Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | FERNANDO VILARES FERREIRA | ||
Descritores: | INSOLVÊNCIA EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE ÓNUS DA PROVA | ||
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Nº do Documento: | RP202309122614/18.3T8STS.P2 | ||
Data do Acordão: | 09/12/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | RECURSO IMPROCEDENTE; DECISÃO CONFIRMADA | ||
Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I – A decisão de recusa da exoneração do passivo restante pressupõe a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: a) violação das obrigações impostas ao insolvente como corolário da admissão liminar do pedido de exoneração; b) que essa violação decorra de uma atuação dolosa ou com grave negligência; c) verificação de prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência; d) e existência de nexo de causalidade entre a conduta e o prejuízo. II – O reconhecimento da especial dificuldade, tanto para os credores como para o fiduciário, em fazer prova dos pressupostos que vão além do mero incumprimento objetivo da obrigação, levou o legislador a conceber a seguinte regra: baseando-se o requerimento de recusa da exoneração nas als. a) e b) do n.º 1 do art. 243.º, o mesmo é sempre deferido, por via do comando normativo inserto na segunda parte do n.º 3 do mesmo artigo, se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer ao tribunal, no prazo que lhe seja indicado para o efeito, informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las. III – Daí que que o comportamento objetivo assumido pelo devedor, traduzido na falta de fornecimento de informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, sem apresentar justificação para tal, no seguimento de notificação para cumprimento efetuada pelo tribunal, produza efeito cominatório ou sancionatório, em termos de se considerarem verificados os pressupostos da cessação antecipada da exoneração do passivo restante. IV – Ou, em termos de repartição do ónus da prova nesta matéria, constatado o incumprimento objetivo da obrigação de o devedor entregar ao fiduciário, no período da cessão, certos montantes devidos, cabe ao devedor demonstrar uma causa justificada do incumprimento. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | PROCESSO N.º 2614/18.3T8STS.P2 [Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Comércio de Santo Tirso Juiz 2] Relator: Fernando Vilares Ferreira 1.º Adjunto: Alberto Taveira 2.ª Adjunta: Maria da Luz Seabra SUMÁRIO: ……………………… ……………………… ……………………… EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, acordam os Juízes Desembargadores da 2.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto: I. RELATÓRIO 1. Nestes autos de insolvência de pessoa singular, por sentença de 31.08.2018, foram declarados insolventes os apresentantes AA e mulher, BB. 2. Por despacho de 17.10.2018, foi declarado encerrado o processo por insuficiência da massa insolvente, assim como foi admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, determinando-se: “(…) que o rendimento dos devedores que ultrapasse o equivalente a 2 (dois) salários mínimos nacionais por mês, seja cedido ao Exmo. Sr. Administrador da Insolvência que neste ato se nomeia para exercer as funções de fiduciário”. 3. Em 25.10.2018, os Insolventes apresentaram requerimento nos seguintes termos: [1. Os insolventes têm despesas fixas no valor de 1.438,40€, conforme consta alegado e documentado no artigo 8.º da Petição Inicial, para onde se remete e se dá por plenamente reproduzido com todos os seus efeitos legais. 2. Pelo que o valor fixado de dois salários mínimos nacionais como rendimento disponível dos insolventes é manifestamente insuficiente para estes terem uma vida minimamente condigna. 3. Conforme consta dos autos, ambos os insolventes são reformados e têm muitos problemas de saúde. Pelo que necessitam de cuidados médicos e medicamentos, mensalmente. Termos em que se requer a V. Exa. que fixe o rendimento disponível para cada um dos insolventes de uma vez e meia o salário mínimo nacional (artigo 239.º, n.º 3, b), i) do CIRE).] 4. Sobre aquele requerimento, em 14.11.2018, incidiu o seguinte despacho: [O despacho que deferiu liminarmente a exoneração do passivo restante e fixou o montante do rendimento indisponível proferido a 17/10/2018 transitou pacificamente em julgado. Em obediência ao princípio do caso julgado e à extinção do nosso poder jurisdicional (arts. 613º/1 e 621º do CPC), esta decisão é, por isso, imutável, só podendo ser objeto de alteração se se alegar e comprovar que as condições económico-financeiras dos insolventes sofrerem alteração superveniente que venha a implicar essa mudança. Pelo exposto, indefere-se o requerido.] 5. Em 14.11.2019, o Sr. Fiduciário veio apresentar “relatório de cessão de rendimentos” relativo ao primeiro ano, nos seguintes termos: [1. Os insolventes em 2018 auferiram rendimentos líquidos no total de €21.191,76, respeitando a novembro e dezembro o montante de €3.531,96, que permite apurar a média mensal de €1.765,98. 2. De 1/1/2019 a 31/10/2019, decorrente de pensões pagas pelo Centro Nacional de Pensões, terão recebido o montante de €13.643,63, a que corresponde a média mensal de €1.364,36. 3. Desconhece-se o que o insolvente terá auferido no mesmo período de 2019 como porteiro no Condomínio ... em ..., ocupação que teve em 2018 e que se julga que manteve em 2019. 