Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
400/19.2T8AMT-D.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FÁTIMA ANDRADE
Descritores: INSOLVÊNCIA
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
Nº do Documento: RP20191007400/19.2T8AMT-D.P1
Data do Acordão: 10/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA A DECISÃO DA PRIMEIRA INSTÂNCIA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 703-A, FLS 2-11)
Área Temática: .
Sumário: I - Estando a nulidade processual invocada coberta pela decisão judicial que a sancionou ou confirmou, implícita ou explicitamente, é atempada a arguição da mesma em sede do recurso interposto dessa mesma decisão.
II - Conferido ao juiz no processo de insolvência o poder de fundar a sua decisão não só nos factos alegados, como também naqueles que da discussão da causa vier a apurar, entende-se estar-lhe conferida a faculdade de igualmente os investigar e assim recolher os elementos de prova que tiver por conveniente e oportunos com vista ao apuramento da verdade material.
III - O poder-dever investigatório do juiz está sempre balizado pela natureza urgente do processo e assim pelo respeito pelos restritos prazos legalmente estabelecidos.
Este poder não visa a desresponsabilização dos intervenientes processuais no que respeita à alegação factual e proposição de prova necessária à demonstração daquela: esteja em causa a procedência da pretensão deduzida pelo requerente ou a alegação e demonstração pelo opoente dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos da pretensão deduzida.
IV - Balizado por estes princípios e limites e tendo como critério orientador, no respeito daqueles, a prática dos atos necessários e indispensáveis à obtenção da justiça material, merecerá censura a atuação do tribunal a quo quando a omissão cometida tiver influência na decisão da causa (vide 195º nº 1 do CPC).
V - A natureza urgente do processo de insolvência consagrada no artigo 9º do CIRE, da qual é consequência a determinação da marcação da audiência para um dos cinco dias subsequentes à dedução da oposição do devedor, não é compatível com a realização de prova pericial que vise demonstrar o que aliás por via documental e testemunhal poderá ser igualmente demonstrado.
VI - A tramitação processual do processo particular de insolvência a que alude o artigo 295º do CIRE pressupõe a sua compatibilização com o Regulamento UE nº 2015/848 do PEC.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº. 400/19.2T8AMT-D.P1
3ª Secção Cível
Relatora – Juíza Desembargadora M. Fátima Andrade
Adjunta – Juíza Desembargadora Fernanda Almeida
Adjunto – Juiz Desembargador António Eleutério
Tribunal de Origem do Recurso - Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este – Jz. Comércio de Amarante
Apelante/B…

Sumário (artigo 663º nº 7 do CPC):
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Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

I- Relatório
B…, instaurou Processo Especial Para Acordo de Pagamento (PEAP) ao abrigo do disposto nos artigos 222º-A e seguintes do CIRE (diploma legal a que faremos referência salvo menção expressa em contrário), a este aditados pelo DL 79/2017 de 30/06[1].

Junto com o requerimento inicial ofereceu o requerente entre outros documentos uma relação dos bens detidos, na qual identificou:
. um prédio urbano descrito na CRP sob o nº 710, com o VPT de € 86.242,85;
. o direito à herança aberta por óbito de seu pai C… casado com D…, da qual declarou fazerem parte 2 prédios urbanos, um inscrito na CRP sob o nº 1712 com o VPT de € 12.080,00 e outro inscrito na matriz predial sob o nº 1316 com o VPT de € 76.680,00.

Recebido o requerimento nos termos do artigo 222º-C nº 4 e nomeado AJP (Administrador Judicial Provisório), foi apresentada a lista provisória de créditos pelo AJP em 25/10/2018, para efeitos do disposto no artigo 222º-D nº 3 – relacionando créditos num total de € 154.534,36.

Foi formulado em 02/01/2019 pedido de prorrogação do prazo das negociações encetadas por um mês e ordenado o cumprimento do disposto no artigo 222º-D nº 5 por decisão de 08/02/2019.
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Por decisão de 14/02/2019, e por decorrido o prazo para a conclusão das negociações, não ter sido comunicado aos autos a conclusão das negociações, foi declarado “nos termos do disposto no artigo 222.º-G, n.º 1 do CIRE (…) o encerramento das negociações sem a aprovação de acordo de pagamento.”
