Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0524881
Nº Convencional: JTRP00038427
Relator: ALBERTO SOBRINHO
Descritores: DELIBERAÇÃO SOCIAL
ANULAÇÃO
CADUCIDADE
Nº do Documento: RP200510180524881
Data do Acordão: 10/18/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: .
Sumário: A pendência do procedimento cautelar de suspensão da deliberação não impede o decurso do prazo de caducidade de propositura da acção de anulação respectiva.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório

B.........., residente na Rua .........., nº ...., em .........., e C.........., residente na mesma rua, nº ...., instauraram Procedimento Cautelar de Suspensão de Deliberações Sociais

contra

D.........., Ldª, com sede no .........., freguesia de ..........,

requerendo que se ordene a suspensão das deliberações sociais da Assembleia Geral da requerida de 31 de Maio de 2005 e, consequentemente, declarados suspensos os seus efeitos, por se apresentarem feridas de nulidade essas deliberações.

Opôs-se a requerida a esta pretensão defendendo, em suma, a regularização das deliberações tomadas e que a providência deverá ser julgada injustificada.

Posteriormente, veio a requerida invocar a caducidade da providência requerida por não ter sido instaurada tempestivamente a respectiva acção de anulação, pretensão que os requerentes defenderam carecer de qualquer fundamento.

O Mmº juiz, considerando que a posição assumida sobre o ponto nº 1 da ordem de trabalhos não constitui uma deliberação social, decidiu não poder o mesmo ser objecto da presente providência; e, por outro lado, dando acolhimento à pretensão da requerida, considerou que caducou o direito de impugnar a validade das deliberações tomadas na Assembleia Geral e, consequentemente, julgou extinto o procedimento cautelar por impossibilidade superveniente da lide.

Inconformados com o assim decidido, agravaram os requerentes, defendendo tratar-se de uma verdadeira deliberação social a posição tomada sobre o ponto nº 1 da ordem de trabalhos e que ainda não se esgotou o prazo para instaurarem a competente acção de anulação.

Contra-alegou a requerida, defendendo a manutenção do decidido.

II. Âmbito do recurso

A- De acordo com as conclusões, a rematar as suas alegações, verifica-se que o inconformismo dos agravantes radica no seguinte:

1- Deliberar sobre a designação formal da cabeça de casal de herança, como representante comum de duas quotas indivisas que pertenceram a dois falecidos associados, não constitui um acto comercial ou obrigação de comerciante;

2- No entanto, não pertencendo tal deliberação à vida interna de sociedade comercial e não devendo por isso ser objecto de deliberações sociais, tendo-se reunido a Assembleia Geral da sociedade requerida e tendo deliberado sobre essa matéria, não se pode dizer que essa deliberação social é inexistente; as regras processuais aplicáveis a esse caso são as do processo civil e as consequências jurídicas para essa concreta deliberação serão as previstas no Direito Civil;

3- E isto porque não é possível intentar acções independentes relativas a cada um dos objectos das deliberações tomadas naquela Assembleia Geral, sendo certo que a adopção dessa via processual não conduz à preterição de quaisquer direitos e garantias da requerida, ao contrário do que aconteceria aos direitos dos requerentes, quando se pretende submeter todas aquelas deliberações à disciplina do Código Comercial, não obstante uma dessas deliberações ter natureza exclusivamente civil;

4- Antes, nos termos do art.° 56.°, n.° l, alínea c) deve considerar-se que tal deliberação é nula, porque o seu conteúdo, não está, por natureza, sujeito a deliberação dos sócios;

5- Aliás, tal deliberação é ainda nula, porque tendo-se pronunciado três sócios a favor e dois contra, a Assembleia Geral da requerida, mantendo-se esta repartição de votos, está impedida de votar na matéria relativa ao representante comum dos contitulares de quota indivisa, porquanto a maioria exigível não é numérica ou pessoal, já que nessa matéria se exige que a maioria represente mais de metade do valor total das quotas, que são sete, 5 tituladas e 2 indivisas, ou seja, quatro, para a deliberação ser válida, enquanto não se obtiver a divisão dessas quotas comuns, (cfr. Art.°s 223.°, n.° 1, do C.S.C. e 1407.° do C.C.);

6- O Direito Comum ou Civil é o aplicável quando as deliberações sociais sobre matéria exclusivamente civil são ineficazes ou nulas, sendo aplicáveis as regras do direito processual civil para fazer reconhecer o direito à declaração de nulidade dessas deliberações, bem como a prevenir ou reparar a violação dele, mesmo que a mesma Assembleia Geral tenha decidido sobre outras matérias comerciais e essas concretas deliberações sejam simplesmente anuláveis;

7- Assim, ao caso sub júdice não se aplica o art. 59.° do C.S.C., mas o art.° 389º do C.P.C. relativamente à contagem do prazo para intentar acção de anulação, se previamente foi requerida a suspensão dessas deliberações sociais.

