Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3385/15.0T8PNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MADEIRA PINTO
Descritores: DANOS MATERIAIS
VALOR REAL
REPARAÇÃO DE VEÍCULO
EXCESSIVA ONEROSIDADE
PRIVAÇÃO DE USO
Nº do Documento: RP201802083385/15.0T8PNF.P1
Data do Acordão: 02/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 122. FLS 119-129)
Área Temática: .
Sumário: I - O valor venal e o valor do veículo sinistrado do autor, enquanto salvado, foram apurados pela ré seguradora no âmbito da Convenção IDS e vinculam a ré, enquanto proposta indemnizatória apresentada ao autor pelos danos materiais decorrentes do acidente dos autos.
II - A opção entre mandar reparar o veículo danificado NZ ou optar por receber uma indemnização em dinheiro cabe ao Autor recorrente, pois é o lesado que nenhuma culpa teve na produção dos referidos danos materiais no seu veículo.
III - Não ficou provado que o valor comercial do veículo acidentado proposto pela ré ao autor permita a aquisição de uma viatura similar á sinistrada. Caberia à Ré alegar e provar que a reparação do dano com vista à reconstituição natural lhe acarreta um encargo injustificável ou desajustado. A excessiva onerosidade e por referência ao previsto no artigo 566.º do Código Civil deverá ser aferida conforme tem vindo a ser jurisprudencialmente defendido, no caso concreto entre o interesse do lesado à total reparação do veículo (quando possível, como aconteceu nos autos, porque era o mesmo tecnicamente reparável) e o custo que tal representava. Só perante uma manifesta desproporção entre estes dois interesses se poderá entender justificado o afastamento da obrigação da reconstituição natural ou a reparação total da viatura.
IV - É jurisprudência firme e que se aceita, que os limites previstos na alínea c) do artigo 41.º do Decreto-Lei 291/2007, de 21 de Agosto, poderão servir de ponto de partida e como limite mínimo para a análise da questão aqui colocada. Mas, o regime previsto no artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 291/2007 de 21/08 vale apenas para os procedimentos a adoptar pelas empresas de seguros na fixação de prazos com vista à regularização rápida de litígios e do estabelecimento de princípios base na gestão de sinistros com vista à apresentação de um “proposta razoável”, mas já não na fase judicial, em que regem as regras e princípios gerais da responsabilidade civil e da obrigação de indemnização, podendo quando muito tais normativos considerarem-se como elementos de referência não vinculativos.
V - A indemnização pelo valor da reparação consubstancia uma forma de reconstituição natural a que o autor tem direito e que não é afastada por aquele ter procedido à reparação do veículo sinistrado. O dano existiu e impõe-se a sua reparação mediante a atribuição do valor necessário. Aliás, face à recusa da Ré recorrida em proceder à reparação, a atitude do autor recorrente em proceder à reparação do veículo sua propriedade, com material alternativo, permitindo-lhe um valor mais baixo, mostra-se perfeitamente compreensível e legitima, até para atenuar de outros danos pelos quais a ré recorrida podia ser responsável, nomeadamente ao nível da privação da viatura.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 3385/15.0T8PNF.P1
Relator: Madeira Pinto
Adjuntos: Carlos Portela
José Manuel Araújo de Barros
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Sumário:
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1- Relatório
B..., casado, residente na ..., ..., ..., Lousada, em 22.12.2015, instaurou a presente acção declarativa emergente de acidente de viação, com processo comum, contra Companhia de Seguros C..., S.A., com sede na Avenida ..., n.º ..., Lisboa, concluindo a pedir que a ré seja condenada a pagar-lhe a quantia global de € 6.032,77, sendo € 1.000,00 a título de Indemnização pela privação do uso do veículo e € 5.032,77 como indemnização pelos danos matérias sofridos pelo seu veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-..-NZ, emergentes de um acidente de viação, quantia global acrescida de juros de mora contados da data de citação até efectivo e integral pagamento.
Alega, em resumo, que no dia 02 de Março de 2015, ocorreu um acidente de viação na estrada nacional ..., no sentido Lixa-Penafiel, em que foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros de marca Mitsubishi ..., de sua propriedade, com a matrícula ..-..-NZ, por si conduzido, e o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ..-..-NG, conduzido por D... e seguro na ré; os referidos veículos embateram entre si, quando o NG, saindo de um parque de estacionamento, invadiu a hemi-faixa de rodagem por onde circulava o NZ; refere, ainda, que desse embate resultaram danos para o seu veículo, e, realizada a peritagem a mando da ré, a reparação dos mesmos foi orçada em € 5.032,77, tendo a seguradora ré proposto indemnizá-lo em € 1.515,00, considerando que o valor venal do veículo era de € 1.700,00 e o valor do salvado de € 185,00, proposta que o autor recusou por considerar que a reparação do mesmo era tecnicamente viável, além de que esse era o único veículo de que dispunha, sendo usado nas suas deslocações pessoais e de família, encontrando-se o mesmo em bom estado de conservação, com cerca de 80.000 quilómetros, não sendo sua intenção vendê-lo, até porque no ano anterior tinha procedido à sua reparação a nível de pintura de riscos e demais necessário, sendo difícil encontrar um veículo similar.
Citada, a ré apresentou contestação, aceitando a matéria de facto alegada quanto à dinâmica do acidente, e, consequentemente, a responsabilidade do veículo por si segurado na produção do mesmo, impugnando o documento junto pelo autor para demonstrar a propriedade da viatura, referindo que foi a companhia de seguros para a qual o autor havia transferido a responsabilidade pelos danos causados pela circulação do veículo do autor que o avaliou inicialmente em € 1.700,00 e posteriormente em € 1.750,00, bem como que avaliou o salvado e indicou o valor estimado para reparação dos danos, considerando, por isso, que o veículo encontra-se numa situação de perda total, pelo que a obrigação de indemnização é cumprida em dinheiro e não através da reparação da viatura, pela entrega da quantia de € 1.565.00, sendo que esta limitação da indemnização se justifica porquanto o autor poderia, com esse montante indemnizatório, adquirir uma viatura que lhe satisfizesse as suas necessidades, tornando-se, por isso, excessivamente oneroso para a ré o pagamento do preço da reparação do veículo do autor; quanto ao pedido pelo dano de privação de uso, sustenta que o autor não alega o período de tempo em que esteve privado do veículo e quais as despesas em que incorreu.
Dispensou-se a realização da audiência prévia e foi proferido despacho saneador, assim como despacho identificando o objecto do litígio e fixando os temas de prova, sem reclamação das partes.
Procedeu-se ao julgamento e, em 13.01.2017, foi proferida sentença que julgou a presente acção parcialmente procedente, por provada, e, em consequência, condenou a Ré “Companhia de Seguros C..., S.A.” a pagar ao Autor B... a quantia de € 1.665,00 (mil, seiscentos e sessenta e cinco euros), acrescida dos juros de mora contados da data da citação às taxas legais sucessivamente em vigor até efectivo e integral pagamento, absolvendo-a do demais peticionado.
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A matéria de facto foi fixada na sentença desta forma:
FACTOS PROVADOS
Da Petição Inicial
1) No dia 02 de Março do ano de 2015, pelas 10h e 30min, em Penafiel, ocorreu um acidente de viação, em que foram intervenientes os veículos de matrícula ..-..-NZ (doravante NZ), propriedade do Autor B... e o veículo de matrícula ..-..-NG (doravante NG) conduzido por D..., data do sinistro seguro na Ré através da apólice n.º ........ (artigos 1.º, 2.º)
2) Nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas em 1), o condutor do NZ seguia na Estrada Nacional ..., no sentido Lixa/Penafiel, atento ao trânsito que se fazia sentir e demais condições da via, e, quando se aproximava do local em que ocorreu o sinistro, foi surpreendido pela presença do NG, que, conquanto se encontrava a sair de um parque de estacionamento, não atendeu à presença do NZ, invadindo a faixa de rodagem por onde o condutor deste circulava, embatendo na lateral frente esquerda do NZ. (artigos 4.º, 5.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º).
3) A condutora do NG seguia distraidamente, não aguardando a passagem do NZ; (artigo 13.º).
