Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4353/15.8T8LOU-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: MOTIVAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RP201809274353/15.8T8LOU-A.P1
Data do Acordão: 09/27/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÕES EM PROCESSO COMUM E ESPECIAL(2013)
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ªSECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º145, FLS.258-268)
Área Temática: .
Sumário: I - A fundamentação de facto da sentença não se confunde com a motivação da decisão sobre a matéria de facto, sendo distintos os regimes dos vícios de uma e de outra.
II - É totalmente inútil pretender que se julguem não provados factos referidos na motivação da decisão mas que não foram julgados provados.
III - Nos embargos de executado não é o embargado que tem o ónus da prova do seu crédito mas sim o embargante que tem o ónus da prova dos fundamentos pelos quais sustenta que o crédito não existe ou é inexequível.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 4.353/15.8T8LOU-A.P1
Juízo de Execução de Lousada
Comarca de Porto-Este
Recurso de Apelação

Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório:
Por apenso à execução para pagamento de quantia certa que lhe move B…, a executada C…, contribuinte fiscal n.º ………, residente em …, deduziu embargos de executado requerendo a extinção da execução.
Alegou para o efeito que não deve a quantia exequenda uma vez que a cessão de quotas invocada como relação subjacente aos cheques dados à execução foi feita pelo preço de €5.000 já pago, conforme resulta da respectiva escritura, sendo que os cheques foram emitidos como mera garantia no âmbito de um distinto acordo relativo à repartição do valor de um crédito da sociedade sobre uma terceira sociedade mas o exequente não cumpriu tal acordo.
O exequente contestou os embargos, reiterando que os cheques dados à execução foram emitidos para pagamento integral do preço da cessão de quota que o exequente celebrou com a executada, sendo que as partes acordaram declarar na escritura um valor inferior e que o mesmo tinha sido pago o que sabiam não corresponder à verdade. Em relação ao acordo alegado pela embargante e por esta referido como sendo a causa da emissão dos cheques, afirma que esse acordo não existiu e que as partes estavam de relações cortadas, não se falando sequer.
Após julgamento, foi proferida sentença, julgando os embargos improcedentes e determinando o prosseguimento da execução.
Do assim decidido, a embargante interpôs recurso de apelação, fazendo constar das respectivas alegações o seguinte que intitula «conclusões»:
1. (…) 5. Salvo o devido respeito, a douta sentença proferida apresenta incongruências que comportam a sua nulidade – art. 615º C. P. C.,
6. A que acresce o não se concordar com a sentença ora recorrida: de facto – impugna-se a matéria dada como provada e não provada –, e de direito – a decisão viola os princípios da livre apreciação da prova e o da proibição de produção de prova testemunhal quando a simulação é invocada pelos próprios simuladores, consagrado no arts. 413º e 607º, n.º 5 C. P. C. e 394º Código Civil (C. C.), respectivamente – Ficando, desta forma, delimitado o objecto do presente recurso.
7. A sentença ora sob recurso enferma de nulidade, que ora se argúi para todos os legais e devidos efeitos, designadamente, as das alíneas b) e c) do n.º 1 do art. 615º C. P. C..
8. Entende a Recorrente não ter o Meritíssimo Juiz a quo especificado os fundamentos de facto que baseiam a decisão pois.
9. Na motivação de facto não se encontram descritos quais os meios de prova, testemunhal e documental, que conduziram à fundamentação descrita naquela decisão - art. 607º, n.º 4 C.P.C.,
10. Não sendo possível alcançar, a que se ateve o Tribunal a quo para considerar provados e não provados os factos aí elencados.
11. O que traduz nulidade nos termos da alínea b) do n.º 1 do art. 615º C.P.C.
12. Entende ainda a Recorrente ocorrer ambiguidade e/ou obscuridade que tornam a decisão ininteligível pois
13. Resulta da motivação de facto que a sociedade D…, no fecho de contas do ano de 2007, devido a nota de crédito lançada em 30 de Setembro de 2007, apresentava saldo 0, facto esse que não consta dos factos descritos.
14. E que, no entender da Recorrente, deverá constar dos não provados pois, certo é que não foi junta aos autos a documentação de suporte, designadamente documentos contabilísticos que baseiam a elaboração de um balancete analítico e que justificam tal lançamento, conforme depoimento de E….
15. Não conseguindo a testemunha F…, (em acareação), apresentar razões justificativas e cabais do facto.
16. Por outro lado, decorre ainda da motivação de facto ter tido a sociedade G…, conforme balancete, um movimento de 2.838.429,25€, facto esse que, de igual maneira, não consta dos factos enunciados,
17. E que, no entender da Recorrente, deverá constar dos não provados porquanto, do balancete dos autos não resulta tal valor, qual a sua origem, se se trata de débito ou crédito, qual o seu período temporal, entre outros aspectos, não se podendo, por isso, concluir como se conclui.
18. A situação ora descrita traduz uma nulidade, nos termos do art. 615º, n.º 1, alínea c) C.P.C., que ora se argui para todos os legais e devidos efeitos.