Mais foi ordenada a “publicação no portal Citius de tal ocorrência, nos termos e para os efeitos previstos no n.º 1, do art.º. 222.º-G do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”, bem como foi ordenada a notificação do AJP para “emitir parecer sobre se o devedor se encontra em situação de insolvência, em conformidade com o disposto no artigo 222.º-G, n.º 4.”.
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Do assim decidido não foi interposto recurso.
Em 04/03/2019 ofereceu o AJP aos autos parecer nos termos do artigo 222ºG nº 4, concluindo “pelo estado de insolvência da devedora”, porquanto “consultadas as reclamações de crédito e verificadas as previsões das alíneas a) e b), pontos i/ii/iv/ da alínea g) do nº 1 do artigo 20º do CIRE, mostram-se preenchidas as presunções legais de insolvência.”
Na sequência deste parecer, foi ordenada a extração de “certidão do parecer” e remessa do mesmo “à distribuição como processo especial de insolvência” (artigo 222ºG nº 4 do CIRE).
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Extraída certidão para instauração de processo de insolvência e como tal distribuído, foi proferido despacho inicial a determinar a notificação do AJP para “vir completar o seu parecer, alegando os necessários factos objetivos que sustentam o seu pedido de declaração de insolvência do requerido B…” porquanto “o Parecer apresentado pelo Sr. Administrador Judicial provisório nomeado no Processo Especial Para Acordo De Pagamento não tem qualquer facto que possa vir a ser considerado provado, caso falte a oposição do Requerido e que sustente a declaração de insolvência, já que se limita a invocar a norma legal sem fazer qualquer referência aos factos que a integram.”

Em cumprimento do determinado veio o AJP “complementar o seu parecer nos termos do artigo 222ºG, nº 4”, identificando quanto à “Situação Económico-financeira” do requerido:
“1. A devedora tem como único rendimento o seu salário no montante médio mensal de 1.500,00€;
2. Este salário enquanto trabalhador emigrado em França corresponde, aproximadamente, ao salário mínimo nacional deste país.
3. O património relacionado pela devedora consubstancia-se no registo a seu favor de um prédio urbano descrito na CRP de Amarante sob o nº 710 com o valor patrimonial de 86.242,85 e o quinhão hereditário por óbito de seu pai a que correspondem 2 imóveis com o valor patrimonial de 12.080,00€ e 76.680,00€.
4. Não consta dos autos que qualquer dos imóveis inventariados liberte algum tipo de rendimento mensal ou anual.
5. O total dos créditos relacionados ascende a 154.534,36€.
6. Do total de créditos relacionados, a AT representa 1.790,58€ e a Segurança Social representa 3.854,95 €.
(…)
8. Apesar dos rendimentos auferidos pela devedora e acima evidenciados não se encontram liquidados os IMI’s relativos ao imóvel registado a seu favor, evidenciando que os meios libertos pela atividade da devedora são inexistentes ou insignificantes face ao custo de vida do país onde são obtidos.”
Afinal tendo concluído restar “apenas a insolvência como meio processual para ressarcimento dos créditos relacionados”.
Aperfeiçoado assim o parecer nos termos determinados, foi ordenada a citação do requerido para, querendo, “deduzir oposição no prazo de cinco dias, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 29.º, n.º 1 e 30.º, n.º 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”, com a advertência de que “a falta de oposição implica que se considerem confessados os factos constantes do parecer do Sr. Administrador de Insolvência, e a consequente declaração de insolvência no primeiro dia útil seguinte ao termo do prazo para oposição, cfr. artigos 29.º, n.º 2, e 30.º, n.º 5, do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresa.”
Contestou o requerido, aceitando o alegado de “1 a 6 do parecer fundamentado”, impugnando entre o mais o alegado em 8 e alegando ter, “Apesar do incumprimento relatado nos autos, (…) efetivamente um ativo superior ao seu passivo”.
E para este efeito alegou em concreto que o valor comercial do imóvel em seu nome registado – descrito na CRP sob o nº 710 - é superior a € 150.000,00; sendo o valor comercial dos imóveis (2) que correspondem ao património da herança aberta por óbito de seu pai também de valor nunca inferior a € 150.000,00.
Mais alegou conseguir libertar do seu rendimento quantia mensal não inferior a € 700,00 para pagamento faseado a seus credores.