4. Atendendo a que o rendimento indisponível fixado para 2018 foi de €1.160,00, para os 2 meses de 2018 em apreciação apura-se rendimento disponível no montante de €1.211,96 (2x(1765,98-1160,00)) 5. E nos 10 meses de 2019, sem contar com o presumível rendimento de trabalho do insolvente, ainda a confirmar, sabendo que o rendimento indisponível é de €1.200,00, apura-se um rendimento disponível de €1.643,60 (10x164,36) Nestas circunstâncias, em que foi apurado um rendimento disponível no total de €2.855,56 (1364,36+1211,96) e nenhuma entrega à fidúcia foi efetuada pelos insolventes, mais requer a V. Exa. que os insolventes sejam notificados no sentido de: 1. procederem, desde já, à entrega/transferência da quantia de €2.855,56 para a conta da Fidúcia AA e BB; 2. apresentarem nos autos cópias dos recibos referentes às remunerações dos meses de janeiro a outubro de 2019 que terão sido pagas ao insolvente pelo referido Condomínio; 3. proceder à entrega/transferência para a conta da Fidúcia AA e BB da totalidade dos rendimentos mencionados nesses recibos, a confirmar no relatório do 2º ano.] 6. Por requerimento de 22.11.2019, os Insolventes impugnaram o dito relatório anual apresentado pelo Sr. Fiduciário, pugnando pela fixação do valor de 761,86€ como rendimento disponível respeitante aos rendimentos auferidos no primeiro ano. 7. Por despacho de 29.01.2020, o Tribunal aceitou o cálculo apresentado pelos Insolventes, e concedeu-lhes o prazo de 10 dias para efetuarem o pagamento do valor apurado. 8. No seguimento, os Insolventes, em 10.02.2020, expuseram e requereram o seguinte: [(…) vêm aos presentes autos dar conta que não têm possibilidades económicas para procederem ao pagamento da quantia de 761,86 € numa única prestação. Pelo que requerem o seu pagamento em doze prestações mensais e sucessivas no valor cada uma delas de 63,48 €.] 9. Por despacho de 09.03.2020, concedeu-se aos Insolventes a possibilidade de pagarem o valor em dívida à fidúcia, de forma faseada, em conformidade com a proposta apresentada. 10. No seguimento da notificação que lhe foi feita para apresentação de “relatório de cessão de rendimentos” relativo ao segundo ano, o Sr. Fiduciário, em 08.11.2020, veio corrigir o relatório respeitante ao primeiro ano, alegando que os devedores só em 6.11.2020 facultaram as declarações de IRS respeitantes aos anos de 2018 e 2019, deixando expresso o seguinte: [(…) De facto com os elementos, então, disponíveis a obrigarem a confirmação no relatório do segundo ano, apurou-se rendimento disponível no montante de €2.855,56. A Ilustre mandatária dos devedores sem apresentar os devidos comprovativos de rendimento, que só agora entregou, contrapôs em 22/11/2019 como rendimento disponível o montante de €761,86 e em 10/02/2020 requereu o pagamento de tal quantia em 12 prestações mensais no valor de €63,48 cada. Então, agora com as declarações entregues, ultrapassando-se assim o que foi presumido no próprio relatório que agora se substitui e conforme, também, alertado, no requerimento apresentado em 30/04/2020, mas na altura, ainda, dependente das declarações, foi possível comprovar que os devedores auferiram no primeiro ano de cessão rendimentos no total de €25.415,94, que resulta da soma de €4.134,06 relativo aos meses de novembro e dezembro de 2018 (24.809,19/12x2) mais €21.281,88 (25.538,26/12x10) relativo a aos meses de janeiro a outubro de 2019. Ora, sabendo-se que: 1 os rendimentos indisponíveis fixados aos insolventes totalizaram €14.320,00, que resulta de €2.320,00 (1.160,00x2) para os meses de novembro e dezembro de 2018 mais €12.000,00 (1200,00x10) para os meses de janeiro a outubro de 2019; 2. O rendimento disponível é igual ao rendimento apurado menos o rendimento indisponível, o que dá €11.095,94 (25.415,94-14.320,00); 3. Os devedores apenas entregaram à fidúcia a quantia de €253,92 (63,48x4) O signatário não pode deixar de requerer a V. Exa. que notifique os devedores no sentido de entregarem à fidúcia relativamente ao primeiro ano de cessão de rendimentos a quantia em falta no montante de €10.842,02 (11.095,94-253,92), sabendo-se que há autorização para pagar em prestações apenas para uma pequena parte (€761,86-€253,92), ou seja €507,94. E para que dúvidas não venham a existir também quanto ao relatório relativo ao segundo ano, que nesta data não é possível elaborar, porque se presume que o devedor não informou os rendimentos que lhe terão sido pagos pelo seu emprego como porteiro no condomínio ... em ..., mais requer a V, Exa. se digne ordenar o que tiver por conveniente quanto à cessação antecipada do incidente de exoneração do passivo restante, em caso de incumprimento por não prestação atempada e correta de informações e fixar novo prazo ao insolventes para comprovar junto dos autos os rendimentos que auferiu do referido condomínio de janeiro a outubro de 2020.] 11. Em 20.11.2020, a Credora Banco 1..., alegando que os Insolventes não cumpriram os deveres a que se vincularam, não entregando nomeadamente rendimentos disponíveis no valor global de 10.842,02€, deduziu pretensão no sentido de dever ser recusada a exoneração do passivo restante, antes de terminado o período de cessão. 12. Por despacho de 02.02.2021, foi determinada a notificação dos Insolventes para, para além do mais, entregarem os montantes solicitados pelo Sr. Fiduciário, sob pena de cessação antecipada de exoneração do passivo restante. 