19. Perante as nulidades ora arguidas, deve a sentença recorrida ser revogada.
20. Quanto à matéria de facto, que se impugnou, discorda a Recorrente da factualidade vertida na fundamentação dada como provada e não provada, porquanto entende que, face à prova produzida em audiência de julgamento, se impunha considerar como não provados factos que não constam na fundamentação e que derivam da prova produzida, determinantes e que influenciam e contribuem para a boa descoberta da verdade,
21. A razão da discordância da Recorrente baseia-se, fundamentalmente, na apreciação que o Meritíssimo Juiz a quo fez do conjunto da prova produzida e examinada em sede de audiência de discussão e julgamento, especialmente, depoimentos testemunhais e declarações de parte de: Depoimento de C…, gravado em CD no Programa “Habilus Media Studio”, com a duração de 00h45m39s, das 10h30m59s às 11h16m39s de 28 de Fevereiro de 2018, Depoimento de B…, gravado em CD no Programa “Habilus Media Studio”, com a duração de 00h42m50s, das 11h17m34s às 12h00m25s de 28 de Fevereiro de 2018, Depoimento de H…, gravado em CD no Programa “Habilus Media Studio”, com a duração de 00h09m16s, das 12h04m12s às 12h14m04s de 28 de Fevereiro de 2018, Depoimento de I…, gravado em CD no Programa “Habilus Media Studio”, com a duração de 00h06m10s, das 12h15m07s às 12h21m19s de 28 de Fevereiro de 2018, Depoimento de J…, gravado em CD no Programa “Habilus Media Studio”, com a duração de 00h06m22s, das 14h47m42s às 14h54m04s, de 6 de Março de 2018, Depoimento de K…, gravado em CD no Programa “Habilus Media Studio”, com a duração de 00h09m22s, das 14h54m32s às 15h03m56s, de 6 de Março de 2018, Depoimento de F…, gravado em CD no Programa “Habilus Media Studio”, com as durações de 00h54m01s, das 11h08m32s às 12h02m34s, de 19 de Março de 2018, e 00h26m52s, das 15h40m11s a 16h07m04s, de 09 de Abril de 2018, Depoimento de E…, gravado em CD no Programa “Habilus Media Studio”, com a duração de 00h26m07s, das 16h08m45s às 16h34m54s, de 09 de Abril de 2018, Acareação entre F… e E…, gravada em CD no Programa “Habilus Media Studio”, com a duração 00h04m59s, das 16h29m50s às 16h30m49s, de 21m07s a 26m07s, de 9 de Abril de 2018,
22. E documentação: Contrato de cessão de quotas dos autos e Factura relativa a D…, de 28 de Fevereiro de 2007,
23. Depoimentos, declaração e documentos que, conjugados e coordenados, seriam suficientes para se poder concluir de maneira diversa quanto aos factos considerados provados e não provados e, consequentemente, pela procedência dos embargos de executada apresentados pela Recorrente, extinguindo-se a execução a que se encontram apensados.
24. Resulta da prova produzida em audiência de julgamento e da carreada aos autos, factos que, no entender da Recorrente, revestem importância extrema e essencial para a boa decisão da causa e que não constam da fundamentação, que, salvo o devido respeito, deverão passar a constar da mesma como não provados.
25. No depoimento de F…, é referido que, no fecho de contas de 2007, o saldo que a conta da sociedade D… apresentava era 0.
26. No entanto, considerando que, como resulta do senso comum e do depoimento de E…, esses movimentos contabilísticos necessitam de documentação de suporte e, atendendo ainda a que, a esse título, nada foi junto aos autos, deve constar tal facto dos não provados.
27. Acresce que, resultando ainda da motivação de facto ter tido a sociedade G…, conforme balancete, um movimento de 2.838.429,25€, facto esse que, de igual maneira, não consta dos factos enunciados, e que, deverá constar dos não provados porquanto, do balancete dos autos não resulta tal valor, qual a sua origem, se se trata de débito ou crédito, qual o seu período temporal, entre outros aspectos.
28. Perante a prova produzida em audiência de julgamento e constante dos presentes autos, deveriam considerar-se como não provados ou alterar a sua redacção, determinados factos que constam como provados, designadamente, os pontos 3, 4, 7, 8 e 9 dos factos provados,
29. Considerando que o Tribunal a quo se baseou em depoimentos indirectos de testemunhas que se encontram desavindas ou em litígio com a Embargante e, ainda, com interesse directo na causa,
30. Para além de não haver sido feita prova cabal do alegado pelo Embargado, como lhe competia, nomeadamente, através da junção aos autos de documentação justificativa bastante.
31. Os depoimentos de todas as testemunhas arroladas pelo Recorrido são indirectos, conforme decorre dos depoimentos de B… e de H…, que mencionam que ninguém ouviu ou assistiu à reunião quanto à cessão da quota, que ocorreu somente entre Recorrido e Recorrente,
32. Advêm de pessoas que se encontram, ou encontraram, desavindas ou em litígio com a Recorrente e, ainda, com interesse na causa, como é o caso de J….
33. Na verdade, I…, refere expressamente que se encontra desavindo com a filha e enuncia o que a filha lhe terá transmitido, o que não encontra suporte no depoimento de C…;
34. J…, diz que se encontra de relações cortadas com a Recorrida e que sabe o que o marido, Recorrido, lhe transmitiu;
35. Do depoimento de K…, decorre que não se encontra de bem com a Recorrente em virtude da presente situação e que o que sabe foi do que o Recorrido, seu cunhado, lhe transmitiu e
36. Do depoimento de F…, decorre que, o que sabe quanto à cessão lhe foi transmitido por Recorrido ou Recorrente e que, quando a relação profissional com a G…, nunca mais falou com esta.
37. Ao invés, não entende a Recorrente qual a razão de haver o depoimento de H…, haver sido desconsiderado.
38. Na verdade, tal depoimento apresentou-se sucinto, preciso, claro e credível, não resultando do mesmo a animosidade que refere o Tribunal a quo.
39. Embora se tratando de depoimento indirecto, como todos os testemunhais, H…, expressa que o valor titulado pelos cheques dos autos, excepto no que se refere ao valor da quota cedida, consubstanciou-se numa garantia relativa à cobrança do valor da factura da sociedade D…, “um acordo de cavalheiros que têm uma sociedade”
40. Factualidade que coincide com o expendido pela Recorrente, no seu depoimento.
41. Se, efectivamente, os cheques dos autos constituíssem valor devido pela Recorrente ao Recorrido e, partindo-se do pressuposto de que teriam acordado o respectivo pagamento em prestações, o que não resulta da douta decisão sob recurso, como se explicam as datas neles apostas, tão distantes, do primeiro para os restantes e, os dois últimos, com a mesma data?