4) A Ré assumiu perante o Autor a responsabilidade pelo ressarcimento dos danos causados pelo sinistro, apresentando uma proposta condicional de perda parcial do veículo matrícula ..-..-NZ, propriedade do aqui Autor. (artigo 15.º).
5) O Autor B..., conquanto o veículo com a matrícula ..-..-NZ é tecnicamente reparável, não aceitou a proposta apresentada pela aqui Ré companhia de Seguros. (artigo 16.º).
6) Como consequência directa e necessária do acidente descrito resultaram danos para o NZ cuja reparação foi estimada em € 5.032,77 (cinco mil e trinta e dois euros e setenta e sete cêntimos). (artigo 20.º).
7) A Ré enviou ao Autor uma carta com o seguinte teor: “Vimos pela presente informar, que foram apurados para o veículo em referência os seguintes valores que determinam estarmos perante uma Perda Total: Estimativa da reparação: 5.032,77 Euros. Valor venal do Veículo: 1.700,00 Euros. Valor do veículo danificado: 185,00 Euros. Pelo exposto, colocamos à V/disposição o montante de 1.515,00 Euros, tendo em conta o valor venal acima indicado, deduzido do valor do veículo danificado que é garantido pela entidade supra referida até ao próximo dia 04/05/2015 contra apresentação de cópia do Documento Único ou Título de Registo de Propriedade/Livrete.”. (artigo 21.º).
8) O veículo matrícula ..-..-NZ à data do acidente em discussão nos presente autos, era o único veículo do aqui Autor, veículo esse, utilizado tão só pela sua pessoa, nas suas deslocações pessoais, de família, mormente durante os fins-de-semana, nas saídas de lazer, ou então, quando durante a semana, tivesse o Autor de deslocar-se com a esposa, ao centro de saúde ou outro local onde tivesse de transportar a mesma esposa – já que esta não conduz; (artigos 22.º, 23.º e 40.º).
9) O Autor B..., pese embora tivesse adquirido o NZ no mês Agosto do ano de 1999, sempre o utilizou, e pretendia continuar a utilizar no seu quotidiano, como seja, nas suas deslocações pessoais, bem assim, de lazer, praticamente aos fins-de-semana. (artigos 24.º, 25.º, 26.º).
10) O NZ encontrava-se em bom estado de conservação, com cerca de 80 mil quilómetros, sendo tecnicamente reparável. (artigos 27.º, 28.º e 41.º).
11) Não obstante a idade do automóvel sinistrado, não era intenção do Autor proceder à sua venda, visto que o mesmo Autor havia ainda no ano transacto procedido à pintura de riscos e o demais necessário. (artigos 44.º e 45.º).
12) O NZ é um Mitsubishi ..., a gasolina, com uma cilindrada de 1299, do ano 1999, com uma quilometragem, à data do sinistro em discussão, não superior a 80.000,00 quilómetros (oitenta mil quilómetros).(artigo 54.º)-
13) Trata-se de uma viatura de um segmento médio elevado da marca Mitsubishi, não sendo pois fácil encontrar um veículo similar ao acidentado, mormente face à quilometragem do mesmo, bem assim ao bom estado de conservação. (artigo 55.º).
14) A Ré assumiu a responsabilidade decorrente do presente sinistro, através do contrato de seguro titulado pela apólice 3037053, celebrado com a proprietária D.... (artigo 67.º).
Da Contestação
15) De acordo com avaliação efectuada pela “E...”, seguradora do Autor:
a) O valor estimado para a reparação dos danos sofridos no NZ soma a quantia de € 5.032,77 (cinco mil e trinta e dois euros e setenta e sete cêntimos);
b) O valor de salvado é de € 185,00 (cento e oitenta e cinco euros);
c) O valor venal do veículo do Autor foi, inicialmente, avaliado em € 1.700,00, sofrendo, posteriormente, uma reavaliação, actualizando-se aquele valor para os € 1.750,00 (mil, setecentos e cinquenta euros); (artigo 18.º).
B) FACTOS NÃO PROVADOS
Da Petição
16) A velocidade não superior a 40 km/hora. (artigo 6.º)
17) O autor percorria com o NZ, em média, 5.000 quilómetros (cinco mil quilómetros) por ano, no próprio dia do sinistro, transportava a esposa a uma consulta médica, que também foi vítima do sinistro. (artigo 56.º)
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Desta sentença foi interposto o presente recurso pelo autor que, nas alegações sintetizadas de recurso, apresenta as seguintes CONCLUSÕES:
I.A sentença proferida pelo tribunal a quo padece de erro na apreciação da prova, mormente nas alíneas b) e c) do ponto 15 dos factos provados, face aos depoimentos testemunhais e aos documentos juntos aos autos;
II. Com efeito, o valor da indemnização fixado em 1.565,00 Euros (Mil quinhentos e sessenta e cinco euros) não corresponde ao valor do veículo danificado;
III. Na verdade, em primeiro lugar, o veículo era tecnicamente reparável e, pese embora, tendo sido efectivamente reparado por um valor superior ao dobro do valor indemnizatório proposto pela Ré, deveria a seguradora ser condenada a suportá-lo, em obediência ao princípio da reconstituição natural do dano; ou seja, do regime estabelecido no art.º 562º do Código Civil que reza “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”;
IV. Em segundo lugar, o veículo que a Ré apresentou como referente ao valor da indemnização, via “stand virtual” (internet), não foi comparado fisicamente com o veículo danificado, nem sequer detinha características idênticas (tinha o dobro do uso em Km e muito menor equipamento de conforto);
V. Assim, sempre o tribunal a quo ficaria – no mínimo - na dúvida dessa avaliação (feita pela Ré - que não juntou aos autos), se seria representativo do preço praticado no mercado para a generalidade das viaturas com características idênticas, não só às viaturas seleccionadas nesse stand virtual, mas sobretudo às do veículo do autor;
VI. Porquanto, a Ré unicamente pesquisou em comum com o veículo sinistrado e tecnicamente reparável -, via “stand virtual” - a Marca, modelo e ano de fabrico, descurando o mais importante para aferir o valor do veículo, nomeadamente estado de conservação, equipamento e quilometragem – cfr. depoimento registado com início da gravação 00:00:01; fim da gravação 00:13:54, em 07/12/2016, pelas 10:17:15, nas passagens nas passagens 00:02:20 até 00:06:35; 00:07:00 até 00:12:50; 00:13:00 até 00:13:50;
VII. Em terceiro lugar, o depoimento da testemunha F..., com a profissão de mecânico de automóveis, explicou de forma clara e segura, que o veículo sinistrado tinha obrigatoriamente que ter um valor manifestamente superior ao exemplificado pela Ré segurada – valor esse perto dos 5.000,00 Euros (Cinco mil euros) - cfr. depoimento registado com início da gravação 00:00:01; fim da gravação 00:32:25, em 08/11/2016, pelas 10:11:19, na passagem, min. 00:24:10 ao nim. 00:32:08;
VIII. Aliás, a Ré seguradora não provou que o Autor recorrente podia adquirir no mercado e por que preço, um outro veículo que igualmente lhe satisfizesse as suas necessidades “danificadas”;
IX. Por conseguinte, face a três valores que a Ré foi apresentando como referência – 1.700,00 Euros (Mil e setecentos euros), 1.750,00 Euros (Mil setecentos e cinquenta euros) e 2.000,00 Euros (Dois mil euros) – a decisão teria de ser desfavorável à parte sobre quem recaia o ónus probatório do valor por si avançado;
X. Ao invés, o Autor recorrente demonstrou e provou que o valor do veículo sua propriedade corresponde ao peticionado, sendo superior ao valor comercial que a Ré indicou;
XI. A testemunha indicada pela Seguradora, G..., explicou que terá sido feita uma avaliação posterior ao veículo propriedade do autor recorrente, onde lhe terá sido atribuído um valor superior – 2.000,00 Euros (Dois mil euros), cfr. depoimento registado com início da gravação 00:00:01; fim da gravação 00:13:54, em 07/12/2016, pelas 10:17:15, nas passagens nas passagens 00:02:20 até 00:06:35; 00:07:00 até 00:12:50; 00:13:00 até 00:13:50.