13. Em 15.02.2021, os Insolventes apresentaram requerimento nos seguintes termos: [(…) vêm requerer a junção aos autos dos comprovativos dos pagamentos das prestações 7, 8 e 9 (doc. nº 1 a 3). Os insolventes não dispõem de meios económicos para pagar de imediato os montantes solicitados. Pelo que logo que o valor de 761,86 € em divida se encontre pago (o qual está a ser pago em doze prestações, conforme Douto Despacho proferido sob a refª 413076536), os insolventes irão começar a pagar o restante valor devido.] 14. Em 03.03.2021, foi proferido despacho nos seguintes termos: [(…) concede-se a oportunidade dos insolventes retomarem o pagamento do valor em dívida à fidúcia da forma faseada proposta.] 15. Em 09.11.2021, o Sr. Fiduciário veio apresentar “relatório de cessão de rendimentos” relativo ao segundo ano, nos seguintes termos: [1. Os insolventes relativamente ao primeiro ano apenas entregaram à massa fiduciária a quantia de €761,76, continuando em dívida a quantia de €10.334,18 (11.095,94-761,76), tendo em conta o rendimento disponível apurado no relatório corrigido apresentado em 08/11/2020; 2. No período em apreciação auferiram rendimentos líquidos no total de €22.920,47, obtido pela soma de €4.256,37 correspondente ao auferido em novembro e dezembro de 2019 (25.538,26/12x2) mais €18.664,10 respeitante ao auferido de janeiro a outubro de 2020 (22.396,93/12x10). 3. Atendendo a que o rendimento indisponível fixado para 2019 foi de €1.200,00 e de €1.270,00 para 2020, é possível apurar para o período um rendimento indisponível no total de €15.100,00 (1200,00x2+1.270,00x10, que é inferior ao rendimento apurado como auferido no montante de €7.820,47. Nestas circunstâncias, mais requer a V. Exa. se digne notificar os devedores no sentido de procederem à transferência dos valores em dívida no total de €18.154,65 (10.334,18+7.820,47).] Relativamente ao “relatório respeitante ao terceiro ano”, o Sr. Fiduciário justificou a impossibilidade de apresentação com a não informação por parte do devedor quanto aos rendimentos que lhe foram pagos no âmbito do já mencionado contrato de trabalho. 16. Em 17.11.2021, a Credora Banco 1... mais uma vez veio requerer a recusa antecipada da exoneração do passivo restante. 17. Por despacho de 09.12.2021, foi determinada a notificação dos Insolventes para, para além do mais, entregarem os montantes solicitados pelo Sr. Fiduciário, sob pena de cessação antecipada de exoneração do passivo restante. 18. Em 23.12.2021, os Insolventes apresentaram requerimento nos seguintes termos: [(…) vem dar conta de todos os valores pagos até à data: - 14/06/2021, 63,48 €; - 14/05/2021, 63,48 €; - 12/04/2021, 63, 48 €; - 09/03/2021, 63,48 €; - 25/02/2021, 63,48 €; - 11/01/2021, 63,48 €; - 09/06/2020, 63,48 €; - 14/07/2020, 63,48 €; - 31/08/2020, 63,48 €; - 30/09/2020, 63,48 €; - 09/11/2020, 63,48 €. - 11/12/2020, 63,48 €. No total de 761,76 €. O insolvente é uma pessoa com uma saúde muito precária e tem tido muitas dificuldades em entregar os valores mensalmente. Contudo, a partir de Janeiro de 2022 irá reiniciar o pagamento dos valores. O insolvente não tem qualquer possibilidade de pagar a totalidade de uma única vez.] 19. Em 02.02.2022, os Insolventes apresentaram requerimento nos seguintes termos: [(…) vem aos presentes autos dar conta que o insolvente esteve ao serviço do Condomínio ... até ao dia 30 de Setembro de 2020, data em que cessou o contrato de trabalho (doc. nº 1 e 2), uma vez que o seu estado de saúde tem vindo a deteriorar-se bastante. Cabe aqui referir que o insolvente não possui a totalidade de 18.154,65 € para pagar, pois se tivesse tal valor não estaria insolvente. Pelo que, com a devida Vénia, vimos junto de V. Exa requerer que seja fixado um valor mensal a pagar por aquele tendo em conta a pensão por velhice que ele aufere, conforme doc. nº 3 que ora se junta. Requerendo a não cessação antecipada do procedimento da exoneração do passivo restante, tanto mais que de acordo com as suas possibilidades, o insolvente tem realizado algumas entregas à massa insolvente.] 20. No seguimento de notificação que o Tribunal lhe dirigiu, em 05.04.2022, o Sr. Fiduciário veio expor o seguinte: [(…) vem muito respeitosamente manifestar que mantém o conteúdo do relatório de cessão de rendimentos relativo ao segundo ano, pois a explicação e os documentos juntos pelo insolvente em nada o alteram. De facto tal relatório respeita ao período de novembro de 2019 a outubro de 2020 e como nele demonstrado os rendimentos tidos como auferidos foram calculados com base nas respetivas declarações de IRS, não tendo a informação sobre a cessão do contrato de trabalho com o condomínio qualquer influência. Tal informação era necessária apenas para o relatório relativo ao terceiro ano de cessão de rendimentos, ainda não elaborado e porque não era possível dispor, ainda, da declaração de IRS relativa a 2021. Acresce referir que, sem fundamentação e pedido para alterar o rendimento indisponível, não se entende o alcance de ter sido mencionado “que de acordo com as suas possibilidades, o insolvente tem realizado algumas entregas à massa insolvente”, quando os insolventes já não fazem qualquer entrega desde 15/06/2021, sabendo-se, também, que auferiram rendimentos muito para além dos 2 SMN fixados para viverem e que, até 15/06/2021, desde o início do período de cessão, apenas foram feitas entregas no total de €761,76.] 