42. Acresce que, o depoimento de B…, quanto à cessão de quotas e seu valor, reveste carácter confessório, no sentido de que o Recorrido pretendia ser compensado, nas suas palavras, pelos suprimentos que constituiu e pelo dinheiro investido na mesma,
43. O que, desde logo, sempre constituiria um crédito sobre a sociedade G… e, nunca, sobre a Recorrente.
44. Não obstante, ainda se dirá, cabendo ao Recorrido tal prova, de que os cheques dos autos titulariam o valor da quota cedida, suprimentos e dinheiro investido da sociedade, não a logrou alcançar - art. 342º C. C. - Porquanto não constam dos autos quaisquer documentos que suportem tal versão.
45. Do ponto 10 dos factos provados consta “na data da outorga da escritura de cedência das quotas a Executada nada pagou, tendo, no entanto, procedido à entrega dos três identificados cheques”, Ponto que deverá, pelo menos, ser alterado na sua redacção pois,
46. Consoante H…, segundo o qual, excepto no que se refere ao valor da quota cedida, os cheques dos autos constituíam relativa à cobrança do valor da factura da sociedade D…, “um acordo de cavalheiros que têm uma sociedade” e
47. Recorrente, no seu depoimento, que refere, também, que esses cheques seriam garantia de cobrança daquela factura.
48. Acresce que, e no tocante à data aposta nos cheques, menciona a Recorrente, que não a preencheu, entregou-os com a data em branco, não logrando o Recorrido provar que assim não se passou, ou seja, que, quando os cheques da Recorrente lhe foram entregues, os mesmos se encontravam completamente preenchidos,
49. Não podendo ser valorado, nesse sentido, o depoimento de J…, por ter interesse directo na causa.
50. Assim, o ponto 10 deverá passar a ter a seguinte redacção: “Na data da outorga da escritura de cedência das quotas a Executada nada pagou, tendo, no entanto, procedido à entrega de três cheques, para garantia de cobrança de factura emitida Sociedade D…, de 28 de Fevereiro de 2007: Cheque n. ……….., no montante de €10.000.00 (dez mil euros); Cheque n. ………….,no montante de €10.000.00 (dez mil euros); Cheque n. ……….., no montante de €7.000.00 (sete mil euros)”.
51. De acordo com a prova constante dos autos e produzida em sede de audiência, darem-se como assentes e demonstrados factos não provados, porquanto
52. Os mesmos decorrem da prova produzida em audiência de julgamento, designadamente, o depoimento de C…, que, coeso, preciso e consistente, mesmo se tratando de parte na acção, não poderá deixar de ser considerado: a. ponto 1 dos factos não provados, “o exequente ficou incumbido de cobrar da referida "D…" a dívida que esta tinha com a "G…", dívida essa no valor de €45.937,50”, deverá passar a constar da matéria provada pois,
53. Do depoimento de C… resulta que o Recorrido assumiria a cobrança de tal dívida, descrita no ponto 12 dos factos provados, pelo que deverá o ponto 1 passar a constar dos factos provados.
54. Consta do ponto 2 dos factos não provados que “Mais ficou acordado entre exequente e executada que, quando aquela divida fosse cobrada e como respeitasse a facturas anteriores à cessão de quotas, o seu valor seria dividido em partes iguais por ambos”,
55. Facto que, deverá passar a figurar da matéria de facto provada, por referência, nos mesmos moldes acima descritos, ao depoimento de C…, o que concatena com o facto de, os cheques entregues pela Recorrente ao Recorrido mais não serem do que uma garantia pela cobrança dessa factura,
56. E depoimento de H…, segundo o qual, excepto no que se refere ao valor da quota cedida, os cheques dos autos constituíam relativa à cobrança do valor da factura da sociedade D…, “um acordo de cavalheiros que têm uma sociedade”.
57. Caso não se entenda que o ponto 3 deverá passar a constar da matéria de facto não provada, o que não se concede, sempre se dirá que, por conter, salvo o devido respeito, juízos conclusivos ou de direito, deverá o mesmo ser considerado como não escrito.
58. Deverão passar a constar da matéria não provada os factos anteriormente descritos, que, mencionados na motivação, não constam da fundamentação de facto, deverão os pontos 3, 4, 7, 8 e 9 dos factos provados passar a constar dos não provados,
59. O ponto 10 ver a sua redacção alterada, nos termos supra explanados e passar a constar, como provados, os pontos 1 e 2 da fundamentação não provada, considerando-se ainda, caso não se entenda como não provado, o facto 3, como não escrito,
60. Devendo a douta sentença ora sob recurso ver alterada a sua fundamentação de facto.
61. Para proferir a decisão nos moldes em que proferiu, o Tribunal a quo ateve-se, essencialmente, às testemunhas arroladas pelo Recorrido, produção de prova que, não obstante a simulação invocada pelo Recorrido, foi admitida
62. Desconsiderando, sem qualquer fundamento ou motivo justificativo, os depoimentos de C…, e de H…,
63. Concluindo não haver a Recorrente cumprido o ónus da prova que lhe competia e ilidido a presunção do art. 458º C. C. de que beneficia o Recorrido, tendo, por isso, decidido contra aquela.
64. O Meritíssimo Juiz a quo não valorou e ponderou devida e convenientemente, factos de extrema importância que conjugados com a impugnação da matéria de facto que atrás se descreveu, conduziriam, necessariamente, a decisão diversa.
65. Desde logo, a questão de todas as testemunhas arroladas pelo Recorrido proferirem depoimentos indirectos, não tendo conhecimento directo e imediato sobre o que depuseram, a não ser o que lhes foi transmitido por aquele, ara além de as mesmas se encontrarem desavindas ou em litígio com a Recorrente,
66. O que, efectivamente, condiciona os seus depoimentos.
67. Considerando a fragilidade de tais depoimentos, não poderia o Tribunal a quo decidir pela existência, como fez, quanto ao valor da cessão de quotas dos autos, de acordo simulatório,
68. O que viola o princípio da proibição de prova testemunhal quando a simulação é invocada pelos próprios simuladores.
69. Não fez o Recorrido prova, como lhe competia - art. 342º C. C.-, da existência de acordo simulatório quanto ao valor da cessão de quota.