XII. Na sequência desta interpelação, o Ilustre Advogado da Ré seguradora, em alegações afirmando que “(….) desconhecia aquela avaliação que esta testemunha referiu - proposta dos €2.000,00, (Dois mil euros) (…)”, concedeu e, nesse sentido propôs em conformidade, corrigir a posição que a Ré assumiu na contestação; cfr. alegações prestadas pelo Ilustre Advogado da Ré, com início da gravação 00:00:01; fim da gravação 00:-09:05 em 07/12/2016, pelas 10:47:17, na passagem 00:00:01 até 00:01:49.
XIII. Mutatis mutandis, o Recorrente lesado alegou e provou factores relevantes que deveriam serem tidos em consideração, para o aumento do valor do veículo sinistrado antes do acidente em discussão, como sejam baixa quilometragem, “extras” (equipamento acrescido ao equipamento básico), estado do veículo, – atente-se a matéria de facto provada dos artigos 8.º (artigos 22.º, 23.º e 40.º), 9.º (artigos 24.º, 25.º e 26.º), 10.º (artigos 27.º, 28.º e 41.º), 11.º (artigos 44.º e 45.º), 12.º (artigo 54.º) e 13.º (artigo 55.º) da petição inicial;
XIV. Também a testemunha H..., filho do Autor, num depoimento claro, explicou que os carros mais semelhantes ao veículo propriedade do autor tinham o valor sempre aproximado de 4.000,00 Euros (Quatro mil euros) - cfr. depoimento registado com início da gravação 00:00:01; fim da gravação 00:08:17, em 08/11/2016, pelas 10:53:10, nas passagens, min. 00:06:10 ao nim. 00:08:10;
XV. O Autor recorrente, ciente da distinção entre valor venal (igualmente, designado valor de mercado) e valor de substituição (anteriormente definido valor patrimonial) atendeu provar exactamente que o veículo sua propriedade tem um valor manifestamente superior ao valor apresentado pela Ré recorrida – o que manifestamente fez;
XVI. O veículo sinistrado, de acordo com a matéria de facto provada, pese embora já com alguns anos de idade, tem uma quilometragem muito reduzida, encontra-se em estado excepcionalmente bem conservado, tem equipamento “extra” (equipamento superior ao equipamento básico), como tecto de abrir, jantes especiais, ar condicionado, tornando-o num veículo único, pelo que foi reparado pelo seu proprietário;
XVII. Ficou provado que o veículo acidentado, propriedade do autor recorrente, é um Mitshubishi ..., a gasolina, com uma cilindrada de 1299, do ano de 1999, que à data do acidente tinha cerca de 80.000,00 quilómetros e ser muito difícil encontrar, no mercado de veículos automóveis usados, um veículo similar ao acidentado;
XVIII. Neste sentido, assim o referiram claramente as testemunhas F... e H..., aliás confirmado pela prova testemunhal produzida pela Ré seguradora, mormente no depoimento da testemunha G...;
XIX. Desta feita, não ficou provado que o valor comercial do veículo acidentado proposto pela ré seguradora permitiria a aquisição de uma viatura similar a essa.
XX. Além disso, a Ré não logrou provar que a reparação do dano com vista à reconstituição natural lhe acarretaria um encargo injustificável e desajustado, prova que lhe incumbia fazer;
XXI. Pelo contrário, afirmou que caso o valor venal atribuído ao veículo fosse de oito mil Euros, ordenaria proceder à reparação do veículo danificado;
XXII. Ora, a opção entre mandar reparar o veículo NZ ou optar por receber uma indemnização em dinheiro caberia, então, ao Autor recorrente;
XXIII. Daí, adoptando a posição consagrada no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado 16/03/2015, relatado pelo Senhor Desembargador Carlos Gil, disponível in site www.dgsi.pt, em cujo sumário consta: “Não obstante o custo da reparação do veículo sinistrado ser superior ao dobro do seu valor comercial, não se pode concluir pela excessiva onerosidade da reconstituição natural se não se demonstrou que o referido valor comercial permite a aquisição de um veículo de características similares ao acidentado”, o autor recorrente pretendeu ser indemnizado relativamente ao valor dos danos e não em relação ao valor de mercado do veículo sua propriedade, antes do embate;
XXIV. Pelo que, entende o recorrente autor que, provado o valor dos danos e não tendo sido comprovada a excessiva onerosidade, tem direito ao valor correspondente à reparação da viatura sinistrada, de 5.032,77 Euros (Cinco mil e trinta e dois euros e setenta e sete cêntimos);
XXV. Diga-se ainda, que, esta conclusão em nada afecta o facto de o autor recorrente ter procedido à reparação do veículo sinistrado, com peças alternativas (vulgarmente designadas peças não originais ou de sucata).
XXVI. A obrigação da Ré recorrida à indemnização advém do prejuízo causado no património do autor pela ocorrência do acidente, correspondente prejuízo, aferido nos termos supra analisados;
XXVII. Aliás, face à recusa da Ré recorrida em proceder à reparação, a atitude do autor recorrente em proceder à reparação do veículo sua propriedade, com material alternativo, apenas poderia permitir um valor de indemnização mais baixo, nunca suportar o dano para o qual não concorreu.
DESTARTE
XXVIII. É entendimento pacífico na jurisprudência que o regime previsto no artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 291/2007 de 21/08 vale apenas para os procedimentos a adoptar pelas empresas de seguros na fixação de prazos com vista à regularização rápida de litígios e do estabelecimento de princípios base na gestão de sinistros com vista à apresentação de um “proposta razoável”, mas já não na fase judicial, em que regem as regras e princípios gerais da responsabilidade civil e da obrigação de indemnização, podendo quando muito tais normativos considerarem-se como elementos de referência não vinculativos;
XXIX. Em sede judicial vigora o primado da reparação in natura, competindo ao lesado demonstrar, entre o mais, os danos sofridos na sua viatura e o respectivo montante e à seguradora a prova da excessiva onerosidade, susceptível de afastar tal princípio, tendo em conta dois factores: o preço da reparação e o valor patrimonial do veículo, não o seu valor venal;
XXX. A jurisprudência unanimemente afasta o conceito de valor venal do veículo, que no tradicional entendimento das seguradoras, correspondia ao valor comercial do mesmo, considerando-se que este não é justo, posto que o dano sofrido consiste, essencialmente, na diminuição da faculdade de uso do veículo e não na perda do seu valor de troca;
XXXI. Também a doutrina critica esse conceito considerando que atender-se estritamente ao valor de mercado do bem, no sentido do seu valor de venda, seria converter a responsabilidade civil numa forma de expropriação privada, pelo preço de mercado;
XXXII. É pacífico, quer na Jurisprudência quer na Doutrina, que o prejuízo decorrente da privação de uso é autonomizável do decorrente dos danos verificados na viatura, pelo que, embora o Autor recorrente utilizasse o veículo danificado praticamente ao fim de semana, tem direito a ser ressarcido pelo período de privação efectivo da viatura, em montante superior ao decidido;
XXXIII. Ademais, o afastamento da restauração natural, como decidiu o tribunal a quo, pressupõe uma excessiva onerosidade para o lesado, porquanto para ficar com o seu veículo automóvel (que apreciava, gostava e bem conhecia) como estava antes do acidente, procedeu à sua recuperação (com algumas peças não originais) pagando um valor superior ao dobro da indemnização decidida;
XXXIV. Dito de outra forma, para ter o seu património no estado em que estava antes do dano provocado por terceiro, o lesado teve de pagar mais que o lesante;
XXXV. Ora, com tal decisão, o tribunal a quo materializou a justiça injusta: ser o lesado a suportar o dano para o qual não concorreu.
NESTES TERMOS, deve ser revogada a sentença, como é de DIREITO E JUSTIÇA!
Houve contra alegações da ré, concluindo pela manutenção do julgado.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DO RECURSO:
Apreciemos o recurso tendo em conta que:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – artºs 635º, nºs 2 e 3 e 639, nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil, na redacção aplicável ao presente processo nesta introduzida pela Lei nº 41/2013, de 26.06, por força do artº 5º, º1, desta Lei[1]. Nos recursos apreciam-se questões e não razões;
Isto posto, as questões que importa decidir no presente recurso são:
-impugnação da matéria de facto;
-condenação da ré na reparação do veículo da autora e seu valor:
-privação de uso do veículo do autor.
