Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
35/19.0IDPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO PEDRO NUNES MALDONADO
Descritores: CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
CONDIÇÃO OBJETIVA DE PUNIBILIDADE
RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA
Nº do Documento: RP2021021735/19.0IDPRT.P1
Data do Acordão: 02/17/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Em caso de prática de crime de abuso de confiança fiscal, a existência de um acordo de pagamento anterior ao termo dos prazos estabelecidos como condição objetiva de punibilidade no artigo 105.º, n.º 4, b), do R.G.I.T, ou deles contemporâneo, e até o cumprimento parcial desse acordo no âmbito desses prazos, é irrelevante no plano da responsabilidade penal, que é distinto do da responsabilidade tributária
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº35/19.0IDPRT.P1
Acórdão deliberado em conferência na 2ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto.
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I. B… interpôs recurso da sentença proferida no processo comum singular nº 35/19.0IDPRT do juízo local criminal de Vila do Conde, Tribunal Judicial da Comarca do Porto, que o condenou pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105°, nº 1, da Lei nº15/2001, de 5 de Junho, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de sete euros (€7), o que perfaz €630,00.
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I.1. Sentença recorrida (que se transcreve parcialmente nas partes relevantes).
(…) II. Fundamentação
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos com interesse para a decisão a proferir:
1. A sociedade arguida “C…, Unipessoal, Lda.” é uma sociedade comercial por quotas registada desde 2013 na Conservatória do Registo Comercial e que tem por objecto social a actividade de design.
2. Na qualidade de sujeito passivo de obrigações fiscais mostra-se enquadrada no regime normal de periodicidade trimestral em sede de Imposto sobre o Valor Acrescentado.
3. Por sua vez o arguido B… é, desde 2017, o único gerente da sociedade arguida e seu único responsável, tomando todas as decisões respeitantes à actividade da mesma e representando-a perante terceiros.
4. Durante o exercício da sua actividade a sociedade arguida, através do arguido seu gerente e representante, liquidou IVA que foi recebendo dos seus clientes pelos serviços que lhes prestou, sendo que, no segundo trimestre de 2018, o montante do imposto apurado totalizou €9.281,66.
5. Porém, não procedeu à entrega desse montante nos cofres do Estado apesar de ter remetido aos Serviços de Administração do IVA a declaração periódica relativa às operações efectuadas naquele período.
6. Com efeito, as quantias recebidas a título de IVA deveriam ter sido entregues, juntamente com as respectivas declarações periódicas, até ao dia 15 do 2º mês seguinte ao trimestre a que respeitam as operações.
7. Contudo, os arguidos não entregaram naqueles serviços de Administração ou em qualquer outro local de cobrança legalmente autorizado, nem no aludido prazo nem no prazo de 90 dias a contar da data legalmente fixada para a entrega do imposto, a referida quantia de € 9.281,66, de que se apropriaram fazendo-a ingressar no acervo patrimonial da sociedade arguida.
8. O arguido B… tinha perfeita consciência da obrigação de entregar ao Estado os quantitativos retidos a título de IVA no período mencionado, e também não procedeu ao pagamento de tal quantia, acrescida dos juros respectivos e coima aplicável, nos 30 dias após as notificações que a ele e à sociedade arguida lhes foram feitas para tal fim.
9. Agiu por si e na qualidade de gerente e representante da co-arguida, de forma livre e consciente, bem sabendo que o dinheiro em causa se destinava e era devido ao Estado e que, com a referida conduta, estava a enriquecer o património da sociedade arguida na exacta medida em que empobrecia o património do Estado.
10. Agiu voluntária, livre e conscientemente, em nome e no interesse da sociedade arguida e na qualidade de seu representante legal, bem sabendo que a sua conduta violava preceitos legais.
Mais se apurou, quanto ao arguido que:
11. A 24/09/2018, o Arguido, na qualidade de gerente e representante da sociedade, apresentou requerimento junto do Serviço de Finanças da Póvoa de Varzim para pagamento em vinte e quatro prestações do montante em dívida do IVA respeitante ao 2.º trimestre do ano de 2018.
12. O pedido referido em 11 foi deferido pela Autoridade Tributária, tendo o plano prestacional sido integralmente cumprido a 13.03.2020. (…).