Termos em que concluiu:
- não se encontrar definitivamente impossibilitado de cumprir as suas obrigações;
- pretender proceder ao pagamento da totalidade do seu passivo, necessitando de ver aprovado um plano de recuperação que lhe permita cumpri-lo;
- frustrado o PEAP deverá a sua situação voltar ao estado em que se encontrava, prosseguindo as ações executivas em curso e permitindo-lhe a negociação casuística com cada um dos seus credores.
Ofereceu a seguinte prova documental:
- cópia da caderneta predial relativa ao prédio inscrito na matriz em seu nome, com o VP determinado em 2016 de € 86.242,85 (matriz nº 1602). Prédio este inscrito na CRP sob o nº 710/19941219 [e sobre o qual incidem 4 hipotecas a favor de “E…, S.A.” (por transmissão anterior do F…, SA) e duas penhoras no âmbito de duas execuções, uma promovida pelo credor “E…, SA” e outra pelo credor G… (ambos credores relacionados e com créditos reconhecidos logo no âmbito do PEAP)];
- cópia da caderneta predial do prédio inscrito na matriz em nome de D… com o VP determinado em 2018 de € 77.830,20 (matriz 1316);
- cópia da caderneta predial do prédio inscrito em nome de D… com o VP determinado em 2018 de € 12.261,20 (matriz 725). Prédio este inscrito na CRP sob o nº 1712/20120926 com registo de aquisição em 1967 a favor de C… e D…;
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Agendada audiência de discussão e julgamento, veio a ser proferida sentença, aí se decidindo “julgando procedente por provada a presente ação, julgo verificada a situação de insolvência do Requerido e, consequentemente:
1. Declaro a insolvência de B…;
2. Fixo residência ao Insolvente, para efeito de receber notificações do tribunal, na Rua …, n.º …, ….-… … (…), concelho de Amarante e residência habitual em .., Rue …, …, France;
(…)”
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E quanto ao pedido de exoneração do passivo restante, foi decidido “não são aqui aplicáveis as disposições sobre exoneração do passivo restante, atento o disposto no artigo 295.º, alínea c) do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresa e o facto de os Insolventes não terem o seu domicílio em Portugal nem o centro dos seus principais interesses.”
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Do assim decidido foi interposto recurso de apelação pelo devedor, oferecendo alegações e formulando as seguintes
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata e em separado e com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
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III- Fundamentação.
Foram dados como provados os seguintes factos:
“1. O requerido B… apresentou-se ao Processo Especial Para Acordo de Pagamento em 25.09.2018, o qual terminou sem aprovação de Acordo de Pagamento.
2. No Processo Especial Para Acordo de Pagamento que se mostra apenso a estes autos de insolvência foi apresentada Lista de Créditos Reconhecidos pelo Sr. Administrador Judicial Provisório, que se tornou definitiva, no montante global de 154 534,36 euros.
3. O Requerido encontra-se desempregado, desde janeiro de 2019, auferindo um subsídio diário de 34,29 euros, com o máximo mensal de 1028,70 euros, pago pela Segurança Social francesa, desde 20.02.2019, por transferência para a sua conta bancária com o NIB ………………………………...
4. Aquando da sua apresentação ao Processo Especial Para Acordo de Pagamento o Requerido encontrava-se a trabalhar na construção civil, em França, desde 05.10.2017, desempenhando as funções de empregado de construção civil, auferindo cerca de 1.500,00 euros líquidos mensais.
5. A morada oficial do requerido em França é a seguinte: .., Rue …, ….
6. O requerido está obrigado a comunicar qualquer alteração da sua morada em França, à Segurança Social francesa, sob pena de perder o subsídio que lhe está a ser pago por esta entidade, que tem como limite temporal máximo 454 dias.
7. O Requerido perspetiva recomeçar a trabalhar a partir de Junho próximo, como jardineiro, em França.
8. A companheira do Requerido está desempregada e tenciona obter trabalho em França onde passará a viver também.
9. Encontra-se averbada a favor de C… casado com D… no regime de comunhão geral, a propriedade do prédio urbano sito em …, composto de Casa de rés-do-chão e andar com uma dependência e quintal, descrito na Conservatória de Registo Predial de Amarante, sob o n.º 1712, freguesia … (…), inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 376, com o valor patrimonial de 12.261,20 euros, determinado no ano de 2018.