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II.1-Impugnação da matéria de facto:
Resulta claro, das conclusões de recurso do apelante, que este pretende impugnar por via de recurso a decisão de facto e a decisão de direito da sentença recorrida, de acordo com o disposto nos artºs 637º, nº 2, 639º, nºs 1 e 2 e 640º, nº 1, NCPC.
Nas conclusões recursivas sintetizadas apresentadas pelo apelante, nos números I a XVIII, este impugna a decisão da matéria de facto da sentença recorrida, apenas parcialmente, quanto ao facto provado sob o número 15 da sentença, na parte em que ali se dá como provado que:
“De acordo com avaliação efectuada pela “E...”, seguradora do Autor:
a)(…);
b) O valor de salvado é de € 185,00 (cento e oitenta e cinco euros);
c) O valor venal do veículo do Autor foi, inicialmente, avaliado em € 1.700,00, sofrendo, posteriormente, uma reavaliação, actualizando-se aquele valor para os € 1.750,00 (mil, setecentos e cinquenta euros)”.
O artº 640º, nºs 1 e 2 NCPC impôe ao apelante ónus rigorosos, cujo incumprimento acarreta a imediata rejeição do recurso, como expressamente ali se diz, sem possibilidade de convite ao aperfeiçoamento das conclusões – conforme vem sendo entendimento dominante da doutrina e da jurisprudência, quer no âmbito da versão do CPC introduzida pela Lei 41/13, quer no âmbito da versão anterior (redacções do DL 329-A/95, de 12.12 e do DL 303/07, de 24.08)[2].
O apelante indica nas conclusões de recurso o facto que foi dado como provado na sentença, bem como o sentido em que esta Relação o deve alterar[3] e indica os meios de prova em que funda essa alteração- os depoimentos de testemunhas que foram gravados em registo áudio e cuja localização indica no corpo das alegações recursivas e transcreve parcialmente, mas apenas quanto às testemunha ouvidas em julgamento e por si arroladas, F..., dono de uma oficina reparadora de automóveis e de que o autor é cliente há mais de vinte anos e H..., filho do autor, pelo que somente esses depoimentos invocados se vão considerar.
A jurisprudência maioritária do STJ é no sentido de que a indicação dos concretos meios de prova em que assenta a impugnação da matéria de facto pode apenas constar do corpo das alegações de recurso e não constarem integralmente nas conclusões recursivas, exigindo-se que nestas constem os demais ónus expressos naquela norma legal, já que é por elas que se delimita o âmbito do recurso – nº 4 do artº 635º do NCPC- uma vez que a intervenção do Tribunal da Relação não é nessa parte oficiosa. Sintetiza-se tal entendimento jurisprudencial no seguinte trecho do Acórdão do STJ de 23.02.10, in www.dgsi.pt:
Não se exige que o recorrente, nas conclusões, reproduza o que alegou acerca dos requisitos enunciados no art. 690º-A, nº1, a) e b) e nº2, do Código de Processo Civil, o que tornaria as conclusões, as mais das vezes, não numa síntese, mas uma complexa e prolixa enunciação repetida do que afirmara no corpo alegatório. Mas, esta consideração não dispensa o recorrente de fazer alusão àquela questão que pretende ver apreciada, mais não seja pela resumida indicação dos pontos concretos que pretende ver reapreciados, de modo a que ao ler as conclusões das alegações resulte inquestionável que o recorrente pretende impugnar o julgamento da matéria de facto.”
Assim, admite-se o recurso quanto à impugnação da matéria de facto, dessa questão se tratando de seguida, mas apenas serão de considerar os depoimentos das duas indicadas testemunhas.
A motivação quanto a esse facto provado constante da sentença recorrida é esta:
A factualidade vertida em 15) consta dos documentos de fls. 47/8, que pese embora tenham sido impugnados pelo Autor, foram confirmados pela testemunha da Ré, G..., que os subscreveu e descreveu o que motivou a sua elaboração, sendo que o próprio Autor, na petição inicial, admite que foi essa a posição que a seguradora E... adotou e com a qual não concordou, juntando até a fls. 24 uma cópia de um dos citados documentos. É desse documento, aliás, que resulta a prova da estimativa de reparação mencionada em 6)”.
Ora, ao contrário do alegado pelo autor no artigo 16 da petição inicial, a ré Companhia de Seguros C..., SA, não lhe comunicou a proposta de pagamento de um valor de indemnização pela perda total do veículo de acordo com a carta que juntou como documento 4 (fls 24). Também não foi a ré quem mandou proceder às diligências de peritagem e avaliação do veículo do autor, ligeiro de passageiros, matrícula ..-..-NZ, conforme relatório junto de fls 120 e 121. Conforme desses documentos resulta e, ainda, da Participação Amigável de Acidente Automóvel de fls. 20 e 21, o veículo sinistrado do autor estava segurado na E... e foi esta que mandou proceder às averiguações e peritagem do veículo, concluindo com uma proposta indemnizatória por danos materiais, no âmbito da Convenção entre entidades seguradoras no território nacional IDS (Indeminização Directa ao Segurado). Mas, a referida proposta deve entender-se como vinculativa nas relações do contrato de seguro estabelecidas entre a ré e o autor.
Citando concordantemente com o douto Acórdão do TRG de 07.07.2011 (Manso Rainho), in www.dgsi.pt, “É que tal Convenção não passa de um instrumento negocial que apenas envolve as seguradoras que a subscreveram, funcionando assim como uma autêntica res inter alios acta relativamente aos sinistrados. Decorre claramente do teor de tal Convenção que a mesma visa operacionalizar (rectius “simplificar”, nos seus dizeres) em primeira linha os interesses das seguradoras (e reflexamente, é certo, os dos sinistrados), surgindo a seguradora do lesado (ali designada como Credora) como uma mera facilitadora ou intermediária no processo indemnizatório de que são partes únicas e verdadeiras o lesado e a seguradora do veículo mediante o qual se provocaram os danos (ali designada como Devedora). Segue-se daqui à evidência que as consequências jurídicas do sinistro se repercutem sempre e apenas na pessoa da seguradora dita Devedora.
Donde, não pode a ora Apelante querer escusar-se a reparar o dano causado com fundamento em razões atinentes à execução inter-partes (inter-seguradoras) da dita Convenção, independentemente de todo o processo negocial ter decorrido ou deixado de decorrer exclusivamente perante a outra seguradora”.
Assim, o facto provado em causa, agora impugnado em parte, é apenas a avaliação da reparação do veículo do autor após o sinistro, do salvado e do seu valor venal, feita pela ré. Em nada contradiz os factos provados nos artigos 6º e 7º da sentença e que não foram impugnados em recurso.
As transcrições parciais dos depoimentos gravados das testemunha ouvidas em julgamento e por si arroladas, F..., dono de uma oficina reparadora de automóveis de quem o autor é cliente há mais de vinte anos e H..., filho do autor, sendo certo que as demais indicadas sem indicação da localização precisa dos depoimentos ou sua transcrição não são aqui considerados, não são suficientes para permitirem que o aludido facto 15 dado como provado na sentença seja alterado por esta Relação para provado parcialmente ou para não provado, como pretende o recorrente. O que ali foi dado como provado não foi o efectivo valor real ou sequer venal do veículo do autor ou do respectivo salvado, mas apenas o valor “de acordo com avaliação efectuada pela “E...”, seguradora do Autor”. E tal declaração da ré está provada documentalmente e foi aceite pelo autor que recebeu essa declaração (proposta).
Isto posto, entende esta Relação, última instância de recurso em matéria de facto, considerar provados, com interesse para a decisão da causa, os factos dados como provados na sentença recorrida e supra descritos.
Improcede, assim, nesta parte o recurso.
*
II.2-Condenação da ré na reparação do veículo da autora e seu valor:
O autor pediu na petição inicial a condenação da ré no pagamento do valor de € 5.032,774, correspondente ao custo da reparação do seu veículo acima referido.
O tribunal a quo condenou a apelada a pagar o valor de substituição do veículo do autor que fixou em €1.750,00, menos o valor do salvado de €185,00 que ficaram na posse do autor, ou seja o valor de € 1.565,00.
Para fundamentar tal decisão diz a sentença recorrida que:
Provou-se que, como consequência direta e necessária do embate resultaram danos para o NZ cuja reparação foi estimada em € 5 032,77, mas que o veículo foi reparado pelo valor de € 3.353,71. O cerne do litígio entre as partes prende-se com o valor indemnizatório a atribuir ao Autor.