21. Em 11.05.2022, foi proferido despacho nos seguintes termos: [Entrada em vigor a Lei nº 9/2022, de 11 de janeiro, por força da qual foi alterado o CIRE, sendo imediatamente aplicável aos processos pendentes [cfr. artº 10º, nº 1], temos que, nos processos de insolvência de pessoas singulares nos quais haja sido liminarmente deferido o pedido de exoneração do passivo restante e cujo período de cessão de rendimento disponível em curso já tenha completado três anos à data de entrada em vigor da referida lei, se considera findo o referido período [cfr. artº 10º, nº 3]. Sucede que, segundo entendemos, uma vez que o términus do período de cessão não prejudica a tramitação de quaisquer questões pendentes relativas ao incidente de exoneração do passivo restante [cfr. artº 10º, nº 4], não pode deixar de atender ao cumprimento das demais regras previstas para o final do procedimento de exoneração, designadamente as previstas nos artºs 235º e segs. do CIRE, atendendo agora às alterações operadas pela citada Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, tais como a audição dos interessados, o apuramento dos valores devidos ou em dívida e a decisão sobre a concessão/recusa da exoneração ou prorrogação do período de cessão. Pelo exposto, antes do mais: i. Sem prejuízo do supra determinado, considera-se findo o período de cessão de rendimentos em curso – cfr. artº 10º, nº 3, da Lei nº 9/2022, de 11 de janeiro. ii. Notifique-se o(a) Exm(a) Sr(a) Fiduciário(a) para, uma vez terminado o período supramencionado para regularização da fidúcia, remeter o relatório final de cessão, com pronúncia nos termos dos artºs 242º-A ou 244º do CIRE. iii. Junto o referido relatório, notifiquem-se os devedores e os credores, nos termos e para os efeitos da previsão dos artºs 242º-A ou 244º do CIRE.] 22. Em 17.06.2022, os Insolventes apresentaram requerimento nos seguintes termos: [(…) tendo sido notificados do Douto Despacho sob a refª 437319318, vêm requerer a junção aos autos das declarações do C.N. Pensões do valor das pensões no ano de 2022 (doc. nº 1 e 2), bem como a declaração de IRS referente ao ano de 2021 (doc. nº 3). Os Insolventes auferem mensalmente 730,15 € (AA) e 580,48 € (BB) pelo que é-lhes de todo impossível pagar o valor em divida de 18.154,65 € à massa insolvente.] 23. Em 19.07.2022, o Sr. Fiduciário veio apresentar “relatório de cessão de rendimentos”, respeitante ao período terminado em 11.04.2022, nos seguintes termos: [1. No período em apreciação os insolventes nenhuma quantia entregaram à massa fiduciária para pagamento da dívida relativa aos rendimentos disponíveis dos três primeiros anos e que era de €20.939,90. 2. Entretanto, no período auferiram rendimentos no total de €7.446,21, obtido pela soma de €2.978,48 correspondente ao auferido em novembro e dezembro de 2021 (17.870,92/12x2) mais €4.467,73 respeitante ao auferido de janeiro a março de 2022 (17.870,92/12x3). 3. Atendendo a que o rendimento indisponível fixado para 2021 foi de €1.330,00 e de €1.410,00 para 2022, apurou-se para o mesmo período um rendimento indisponível no total de €6.890,00 (1.330,00x2+1.410,00x3), que é inferior ao total do rendimento auferido no montante de €556,21, quantia que também não foi entregue à massa fiduciária, passando a dívida à massa fiduciária a ser no total de €21.496,11. 4. Nesta data, a conta da massa fiduciária apresenta um saldo de €761,76, relativa a entregas por conta do primeiro ano. Apesar de todos os relatórios referirem os insolventes como devedores, porque todos os cálculos foram feitos para o casal, na realidade devedor é apenas o insolvente porque foi ele que sempre auferiu rendimentos de valor superior ao rendimento indisponível fixado. Acresce referir que não obstante as várias notificações, não se entende o silêncio do insolvente quanto ao destino que deu ao rendimento disponível que de facto dispôs, limitando-se no seu requerimento de 20/06/2022 a manifestar que lhe é de todo impossível pagar. Nestas circunstâncias e apenas para a insolvente, porque não dispõe de qualquer elemento nem qualquer credor manifestou o contrário que lhe permita não concluir que a insolvente cumpriu com todas as obrigações decorrentes do despacho de admissão liminar de exoneração do passivo restante elencadas no artº 239º, nº 4 do CIRE e a que estava adstrita, mais requer a V. Exa. se digne aceitar o seu favorecimento à concessão da exoneração do passivo restante para a insolvente, reservando o parecer quanto ao insolvente para depois da entrega do valor em dívida.] Na mesma data, apresentou “relatório de cessão de rendimentos” respeitante ao terceiro ano, nos seguintes termos: [1. No período em apreciação os insolventes nenhuma quantia entregaram à massa fiduciária para pagamento da dívida no total de €18.154,65 relativa aos primeiro e segundo anos. 2. E porque o insolvente deixou de exercer a atividade de porteiro, os rendimentos neste terceiro ano foram apenas de €18.625,25, obtido pela soma de €3.732,82 correspondente ao auferido em novembro e dezembro de 2020 (22.396,93/12x2) mais €14.892,43 respeitante ao auferido de janeiro a outubro de 2021 (17.870,92/12x10). 3. Atendendo a que o rendimento indisponível fixado para 2020 foi de €1.270,00 e de €1.330,00 para 2021, apurou-se para o mesmo período um rendimento indisponível no total de €15.840,00 (1270,00x2+1.330,00x10), que é inferior ao total do rendimento auferido no montante de €2.785,25, que também não foi entregue à massa fiduciária 4. Nestas circunstâncias, a dívida dos insolventes à massa fiduciária, no final do terceiro ano, passou a ser de €20.939,90.] 