10. Encontra-se averbada a favor do Requerido B…, a propriedade plena do prédio urbano sito em …, composto de Casa de cave, rés-do-chão e logradouro, descrito na Conservatória de Registo Predial de Amarante, sob o n.º 710, freguesia … (…), inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 1602, com o valor patrimonial de 86.242,85 euros, determinado no ano de 2016.
11. Encontra-se inscrito, desde 04.08.2012, a favor de D…, a propriedade plena, na matriz predial urbana, sob o artigo 945, da União de Freguesia … (… e …), o prédio urbano, sito em …, composto de cave com garagem, rés-do-chão com loja para comércio e andar para habitação, omisso na Conservatória de Registo Predial de Amarante, com o valor patrimonial de 77.830,20 euros, determinado no ano de 2018.
12. O Requerido é filho de C… e D….
13. Na data em que se apresentou ao Processo Especial Para Acordo de Pagamento o Requerido tinha pendentes contra si duas Execuções, a correr termos pelo Juízo de Execução de Lousada, sob os números 4886/15.6TBLOU, sendo Exequente a “E…, S.A”, e 2604/17.3TBLOU, sendo Exequente G…, estando a primeira já em fase de venda do imóvel penhorado.”
O tribunal a quo deu ainda como não provada a seguinte factualidade:
Com interesse para o objeto do presente litígio foram alegados outros factos não provados, nomeadamente:
a) Que o valor de mercado do prédio urbano sito em …, composto de Casa de cave, rés-do-chão e logradouro, descrito na Conservatória de Registo Predial de Amarante, sob o n.º 710, freguesia … (…), inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 1602 seja superior a 150 000 euros.
b) Que o pai do Requerido tenha falecido em 04.09.1999.
c) Que o prédio urbano inscrito na matriz predial urbana, sob o artigo 945, da União de Freguesia … (… e …), sito em …, composto de cave com garagem, rés-do-chão com loja para comércio e andar para habitação, faça parte da herança aberta por óbito do pai requerido.
d) Que o Requerido consiga liberar do seu rendimento mensal quantia não inferior a 700 euros para pagamento faseado aos seus credores.
e) Que o valor do património do requerido é superior ao do seu passivo (154 534,36 euros).”
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II- Âmbito do recurso.
Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de e em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, nem limitado ao conhecimento das questões de que cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e 639º n.ºs 1 e 3 do CPC [Código de Processo Civil] – resulta das formuladas pelo apelante serem questões a apreciar:
i- se o tribunal omitiu a prática de ato imposto pela lei, em violação do princípio do inquisitório e assim incorreu, por omissão, na prática de nulidade processual [vide conclusões D e F].
Neste campo impondo-se ainda apurar se tal nulidade se encontra regularmente arguida;
ii- se ocorre erro de julgamento na decisão de facto, nomeadamente por errada valoração da prova documental junta aos autos.
Em causa os pontos b), c) e e) dos factos não provados, por cuja introdução nos factos provados o recorrente pugna [vide conclusão E].
Ainda os factos provados 5 e 6, por cuja introdução nos factos não provados o recorrente pugna [vide conclusões H e K];
iii- erro na decisão de direito – em causa a solvência do devedor; a fixação da sua residência e a admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante [vide conclusões E, L e seguintes].
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Em função do supra enunciado, cumpre em primeiro lugar apreciar do invocado vício de nulidade por violação do princípio do inquisitório.
Alegou nesta sede o recorrente que o tribunal a quo deveria oficiosamente ter ordenado ao recorrente a junção das certidões tidas por necessárias e a realização da avaliação dos bens imóveis para que a factualidade alegada e constante dos pontos b), c) e e) pudesse ser considerada como provada. [vide conclusões D a G].
Mais alegou que a omissão de tal diligência é violadora do disposto nos artigos 411º, 436º e 467º do CPC e 11º do CIRE.
Embora o não tenha enquadrado como tal, a alegação por parte do recorrente de que o tribunal violou o dever de praticar oficiosamente ato que lhe estava imposto pelo princípio do inquisitório em ordem ao apuramento dos factos tidos por relevantes para o mérito da questão em apreciação, configura a arguição de uma nulidade processual nos termos e com as consequências legais previstas no artigo 201º do CPC [ex vi artigo 17º do CIRE]. E como tal será apreciada.