A Ré considera que se verificou uma situação de perda total e, nessa medida, recusa-se a indemnizar o Autor por um valor superior à diferença entre o valor venal do veículo e o valor do salvado, ficando este na posse do Autor, alicerçando a sua pretensão no disposto no art. 41.º do Decreto-Lei n.º 291/2007.08.21, que dispõe o seguinte: «1 - Entende-se que um veículo interveniente num acidente se considera em situação de perda total, na qual a obrigação de indemnização é cumprida em dinheiro e não através da reparação do veículo, quando se verifique uma das seguintes hipóteses: a) Tenha ocorrido o seu desaparecimento ou a sua destruição total; b) Se constate que a reparação é materialmente impossível ou tecnicamente não aconselhável, por terem sido gravemente afectadas as suas condições de segurança; c) Se constate que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapassa 100 % ou 120 % do valor venal do veículo consoante se trate respectivamente de um veículo com menos ou mais de dois anos. 2 - O valor venal do veículo antes do sinistro corresponde ao seu valor de substituição no momento anterior ao acidente. 3 - O valor da indemnização por perda total corresponde ao valor venal do veículo antes do sinistro calculado nos termos do número anterior, deduzido do valor do respectivo salvado caso este permaneça na posse do seu proprietário, de forma a reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à indemnização. 4 – Ao propor o pagamento de uma indemnização com base no conceito de perda total, a empresa de seguros está obrigada a prestar, cumulativamente, as seguintes informações ao lesado: a) A identificação da entidade que efectuou a quantificação do valor estimado da reparação e a apreciação da sua exequibilidade; b) O valor venal do veículo no momento anterior ao acidente; c) A estimativa do valor do respectivo salvado e a identificação de quem se compromete a adquiri-lo com base nessa avaliação.»
A decisão a que chegaremos adiante funda-se na posição adotada no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19 de fevereiro de 2015 (processo n.º 1306/13.4TBMCN.P1, in www.dgsi.pt) porquanto ali se faz uma distinção que consideramos indispensável para a resolução da questão entre valor venal/comercial, valor de substituição e valor de reparação.
Assim, a citada norma poderá ser utilizada pelo Tribunal para determinação do montante indemnizatório, mas apenas como auxiliar na aplicação dos critérios previsto no art. 566.º do Cód. Civil, sendo estes que devem ser tidos em conta quando a questão passa para o âmbito judicial. É que a norma contém a forma de cálculo do que se considera ser a excessiva onerosidade para o devedor, mas para efeitos de formulação de proposta razoável pela seguradora no procedimento extrajudicial. Todavia, os valores indicados pelo devedor e que servem de base a tais cálculos, carecem de demonstração, pois que a Ré seguradora, que é quem os apresenta, é parte interessada na avaliação da viatura. O artigo 41º do Decreto-Lei nº 291/2007 não resolveu o problema da efetiva indemnização de danos referidos a veículos automóveis, com apreciável uso, desactualização e desgaste, danos consistentes na inutilização da respetiva capacidade de uso, determinando se essa indemnização se realiza, em vista do princípio geral do artigo 562º do CC, pela simples atribuição do valor venal da viatura ou, pressuposta a indemnização em dinheiro, pela entrega do custo da reparação desses estragos, até porque o custo de reparação desses veículos poderá ser elevado pela indisponibilidade de peças atenta a sua vetustez. Por isso, a aplicação de tais critérios, em situações de veículos de idade avançada, inelutavelmente à conclusão de perda total, dado que o seu valor de mercado será necessariamente diminuto.
Aplicando o critério legal enunciado (primado da reparação in natura) a uma situação de indemnização por acidente de viação, o Supremo Tribunal de Justiça em acórdão de 4 de Dezembro de 2007 (Processo n.º 06B4219, in www.dgsi.pt), cujo sumário se transcreve, decidiu que à seguradora cumpre a prova da excessiva onerosidade, suscetível de afastar o princípio em causa, e que a mesma tem em conta dois factores: o preço da reparação e o valor, não o venal, mas o patrimonial: “1 - Em matéria da obrigação de indemnização por danos o princípio, a regra, é a restauração natural; a excepção é a indemnização por equivalente. 2 - Aplicando à situação as regras básicas do ónus da prova, ao Autor cabe a prova do princípio, à Ré cabe a prova da excepção. 3 - Ao autor, que viu o seu automóvel danificado em acidente de viação, cabe a prova do em quanto importa a sua reparação, restaurando in natura o veículo danificado; à Ré seguradora, que acha essa reparação excessivamente onerosa, cabe a prova disso mesmo - que a reparação é não apenas onerosa, mas excessivamente onerosa. 4 - Um dos pólos da determinação da excessiva onerosidade é o preço da reparação; o outro não é o valor venal do veículo mas o seu valor patrimonial, o valor que o veículo representa dentro do património do lesado. 5 - Se a ré seguradora quer beneficiar da excepção não lhe basta «encostar-se» ao valor venal; antes precisa de alegar e provar que o autor podia adquirir no mercado, e por que preço, um outro veículo que igualmente lhe satisfizesse as suas necessidades «danificadas»”.
O já citado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto distribui o ónus da prova entre lesante e lesado da seguinte forma, com base na interpretação que ali se faz acerca do disposto nos arts. 483.º, 562.º, 563.º e 566.º, n.ºs 1 e 2 do Cód. Civil: “Se A tem um bem que vale 500 e esse bem é destruído culposamente por B, A tem direito à indemnização pelo valor necessário à compra de um bem que tenha as mesmas características do destruído (mesma marca, modelo, ano de construção, equipamento, estado de conservação, quilometragem…), que é o valor do custo da sua substituição ou valor de substituição (que alguns também chamam de valor patrimonial) e não pelo valor de mercado do bem (ou valor venal ou comercial). Se o bem fica apenas estragado, A tem direito à reparação da coisa (reconstituição natural) ou, se essa reparação for excessivamente onerosa, à indemnização pelo valor de substituição (indemnização por dinheiro ou por equivalente)”.
Ou seja, três possibilidades se colocam:
1. Não sendo possível a reparação, o lesante fica obrigado a indemnizar pelo valor de substituição.
2. Sendo possível a reparação, é esta a forma de indemnização que o lesante terá que suportar.
3. Sendo possível a reparação, mas revelando-se excessivamente onerosa, o lesante terá que indemnizar pelo valor de substituição.
No que respeita ao conceito de excessiva onerosidade, dir-se-á que o mesmo fica preenchido quando houver manifesta desproporção entre o interesse do lesado, que importa recompor, e o custo que a reparação natural envolve para o responsável. O custo da reparação é hoje a medida normal do dano, mas, tratando-se de um bem fungível, não deve ultrapassar o valor de substituição.
Assim, como se conclui no mesmo Acórdão, o valor de reparação deve ser relacionado com o valor de substituição e não com o valor venal do veículo, escrevendo-se que “com isto já se está a acolher a ideia de que a indemnização deve reparar não o valor abstracto, objectivo, do dano, que é aquilo que resultaria de se tomar em conta o valor que o lesado conseguiria apenas com a venda do veículo, mas sim o valor concreto, subjectivo, do dano, tomando-se em conta, por isso, o valor que seria necessário ao lesado, para adquirir um veículo com as mesmas características do anterior, ou seja, que tivesse o mesmo valor no seu património, isto é, o valor de substituição, aquilo que ele teria de gastar para adquirir um veículo semelhante”.
E continua “Assim sendo, quando se pretere a reparação (ou o custo da reparação) por haver uma manifesta desproporção com o valor de substituição - e só nesse caso é que pode haver essa preterição -, está-se já perante uma situação em que se considera que o valor de substituição, pelo qual será indemnizado o lesado, lhe permitirá adquirir um veículo semelhante ao seu (da mesma marca, modelo, ano de construção, equipamento, estado de conservação, quilometragem, etc.) e que, por isso, esse veículo lhe permitirá satisfazer todas as necessidades que o anterior satisfazia.”