23. O Arguido tem antecedentes criminais, tendo sido condenado por sentença datada de 16/10/2012, transitada em julgado em 05/11/2012, no âmbito do Proc. n.º 6357/11.0IDPRT, que correu termos no Tribunal Judicial de Vila do Conde – 1.º Juízo Criminal, pela prática, em 24/05/2011, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. p. pelo artigo 105.º n.º 1 do Regime Geral das Infrações Tributárias e artigo 30.º do Código Penal, na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa à taxa diária de €7,00 (sete euros), que perfaz o total de €980,00 (novecentos e oitenta euros).
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Factos não provados: Inexistem. (…)
III - Motivação (…).
IV – Fundamentos de Direito:
No domínio das infracções fiscais, são dois os tipos legais incriminadores de referência previstos no RGIT, aprovado pela Lei nº15/2001, de 5 de Junho: o crime de fraude (art. 103º) e o crime de abuso de confiança, (art. 105º). Paralelamente, o RGIT prevê dois outros tipos especificamente dirigidos à protecção do erário da segurança social – a fraude contra a segurança Social (art. 106º) e o abuso de confiança contra a segurança social (107º).
O abuso de confiança é um crime doloso, isto é, dir-se-á preenchido o tipo de ilícito subjectivo quando o agente actue com consciência (elemento intelectual) e de forma livre (elemento volitivo) relativamente a todos os elementos do tipo de ilícito objectivo.
A punição pela prática deste crime está sujeita às condições de punibilidade previstas no nº4 do art. 105º.
O IVA é um imposto que é devido e que se torna exigível nas transmissões de bens a título oneroso no momento em que esses bens são postos à disposição do adquirente, sendo a sua liquidação feita por força da lei, de modo instantâneo, de tal forma que é logo cobrado ao mesmo adquirente, juntamente com o preço dos bens ou serviços.
Recebido o preço e o IVA correspondente, o sujeito passivo fica desde logo devedor ao Estado do imposto que recebeu com a obrigação de o entregar a este, sendo mero depositário dessa quantia.
Se a não entregar, incorre nas sanções previstas no artigo 105º do R.G.I.T., decorrido que seja o prazo de 90 dias, previsto no nº 4 deste preceito.
A punição pela prática deste crime está ainda sujeita à não verificação da causa de extinção da responsabilidade prevista no nº6 do art. 105º, a qual se encontrava em vigor à data da prática dos factos.
Nos termos do nº 1, do artigo 105º, do R.G.I.T. - Regime Geral das Infracções Tributárias -, aprovado pela Lei nº15/2001, de 5 de Junho, “Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da Lei e que estava legalmente obrigado a entregar, é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.”
O nº 4 determina que “os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.”
Por outro lado, o artigo 6º do R.G.I.T. prevê igualmente que “quem agir voluntariamente como titular de um órgão, membro ou representante de uma pessoa colectiva, sociedade (...), será punido (...).”
O bem jurídico tutelado com o crime de abuso de confiança fiscal assume uma natureza eminentemente patrimonial, consubstanciada na tutela do erário público, reflectido na satisfação de créditos.
O comportamento típico do agente infractor radica primordialmente numa omissão, qual seja a não entrega, total ou parcial, no prazo legal, da prestação tributária devida.
Nos termos do artigo 5º, nºs 1 e 2, do R.G.I.T., “as infracções fiscais consideram-se praticadas no momento (...) em que o agente actuou ou (...) naquele em que o resultado típico se tiver produzido” e as “infracções tributárias omissivas consideram-se praticadas na data em que termine o prazo para o cumprimento dos respectivos deveres tributários”.
Ora, no caso concreto, atenta a factualidade que se deu como provada, constata-se que o arguido, efectivamente, enquanto representante legal da sociedade referida na acusação pública, no interesse desta e em sua representação, o arguido liquidou e recebeu IVA dos seus clientes que, nos termos dos artigos 26º e 40º do Código IVA, tinha que entregar até ao dia 15 do segundo mês seguinte àquele a que respeitam as operações, simultaneamente com as declarações periódicas referidas no artº 28º do CIVA.