24. Ainda em 19.07.2022, o Sr. Fiduciário expôs o seguinte: [(…) vem requerer a V. Exa. se digne aceitar o seu favorecimento à concessão da exoneração do passivo restante apenas à insolvente pelas razões constantes no relatório de cessão de rendimentos relativo ao período terminado em 11/04/2022, apresentado nesta mesma data, reservando o seu parecer quanto ao insolvente para depois da entrega do valor em dívida à massa fiduciária no montante de €21.496,11. Mais requer a V. Exa. se digne aceitar a sua opinião, de que não estando incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, não tem competência para requerer a prorrogação do período de cessão nos termos do artigo 242-A do CIRE.] 25. Em 25.07.2022, mais uma vez veio a Credora Banco 1... pronunciar-se no sentido de dever ser recusada a exoneração do passivo restante. 26. Em 27.07.2022, os Insolventes apresentaram requerimento nos seguintes termos: [1. Os insolventes desconhecem como o Senhor Fiduciário chegou aos valores constantes dos pontos 1 a 3 do seu requerimento. 2. Requerendo, pois, que o Senhor Fiduciário seja notificado para explicar como chegou a tais valores. 3. Contudo e sem prescindir, cabe aqui referir que o insolvente AA aufere mensalmente a quantia de 730,15 € (conforme doc. nº 1 junto aos autos no dia 17/06/2022) e a insolvente BB aufere mensalmente a quantia de 580,48 € (conforme doc. nº 2 junto aos autos no dia 17/06/2022). 4. Valores estes inferiores ao fixado por sentença relativo ao rendimento disponível correspondente a duas vezes o salário mínimo nacional. 5. É com este valor que os insolventes pagam as sua contas mensais, ou seja, a renda de casa, condomínio, água, luz, telefone, alimentação, medicamentos, vestuário e calçado. 6. Pelo que os insolventes não têm meios (ambos são reformados) para pagar a quantia de 21.496,11 €. 7. Ambos são insolventes, tendo-lhes sido concedido o benefício do apoio judiciário na modalidade de isenção total do pagamento da taxa de justiça e demais encargos processuais, em virtude dos baixos rendimentos que auferem. Termos em que se requer a concessão da exoneração do passivo restante dos insolventes.] 27. Em 10.10.2022, os Insolventes apresentaram requerimento nos seguintes termos: [(…) vem aos presentes autos informar que recebe de pensão 730,15 €, mensalmente (doc. nº 1) e a sua mulher BB, recebe 580,00 € (doc. nº 2). Sendo, que o rendimento auferido pelos dois insolventes não excede o valor fixado de um ordenado mínimo para cada um. Urge referir que as pensões que auferem são o seu único rendimento, não dispõem de qualquer outro rendimento, nem são proprietários de quaisquer bens. É com este rendimento que pagam a renda, medicamentos, alimentação, água, luz, telefone e condomínio. Pelo que não dispõem de meios económicos para poder pagar um valor tão alto como 21.496,11 € à massa fiduciária. Pelo que requerem a V Exa se digne aceitar o seu favorecimento à concessão da exoneração do passivo restante aos insolventes.] 28. Em 21.10.2022, foi proferido despacho nos seguintes termos: [Conforme resulta do despacho proferido em 11-05-2022, o período da cessão já decorreu, pelo que urge proferir decisão final em matéria de exoneração do passivo restante. Subsiste, no entanto, a necessidade de apurar os valores que excederam o rendimento indisponível do devedor e que estão em falta, sendo que o Sr. Fiduciário informou que os insolventes possuem uma dívida total à fidúcia que ascende a € 21.496,11. Assim, notifique o Sr. Fiduciário para, no prazo de 10 dias, juntar aos autos os mapas demonstrativos dos cálculos realizados, de que resultou a sobredita quantia de € 21.496,11 que foi considerada em dívida à fidúcia, e que decorre dos valores parcelares a que faz referência nos relatórios juntos aos autos. Neste sentido, esclarece-se desde já que o critério adotado pelo Tribunal para efeito do cômputo do rendimento disponível é o que tem por base o rendimento médio anual, ou seja, no apuramento dos valores a ceder ao fiduciário toma-se por base o rendimento anual, o qual é dividido pelo número de meses respetivo.] 29. Em 24.10.2022, o Sr. Fiduciário, em resposta ao solicitado pelo Tribunal, juntou aos autos mapa demonstrativo dos cálculos efetuados para o período de cessão de rendimentos, confirmando o valor da dívida à massa fiduciária no total de €21.446,11 e que corresponde às demonstrações efetuadas nos respetivos relatórios. 30. Notificados do dito mapa demonstrativo dos cálculos efetuado, os Insolventes não se pronunciaram. 31. No seguimento, em 21.11.2022 foi proferida sentença que declarou recusada a pretendida exoneração do passivo restante, a qual viria a ser anulada por acórdão desta Relação no âmbito de recurso de apelação interposto pelos Insolventes. 32. Em 14.04.2023 foi proferida nova sentença, com o seguinte dispositivo: [Pelo exposto, declaro recusada a exoneração do passivo restante requerida por AA e BB. Custas a cargo dos requerentes. Registe, notifique e comunique à C.R.Civil.] 33. Não se conformando com aquela decisão, vieram os Insolventes interpor recurso de apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo, assente nas seguintes CONCLUSÕES: 1.ª O 1. O Douto Despacho em crise declarou “recusada a exoneração do passivo restante requerido por AA e BB.”, justificando tal decisão, entre outras, com o preceituado no art. 243º, nº 1, a) do CIRE. 2.