(…)
Assim, tal como se concluiu no mesmo aresto, podemos afirmar que, no caso dos autos, a seguradora indicou um valor do veículo, com o sentido claro, decorrente da proposta que tinha enviado ao lesado, de que o valor indicado, valor de mercado, era o valor de um veículo com características iguais ao danificado, isto é, pelo qual ele o poderia adquirir. Este valor, valor venal que a seguradora considerava correspondente ao valor de substituição, era muito inferior ao valor da reparação, que era de, segundo a seguradora, € 5.032,77. Ou seja, um excesso de mais de 120%. Ora, perante isto, o lesado nem pôs em causa esse valor; apenas diz que o seu veículo é tecnicamente reparável e que não conseguia adquirir um veículo de características semelhantes com o valor indemnizatório que lhe foi proposto, tratando-o como bem infungível, que não é. E, em consequência, não se provaram factos que permitissem chegar à conclusão que o valor de substituição do veículo fosse superior ao valor indicado pela seguradora. Caso estivessem provados, seria esse o valor que teria de ser considerado. Como não existem outros factos, o valor a considerar é o valor indicado pela seguradora e perante ele o valor da reparação é manifestamente excessivo, já que com ele o lesado poderia, na lógica das coisas, comprar um veículo com características semelhantes às do seu, satisfazendo com ele as mesmas necessidades que o anterior satisfazia. O autor é que tem que alegar e provar que o valor de substituição do veículo é superior ao seu valor comercial anterior ao acidente e tem que provar qual é esse valor. Pese embora o Autor tenha alegado factos, tais como a quilometragem, os extras, o estado do veículo, que podem contribuir para um aumento do valor do veículo relativamente ao seu valor comercial, o certo é que não quantificou esse valor, tendo tais factos sido alegados apenas como forma de demonstrar o bom estado geral do veículo e que a reparação é justificável pela impossibilidade de adquirir no mercado uma viatura em idênticas condições. Ou seja, o Autor não refuta propriamente o valor venal do veículo. O Autor alega que é impossível conseguir adquirir um veículo idêntico, ainda que pelo valor da reparação, pretendendo apenas que a Ré seja condenada a indemnizá-lo por forma a permitir-lhe realizar a reparação. Todavia, face à alegação da Ré de que a reparação é excessivamente onerosa, o Autor teria que demonstrar que o valor de substituição do veículo é superior ao valor venal indicado pela Ré para que se pudesse concluir que a reparação do mesmo não é excessivamente onerosa, conclusão essa que teria que se retirar a partir da comparação entre o valor de reparação e o valor de substituição.
Conclui-se assim que o valor que a seguradora propôs ao autor, de € 1.750,00, é um valor que, face aos factos provados, corresponde ao valor de substituição do veículo danificado e que sendo o valor da reparação mais do dobro do valor do veículo, o excesso sobre este já não representaria um valor indemnizatório, pelo que a seguradora não deve ser condenada a suportá-lo”.
Concordando-se com as anteriores considerações da sentença recorrida, não podemos acolher a interpretação e aplicação da lei aos factos provados feita nesta última parte da respectiva fundamentação de Direito e que determinou a parte decisória, nesta parte.
Com efeito, entendemos que os factos provados sob os números 6., 7., 10., 11., 12. e 13. importam outra decisão de Direito.
O valor venal e o valor do veículo sinistrado do autor, enquanto salvado, foi apurado pela ré, no âmbito da Convenção IDS, como supra referimos e vincula a ré enquanto proposta indemnizatória apresentada ao autor, pelos danos materiais decorrentes do acidente dos autos.
Ora, não ficou provado que o valor comercial do veículo acidentado, proposto pela ré seguradora, permita a aquisição de uma viatura similar a essa.
Acresce que, caberia à Ré alegar e provar que a reparação do dano com vista à reconstituição natural lhe acarreta um encargo injustificável ou desajustado.
A opção entre mandar reparar o veículo danificado NZ ou optar por receber uma indemnização em dinheiro cabe ao Autor recorrente, pois é o lesado que nenhuma culpa teve na produção dos referidos danos materiais no seu veículo.
É jurisprudência firme e que se aceita, que os limites previstos na alínea c) do artigo 41.º do Decreto-Lei 291/2007, de 21 de Agosto, poderão servir de ponto de partida e como limite mínimo para a análise da questão aqui colocada. Mas, o regime previsto no artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 291/2007 de 21/08 vale apenas para os procedimentos a adoptar pelas empresas de seguros na fixação de prazos com vista à regularização rápida de litígios e do estabelecimento de princípios base na gestão de sinistros com vista à apresentação de um “proposta razoável”, mas já não na fase judicial, em que regem as regras e princípios gerais da responsabilidade civil e da obrigação de indemnização, podendo quando muito tais normativos considerarem-se como elementos de referência não vinculativos.
Em sede judicial vigora o primado da reparação in natura, competindo ao lesado demonstrar, entre o mais, os danos sofridos na sua viatura e o respectivo montante e à seguradora a prova da excessiva onerosidade, susceptível de afastar tal princípio, tendo em conta dois factores: o preço da reparação e o valor patrimonial do veículo, não o seu valor venal.
A jurisprudência unanimemente afasta o conceito de valor venal do veículo, que no tradicional entendimento das seguradoras, correspondia ao valor comercial do mesmo, considerando-se que este não é justo, posto que o dano sofrido consiste, essencialmente, na diminuição da faculdade de uso do veículo e não na perda do seu valor de troca. Também a doutrina critica esse conceito considerando que atender-se estritamente ao valor de mercado do bem, no sentido do seu valor de venda, seria converter a responsabilidade civil numa forma de expropriação privada, pelo preço de mercado.
Assim, não provado o valor real do veículo na data do acidente, nem sequer é possível concluir pela sua perda total para os efeitos do artº 41º DL nº 291/2007, de 21.10.
Cabe à seguradora alegar e provar que o autor recorrente podia adquirir no mercado e por que preço, um outro veículo que igualmente lhe satisfizesse as suas necessidades «danificadas».
No caso em concreto, ao contrário do decidido pelo tribunal recorrido, a Ré seguradora não alegou tal factualidade, socorrendo-se apenas no conceito de valor venal que ela própria encontrou, o qual é afastado por não corresponder ao tal valor patrimonial ou valor de substituição a que nos alude o n.º 2 do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 291/2007.
O afastamento da restauração natural, pressupõe uma excessiva onerosidade para o lesado, porquanto para ficar com o seu veículo automóvel como estava antes do acidente, procedeu à sua recuperação (com algumas peças não originais) pagando um valor superior ao dobro da indemnização decidida. Ora, de acordo com a decisão do tribunal a quo, seria o lesado obrigado a suportar o dano para o qual não concorreu.
No seguimento do por nós entendido, veja-se o decidido no douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21/04/2010, (Garcia Galego), disponível in www.dgsi.pt, de que “em relação a um veículo automóvel acidentado, sendo a reparação integral possível, deve privilegiar-se a sua reconstituição natural, excepto se se revelar excessivamente onerosa, o que corresponde a que o encargo seja exagerado, desmedido, desajustado para o obrigado, transcendendo-se os limites de uma legítima indemnização”.
In casu, a Ré alegou que o veículo automóvel do autor, na data do acidente, tinha um valor venal de 1.700,00 (Mil e setecentos euros), depois reavaliado para 1.750,00 Euros (Mil setecentos e cinquenta euros) e que a reparação importava a quantia de 5.032,77 Euros (Cinco mil e trinta e dois euros e setenta e sete cêntimos). Ou seja, mesmo que se aceitasse os ditos valores encontrados pela Ré e que o autor não aceitou, a reparação seria superior ao dobro, mas inferior ao triplo, do valor apontado como valor de mercado do veículo. Entendemos que tal diferença não permite representar a excessiva onerosidade da restauração natural, dado que, da alegação da ré, não resultou quanto é que o autor recorrente precisava para adquirir uma viatura semelhante à sua de molde a poder-se concluir que havia desproporção clamorosa entre o valor de substituição e o da reparação. Para se concluir pela excessiva onerosidade da reconstituição natural, além de não bastar um qualquer excesso do custo da reparação, face ao valor do veículo sinistrado, necessário se torna apurar que o valor apontado como venal ou comercial permite efectivamente a aquisição de um veículo idêntico ou similar ao acidentado e que de igual modo satisfaça as necessidades do lesado.