Assim, não foi entregue nos cofres do Estado IVA liquidado e recebido no montante total de €9.281,66 (nove mil, duzentos e oitenta e um euros e sessenta e seis cêntimos) no período supra discriminado, sendo por isso indiscutível que o crime se consumou.
Com efeito, a este propósito, temos que “a jurisprudência, reiteradamente, vem afirmando que o crime de abuso de confiança fiscal é um crime omissivo puro que se consuma no momento em que o agente não entregou a prestação tributária que devia, ou seja, consuma-se no momento em que o mesmo não cumpre a obrigação tributária a que estava adstrito, haja ou não haja entrega da declaração tributária” – cf. neste sentido, por todos, o Acórdão de 17.04.2013, proc. 496/11.5IDLSB.L1-3, in www.dgsi.pt. De resto, no mesmo sentido, aflorou o AUJ n.º 6/2008, de 09/04, no âmbito do qual se refere que “a aparição das condições objetivas de punibilidade é indiferente para o lugar e tempo do facto”.
Por conseguinte, é nosso entender, que não obsta à verificação do crime a circunstância do arguido ter celebrado acordo prestacional com a AT, mesmo que dentro do prazo de 90 dias previsto como condição objectiva de punibilidade, visto que a mesma só não opera caso o arguido tivesse procedido ao pagamento integral dentro de tal prazo, o que manifestamente não é o caso, tal como não o fez após o prazo de 30 dias concedido nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b), do nº4 do artigo 105º do RGIT.
Isto posto, e por outro lado, provou-se igualmente que o arguido agiu livre e conscientemente, em representação e no interesse da sociedade referida na acusação pública, não ignorando que o seu comportamento era proibido por lei.
Por conseguinte e face ao exposto, impõe-se a responsabilização penal do arguido.(…).
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I.2. Recurso do arguido (conclusões que se transcrevem parcialmente).
2. Em relação ao julgamento da matéria de facto, esta foi incorrectamente julgada por omitir do elenco dos factos provados o facto de o arguido, à data da notificação da Autoridade Tributária nos termos e para os efeitos do artigo 105º, nº 4, alínea b) do RGIT, já ter pago o montante de 6425,90€, correspondente a 8 prestações do acordo.
3. Esta matéria, pese embora não ter sido alegada na acusação ou na contestação, resultou da discussão da causa e é relevante para a decisão.
4. Assim, ao elenco dos factos provados deverá ser aditado como facto provado o seguinte:
− O arguido à data da notificação mencionada no ponto 8, já tinha pago, em cumprimento do acordo prestacional celebrado com a Autoridade Tributária mencionado no ponto 11, o montante de 6425,90€, correspondente a 8 prestações do acordo.
5. O concreto meio de prova que impõe a decisão neste sentido é o documento junto aos autos de fls 214 a 216 – “detalhe do plano prestacional”
6. São pressupostos da não punibilidade do crime de abuso de confiança fiscal, nos termos da alínea b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT, a obrigação da Autoridade Tributária notificar o contribuinte em mora e para este a condição de pagamento do montante em falta como condição de não accionamento do procedimento criminal pelo crime de abuso de confiança.
7. O arguido, à data da aludida notificação, já não estava em mora, por ter celebrado, em 24.09.2018, acordo de pagamento em prestações do tributo declarado.
8. A notificação da Autoridade Tributária feita ao arguido, nos termos da alínea b) do nº 4, do artigo 105º do RGIT para proceder ao pagamento do tributo declarado de demais acréscimos, por ser omissa ou desconsiderar o acordo prestacional e o valor entretanto pago pelo arguido de 6425,90€, em cumprimento do mesmo, não cumpre a obrigação que lhe está imposta de notificar o contribuinte para regularizar a sua situação tributária, que, à data da notificação, era já inferior à declarada.
9. Por conseguinte, sendo a obrigação de notificação para a regularização da dívida e o pagamento no prazo de 30 dias pressupostos da não punibilidade, faltando um, como faltou, não está verificada a condição objectiva de punibilidade imposta pela lei, a não ser com violação dos princípios da boa-fé e da confiança, ínsitos no acordo celebrado com a Administração Pública, consagrados no artigo 266º da CRP.