ª Acrescentando que os insolventes estão obrigados, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, ou seja, durante o período da cessão, a entregar ao fiduciário, todo o rendimento que ultrapasse o equivalente a dois salários mínimos. Obrigação esta que os insolventes não cumpriram na totalidade, uma vez que entregaram 761,76€, tendo ficado por entregar 21.446,11€. 3.ª O Douto Despacho sub judice finaliza dizendo “terem os devedores violado, pelo menos com grave negligência, as obrigações que lhes são impostas pelo artigo 239º, nº 3 do CIRE, pois não geriram os respetivos rendimentos conforme lhes era exigível e contrariando as condições que se comprometeram observar nos termos prescritos no art. 236º, nº 3 do CIRE, assim prejudicando a satisfação dos créditos sobre a insolvência, agindo contrariamente às obrigações a que se encontravam adstritos ao longo do período da cessão.” 4.ª Contudo e conforme consta do Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, 2ª Secção, 28/02/2023, no âmbito dos presentes autos, o qual diz o seguinte: “… a decisão de recusa da exoneração do passivo restante, à luz das disposições conjugadas dos artigos 239º 243º e 244º todos do CIRE, pressupõe a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: a violação das obrigações impostas ao insolvente como corolário da admissão liminar do pedido de exoneração; b) que essa violação decorra de uma atuação dolosa ou gravemente negligente; c) verificação de prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência; d) e existência de nexo de causalidade entre a conduta e o prejuízo.” 5.ª Pelo que a exoneração do passivo restante é revogada se os credores e/ou fiduciário alegarem e provarem todos os factos de que depende a recusa da exoneração do passivo restante. 6.ª Assim, conforme consta dos factos provados (ponto 5.), os insolventes entregaram à massa fiduciária a quantia de 761,76 €. 7.ª E não procederam a mais entregas, porque os seus rendimentos não lhes permitem, uma vez que o insolvente marido aufere a pensão mensal de 663,07 € e a insolvente mulher aufere a pensão mensal de 544,36 €, conforme consta dos factos provados (ponto 1) Douto Despacho sub judice. 8.ª É com este rendimento (663,07 € + 544,36 €) que os insolventes vivem, pois não têm outra fonte de rendimento, nem são proprietários de quaisquer bens. 9.ª Não tendo ficado provado que os insolventes violaram dolosamente ou com negligência grave as suas obrigações e que fosse possível verificar-se um prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência e que exista um nexo causal entre a conduta daqueles e o prejuízo. 10.ª Não resultando provada a verificação cumulativa destes pressupostos no Douto Despacho Sub Judice. O que se impunha. * Terminaram, pedindo a revogação da decisão recorrida, concedendo-se a exoneração do passivo restante.34. Não foram apresentadas contra-alegações. II. OBJETO DO RECURSO Considerando as conclusões das alegações apresentadas pelos Apelantes, e visto o preceituado nos artigos 635.º, n.º 4, 637.º, n.º 2, 1.ª parte, e 639.º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPCivil), o presente recurso versa apenas sobre matéria de direito, importando apenas dar resposta à questão de saber se existe ou não fundamento bastante para recusar a exoneração do passivo restante aos Insolventes/Recorrentes. III. FUNDAMENTAÇÃO 1. Os factos 1.1. O Tribunal a quo julgou provados os seguintes factos: 1.1.1. Em 14-08-2018 AA e BB apresentaram-se à insolvência, a qual foi declarada por sentença proferida a 31-08-2018, transitada em julgado. 1.1.2. Mediante decisão proferida em 17-10-2018, foi declarado o encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente e admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos requerentes, determinando-se que “o rendimento dos devedores que ultrapasse o equivalente a 2 (dois) salários mínimos nacionais por mês, seja cedido ao Exmo. Sr. Administrador da Insolvência que neste ato se nomeia para exercer as funções de fiduciário”. 1.1.3. Deu-se como assente na referida decisão que “os devedores estão casados e têm 68 e 65 anos de idade”; “o agregado familiar é constituído pelos próprios”; “são ambos reformados, auferindo o insolvente marido a pensão mensal de € 663,07, e a insolvente mulher a pensão mensal de € 544,36” e que “o insolvente marido tem uma incapacidade de 65%, e complementa a sua pensão com o trabalho de porteiro num condomínio, auferindo € 542,05 mensais”. 1.1.4. Desde 01 de outubro de 2020, o insolvente marido deixou de exercer a atividade de porteiro num condomínio, deixando igualmente de receber o complemento remuneratório referido em 1.1.3. 1.1.5. Ao longo do período da cessão os insolventes efetuaram entregas à fidúcia no valor total de 761,76€, subsistindo em falta quantias que excederam o rendimento indisponível no montante global de 21.446,11€. 1.2. E julgou não provado que “os insolventes não tenham procedido à entrega de quantias no montante global de 21.446,11€ por os seus rendimentos não lhes permitirem”. 1.3. Com relevância para a decisão temos também os demais atos que se inserem na tramitação processual de que damos sumariamente nota no relatório supra. 2. Os factos e o direito 2.1. A exoneração do passivo restante, cujo regime se mostra vertido essencialmente nos arts. 235.º a 248.