Nulidade que tal como o determinam os artigos 195º e 196º do CPC, por se tratar de nulidade secundária, apenas poderia – por regra - ser conhecida sob reclamação do interessado nos termos do artigo 196º nº 1 do CPC.
Diz-se por regra, porquanto e conforme tem vindo a ser entendido, tanto na doutrina como na jurisprudência, estando a nulidade processual invocada coberta pela decisão judicial que a sancionou ou confirmou, implícita ou explicitamente, é atempada a arguição da mesma em sede do recurso interposto dessa mesma decisão[2].
É o caso. O recorrente convoca a nulidade fundada em violação do princípio do inquisitório perante a decisão de que recorre, da qual resulta ter o tribunal a quo entendido não ter sido feita prova cabal de determinada factualidade relevante para a apreciação da oposição deduzida pelo recorrente e sobre a qual não foi exercido – conforme alegado – o poder dever de ordenar as diligências tidas por necessárias para a averiguação cabal de tais factos, em cumprimento do princípio do inquisitório.
É portanto oportuna a arguida nulidade da qual cumpre conhecer.

Preceitua o artigo 11º do CIRE sob a epígrafe “Princípio do inquisitório” que no processo de insolvência (e também embargos e incidente de qualificação de insolvência) pode a decisão do juiz ser fundada em factos que não tenham sido alegados pelas partes.
Por sua vez dispõe o artigo 411º do CPC, sob a epígrafe “Princípio do inquisitório”: “Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.”
No confronto entre estes dois normativos, resulta do artigo 11º do CIRE um alargar dos poderes do juiz em relação à regra geral consagrada no processo civil no artigo 411º do CPC. Neste último e na concatenação com o artigo 5º do CPC resulta a limitação da iniciativa do juiz à realização das diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, aos factos alegados pelas partes.
Já no processo de insolvência é conferido ao juiz o poder/dever de fundar a sua decisão mesmo nos factos que não tenham sido alegados pelas partes mas que da discussão da causa se venham a apurar. Por esta via, sendo de ainda de entender estar-lhe conferida a faculdade de igualmente os investigar e assim recolher os elementos de prova que tiver por convenientes e oportunos[3] com vista ao apuramento da verdade material.

Da remissão do artigo 17º do CIRE (já acima citado) para o CPC – cujas regras apenas são aplicáveis ao processo de insolvência na medida em que não contrariem as sua disposições - temos que a instrução do processo tem por objeto os temas da prova enunciados, ou quando não houver lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova – artigo 410º do CC.
E a prova tem por função demonstrar a realidade dos factos – 341º do CC (Código Civil).
O artigo 25º nº 2 ex vi 30º nº 1 (do CIRE ambos), disciplina o modo como o opoente (e também o requerente) deve oferecer os meios de prova: de forma clara dizendo que “todos” os meios de prova de que disponha o interessado devem ser oferecidos com o respetivo articulado, in casu, de oposição.
Esta especial exigência no oferecimento da prova está relacionada com a natureza urgente do processo consagrada no artigo 9º do CIRE, impondo uma interpretação compaginável com o disposto no artigo 35º nº 1 do CIRE, o qual determina a marcação da audiência para um dos cinco dias subsequentes à dedução da oposição do devedor.
Motivo por que ao devedor opoente é exigido oferecer toda a prova de que disponha com a oposição.
E eventual intervenção oficiosa do tribunal deverá também conter-se dentro dos limites temporais que o legislador fixou.
O que nos leva a concluir, de um lado, que o poder-dever investigatório do juiz está sempre balizado pela natureza urgente do processo e assim pelo respeito pelos restritos prazos legalmente estabelecidos.
E do outro lado que este mesmo poder não visa a desresponsabilização dos intervenientes processuais no que respeita à alegação factual e proposição de prova necessária à demonstração daquela: esteja em causa a procedência da pretensão deduzida pelo requerente ou a alegação e demonstração pelo opoente dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos da pretensão deduzida.
Balizado por estes princípios e limites e tendo como critério orientador, no respeito daqueles, a prática dos atos necessários e indispensáveis à obtenção da justiça material, merecerá censura a atuação do tribunal a quo quando a omissão cometida tiver influência na decisão da causa (vide 195º nº 1 do CPC).