10. A douta sentença recorrida, ao condenar o arguido, violou ou mal aplicou os artigos 368º do CPP e 105º, nº 1 e 4, do RGIT, pelo que, julgando-se procedente o recurso, deverá a douta sentença ser revogada e o arguido absolvido, como é de JUSTIÇA.
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I.3. Resposta do MºPº (conclusões que se transcrevem integralmente pela invulgar qualidade de síntese e, especialmente, de sinóptica).
AA - Do objecto do recurso ao qual respondemos
1. O objecto do recurso ao qual respondemos prende-se com a resolução das seguintes questões: i) – saber se houve um erro na fixação da matéria de facto em virtude não ter sido dado como provado que, aquando da notificação a que alude o art. 105º, nº 4, alínea b), do R.G.I.T., o arguido já tinha pago às finanças o montante de € 6.425,90 do valor global indicado na acusação; ii) - saber se a celebração, ente o arguido e as finanças de um acordo de pagamento prestacional relativo à quantia apropriada [firmado dentro do prazo de 90 dias ao qual alude o art. 105º, nº 4, alínea a), do R.G.I.T.], e o cumprimento pontual do mesmo, têm algum efeito de inoperância sobre
uma ulterior notificação feita pelas próprias finanças na pendência desse acordo, nos termos do disposto no art. 105º, nº 4, alínea b), do R.G.I.T..
BB.1) - Da questão relacionada com o facto de se verificar um pagamento da quantia de €6.425,90 aquando da notificação a que alude o art. 105º, nº 4, alínea b), do R.G.I.T.
2. Embora o conteúdo do facto em apreço tenha resultado como provado na audiência de julgamento consideramos, todavia, que o chamamento expresso do mesmo à matéria de facto dada como provada seria despiciendo pois tal inclusão não se mostra, em nada, idónea a alterar, ou a poder alterar, o sentido da sentença proferida no caso vertente, quer do ponto de vista da condenação, quer do ponto de vista da medida da pena.
3. A este propósito, refira-se que a sentença incluiu nos pontos 11.) e 12.) dos factos provados que o arguido, em representação da sociedade, apresentou requerimento junto do Serviço de Finanças da Póvoa de Varzim para pagamento em prestações do montante em dívida do IVA respeitante ao 2.º trimestre do ano de 2018, bem como que o referido pedido foi deferido pela Autoridade Tributária, tendo o plano prestacional sido integralmente cumprido a 13 de Março de 2020.
4. Logo, perante este acervo factual afigura-se-nos que seria sempre redundante levar à matéria de facto provada o facto agora invocado pelo arguido pois o Tribunal até já o teve implicitamente em linha de conta na mensuração da pena.
BB.2) - Da questão relacionada com o pretenso efeito do acordo de pagamento como causa de não verificação da condição objectiva de punibilidade do art. 105º, nº 4, alínea b), do R.G.I.T., por esta ter correspondido a uma notificação com a introdução dum novo prazo de pagamento efectuada na pendência do acordo antedito
5. O que em primeira linha se deve reter para perceber que não assiste razão ao arguido nesta matéria é o facto de que, independentemente de existir um acordo de pagamento em prestações entre este e a administração fiscal relativamente à quantia descrita na acusação e da qual este indevidamente se apropriou, tal circunstância não
afecta a consumação e inerente preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do crime fiscal que aqui lhe é imputado até pela simples razão de que, aquando de tal acordo, o crime já tinha sido cometido, como se retira da observação das datas em que o prazo legal para o pagamento do período em apreço se esgotou.
6. O que está em causa é a verificação ou não das condições objectivas de punibilidade.
7. Mas também aqui nos parece não dever haver discussão visto que, à luz das datas supra sublinhadas, também estes prazos se esgotaram na sua totalidade sem que o arguido tivesse procedido ao pagamento integral da quantia em causa identificada na acusação, sendo indiferente e juridicamente irrelevante para o preenchimento das referidas condições objectivas de punibilidade que, na pendência dos dois prazos em apreço, o arguido tivesse feito pagamentos parciais do valor em dívida e que, ademais, existisse um acordo de pagamento entre este e a administração fiscal celebrado na pendência do supra mencionado prazo de 90 dias.