B- Face às conclusões das alegações, são duas as questões a decidir:
- se a posição assumida sobre o ponto nº 1 da ordem de trabalhos constitui uma verdadeira deliberação social
- se caducou o direito de impugnar a validade das deliberações tomadas na Assembleia Geral sob os pontos nºs 2 e 3 da ordem de trabalhos
***

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

III. Fundamentação

A- Os factos

Com interesse, há a considerar os seguintes factos:

1- Com o presente procedimento cautelar pretendem os requerentes alcançar a suspensão das deliberações tomadas na Assembleia Geral da requerida, de 31 de Maio de 2005;

2- Nesse dia reuniu a Assembleia Geral com a seguinte ordem de trabalhos:
1. Deliberar sobre a designação formal da cabeça de casal da herança, E.........., como representante comum das duas quotas, no valor nominal de 100 000$00 cada uma, que pertenceram aos falecidos associados F.......... e G..........;
2. Deliberar que a sede da sociedade esteja efectivamente instalada, onde é o seu local, ou seja, na .........., n°s .... – ...., .........., .........., em imóvel que pertence à sociedade;
3. Deliberar instaurar acção contra os sócios gerentes, B.......... e C.......... destinada a obrigar que os mesmos procedam a entrega de toda a documentação relativa à sociedade na sede social referida em 2.

3- A presente providência cautelar foi instaurada a 13 de Junho de 2003;

4- Os requerentes da providência cautelar não propuseram qualquer acção contra a requerida visando obter a declaração de nulidade ou a anulação das deliberações em causa;

5- Os sócios da requerida, F.......... e G.........., faleceram, respectivamente, a 28 de Abril de 2003 e 10 de Maio de 2004, sendo cada um deles titular de uma quota no valor nominal de 100.000$00;

6- Os únicos herdeiros destes dois falecidos sócios são os restantes sócios da requerida, seus filhos;

7- As suas heranças ainda não foram partilhadas;

8- A herdeira e sócia da sociedade, E.........., tem exercido funções de cabeça de casal das heranças abertas por óbito de F.......... e G.......... .

B- O direito

1. se a posição assumida sobre o ponto nº 1 da ordem de trabalhos constitui uma verdadeira deliberação social

O procedimento cautelar de suspensão de deliberação social é o meio judicialmente adequado a evitar a produção de dano apreciável decorrente de uma deliberação social, enquanto não é julgada a respectiva acção de anulação.
A deliberação social mais não é que a manifestação de vontade representativa da sociedade. Porque emanação de uma vontade simplesmente maioritária, não tendo que ser conformada pela vontade unânime dos sócios, impõe-se a todos eles e aos demais órgãos sociais.
Mas a deliberação social tem de se compreender dentro do poder funcional do respectivo órgão, no quadro da sua competência legal ou estatutária e não como um acto de autonomia privada [cfr. Pinto Furtado, in Deliberações dos Sócios, pág. 70].

Por outro lado, falecido um sócio os seus herdeiros sucedem na quota respectiva, devendo os contitulares exercer os direitos a ela inerentes através de representante comum –cfr. arts. 225º, nº 1 e 222º, nº 2 C.S.Comerciais.
O exercício dos direitos relativos à contitularidade de uma quota integrada em herança indivisa será realizado por um representante comum, designado por lei ou disposição testamentária, pelos novos contitulares ou judicialmente- art. 223º, nºs 1 e 3 C.S.Com.

Na situação vertente, constava do 1º ponto da ordem de trabalhos deliberar sobre a designação formal da cabeça de casal da herança, E.........., como representante comum das duas quotas, no valor nominal de 100 000$00 cada uma, que pertenceram aos falecidos associados F.......... e G.......... .
O representante comum não foi designado por disposição testamentária.
Mas já está demonstrado que a indigitada estava investida nas funções de cabeça de casal.
Quando o art. 223º se refere à designação por lei, sem dúvida que pretende abarcar no seu dispositivo o art. 2087º C.Civil.
Neste sentido se pronuncia Raúl Ventura [in Sociedades por Quotas, I, pág. 510] ao afirmar que um caso de designação por lei é o do cabeça de casal, a quem ... cabe a representação dos herdeiros.
Por decorrência legal, as funções de representante comum da quota integrada em herança ainda indivisa pertencem ao cabeça de casal.
Na convocatória da Assembleia Geral e sob o ponto nº 1 da ordem de trabalhos consignou-se que se iria deliberar sobre a designação formal da cabeça de casal da herança, E.......... .
Dos termos deste ponto da ordem de trabalho ressalta meridianamente que apenas se pretendeu formalizar aquilo que era uma decorrência legal. Não se pretendia que os sócios exprimissem a sua vontade no sentido de escolherem livremente o representante comum das quotas da herança indivisa, mas apenas que, através desta forma solene, ficasse exarado que esse representante era o cabeça de casal das heranças.
Esta designação formal não traduz uma verdadeira manifestação de vontade dos contitulares da quota, o que equivale por dizer que não integra uma real deliberação social e, como tal, não será impugnável nos termos do art. 396º C.Pr.Civil.