Revertendo ao caso concreto, censura o recorrente a atuação omissiva do tribunal a quo por não ter o mesmo ordenado oficiosamente a junção das certidões necessárias à prova dos factos não provados b), c) e e) e/ou ainda a realização de prova pericial para avaliação “dos bens do recorrente”.
Em causa a prova do óbito do pai do requerente; os bens que farão parte de tal herança; ainda o valor do património do requerido.
Tanto a prova do óbito do pai do requerido, como a qualidade de herdeiro[4] deste último, é factualidade demonstrável apenas por via documental e de tal tinha o requerido que estar ciente.
Alega o recorrente que tal situação, incluindo o património que faz parte de tal herança indivisa, havia já sido alegada no PEAP e aí aceite; bem como alegou que também nestes autos tal foi reconhecido pelo AJP que impulsionou os autos – vide o alegado em 3º a 6º do parecer do AJP base deste processo de insolvência – o que em sede de oposição declarou expressamente aceitar.
No que à aceitação respeita, importa referir que o AJP se limitou a declarar que o requerido relacionou como património entre o mais o quinhão hereditário. E esta é uma realidade.
A declaração de tal relacionamento não corresponde contudo ao reconhecimento de que os bens relacionados correspondem a património do requerido.
Tanto mais que o quinhão hereditário corresponde por definição a uma quota ideal sobre um património indiviso – o acervo hereditário - sem especificação dos bens que o compõem. O que apenas em sede de concretização da partilha é definido.
O valor do quinhão hereditário – direito e ação à herança indivisa – terá/teria de ser encontrado em função dos bens que compõem a herança indivisa e da quota hereditária que ao requerido cabe, nos termos legais.
E este é o valor relevante para o apuramento do património do requerido (por referência ao quinhão hereditário que invocou).
Assim e ao abrigo do já mencionado princípio do inquisitório na sua vertente mais alargada e porque essencial para a apreciação da oposição deduzida, deveria o tribunal a quo ter dado nota ao requerido, nomeadamente quando agendou a audiência de discussão e julgamento:
- não só da necessidade de juntar aos autos prova documental necessária à demonstração do óbito de seu pai[5];
- como da necessidade de ser averiguado e de ser feita prova sobre a existência da herança indivisa e dos bens que a compunham e respetivo quinhão hereditário/quota ideal na herança – já que a prova documental referente aos imóveis pelo requerente oferecida o não demonstra e o alegado era, ademais, insuficiente.
Para tanto e sem prejuízo do já referido ónus que sobre o requerente recaia de logo com a oposição oferecer toda a prova necessária à demonstração do por si alegado, convidando o requerido a juntar escritura de habilitação de herdeiros (se existente); declaração junto das finanças para efeitos sucessórios ou outra prova documental que este entendesse por oportuna à demonstração de tal realidade, para posterior apreciação em conjugação com a demais prova oferecida.

O valor dos bens, o requerido já o havia alegado e a si incumbia do mesmo fazer prova.
Neste ponto a realização da prova pericial que ora o recorrente censura não ter sido oficiosamente ordenada, afigura-se-nos ser de excluir, na ponderação da natureza urgente do processo versus a demora à sua realização inerente. Tanto mais quando o valor em questão poderá/poderia ser demonstrado por via documental/testemunhal.
Em conclusão, nos termos supra expostos entende-se verificada a prática de nulidade processual por omissão de ato – ao abrigo do princípio do inquisitório - que influiu na decisão da causa, a implicar a anulação da decisão proferida para saneamento de tal omissão.
Devendo o tribunal a quo proceder em conformidade com o acima mencionado, agendando nova audiência de discussão e julgamento e advertindo o requerido da necessidade de até lá juntar aos autos a prova documental necessária à prova da realidade supra elencada.
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Em sede de reapreciação da decisão de facto, invocou ainda o recorrente ter ocorrido erro de julgamento na decisão de facto quanto aos pontos 5 e 6 dos factos provados.
Em causa a sua apurada residência em França. Motivo posterior do indeferimento liminar em sede de apreciação de direito, do pedido de exoneração do passivo restante ao abrigo do disposto no artigo 295º do CIRE.