8. Ao arguido foram devidamente concedidas todas as “possibilidades” legais e temporais do ponto de vista criminal para a realização integral do pagamento em apreço, tendo decorrido um período muito superior a 90 dias entre o fim do prazo de pagamento originário do período fiscal em causa e a notificação a que alude o art. 105º, nº 4, alínea b), do R.G.I.T. que, por sua vez, lhe conferiu, para além desses 90 dias já decorridos, ainda mais 30 dias para realização do pagamento em falta. Não obstante, o pagamento integral da quantia em causa não foi tempestivamente efectuado.
9. Não pode portanto o arguido, sem mais, concluir que um acordo de pagamento tributário em prestações produza efeitos interruptivos ou suspensivos dos prazos a que alude o art. 105º, nº 4, do R.G.I.T.
10. Uma coisa é a dívida fiscal e o procedimento tributário tendente à sua cobrança, inclusivamente na fase da cobrança coerciva, que naturalmente deverá suspender-se caso haja um acordo de pagamento a ser pontualmente cumprido pelo devedor. Outra coisa diferente é o procedimento criminal e suas regras, sendo certo que: a – por um lado, nem o acordo em causa, nem o seu deferimento pelas finanças, fazem qualquer referência ao procedimento criminal nem à sua eventual instauração ou suspensão ou aos prazos necessários para o efeito; e b - por outro lado, há um princípio de legalidade ao qual também as finanças estão vinculadas quando constatam o cometimento de um crime de onde resulta a respectiva obrigatoriedade de ser efectuada a notificação a que alude o art. 105º, nº 4, alínea b), do R.G.I.T. após o
decurso do prazo da alínea a), do mesmo preceito legal sem que a quantia em dívida se mostre paga sob pena de, se assim não agirem, poderem ser as próprias finanças a prevaricar por acção consciente contra direito e a incorrer, por isso, em responsabilidade criminal.
11. De todo o modo, ainda que de alguma maneira o arguido tivesse traçado tal conclusão equívoca, o que é certo é que, aquando da acima destacada notificação por ele recebida a 06 de Junho de 2019, nos termos do disposto no art. 105º, nº 4, alínea b), do R.G.I.T., este ficou a perceber que tal suspensão ou interrupção de prazo não tinha ocorrido.
12. E se houvesse alguma irregularidade a suscitar com tal notificação ou com o momento em que era empreendida, deveria o arguido tê-la suscitado tempestivamente, o que nunca aconteceu, pelo que, a ter havido alguma irregularidade, o que não aceitamos, esta ter-se-ia sanado com a inacção do arguido neste particular.
13. Aliás, sobre uma situação idêntica à observada nestes autos, já se pronunciou expressamente o Tribunal da Relação de Guimarães em concordância com a tese por nós supra defendida. Tal decisão foi proferida no processo nº 480/15.0T9PTL.G1, em que foi Relatora a Exma. Sra. Desembargadora Ausenda Gonçalves estando a parte relevante da mesma supra transcrita.
14. Noutro passo, cumpre afirmar que a jurisprudência é unânime quanto à irrelevância criminal, como pretenso
obstáculo ao preenchimento das respectivas condições objectivas de punibilidade, do facto dos arguidos procederem ao pagamento parcial da quantias em dívida dentro dos prazos a que alude o art. 105º, nº 4, do R.G.I.T.. Neste sentido, vejam-se, a título de exemplo, os seguintes Acórdãos: Acórdão do Tribunal de Coimbra de 24 de Abril de 2013, processo nº 122/09.2IDVIS.C1 e Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 19 de Dezembro de 2013 (ambos disponíveis no site: www.dgsi.pt).
15. Em suma, as duas condições objectivas de punibilidade previstas no art. 105º, nº 4, do R.G.I.T. preencheram-se válida e eficazmente nos presentes autos, ainda que o prazo da primeira delas se tenha completado durante a pendência e cumprimento dum acordo da pagamento da divida tributária em questão e ainda que a segunda delas tenha ocorrido na sequência duma notificação especificamente realizada para o efeito pelas finanças após o decurso do prazo da alínea a), do nº 4, do R.G.I.T., mas na pendência do antedito acordo.