70. Aliás, o seu depoimento de parte acaba por revestir carácter confessório, o que não poderia deixar de ser atendido, uma vez que o que, efectivamente, pretendia, era recuperar os suprimentos e dinheiro investido na sociedade, O que o constituiria como credor desta e não da Recorrente embora, na verdade, não haja logrado, sequer, provar tais valores, por, desde logo, não haver procedido à junção de quaisquer documentos comprovativos.
71. Não existe qualquer relação subjacente aos cheques dos autos, excepto no que ao valor da cessão de quota, 5 000€, diz respeito, conforme contrato de cessão de quota. Se, na verdade, o valor da cessão fosse 27 000 €, por que razão não constaria o mesmo do respectivo contrato?
72. Tendo a Recorrente demonstrado, salvo o devido respeito, da veracidade da sua versão dos factos, Não contraposta pela prova produzida de banda do Recorrido.
73. A decisão ora sob recurso, enferma de nulidade, nos termos das alíneas b) e c) do art. 615º C. P. C.,
74. Por não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão e por os seus fundamentos estarem em oposição com a decisão ou ocorrer alguma ambiguidade ou obscuridade que torna a decisão ininteligível.
75. Entende a Recorrente que a decisão ora sob recurso, viola o princípio da livre apreciação da prova, previsto no art. 607º, n.º 5 C. P. C.. OTribunal, ao apreciar livremente a prova procurando, através dela, atingir a verdade material, deverá obedecer às regras da experiência comum, recorrendo a critérios objectivos, susceptíveis de motivação e controlo.
76. O Tribunal deve apreciar a prova de acordo com critérios de valoração racional e lógica, tendo em conta as regras normais da experiência, e efectuar análise objectiva e ponderada das provas produzidas, que, no caso em apreço, não foi feito, nomeadamente ao não fazer constar da matéria não provada determinados factos que constam da motivação e não da fundamentação, ao dar-se como não provados os factos constantes dos não provados,
e, como provados, os factos que figuram nos provados
77. Os factos que se descreveram encontram-se intimamente ligados, apresentando um percurso e encadeamento contínuos, lógicos e precisos de acordo com regras do critério, discernimento e experiência humanos.
78. Devendo a decisão ora sob recurso ser revogada e decidindo-se pela procedência dos presentes embargos e, consequentemente, a extinção da execução dos quais os mesmos constituem apenso.
O recorrido respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i) Se as alegações de recurso têm conclusões e o recurso deve ser admitido.
ii) Se a decisão recorrida é nula por falta de fundamentação ou obscuridade.
iii) Se pode atender-se à prova testemunhal produzida para demonstração de factos contrários aos que constam da escritura pública de cessão de quotas.
iv) Se a matéria de facto deve ser alterada.
v) Se, alterada que for a matéria de facto, os embargos devem ser julgados procedentes.
III. Os factos:
Na decisão recorrida foram julgados provados os seguintes factos:
1 - Exequente e executada foram sócios da sociedade G… Ld.ª.
2 - Por escritura pública, o exequente cedeu a sua quota e renunciou à gerência da identificada sociedade.
3 - Na data, e tendo em conta os suprimentos que o exequente tinha na sociedade, o dinheiro investido na mesma, acordaram que a quota tinha um valor de €27.000 (vinte e sete mil euros).
4 - O exequente, a título pessoal, já havia investido capitais próprios na identificada sociedade.
5 - Na data em que encetaram as negociações, com vista à transmissão da quota e a subsequente saída da sociedade, as relações entre exequente e executada já não eram as melhores, estavam mesmo, como ainda estão de “relações cortadas”.
6 - O exequente já havia perdido toda a confiança na executada.
7 - O acordo global alcançado para a cedência da quota do exequente ascendeu a €27.000 (vinte e sete mil euros).
8 - Mais, acordaram que o valor a constar da escritura seria o valor nominal da quota, ou seja, €5.000 (cinco mil euros).
9 - Mas, como o valor pago para a cedência, renuncia à gerência e consequente saída da sociedade era os referidos €27.000 (vinte e sete mil euros), titularam tal montante em três cheques: o primeiro no montante de €10.000 (dez mil euros), cheque n.º ……….., datado de 4 de Outubro de 2007; cheque n.º …………, com data de 7 de Maio de 2008, no montante de €10.000 (dez mil euros); cheque n.º …………, com data de 7 de Maio de 2008, no montante de €7.000 (sete mil euros).
10- Na data da outorga da escritura de cedência das quotas a executada nada pagou, tendo, no entanto, procedido à entrega dos três identificados cheques.
11- O primeiro, com provisão, sendo que os cheques exequendos foram devolvidos com a indicação de “erro ou vicio na formação da vontade”.
12- A G…, à data da referida cessão de quota, era credora da sociedade D… de €45.937,50.
IV. O mérito do recurso:
A] Questão prévia:
Nos termos do nº 1 do artigo 639º do novo Código de Processo Civil, as alegações de recurso dividem-se em corpo das alegações, nas quais o recorrente expõe os fundamentos ou argumentos através dos quais procura convencer o tribunal de recurso da sua razão, e conclusões das alegações, nas quais o recorrente sintetiza as concretas questões que pretende que o tribunal de recurso aprecie e o sentido com que as deverá decidir. O recorrente deve, por isso, terminar as alegações com as respectivas conclusões, que são a indicação de forma sintética das questões em cuja análise o recorrente ancora o pedido de alteração ou anulação da decisão.
A formulação das conclusões do recurso tem como objectivo sintetizar os argumentos do recurso e de precisar as questões a decidir e os motivos pelos quais as decisões devem ser no sentido pretendido. Com isso pretende-se alertar a parte contrária – com vista ao pleno exercício do contraditório – e o tribunal para as questões que devem ser decididas e os argumentos em que o recurso se baseia, evitando que alguma escape na leitura da voragem da alegação, necessariamente mais extensa, mais pormenorizada, mais dialéctica, mais rica em aspectos instrumentais, secundários, puramente acessórios ou complementares.