2. caducidade do direito de impugnar a validade das deliberações tomadas na Assembleia Geral sob os pontos nºs 2 e 3 da ordem de trabalhos

Na decisão recorrida considerou-se que o prazo de propositura da acção de anulação não seria alargado com base no disposto na al. a) do nº 1 do art. 389º C.Pr.Civil, devendo essa acção ser proposta no prazo de 30 dias a contar, neste caso, da data de encerramento da assembleia geral, em conformidade com o disposto no nº 2 do art. 59º C.S.Com.
Tem sido controvertido, e a isto se reconduz a questão que aqui se coloca, se a pendência do procedimento cautelar de suspensão da deliberação impede o decurso do prazo de caducidade de propositura da acção de anulação dessa mesma deliberação.
Nos termos do nº 2 do citado art. 59º, o prazo para a proposição da acção de anulação é de 30 dias e inicia-se na data em que foi encerrada a assembleia geral, ou no 3º dia subsequente à data do envio da acta da deliberação por voto escrito, ou na data em que o sócio teve conhecimento da deliberação, se esta incidir sobre assunto que não constava da convocatória.
É este um prazo de natureza substantiva, sujeito ao regime da caducidade e, como tal, insusceptível, em princípio, de suspensão ou interrupção –cfr. art. 328º C.Civil.
Com o estabelecimento deste prazo curto de caducidade tem-se em vista evitar o protelamento de indefinição de uma situação jurídica com eventuais reflexos negativos na vida societária.
Já o prazo estabelecido na al. a) do nº 1 do art. 389º é de natureza judicial e tem como objectivo evitar que a medida provisória adoptada se mantenha por muito tempo, sem que o tema nele apreciado sumariamente seja decidido na acção própria. O seu decurso apenas acarreta a extinção do procedimento cautelar, sem reflexos no direito a apreciar na acção principal.
Como ensina Alberto dos Reis [in C.Pr.Civil, Anotado, I, pág. 636], o disposto neste número nada tem que ver com as regras de direito substantivo que fixam, sob pena de caducidade, o prazo para a proposição de determinadas acções; o que aqui se estabelece é o regime de caducidade das providências cautelares; este regime é absolutamente independente do regime de caducidade da acção principal.
Estes dois preceitos contemplam realidades distintas e com efeitos próprios, não impedindo a pendência do procedimento cautelar o decurso do prazo substantivo para propositura da acção de anulação da deliberação.

Na situação vertente, os vícios assacados às deliberações sociais não se incluem em nenhum daqueles taxativamente aludidos no art. 56º C.S.Com. e que a lei sanciona com nulidade.
Na verdade, deliberar sobre o local da sede da sociedade e sobre a instauração de uma acção contra os sócios gerentes não contende com nenhuma norma imperativa, ou seja, normas que não possam ser revogadas pela vontade mesmo unânime dos sócios.
Por isso, as deliberações em causa seriam apenas anuláveis, como bem se decidiu na decisão recorrida, qualificação que não foi impugnada.

Ora, como a acção de anulação das deliberações sociais não foi proposta e já decorreu o prazo previsto no nº 2 do art. 59º C.S.Com. e porque a pendência do procedimento cautelar não impede o decurso desse prazo, temos que caducou o direito de as impugnar, não mais podendo ser posta em causa a sua validade.
Consumado na pendência do procedimento cautelar aquele prazo sem que a acção de anulação tenha sido intentada, ocorre a inutilidade superveniente desta lide procedimental, com a consequente extinção da instância, em conformidade com o estatuído na al. e) do art. 287º C.Pr.Civil.

Nenhuma censura nos merece, portanto, a decisão impugnada.

IV. Decisão

Perante tudo o que exposto fica, acorda-se em negar provimento ao agravo.

Custas pelos agravantes.

Porto, 18 de Outubro de 2005
Alberto de Jesus Sobrinho
Mário de Sousa Cruz
Augusto José Baptista Marques de Castilho