Importa ter presente que a excessiva onerosidade e por referência ao previsto no artigo 566.º do Código Civil deverá ser aferida, conforme tem vindo a ser jurisprudencialmente defendido, no caso concreto entre o interesse do lesado à total reparação do veículo (quando possível, como aconteceu nos autos, porque era o mesmo tecnicamente reparável) e o custo que tal representa para o responsável. Só perante uma manifesta desproporção entre estes dois interesses se poderá entender justificado o afastamento da obrigação da reconstituição natural/in casu, ou seja, a reparação total da viatura.
Assim e na ponderação do interesse do lesado deverão ser levados em consideração, para além do valor da reparação e de substituição do mesmo, factores como o uso dado ao veículo em reparação: a possibilidade de o lesado vir a adquirir veículo idêntico que satisfaça de igual modo as suas necessidades ou até o valor sentimental que o poderá ligar ao veículo, vidé neste sentido o Acórdão da Relação do Porto, de 25/02/2013, (Carlos Querido).[4]
Com efeito, sendo o bem danificado o único veículo automóvel que o seu dono utiliza para a sua vida particular, como é o caso, este tem para o seu dono mais do que um valor comercial ou de troca.
Presentes estes princípios e os factos provados supra referidos, não há in casu uma excessiva onerosidade provada pela ré que obste à reparação integral do veículo do autor e que ascende a 5.032,77 Euros (Cinco e trinta e dois euros e setenta e sete cêntimos), conforme avaliação que a ré mandou proceder via IDS.
Com efeito, provou-se que o Autor adquiriu o veículo sua propriedade no ano de 1999, no estado de novo (zero quilómetros), na data do acidente estava em bom estado e estimado, era o seu único automóvel, usado apenas pelo autor para as suas deslocações de pessoais e com a família e de lazer, ao fim-de-semana e que tinha cerca de 80.000 quilómetros, na data do acidente. Mais se provou que o autor não pretendia vender o veículo, que servia as suas necessidades.
Posto isto, o autor recorrente pretende ser indemnizado relativamente dos danos e não em relação ao valor de mercado do veículo sua propriedade, antes do embate. A equiparação do valor do dano e da correspondente indemnização, ao valor de mercado do veículo pressupõe que para o lesado seja indiferente ter o veículo ou o seu valor. Ora, este pressuposto não se verificou nos autos, como vimos.
O valor a ter em conta não é o valor da venda, o valor venal do veículo, mas o valor que o veículo representa dentro do património do lesado, para se deslocar, passear com a família, normalmente um conjunto de utilidades que correspondem a necessidades que a utilização do veículo faz. Este conceito de valor integra a marca, o modelo e demais aptidões que satisfazem as necessidades do lesado.
O valor venal do veículo é diferente deste, normalmente apenas tendo em consideração a marca, modelo, o ano da matrícula e as tabelas de desvalorização. Porém os donos dos veículos não trocam de carro todos os anos, o que torna este valor venal muito inferior ao valor real do veículo como bem integrado no património do lesado. Portanto, a reparação, com vista à restituição natural, considerando a teoria da diferença, tem sempre em vista a reconstituição da situação anterior; seja através do valor da reparação do veículo sinistrado por outro que satisfaça as mesmas necessidades do sinistrado, no caso de perda total. Este valor é de considerar em relação ao valor do dano, representado pelo custo da reparação e não por referência ao valor venal do veículo[5].
Assim, tendo em conta a prioridade da reconstituição natural, tendo em conta que não obstante o valor da reparação do veículo acidentado exceder em pouco mais do dobro o valor venal do veículo sinistrado apenas apurado pela avaliação de perito que trabalha para a ré, via IDS, é manifesto que este último valor de € 1.750,00, deduzido do valor de € 185,00 do salvado, não permite a aquisição de veículo similar ao do autor destruído no acidente, em bom estado de conservação e com menos de uma centena de milhar de quilómetros, a gasolina e com 1299 cm3. Em conformidade, entendemos que não se pode concluir pela excessiva onerosidade da reconstituição natural, devendo a ré seguradora ser condenada a pagar o custo da reparação no montante de 5.032,77 Euros (Cinco Mil e Trinta e Dois Euros e Setenta e Sete Cêntimos). Na verdade à ré recorrida incumbia a prova da excessiva onerosidade da reparação, como facto impeditivo do direito do autor à reconstituição natural. A matéria alegada pela ré e que provada na sentença é insuficiente para concretizar o conceito de excessiva onerosidade e afastar o direito à reparação da viatura.
Esta conclusão não é afectada pelo facto de o autor ter procedido à reparação do veículo sinistrado, com peças alternativas.
A obrigação da Ré recorrida à indemnização, atenta a sua qualidade de seguradora e responsabilidade assente do seu segurado, advém do prejuízo causado no património do autor pela ocorrência do acidente e a obrigação de indemnizar o correspondente prejuízo, aferido este nos termos supra analisados. O facto de o autor recorrente ter procedido à reparação do veículo sinistrado, independentemente do valor que pagou e devido à ré dar resposta negativa à reparação do veículo ou pagamento do valor desta, em nada afasta tal obrigação.
A indemnização pelo valor da reparação consubstancia uma forma de reconstituição natural a que o Recorrente autor tem direito e que não é afastada por aquele ter procedido à reparação do veículo sinistrado. O dano existiu e impõe-se a sua reparação mediante a atribuição do valor necessário. Aliás, face à recusa da Ré recorrida em proceder à reparação, a atitude do autor recorrente em proceder à reparação do veículo sua propriedade, com material alternativo, permitindo-lhe um valor mais baixo, mostra-se perfeitamente compreensível e legitima, até, para atenuar de outros danos pelos quais a ré recorrida podia ser responsável, nomeadamente, ao nível da privação da viatura.
Impõe-se, assim, o cumprimento pela ré da obrigação de pagamento do custo da reparação do veículo de acordo com aquele montante orçamentado, que foi dado como provado- facto 6.
Tal obrigação da ré resulta do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel que cobria a circulação do veículo automóvel matrícula ..-..-NG, cuja condutora foi a única culpada na produção do acidente de viação em apreço.
Procede, pois, nesta parte o recurso do autor.
*
II.3- Privação de uso do veículo do autor:
O apelante nas suas conclusões sintetizadas conclui que “XXXII-É pacifico, quer na Jurisprudência quer na Doutrina, que o prejuízo decorrente da privação de uso é autonomizável do decorrente dos danos verificados na viatura, pelo que, embora o Autor recorrente utilizasse o veículo danificado praticamente ao fim de semana, tem direito a ser ressarcido pelo período de privação efectivo da viatura, em montante superior ao decidido”.
Embora não refira um valor concreto pretendido, o tribunal está vinculado ao pedido formulado na petição inicial que foi de € 1.000,00- artigos 58 a 65.
O valor desse dano patrimonial foi fixado pela sentença recorrida em € 100,00.
E, com a seguinte fundamentação:
O Autor pretende que lhe seja atribuída uma compensação de € 1.000,00 pela privação do seu carro. No que se refere a danos decorrentes da paralisação do veículo, diga-se que o desvalor que essa privação representa constitui um dano patrimonial indireto, uma vez que é consequência mediata do dano direto, isto é, do efeito imediato do facto ilícito ou da perda direta causada nos bens ou valores juridicamente tutelados (no caso, a violação do direito de propriedade motivada pela danificação do veículo), consistente na privação da faculdade de poder fruir o carro que comprou e que provoca uma diminuição no conteúdo do direito de propriedade de pleno uso e fruição, dano esse a ser ressarcido mediante um montante pecuniário fixado por recurso às regras da equidade (art. 566.º, n.º 3 do Código Civil).
No entanto, tratando-se de um dano patrimonial, a sua verificação supõe a prova de que o veículo era efetivamente utilizado pelo lesado. Não se pretende que o lesado seja obrigado a suportar o sacrifício da privação de um transporte próprio, mas ele apenas terá direito ao transporte que normalmente utilizaria se ficasse privado do seu carro, devendo apurar-se o nexo de causalidade entre as despesas e o acidente.