No caso as alegações de recurso apresentadas pela recorrente têm corpo das alegações, mas não têm conclusões das alegações. O que se verifica, numa situação, aliás, que se tornou moda na prática forense mas que traduz uma manifesta e deliberada violação das normas processuais, é que a recorrente redigiu as suas alegações, dividindo-as em parágrafos não numerados (!), depois escreveu a expressão “conclusões” e a seguir repetiu na íntegra, sem qualquer síntese ou redução, o corpo das alegações, com a única diferença de estas virem … numeradas.
Do ponto de vista substancial, a recorrente não formulou conclusões do recurso como devia, limitou-se a repetir a alegação duas vezes seguidas, intitulando a “segunda alegação” como “conclusões”, o que manifestamente não constitui uma forma válida de cumprimento da exigência legal (conforme a criatividade - ou a falta dela! - esta prática surge nos processos dissimulada de várias formas, designadamente usando diferentes numerações para as ditas “alegações” e as supostas “conclusões”, uma ordinal e a outra cardinal, uma numérica e a outra alfabética, uma romana e outra árabe, por vezes, como aqui sucede, o engenho é menor e as “alegações” não são sequer numeradas só aparecendo a numeração nas supostas “conclusões”, para disfarçar).
Nos termos da alínea b) do nº 2 do artigo 641º do Código de Processo Civil a falta de conclusões tem como consequência a rejeição do requerimento de interposição de recurso, funcionando essa sanção de forma automática, sem qualquer convite prévio ao aperfeiçoamento.
Se essa sanção se aplica mesmo nas situações em que a falta se deve a mera desatenção ou até lapso informático desculpável, deve aplicar-se por maioria de razão às situações em que consciente e deliberadamente o mandatário se limita a repetir o texto das alegações, não podendo deixar de saber que não está a formular, como devia, quaisquer conclusões. Por conseguinte, do ponto de vista substancial, o presente recurso devia ser rejeitado por falta de conclusões.
Não se descura a existência de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que condescende com esta violação das regras processuais permitindo que a prática referida se tornasse frequente e comum (invulgar é já o cumprimento do requisito), olvidando, a nosso ver e com todo o devido respeito, que as infracções deliberadas de regras processuais não devem ser entendidas como dispensáveis ou menores, sob pena até de violação dos princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade ao recusar a falhas desculpáveis (v.g. o simples esquecimento ou mera falha de processamento informático) a mesma solução permissiva que se aceita afinal para falhas deliberadas e conscientes.
De acordo com essa jurisprudência, haverá que atender apenas ao aspecto formal e convidar o recorrente a aperfeiçoar (melhor dizendo, a formular) as “conclusões” que não formulou. Considerando, no entanto, que isso representaria apenas mais uma perda de tempo e de forma a não permitir que esta falha seja vista como um obstáculo inesperado ao conhecimento efectivo do recurso (prejudicando a própria parte que é quem tem o direito a que as suas razões de discordância da decisão sejam apreciadas, para o que espera que essas razões sejam, ao menos, expostas pelo seu mandatário como determina a lei processual, sob pena de absoluta irrelevância da intervenção deste) decidimos, no entanto, prosseguir sem mais com a análise dos fundamentos do recurso, deixando, no entanto, ressalvada a possibilidade de passar a decidir diferentemente em casos futuros ou mais vincados.
Em suma, entende-se não rejeitar o recurso.
B] das nulidades da sentença:
Defende a recorrente que a sentença recorrida é nula por falta de especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão – alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil – e ainda por padecer de ambiguidade ou obscuridade que a tornam ininteligível – alínea c) do mesmo preceito.
É manifesta a improcedência desta arguição porquanto os vícios apontados à decisão não existem de todo.
A sentença recorrida possui fundamentação de facto. Esta é constituída apenas pela matéria de facto julgada provada e à qual, no momento subsequente da sentença, o julgador procede à aplicação do direito para concluir pelo dispositivo. A sentença indica expressa e inequivocamente a matéria de facto que foi julgada provada e na qual alicerça a decisão.
Não se confunde com a fundamentação de facto da sentença o segmento da mesma no qual o julgador justifica ou motiva a sua decisão sobre a matéria de facto, o qual é comummente designado por motivação da decisão sobre a matéria de facto.
Trata-se de um fase que no antigo Código de Processo Civil era anterior e exterior à sentença e que no actual Código faz parte integrante da sentença, mas que não perdeu por isso a sua autonomia relativamente à fundamentação de facto da sentença, no sentido de que continua a não constituir os fundamentos de facto da decisão, mas mera explanação do modo como foram avaliados os meios de prova para justificar a decisão proferida sobre a matéria de facto.
O regime do vício da falta de fundamentação de facto ou de direito da sentença é o do artigo 615.º do Código de Processo Civil e conduz à nulidade da sentença. Já o regime do vício da deficiência da motivação da decisão sobre a matéria de facto é o previsto na alínea d) do n.º 2 do artigo 662.º e conduz somente à possibilidade de a Relação, reconhecendo essa deficiência, determinar que o tribunal de 1.ª instância fundamente devidamente a decisão sobre a matéria de facto, sem para isso anular qualquer acto processual e passando ao conhecimento do recurso logo após esse aperfeiçoamento.
Por esse motivo, mesmo que existisse – e não existe porque o juiz a quo indicou e apreciou os meios de prova que acolheu para julgar os factos, em termos suficientemente explícitos e concretos –, a deficiência apontada não conduziria à nulidade da sentença como, sem razão, se sustenta no recurso.
A alegação de que a sentença enferma ainda de ambiguidade ou obscuridades que a tornam ininteligível também não procede.