Embora a anulação anteriormente determinada prejudique por princípio a apreciação das demais questões suscitadas, entende-se oportuno sobre este ponto tecer os seguintes considerandos:
- a previsão legal convocada pelo tribunal a quo está inserida no título XV “Normas de Conflitos” / Capítulo III – Processo particular de insolvência[6].
- a tramitação processual deste processo particular pressupõe a sua compatibilização com o Regulamento UE nº 2015/848 do PEC[7] na demonstrada ligação do devedor a mais do que um Estado-Membro, “designadamente por ter bens ou credores localizados em mais do que um Estado-Membro”[8] e exige o apuramento do circunstancialismo que permitirá ao tribunal a quo concluir onde se situa o centro dos interesses principais do devedor e assim por contraponto concluir que estes autos estão sujeitos ao regime do processo particular / processo territorial de insolvência.[9] e não ao processo de insolvência principal;
- a competência internacional é definida nos termos do artigo 3º deste Regulamento; sujeita aos limites para o “processo territorial de insolvência” previstos no nº 4 do mesmo artigo 3º e como tal deve ser apreciada e declarada nos termos e para os fins previstos nos artigos 4º e 5º ainda do mesmo Regulamento.
Prevenindo futuro recurso com base no mesmo fundamento e tendo presentes estes considerandos deverá o tribunal a quo na medida em que entenda aplicável este regime processual averiguar e traduzir factualmente os elementos que conduzem à conclusão não só de que existe conexão do devedor a mais do que um Estado Membro, mas também que não é em Portugal que se situa o centro dos principais interesses do devedor de acordo com os critérios orientadores definidos no artigo 3º e considerandos 27 e 30 do citado Regulamento. Averiguação que pressupõe o conhecimento do requerido, para que sobre tal situação possa exercer o contraditório e nomeadamente invocar o que tiver por conveniente quanto à localização do seu centro de interesses principais.

Nos termos expostos procede o recurso instaurado.
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IV. Decisão.
Pelo exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso interposto, consequentemente e anulando a decisão proferida se determinando após baixa dos autos que o tribunal a quo agende nova audiência de discussão e julgamento:
i- Advertindo o requerido para a necessidade de fazer prova do óbito de seu pai; da existência da herança indivisa e dos bens que a compõem e respetivo quinhão hereditário/quota ideal na herança.
Para tanto e nomeadamente convidando o requerido a juntar certidão de óbito e/ou escritura de habilitação de herdeiros (se existente); declaração junto das finanças para efeitos sucessórios ou outra prova documental que este entenda por oportuna à demonstração de tal realidade, para posterior apreciação em conjugação com a demais prova oferecida.
ii- Advertindo ainda o requerido na medida em que entenda aplicável o Regulamento UE nº 2015/848 do PEC, a intenção de no uso do seu poder/dever investigatório vir a considerar factualidade não alegada mas apurada no decurso da discussão da causa do qual possa concluir por uma localização do centro dos principais interesses do devedor diversa de Portugal.
Custas pela parte vencida a final e na proporção em que o for.
Notifique.

Porto, 2019-10-07
Fátima Andrade
Fernanda Almeida
António Eleutério
______________
[1] Processo este (PEAP) que visa permitir ao devedor que não seja uma empresa e comprovadamente se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo de pagamento (vide 222º-A nº 1 e 222º-C do CIRE).
[2] Neste sentido vide Ac. TRP de 24/09/2015, processo nº 128/14.0T8PVZ.P1 e doutrina no mesmo citado; ainda Ac. TRP de 05/11/2018, processo nº 1425/17.8T8GDM.P1, ambos in www.dgsi.pt. Neste último acórdão e convocando a doutrina se podendo ler: “Idêntica solução defendia Manuel de Andrade ao salientar que “ se a nulidade está coberta por uma decisão judicial que ordenou, autorizou ou sancionou, expressa ou implicitamente, a prática de qualquer ato que a lei impõe, o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente a interpor e a tramitar como qualquer outro do mesmo tipo. Trata-se, em suma, da consagração do brocardo: «dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se.»”