º-A do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE)[1], representa, como é por demais sabido, um benefício muito relevante concedido ao devedor pessoa singular declarado insolvente, por lhe permitir libertar-se do peso do passivo e refazer a sua vida económica, constituindo uma causa de extinção das obrigações. Nos termos do art. 235.º, “se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições deste capítulo”. Por sua vez, o art. 239.º, sob a epígrafe “Cessão do rendimento disponível”, dispõe assim: “1 - Não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido o despacho inicial, na assembleia de apreciação do relatório, ou nos 10 dias subsequentes a esta ou ao decurso dos prazos previstos no n.º 4 do artigo 236.º. 2 - O despacho inicial determina que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado por período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte. 3 - Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão: a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz; b) Do que seja razoavelmente necessário para: i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional; ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional; iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor. 4 - Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a: a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado; b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto; c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão; d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego; e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores. 5 - A cessão prevista no n.º 2 prevalece sobre quaisquer acordos que excluam, condicionem ou por qualquer forma limitem a cessão de bens ou rendimentos do devedor. 6 - Sendo interposto recurso do despacho inicial, a realização do rateio final só determina o encerramento do processo depois de transitada em julgado a decisão”. Nas palavras de CATARINA SERRA[2], o regime da exoneração do passivo restante “implica fundamentalmente que, depois do processo de insolvência e durante algum tempo, os rendimentos do devedor sejam afectados à satisfação dos direitos de crédito remanescentes, produzindo-se, no final, a extinção dos créditos que não tenha sido possível cumprir por essa via, durante tal período. A intenção da lei é a de libertar o devedor das suas obrigações, realizar uma espécie de azzeramento da sua posição passiva, para que, depois de “aprendida a lição” ele possa retomar a sua vida e, se for caso disso, o exercício da sua actividade económica ou empresarial”. O objectivo é, por outras palavras, dar ao sujeito a oportunidade de (re)começar do zero, de um “fresh start”. Ou seja, a prolação de despacho inicial de admissibilidade do incidente de exoneração do passivo restante não assegura de modo algum a concessão da pretendida exoneração. Representa apenas a concessão de um período temporal durante o qual o devedor fica sujeito a uma espécie de regime de prova de ser merecedor de pretendido benefício, assente no cumprimento de múltiplas obrigações. Tanto assim que antes ainda de terminado o período da cessão, a exoneração deve ser recusada a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência ou do fiduciário, nas situações previstas no art. 243.º, n.º 1, designadamente quando: “a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência; b) Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente; c) A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência”. E acrescenta-se no n.º 3 do cit. art. 243.º: “Quando o requerimento se baseie nas alíneas a) e b) do n.º 1, o juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão; a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las”. Não tendo havido lugar a cessação antecipada, como é o caso dos autos, “ouvido o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência, o juiz decide, nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão, sobre a respetiva prorrogação, nos termos previstos no artigo 242.º-A, ou sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor” (art. 244.º, n.º 1). A exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo 243.º (n.º 2 do art. 244.º). Assim, a decisão de recusa da exoneração do passivo restante, à luz das disposições conjugadas dos artigos citados, pressupõe a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: a) violação das obrigações impostas ao insolvente como corolário da admissão liminar do pedido de exoneração; b) que essa violação decorra de uma atuação dolosa ou com grave negligência; c) verificação de prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência; d) e existência de nexo de causalidade entre a conduta e o prejuízo. Também se nos apresenta suficientemente sedimentado o entendimento de que impende sobre o credor do insolvente ou sobre o fiduciário, sem prejuízo do dever de investigação oficiosa do tribunal, o ónus de alegação e prova dos factos de que depende a recusa de exoneração do passivo restante, por assumirem natureza impeditiva do direito (art. 342.º, n.º 2, do Código Civil). Não custa, porém, reconhecer a especial dificuldade, tanto para os credores como para o fiduciário, em fazer prova dos pressupostos que vão além do mero incumprimento objetivo da obrigação. E daí que o legislador tenha concebido a seguinte regra: baseando-se o requerimento de recusa da exoneração nas als. a) e b) do n.º 1 do art. 243.º, o mesmo é sempre deferido, por via do comando normativo inserto na segunda parte do n.