Na motivação da decisão sobre a matéria de facto o juiz pode deduzir dos meios de prova determinados factos instrumentais ou indiciários e com base nestes julgar provados outros factos, essenciais ou apenas instrumentais.
Mas o juiz não tem de levar à fundamentação de facto da sentença, leia-se, ao elenco dos factos que julga provados, todos e quaisquer factos instrumentais ou indiciários que tenham chegado ao seu conhecimento através da produção dos meios de prova, podendo perfeitamente seleccionar apenas aqueles que considera relevantes para a aplicação do direito.
Para haver obscuridade ou ambiguidade da sentença ao nível da fundamentação de facto é necessário que haja contradição entre os factos provados (julgou-se provado algo e em simultâneo o seu inverso), que haja contradição na decisão relativa aos factos provados e não provados (julgou-se provado um facto e, em simultâneo, não provado outro que está necessariamente associado àquele) ou que os factos provados possuam um enunciado contraditório, confuso, inexpressivo, incompreensível, impedindo que se atinja a compreensão do que o juiz quis mesmo julgar provado.
Nada disso tem a ver com a possibilidade de ao julgar provado ou não provado determinado facto, essencial ou instrumental, indiciário ou principal, o juiz ter decidido mal. Nesse caso, a sua decisão pode ser impugnada através do recurso da decisão sobre a matéria de facto, demonstrando-se que os meios de prova justificam outra decisão e que, por exemplo, devendo considerar-se determinado facto instrumental não provado não se podem formular a partir dele as deduções que levaram o juiz a julgar outros factos provados. Em qualquer dos casos estamos perante um erro judiciário que determina a modificação da decisão e não perante uma nulidade da sentença, designadamente por ambiguidade ou obscuridade.
Por conseguinte, a afirmação de que na motivação da decisão o juiz fez alusão e retirou ilações probatórias de factos instrumentais que não levou aos factos provados mas que inclusivamente devia ter julgado não provados, não determina a nulidade da sentença.
Improcede assim a arguição de nulidades da sentença recorrida.
C] impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
A recorrente pretende que sejam julgados não provados factos referidos na motivação da decisão da matéria de facto mas não incluídos nos elencos dos factos provados e não provados e para os quais defende que não foi produzida prova.
Esta pretensão é manifestamente inútil.
Com efeito, se os factos em causa não constam entre aqueles que o tribunal julgou provados, tal significa que os mesmos nunca poderão ser usados como matéria-prima para operar a subsunção jurídica e para fundamentar a decisão de mérito. Ora esse é precisamente o mesmo resultado a que se chega julgando os factos como não provados!
A parte só tem pois interesse em defender que sejam julgados não provados os factos que o tribunal julgou provados ou vice-versa. Não tem interesse nem possui qualquer utilidade julgar agora não provados factos que o tribunal não julgou provados e nos quais nunca se pode basear a decisão de mérito.
Em relação aos factos instrumentais que o tribunal usou para motivar a decisão de facto, o que pode suceder é a parte discordar da decisão que recaiu sobre factos essenciais. Nesse caso pode impugnar a decisão sobre estes factos, defendendo que os factos instrumentais que conduziram a essa decisão não devem ser levados em consideração, reclamando da Relação que altere a decisão em relação aos factos essenciais por serem estes os únicos que possuem relevância autónoma para a decisão de mérito final.
Desatende-se por isso esta primeira alteração reclamada.
Pretende depois a recorrente que esta Relação altere a decisão de julgar provados os factos dos pontos 3, 4, 7, 8 e 9, julgando-os agora não provados ou declarando não escrito o ponto 3, que altere a redacção do facto do ponto 10, que julgue provados os factos dos pontos 1 e 2 da matéria que a 1.ª instância julgou não provada.
Para o efeito, sustenta que o tribunal a quo avaliou erradamente a prova produzida e que estando em discussão factos contrários aos declarados na escritura da cessão de quotas (quanto ao preço da cessão e ao tempo do pagamento do mesmo) não é admissível prova testemunhal sobre eles e a decisão não se pode basear nos depoimentos aceites pelo tribunal.
A primeira observação que esta tese suscita é a de que a recorrente olvida a função processual dos embargos de executado e as regras do ónus da prova neles aplicáveis.
A acção executiva não visa discutir e decidir o direito de crédito do exequente, visa somente obter a execução coerciva de uma prestação que se encontra titulada num documento a que a lei, em função das respectivas qualidades e características, conferiu a faculdade do acesso directo e imediato à acção executiva: o título executivo.
Constitui condição da instauração de uma acção executiva a apresentação do título executivo. O título executivo é um documento onde se encontram declarada, assumida ou reconhecida uma determinada obrigação jurídica passível de execução coerciva, que é aquilo que se pretende obter através da acção executiva.
Apresentado o título e recebida a execução, esta prossegue até à realização coerciva da obrigação ou do seu sucedâneo indemnizatório. Tal só não sucederá se o executado deduzir embargos de executado e obtiver ganho de causa.
Os embargos de executado são um processo de natureza declarativa que corre por apenso ao processo de execução e que tem por objectivo o reconhecimento da actual inexistência do direito exequendo ou da falta dum pressuposto da acção executiva.
Os embargos são, do ponto de vista estrutural, uma acção declarativa, uma contra-acção destinada a impedir os efeitos do título executivo e/ou da execução baseada no mesmo. Os seus fundamentos podem ter natureza processual – relativos à instância executiva – ou substantiva – relativos ao direito propriamente dito – desde que que tenham a virtualidade de impedir, modificar ou extinguir a instância processual (executiva) ou o direito (em execução).
Neste contexto, não é o exequente que tem de provar, nos embargos, que a obrigação exequenda existe e é exequível, ao invés é o executado que tem de fazer a demonstração dos fundamentos da oposição à execução, quem tem o ónus de provar que a obrigação exequenda não existe ou é inexequível. No caso, não é o exequente que tem de provar qual a obrigação para cuja satisfação os cheques foram sacados e bem assim que essa obrigação é válida e juridicamente eficaz. É antes a executada e embargante que tem de provar que os cheques não foram sacados para cumprimento de nenhuma obrigação válida e eficaz.