Conforme salienta Américo Marcelino (in Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil, 7.ª Edição, Petrony, Lisboa, 2005, p. 360) “Há difusa em certas pessoas a ideia de que, privadas do carro por culpa alheia, se ganha automaticamente o direito indiscriminado de andar de táxi ou de carro de aluguer sem condutor – quando, se tal privação fosse devida a causa própria, não recorreriam a estes meios de transporte. Nestas condições, o acidente poderia volver-se em fonte de lucro: - a poupança de combustível e do desgaste do próprio carro e a utilização de um transporte que, em outras condições, se não faria”.
O dano da privação de uso de veículo pode manifestar-se no plano patrimonial e/ou no plano não patrimonial do lesado. Será um dano patrimonial, na modalidade de dano emergente ou lucro cessante, quando nele se integrem as despesas com o aluguer de um veículo de substituição, as despesas suportadas com transportes alternativos ou os benefícios não auferidos por causa da privação, desde que devidamente alegada a necessidade de utilização do veículo durante o período de imobilização.
O dano terá natureza não patrimonial quando represente o conjunto de incómodos, inconvenientes, contrariedades e esforços do lesado, ditado pela impossibilidade de usar o veículo. Neste caso, a ressarcibilidade do dano terá de apresentar uma gravidade tal que reclame a proteção do direito – art. 496.º do Cód. Civil.
A privação de uso de uma coisa, inibindo o proprietário ou o detentor de exercer sobre a mesma os inerentes poderes, constitui uma perda que deve ser considerada e objeto de indemnização autónoma.
Constituindo o simples uso do bem uma vantagem suscetível de avaliação pecuniária, a sua privação constitui um dano patrimonial, suscetível de ser indemnizado. Estando um automóvel, em regra e por sua natureza, destinado a proporcionar ao seu proprietário e legítimo detentor utilidades (designadamente a possibilidade de se deslocar para onde quiser e quando quiser) que só podem ser fruídas pelo seu uso, impedido este, há um prejuízo que se traduz na impossibilidade de fruir essas utilidades, situação que pode ou não implicar lucros cessantes, e/ou danos emergentes com tradução monetária imediata mas que, em regra, importa a frustração do gozo. Assim, se a privação do uso do veículo durante um determinado período originou a perda de utilidades que o mesmo era suscetível de proporcionar e se essa perda não foi reparada mediante a forma natural de reconstituição, impõe-se que o responsável compense o lesado na medida equivalente. Fazer depender invariavelmente a indemnização da prova da ocorrência de danos imputáveis diretamente a essa privação é solução que pode justificar-se quando o lesado pretenda a atribuição de uma quantia suplementar correspondente aos benefícios que deixou de obter, ou seja, aos lucros cessantes, nos termos do artigo 564.º, n.º 1 do Cód. Civil, ou às despesas acrescidas que o evento determinou, já não quando o seu interesse se reduza à compensação devida pela privação que, nos termos da mesma norma, corresponde ao prejuízo causado, isto é, aos danos emergentes. (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23 de novembro de 2010, CJ, t. V, p. 103, in Responsabilidade Civil e Contrato de Seguro, Jurisprudência 2000-2011, Colectânea de Jurisprudência Edições, Coimbra, 2011, p. 436).
Ficou demonstrado que o veículo matrícula ..-..-NZ era o único veículo do aqui Autor, veículo esse, utilizado tão só pela sua pessoa, nas suas deslocações pessoais, de família, mormente durante os fins-de-semana, nas saídas de lazer, ou então, quando durante a semana, tivesse o Autor de deslocar-se com a esposa, ao centro de saúde ou outro local onde tivesse de transportar a mesma esposa – já que esta não conduz. Embora o Autor não tenha logrado provar que esta privação tenha importado algum dispêndio, o simples facto de ter ficado privado das comodidades que a viatura lhe proporcionava ou poderia proporcionar constitui um dano patrimonial merecedor de indemnização, a fixar, se necessário, segundo juízos de equidade. Se o sistema legal confere ao lesado o direito à reconstituição natural que pode fazer-se através da entrega ao lesado de uma viatura de substituição, ou por via de uma quantia suficiente para contratar o aluguer de um veículo, e encontrando-se provado que o Autor usava o veículo diariamente, na sua atividade profissional e ainda a título pessoal, o valor de uso de um veículo será, em princípio, o equivalente ao aluguer de um veículo da mesma marca e modelo, deduzidos a taxa de lucro praticada pelas entidades que exercem essa atividade e as despesas operacionais por ela suportadas. Não podendo ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados. (art. 566.º, n.º 3 do Cód. Civil)
Não se justificando a recusa do autor em aceitar o valor proposto para a indemnização, o período de privação de uso do veículo não deve ir para além da data da proposta respetiva 26/03/2015 (dado que o documento de fls. 5 está datado de 23/03/2015, presumindo-se a entrega três dias depois), ou seja, 21 dias após o sinistro. É que, fazendo-se a proposta de um valor indemnizatório, sem referência à data em que se cumpriria a obrigação assumida, ficava-se perante uma obrigação pura, cujo cumprimento poderia ser exigido a qualquer momento, e por isso no próprio momento da aceitação, ficando a seguradora em mora se não a pagasse no momento em que lhe fosse exigida. Dado que o Autor fazia uma utilização muito escassa da viatura, não diária, considero justo atribuir-lhe a quantia de € 100,00 (cem euros)”.
Face aos factos provados, não nos merece censura o assim decidido, salvo quanto à expressão “não se justificando a recusa do autor em aceitar o valor proposto para a indemnização” considerando a fundamentação à questão anterior tratada neste acórdão.
Acrescentamos que o apelante não colocou em causa os dias que foram considerados para o dano de privação do uso do seu veículo automóvel e não pode este tribunal alterar a sentença nessa parte. Daí que, considerando que as deslocações durante a semana com o veículo eram escassas e o autor com a esposa sempre poderiam utilizar outro tipo de transporte, quer particular, quer público e, ponderando que teriam custos com tais transportes, certo é que também poupariam gasolina, desgaste do veículo e até estacionamento e que a privação do passeio ao fim de semana resumiu-se a dois/três fins de semana, em que também teriam as despesas com a circulação do seu automóvel, entendemos adequado o montante fixado pelo tribunal de primeira instância.
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Aos valores indemnizatórios atrás fixados acrescem juros de mora à taxa legal para os juros civis, contados desde a citação até integral pagamento, como havia sido pedido na petição inicial e decidido na sentença.
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4-DECISÃO:
Nestes termos, acordam os juízes nesta Relação em julgar parcialmente procedente a presente apelação, pelo que se alteram a sentença recorrida, fixando-se em € 5.132,77 (cinco mil cento e trinta e dois euros e setenta e sete cêntimos) o montante indemnizatório em que a ré vai condenada a pagar ao autor, quantia acrescida de juros de mora tal como foi fixado na sentença recorrida.
Custas da acção e do recurso pelo autor e pela ré na proporção, respectivamente de 1/6 e 5/6.

Porto, 08.02.2018
Madeira Pinto
Carlos Portela
José Manuel Araújo de Barros
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[1] Neste sentido são a jurisprudência e doutrina correntes (a título de exemplo Acórdão do STJ de 28.05.2009, in www.DGSI.pt, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Conselheiro Abrantes Geraldes, Almedina, p. 84 e 118.
[2] Recursos no Novo Código de Processo Civil, Conselheiro Abrantes Geraldes, Almedina, p. 128.
[3] Quanto a este requisito, apenas cumpre nas conclusões inicialmente apresentadas e não nas sintetizadas mas, é claro do tero das referidas conclusões, que pretende que seja dado como não provado
[4] Ainda os Acórdãos da Relação de Guimarães, de 21/05/2015 e de 10/02/2017 e, ainda, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 05/07/0007, Relator Santos Bernardino, entre muitos, todos disponíveis in site www.dgsi.pt.
[5] Neste sentido os Acórdãos da Relação de Coimbra de 17 de Junho de 2008, Colectânea de Jurisprudência 2008, 3.º - 33 e Acórdão da Relação de Évora de 18-09-2008, Colectânea de Jurisprudência 2008, 4.º - 249 e Acórdãos da Relação do Porto, datado de 25/02/2013, processo n.º 1170/10.5TJVNF.P1 e datado 17/02/2014, processo n.º 2018/11.9.TBVLG.P1, ambos disponível in site www.dgsi.pt.