É este também o ensino de Anselmo de Castro e de Antunes Varela. [10]
Afirma o primeiro que “ se entretanto, o ato afetado de nulidade for coberto por qualquer decisão judicial, o meio próprio de o impugnar deixará de ser a reclamação (para o juiz) e passará a ser o recurso da decisão “, enquanto o segundo refere que ” tradicionalmente entende-se que a arguição da nulidade só é admissível quando a infração processual não está, ainda que indireta ou implicitamente, coberta por qualquer despacho judicial; se há um despacho que pressuponha o ato viciado, diz-se, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida, não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respetivo despacho pela interposição do competente recurso (…)”
[3] Neste sentido vide CIRE Anotado, Luís Fernandes e João Labareda, 3ª edição, p. 118 em anotação ao artigo 11º.
[4] O seu assento de nascimento foi junto aos autos.
[5] Tanto mais que em despacho de 03/05/2019 havia sido determinada a comunicação à Segurança Social para os “fins tidos por convenientes” de que o requerido “prestou falsas declarações quando informou não ser proprietário de qualquer imóvel, já que é proprietário de um imóvel e tem também um quinhão hereditário na herança aberta por óbito de seu pai a qual é também constituída por imóveis (…)”. Despacho que poderá ter induzido o requerido a ter como assente para o tribunal a demonstração processual de tal realidade, nomeadamente do óbito só demonstrável por via documental.
[6] São pressupostos do processo particular de insolvência:
(artigo 294º CIRE)
“1 - Se o devedor não tiver em Portugal a sua sede ou domicílio, nem o centro dos principais interesses, o processo de insolvência abrange apenas os seus bens situados em território português.
2 - Se o devedor não tiver estabelecimento em Portugal, a competência internacional dos tribunais portugueses depende da verificação dos requisitos impostos pela alínea c) do n.º 1 do artigo 62.º do Código de Processo Civil.
3 - Sempre que seja aplicável o Regulamento (UE) n.º 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, o processo particular é designado por processo territorial de insolvência até que seja aberto um processo principal, caso em que passa a ser designado por processo secundário.”
Estando-se na presença de um processo particular de insolvência, determina o artigo 295º do CIRE entre o mais que ao mesmo não são aplicáveis as disposições sobre exoneração do passivo.
[7] Nos termos do considerando 23 deste Regulamento, permite o mesmo “que o processo de insolvência principal seja aberto no Estado-Membro em que se situa o centro dos interesses principais do devedor. Esse processo tem alcance universal e visa abarcar todo o património do devedor. Para proteger a diversidade dos interesses, o presente regulamento permite que os processos secundários de insolvência eventualmente instaurados corram paralelamente ao processo principal de insolvência. Pode-se instaurar um processo secundário de insolvência no Estado-Membro em que o devedor tenha um estabelecimento. Os efeitos dos processos secundários de insolvência limitar-se-ão aos ativos situados no território desse Estado.”
[8] Cfr. Catarina Serra in “Lições de Direito da Insolvência, edição 2018, p. 610.
[9] Nos termos do considerando (27) deste Regulamento “Antes de abrir o processo de insolvência, o órgão jurisdicional competente deverá verificar oficiosamente se o centro dos interesses principais ou o estabelecimento do devedor se situa de facto na sua área de competência.” [tal como o dispõe o seu artigo 4º].
Para o efeito terá em consideração os critérios orientadores definidos no artigo 3º ao abrigo do qual se define a competência internacional do órgão jurisdicional, nomeadamente e no caso de pessoa singular [que não exerça atividade comercial ou profissional independente] se presumindo “até prova em contrário, que o centro dos interesses principais é o lugar de residência habitual.” Presunção só aplicável se a residência habitual não tiver sido transferida para outro Estado-Membro nos seis meses anteriores ao pedido de abertura do processo de insolvência.” [vide o citado artigo 3ºnº 1].
De acordo ainda com o considerando (30), esta presunção “No caso de uma pessoa singular que não exerça uma atividade comercial ou profissional independente (…) deverá poder ser ilidida, por exemplo, se a maior parte dos bens do devedor estiver situada fora do Estado-Membro onde este tem a sua residência habitual, ou se puder ficar comprovado que o principal motivo para a sua mudança de residência foi o de requerer a abertura de um processo de insolvência na nova jurisdição e se tal pedido prejudicar significativamente os interesses dos credores cujas relações com o devedor tenham sido estabelecidas antes da mudança.