Concretizando: não é o exequente que tem de demonstrar que os cheques foram sacados para pagamento do preço da quota social que cedeu à executada e que esse preço é exigível, é a executada e embargante que tem de provar que os cheques foram sacados e entregues ao exequente para pagamento de €5.000 correspondentes ao preço da cessão de quotas e para garantia do pagamento de €22.000, pagamento este que ficou subordinado à condição de o exequente obter de terceiro o pagamento à sociedade cujo capital compreendia a quota cedida da quantia de 45.937,50€ que o terceiro devia a esta sociedade.
Por conseguinte, os factos julgados provados nos pontos 3, 4, 7, 8 e 9, alegados pelo embargado na impugnação motivada dos fundamentos dos embargos, não necessitavam sequer de ser decididos pelo tribunal porquanto os mesmos não são essenciais para se decidir sobre o mérito dos embargos. E mesmo que agora venham a ser julgados não provados tal em nada interferirá com a decisão dos embargos, o que apenas sucederá se forem julgados provados os factos alegados pela embargante.
Logo, do ponto de vista lógico os factos cuja decisão importa começar por reavaliar são os factos alegados pela embargante. E apenas se se vier a concluir que a prova produzida justifica alterar a decisão proferida sobre eles e julgá-los provados, se tornará necessário reapreciar igualmente a decisão sobre os factos alegados pelo embargado, para eliminar a contradição flagrante que nessa hipótese estaria criada com o julgamento dos factos provados pela embargante como provados. E só então, nessa eventualidade, se tornará necessário apurar se a prova testemunhal indicada pelo embargado pode ser aceite para prova de factos contrários aos que constam da escritura pública no que concerne ao preço e respectivo pagamento.
Comecemos pois pela análise da decisão sobre os factos alegados pela embargante e que a 1.ª instância julgou não provados.
Tais factos têm o seguinte enunciado:
«1. O exequente ficou incumbido de cobrar da referida “D…” a dívida que esta tinha com a “G…”, dívida essa no valor de €45.937,50.
2. Mais ficou acordado entre exequente e executada que, quando aquela divida fosse cobrada e como respeitasse a facturas anteriores à cessão de quotas, o seu valor seria dividido em partes iguais por ambos.»
Ouvida a gravação da totalidade da audiência parece óbvia a conclusão de que a embargante não produziu prova suficiente destes factos. Com efeito, os meios de prova que fez produzir para o efeito são exclusivamente o seu próprio depoimento de parte e o depoimento daquele que foi até muito pouco antes da audiência seu marido e cujo depoimento revelou de forma notória – embora tivesse negado que continuassem a viver juntos – que não obstante o divórcio se mantinha a sua ligação emocional aos interesses da ex-mulher.
Se o depoimento da embargante não pode ser aceite como prova suficiente de factos que lhe são favoráveis, a verdade é que o depoimento do seu ex-marido acaba por não ser capaz de lhe emprestar o acréscimo de prova de que necessitava. O seu ex-marido relatou apenas aquilo que disse ter-lhe sido contado pela mulher, relatando, de forma inverosímil, que a cessão de quotas teria sido negociada e decidida pela embargante, a qual apenas o teria informado depois de estabelecido o acordo, o que não parece cível numa relação conjugal normal, sobretudo quando o marido trabalha na mesma área profissional.
Acresce que foi igualmente produzido o depoimento – que no seu recurso a embargante faz por ignorar – do pai da embargante, o qual, embora revelando que se encontra de relações cortadas com a filha por questões pessoais, afirmou que a filha lhe contou que tinha adquirido a quota do sócio por €27.000, tendo o pai manifestado de imediato que achava que era um preço excessivo já que por apenas €5.000 ela podia constituir uma nova empresa e trabalhar.
As divergências entre estes dois depoimentos, as reservas que suscita o aparente distanciamento ou desinteresse do depoimento do ex-marido da embargante e a maior credibilidade que em resultado da audição da gravação nos parece dever merecer o pai da embargante - essa relação familiar, em ternos de normalidade, parece poder conduzir a algum afastamento entre pai e a filha mas dificilmente a que um pai possa querer o mal da filha em benefício de um terceiro - , o tom do seu depoimento e a segurança com que conta o relato que a filha lhe fez, determinam que não se possam ter como suficientemente provados os factos alegados pela embargante.
Acresce que os factos em questão possuem uma incongruência intrínseca que dificulta a afirmação da sua probabilidade. Com efeito, não se vê por que razão haveria a embargante de garantir pessoalmente a partilha de um valor que pertencia à sociedade, que esta ainda não tinha recebido, que nada afiançava que pudesse vir a receber – não recebeu até hoje – e que, alegadamente, teria de ser o embargado a diligenciar para que fosse paga. Afinal se o embargado tinha esse poder ou capacidade, teria igualmente o poder ou a capacidade de assegurar que o pagamento apenas seria feito de modo a assegurar a sua parte, pelo que a embargante não tinha mesmo necessidade de garantir a título pessoal esse resultado!
Em bom rigor, aliás, a posição da embargante acaba por se traduzir numa aceitação de que o preço da cessão foi mesmo fixado em €27.000, não passando, segundo ficamos convencidos após ouvir a gravação da audiência e a prova nela produzida, a sua argumentação de um jogo de palavras destinado a subverter o acordo estabelecido.
Com efeito, o alegado crédito sobre uma terceira sociedade era um crédito da sociedade de que embargante e embargado eram sócios, não era um crédito destes, pelo que os mesmos não podiam dispor dessa quantia como se ela fosse sua e a pudessem repartir entre si, sem mais, à margem da actuação da própria sociedade e da respectiva contabilidade.
