicas sobre Crimes de Difamação e de Injúria”, RLJ ano 92, n.º3152, pág.167/168, a honra consubstancia-se «naquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale» e a consideração é «aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa (…) ao desprezo público. (…). A honra refere-se ao apreço de cada um por si, à auto-avaliação no sentido de não ser um valor negativo, particularmente do ponto de vista moral.
A consideração ao juízo que forma ou pode formar o público no sentido de considerar alguém um bom elemento social ou ao menos de não o julgar um valor negativo».
Porém, a ofensa à honra e consideração não pode ser perspectivada em termos estritamente subjectivos, ou seja, não basta que alguém se sinta atingido na sua honra –, na perspectiva interior/exterior – para que a ofensa exista. Para concluir se uma expressão é ou não ofensiva da honra e consideração, é necessário enquadrá-la no contexto em que foi proferida, o meio a que pertencem ofendido/arguido, as relações entre eles, entre outros aspectos. Nesta linha de raciocínio, o Prof.Beleza dos Santos, na ob. cit., pág.167, citando Jannitti Piromallo, escreve «os crimes contra a honra ofendem um sujeito, mas não devem ter-se em conta os sentimentos meramente pessoais, senão na medida em que serão objectivamente merecedores de tutela».
Para além da imputação de factos ou juízos ofensivos dessa honra é ainda elemento do tipo de difamação que tal imputação seja feita não directamente ao ofendido mas dirigindo-se a terceiro.
O direito ao bom-nome e reputação, com consagração constitucional [art.26.º da CRP] conflitua, por vezes, com o princípio constitucional da liberdade de expressão [art.37.º da CRP], o qual se traduz no direito de exprimir e divulgar livremente o pensamento, bem como o direito de informar, sem impedimentos ou discriminações.
Este direito tem uma grande amplitude, permitindo que se emitam juízos desfavoráveis, contundentes, críticas, embora sujeito a limites, designadamente, o respeito devido à honra e dignidade.
Porém, os direitos ao bom-nome e reputação e à livre expressão, que têm, em princípio, igual valor não podem ser entendidos em termos absolutos e, em caso de conflito, têm de ser harmonizados nas circunstâncias concretas.
Importa, a respeito, ter em linha de conta o estatuído na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, designadamente no seu art.10º, o qual estatui:
«1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia.
2. O exercício desta liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial».
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem entendido, em vários arestos, que «a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de todas as sociedades democráticas, sendo uma das condições primordiais para o seu progresso e para o desenvolvimento de cada um.» Assim o exigem o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura, sem os quais não existe uma «sociedade democrática». «“os limites da crítica admissível são mais amplos em relação a um homem político, agindo na sua qualidade de personalidade pública” do que em relação a um simples cidadão (§ 30, ii). Assim o é porque “o homem político expõe-se inevitável e conscientemente a um controlo atento dos seus factos e gestos, tanto pelos jornalistas como pela generalidade dos cidadãos». – v.entre outros, TEDH de 28/9/2000, no caso Lopes Gomes da Silva c. Portugal, de 30/3/2004, no caso Radio France e outros c. França.
Ora, uma das manifestações da liberdade de expressão é o direito que cada pessoa tem de exercer o direito de crítica, nomeadamente, a nível político.
Revertendo ao caso presente, o arguido, no âmbito de uma campanha eleitoral, publicou no Facebook um vídeo em que, referindo-se ao Presidente da Junta de Freguesia da União de Freguesias de …, Vila Nova de Gaia, em exercício, denunciante nos presentes autos, afirmou: “uma campanha de difamação pública, uma campanha de infâmia e da calúnia, praticada pelo actual presidente da Junta que é um psicopata político, que lhe meteram um brinquedo nas mãos e ele sem saber ler nem escrever está a fazer um trabalho péssimo a denegrir e tirar importância política que a freguesia tem (…)”, “(…) ele é a excepção à regra, não sabe respeitar os valores de Abril, não sabe respeitar ninguém, chantageia as pessoas, é um mentiroso compulsivo (…)”, “(…) próprio de quem não foi fruto da liberdade de Abril e que estaria muito mais próximo da Coreia do Norte ou então daquele saudoso, negativamente como é óbvio, ditador alemão que deu cabo do mundo. É na presença de um indivíduo desses que nós estamos (…)”; “(…) o voto é secreto, sei que há muitas pessoas e colectividades em Pedroso que estão chantageadas e perseguidas por este senhor (…)”;“(…) deixem lá o tiraninho, não lhe deiam gás (…)”.
Estas expressões, embora contundentes, agressivas, integram-se num contexto de disputa política e eleitoral, visando a actuação do denunciante enquanto Presidente da Junta de Freguesia e candidato na eleição a realizar-se, o seu comportamento político e não o denunciante em si mesmo, o mero cidadão, nem a vida pessoal deste. Como escreveu Manuel da Costa Andrade, in Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra Editora, página 266, «a fronteira do permitido só é ultrapassada quando a valoração negativa deixa de dirigir contra a específica pretensão de mérito – como seja a imagem construída de forma mais ou menos planificada de um político ou de uma empresa – para atingir directamente a substância pessoal».
O Presidente de uma Junta de Freguesia, exercendo um cargo público, tem uma maior exposição e tem de se sujeitar à crítica, a qual é comunitariamente aceite, ainda que se recorra a expressões contundentes, desagradáveis, grosseiras.
Nesta decorrência, as expressões proferidas pelo arguido, pese embora agressivas e contundentes, uma vez proferidas no âmbito de uma campanha eleitoral em que arguido e denunciante faziam parte de listas concorrentes, estão cobertas pela liberdade de expressão constitucionalmente garantida e por esta razão tem de se considerar não provado que o arguido tivesse agido com a consciência da punibilidade da sua conduta.
Pelo exposto, nas circunstâncias e contexto em que as expressões em causa foram proferidas pelo arguido, não se mostra preenchido o crime de difamação agravada pelo qual foi condenado, impondo-se antes a sua absolvição.
Assente que o arguido/recorrente não incorreu na prática do crime de difamação, há que retirar as consequências quanto ao pedido de indemnização civil – art.403.º n.º3 do C.P.Penal.
Uma vez que não resultou provado que o comportamento do arguido foi ilícito, improcede o pedido de indemnização civil contra ele deduzido, pois o seu fundamento era a prática do facto ilícito, sendo que face à doutrina fixada pelo Assento nº7/99 de 17/6/1999, DR nº179/99 série I-A de 3/8/1999, face à absolvição do arguido, “este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual aquiliana, com exclusão da responsabilidade contratual.”
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Não se mostrando preenchido o crime de difamação, torna-se inútil a apreciação das demais questões suscitadas no recurso e pelo Sr.Procurador-Geral Adjunto.
III – DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os juízes na 1ªsecção criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso interposto pelo arguido B… e em consequência, revogando a sentença recorrida, absolver o arguido da prática do crime de difamação de que foi acusado, bem como do pedido cível deduzido.
Sem custas quanto à parte crime (art.513.º do C.P.Penal)
Condenar o demandante nas custas do pedido cível na 1ªinstância (art. 523.º do C.P.Penal.
(texto elaborado e revisto pela relatora)

Porto, 29/4/2020
Maria Luísa Arantes
Luís Coimbra
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[1] Acórdão Tribunal da Relação do Porto de 08 de Maio de 2019, processo n.º 5850/16.3T9PRT.P1., disponível em www.dgsi.pt.
[2] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora em 07/03/2017 no âmbito do processo n.º 46/14.1T9ALR.E1, disponível em www.dgsi.pt