º 3 do mesmo artigo, se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer ao tribunal, no prazo que lhe seja indicado para o efeito, informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las. A leitura conjugada do estatuído nas citadas disposições legais, leva-nos a concluir que o comportamento objetivo assumido pelo devedor, traduzido na falta de fornecimento de informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, sem apresentar justificação para tal, no seguimento de notificação para cumprimento efetuada pelo tribunal, produz efeito cominatório ou sancionatório, em termos de se considerarem verificados os pressupostos da cessação antecipada da exoneração do passivo restante. Ou, em termos de repartição do ónus da prova nesta matéria, constatado o incumprimento objetivo da obrigação de o devedor entregar ao fiduciário, no período da cessão, certos montantes devidos, cabe ao devedor demonstrar uma causa justificada do incumprimento. Tal leitura é a única que, a nosso ver, confere sentido e razão de ser à norma inserta na segunda parte do n.º 3 do art. 243.º, no confronto com o normativo da alínea a) do n.º 1 do mesmo artigo. 2.2. A aplicação das regras que deixámos enunciadas à situação que nos ocupa, tendo por base a factualidade apurada, conduz-nos com toda a segurança a afirmar que a decisão a que chegou a 1.ª instância é a única que se coaduna com a boa aplicação do direito. Antes de mais, importa ter presente que os Apelantes não impugnaram a decisão recorrida em matéria de facto, conformando-se por isso com a mesma em todas as suas vertentes, nomeadamente no que concerne ao facto de durante o período da cessão os Insolventes terem entregado à fidúcia apenas o montante global de 761,76€, subsistindo em falta quantias que excederam o rendimento indisponível no montante global de 21.446,11€. Nesta parte, importa sublinhar que tendo os Insolventes, a dado passo, questionado a razão de ser dos cálculos efetuados pelo Senhor Fiduciário em torno do rendimento disponível para cedência (cf. ponto 26 do relatório deste acórdão), os mesmos acabaram por aceitar como certas as contas apresentadas, na medida em que aceitaram os esclarecimentos complementares, por via do mapa de demonstração dos cálculos, apresentando em 24.10.2022 (cf. pontos 29 e 30 do relatório deste acórdão). Tal facto consubstancia inequivocamente incumprimento objetivo da obrigação dos Insolventes, com previsão no art. 239.º, n.º 4, al. c). A não disponibilização do referido montante à fidúcia traduz-se, com toda a lógica, em correspondente prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência, sendo indubitável que tal prejuízo encontra causa adequada na conduta omissiva dos Insolventes. Por último, no que concerne ao pressuposto “culpa”, importa sublinhar que os Insolventes, desde sempre ao longo do processo se limitaram a justificar a não entrega dos montantes devidos por não terem condições económicas que o permitissem. Contudo, tal justificação apresenta-se a todos os títulos inconsequente, porquanto a real situação económica dos Insolventes, ao longo do período da cessão, foi devidamente avaliada pelo Tribunal, em termos que conduziu a decisão, transitada em julgado, no sentido de considerar disponível todo o rendimento dos Insolventes que excedesse 2 salários mínimos nacionais mensais por ano. Tal decisão, apesar de reponderada por diversas vezes pelo Tribunal, no seguimento dos múltiplos requerimentos apresentados pelos Insolventes, permaneceu inalterada ao longo do período da cessão, ainda que com a benesse concedida de pagamento em prestações durante certo tempo e com respeito a certo montante, e como tal era com base nela que os Insolventes deveriam ter procedido, gerindo em conformidade a sua economia familiar. Ou seja, os Insolventes nunca em momento algum apresentaram ao Tribunal qualquer “motivo razoável” para não cumprirem a obrigação de entrega do dito montante à fidúcia, e daí o facto dado como não provado pela sentença recorrida, e daí também que, por via da regra a que nos referimos supra, decorrente do estatuído no n.º 3 do art. 243.º, se justifique o efeito cominatório ou sancionatório, em termos de se considerarem verificados os pressupostos da cessação antecipada da exoneração do passivo restante, entre os quais a culpa, pelo menos na modalidade de negligência grave. Impõe-se-nos, pois, sem necessidade de outras considerações. que concluamos pela improcedência do recurso, com a consequente manutenção da decisão recorrida. 2.3. As custas deste recurso são da responsabilidade dos Apelantes (cf. art. 527.º, nºs 1 e 2 do CPCivil, e 1.º do RCProcessuais), sem prejuízo para a dispensa de pagamento de que possam beneficiar, por via do instituto de apoio judiciário. IV. DECISÃO Pelos fundamentos expostos, na improcedência do recurso, decidimos: a) Manter a decisão recorrida; e b) Atribuir aos Apelantes a responsabilidade pelo pagamento das custas deste recurso, sem prejuízo para a dispensa de efetivo pagamento de que possam beneficiar, por via do instituto de apoio judiciário. *** Porto, 12 de setembro de 2023Os Juízes Desembargadores, Fernando Vilares FerreiraAlberto Taveira Maria da Luz Seabra ____________ [1] São deste Código todas as normas citadas doravante sem menção em contrário. [2] O Novo Regime Português da Insolvência, Uma Introdução, 4.ª Edição, Coimbra, 2010, p. 133. |