16. Face a todo o exposto, considerando a globalidade dos pontos destas conclusões e, bem assim, de toda a motivação da presente resposta a recurso que lhes subjaz e aqui damos por integralmente reproduzida para os devidos efeitos legais, é de concluir que a decisão recorrida não é merecedora de qualquer reparo susceptível de alterar o seu conteúdo ou sentido, total ou parcialmente, pelo que deverá o recurso apresentado ser julgado integralmente improcedente, mantendo-se deste modo como assente toda a factualidade consolidada na sentença e todo o demais decidido, designadamente a condenação que sobre o arguido impendeu e respectiva pena aplicada.
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I.4. Parecer do Ministério Público na Relação (que se transcreve parcialmente)
Na verdade, aquilo que o arguido pretende é fazer equivaler o acordo de pagamento prestacional que celebrou com a Administração Fiscal ao pagamento integral em prazo previsto no artigo 105.º n.º4, alínea b), do RGIT para efeito de considerar inverificada a condição objetiva de punibilidade.
São, no entanto, realidades jurídicas diversas.
E sendo diversas só poderíamos chegar à referida equivalência por um esforço interpretativo.
Sucede que esse esforço interpretativo no conduz precisamente no sentido contrário.
Em primeiro lugar, não devemos esquecer que o principio da legalidade, como tem sido reiteradamente afirmado pelo Tribunal Constitucional, abrange na exigência de uma lei da Assembleia da República, ou por ela autorizada, não só a criminalização (ou maior criminalização) como também a descriminalização (ou menor criminalização); daí que um caminho interpretativo que conduza, por analogia, a uma redução do âmbito de punibilidade, embora teoricamente admissível, só muito excepcionalmente deva ser trilhado e para colmatar situações de gritante inépcia do legislador –cfr. neste sentido a argumentação que conduziu ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2010, in Diário da República, 1.ª série, de 23.09.2010.
Ora, no caso basta pensar que o legislador, quando desenhou a norma da alínea b) do n.º4 do artigo 105º do RGIT conhecia perfeitamente as possibilidades de pagamento em prestações constantes do Código de Procedimento e de Processo Tributário e de diplomas avulsos que ao longo do tempo foi criando; partindo dos critérios de interpretação constantes do artigo 9.º do Código Civil, a única conclusão a tirar é a de que se não consagrou a celebração de acordo de pagamento em prestações como excludente da punibilidade foi porque não quis. Como se refere no Acórdão da Relação do Porto de 03.02.2016, relatado por António Gama, citação também feita no Acórdão da Relação de Guimarães referido na resposta, “diremos apenas que essa “equivalência”, podendo o legislador tê-la feito, o certo é que não a fez, e não pode o juiz, a pretexto de interpretação, invadir a competência do legislador”. (…)
Em CONCLUSÃO, somos de parecer que o recurso não merece provimento, devendo manter-se a decisão condenatória nos seus precisos termos, assim como a pena aplicada.
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II. Objecto do recurso.
Pretende o recorrente ver acrescentado à decisão proferida sobre a matéria de facto os seguintes factos apurados em sede de audiência de julgamento - O arguido à data da notificação mencionada no ponto 8, já tinha pago, em cumprimento do acordo prestacional celebrado com a Autoridade Tributária mencionado no ponto 11, o montante de 6425,90€, correspondente a 8 prestações do acordo – e, com fundamento em tal facto, ver alterada a decisão proferida sobre matéria de direito no sentido da sua absolvição.
II.1. Do pagamento da quantia de €6.425,90 anterior à notificação a que alude o art. 105º, nº 4, alínea b), do R.G.I.T. no âmbito de um acordo para pagamento em vinte e quatro prestações do montante em dívida do IVA respeitante ao 2.º trimestre do ano de 2018.
O tribunal deu como provado que a 24/09/2018, o arguido, na qualidade de gerente e representante da sociedade, apresentou requerimento junto do Serviço de Finanças da Póvoa de Varzim para pagamento em vinte e quatro prestações do montante em dívida do IVA respeitante ao 2.º trimestre do ano de 2018, pedido que foi deferido pela Autoridade Tributária, tendo o plano prestacional sido integralmente cumprido a 13.03.2020.