O mero direito de crédito já é um activo do credor que se repercute no valor da sociedade. Sendo o crédito satisfeito, o activo social não aumenta, sofre apenas uma conversão: o direito de crédito é substituído pela quantia em dinheiro recebida em pagamento. Por isso, o valor das participações sociais, que reflecte o valor do património social, é o mesmo desde que o crédito exista e ainda não tenha sido pago.
Podem é os sócios entender que o crédito existe mas que é pouco provável que venha a ser pago e reflectirem essa sua expectativa no valor que atribuem à sociedade (leia-se às participações sociais no capital social da sociedade) e pelo qual estão dispostos a transmitir as respectivas participações.
Logo, ao sacar cheques na sequência do acordo de cessão da quota deste na sociedade credora para pagar ao embargado a quantia de €27.000 a embargante aceita que esse era o preço da cessão, isto é, o valor a pagar em contrapartida da cessão. Pode é pretender, e é essa no fundo a sua posição, uma vez desmontado o seu argumento destinado a justificar a recusa do pagamento do remanescente, que parte desse preço dependia da efectiva cobrança do aludido crédito, que o seu pagamento ficava condicionado à verificação futura do pagamento do crédito pela respectiva devedora.
Mas nessa situação a imposição ao embargado da obrigação de assegurar o pagamento do crédito para poder receber o preço total acordado para a cessão da quota parece não fazer sentido, uma vez que passando a embargante a ser a única sócia da sociedade credora era ela que podia instaurar as acções judiciais destinadas a obter a cobrança, não podendo o embargado fazer mais do que interceder junto do devedor para que pagasse – a embargante fala em relações privilegiadas do embargado com a sociedade devedora mas não concretiza em que se traduzia esse privilégio.
O embargado estaria a aceitar uma condição cuja verificação não poderia depois assegurar, ao invés da embargante que enquanto única sócia da sociedade teria condições para estabelecer com o devedor os acordos que na prática impediriam a verificação da condição (v.g. aceitar o pagamento apenas de parte, não exigir judicialmente o pagamento, acordar outras formas de satisfação da dívida designadamente por compensação ou aumentando o preço de outros trabalhos a realizar para a devedora).
Não recusamos que a realidade dos acordos estabelecidos pode, no caso concreto, ter-se afastado deste juízo de normalidade e de razoabilidade dos comportamentos humanos. A vida é suficientemente rica para que por vezes aconteça o que não é expectável e para que não ocorra o que tudo apontava que teria lugar. Contudo, no que concerne aos factos respeitantes a comportamentos humanos, constitui uma regra probatória de que quanto mais os factos se afastam daquilo que normalmente acontece, menos prováveis eles são, e, consequentemente, sendo a prova a demonstração da probabilidade de o facto ter ocorrido, mais prova é necessária para demonstrar o que é, afinal, invulgar ou incaracterístico.
Por essa razão, repete-se, não pode de forma nenhuma aceitar-se que a embargante produziu – através do seu depoimento e do depoimento do seu ex-marido (?) contraditado pelo depoimento do seu pai (!) – prova suficiente de que acordou com o embargante de que em contrapartida da cessão da respectiva quota ele apenas receberia €22.000 se a sociedade viesse a receber a quantia de que alegadamente era credora sobre uma terceira sociedade no valor de 45.937,50€[1].
Em suma, reponderada a prova produzida nos autos, entendemos que foi correctamente decidido julgar não provados os factos alegados pela embargante nos pontos impugnados, decisão essa que aqui se confirma. Consequentemente, torna-se desnecessário reapreciar a decisão proferida sobre os factos alegados pelo embargado e bem assim se a prova testemunhal atendida para o efeito em 1.ª instância o podia ter sido – aspecto em que, não obstante, se adianta que constituindo os cheques um princípio de prova de inegável valor da falsidade do teor das declarações constantes da escritura pública, se entende que era possível produzir prova testemunhal para complemento desse princípio de prova e esclarecimento do que os documentos indiciam -.
Improcede assim, nesses termos a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
C] da matéria de direito:
Em sede de matéria de direito, a recorrente não suscita uma única questão, para além da relativa à atendibilidade da prova testemunhal para demonstração de factos contrários ao teor da escritura pública, cuja análise ficou, como vimos, prejudicada.
A recorrente não sustentou que a qualificação jurídica dos factos provados, a manter-se, esteja ainda assim errada por qualquer razão relativa à subsunção jurídica desses factos. Defendeu sim que se altere a matéria de facto provada julgando-se provado que os cheques foram emitidos como mera garantia de um pagamento subordinado a uma condição a realizar pelo embargado e não verificada até ao momento. A qualificação jurídica que defende é a que recairia sobre esses factos que pelas razões expostas esta Relação não considera provados.
Não existe assim qualquer questão jurídica cuja análise as conclusões das alegações de recurso imponham. Pode, no entanto, acrescentar-se que não tendo a embargante logrado a prova de que a quantia titulada pelos cheques sacados e entregue por si ao embargado só seria paga uma vez verificada uma condição e que essa condição não se verificou, falecem inteiramente os fundamentos dos embargos, pelo que os mesmos não podem deixar de ser julgados improcedentes. Improcede assim o recurso.
V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente e, em consequência, negando provimento à apelação confirmam a sentença recorrida.
Custas do recurso pela recorrente.

Porto, 27 de Setembro de 2018.
Aristides Rodrigues de Almeida
Inês Moura
Francisca Mota Vieira
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[1] Os próprios valores em questão revelam bem a artificialidade – leia-se, improbabilidade – da construção da embargante, a qual, para ajustar os valores à sua tese, se vê obrigada a invocar um «arredondamento» (45.000€ em vez de 45.937,50€) sem reparar que nem com esse arredondamento se chega ao valor pretendido (45.000€ a dividir por 2 são 22.500€ e não 22.000€) e sem conseguir justificar como é que, se assim foi, não foi sacado um único cheque no valor do alegado preço da cessão que sempre teria de ser pago - 5.000€ - e sacados outros cheques de valores cuja soma perfaria o pagamento que teria ficado condicionado a um evento futuro e incerto.