Apesar de se não concretizar a pagamento de prestações determinadas o tribunal fez referência, de forma oficiosa, ao plano prestacional convencionado, no âmbito da responsabilidade tributária do arguido, à sua localização temporal e ao seu integral cumprimento. Tais factos, como se pode extrair da decisão sobre a matéria de direito e do recurso do arguido, são rigorosamente aqueles que balizam a apreciação da responsabilidade criminal do recorrente. Neste sentido não existe a pretendida omissão de pronúncia
II.2. Do acordo de pagamento como causa de não verificação da condição objectiva de punibilidade do art. 105º, nº 4, alínea b), do R.G.I.T.
A não entrega à administração tributária, total ou parcial, de prestação tributária legalmente devida só é punível se a prestação comunicada à autoridade tributária através da correspondente declaração não for paga (acrescida de juros e coima aplicáveis) no prazo de 30 após notificação para o efeito – artigo 105º, nºs 1 e 4, alínea b), do RGIT (aprovado pela Lei nº15/2001, de 05 de Junho).
Na sentença recorrida entendeu-se que não obsta à verificação do crime a circunstância do arguido ter celebrado acordo prestacional com a AT, mesmo que dentro do prazo de 90 dias previsto como condição objectiva de punibilidade, visto que a mesma só não opera caso o arguido tivesse procedido ao pagamento integral dentro de tal prazo, o que manifestamente não é o caso, tal como não o fez após o prazo de 30 dias concedido nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b), do nº4 do artigo 105º do RGIT. Para tal entendimento concorre a natureza do crime em causa - crime omissivo puro - que se consuma no momento em que o agente não cumpre a obrigação tributária sendo, neste sentido, indiferente para a localização espacial e temporal do facto criminoso as designadas condições objectivas de punibilidade (referindo, nesta parte, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº6/2008, de 09 de Abril).
Assiste razão ao julgador sendo certo que o recorrente confunde a responsabilidade tributária com a responsabilidade penal do agente talvez pelo facto de ser gerada pela mesma omissão (sobre a autonomia das referidas responsabilidades, Germano Marques da Silva, Direito Penal Tributário, 2ª edição, UCE, 2018, pág.118 a 119).
A jurisprudência, de forma massiva, tem considerada irrelevantes a existência de um acordo de pagamento anterior ou contemporânea ao termo do prazos estabelecidos como condição objectiva de punibilidade e, até mesmo, o seu cumprimento parcial no âmbito dos referidos prazos (cfr. Acórdãos do TRPorto, processo nº 2607/13.7IDPRT.P1, TRGuimarães, processo nº480/15.0T9PTL.G1, do TRCoimbra, processo nº122/09.IDVIS.C1e TRÉvora, processo nº 388/11.8IDFAR.E1, disponíveis em www.dgsi.pt).
Por fim, no que concerne à justiça da solução legal no plano dos princípios (no sentido de fazer corresponder a não verificação da condições objectiva de punibilidade nos casos de existência de acordo e seu cumprimento pontual) citaremos um segmento do referido acórdão proferido por esta relação: “(…) essa “equivalência”, podendo o legislador tê-la feito, o certo é que não a fez, e não pode o juiz, a pretexto de interpretação, invadir a competência do legislador.
As realidades são diferentes o que justifica materialmente a diversidade de tratamento jurídico: pagar a prestação acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito (art.º 105º, n.º4 al. b) do RGIT), não é assimilável ao acordo de pagamento, do mesmo montante em 24 prestações mensais sucessivas. O pagamento imediato como modo de liquidação de uma prestação tributária é um facto que ocorreu numa data determinada; o acordo de pagamento, diferido no tempo, reportando-nos à mesma prestação tributária, só se transforma em pagamento total, que é o que releva no caso, com a liquidação da última prestação, facto que à data da acusação (…) ainda não tinha ocorrido e não se pode ficcionar. (…)”
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III. Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 UCS (artigos 513º, nº1, do Código de Processo Penal e 8º, nº9, do RCP, com referência à Tabela III).
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Porto, 17 de Fevereiro de 2021
João Pedro Nunes Maldonado
Francisco Mota Ribeiro