Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1073/2000.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
PRODUTOR
DEFEITO
CRÉDITO
HERDEIRO
NULIDADE DA VENDA
Nº do Documento: RP201007141073/2000.P1
Data do Acordão: 07/14/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Legislação Nacional: DL 383/89, DE 6.11
Sumário: I- Mesmo que a recorrente tivesse feito a prova de que, realmente, a coisa prestada pela recorrida, padecia, de um defeito, de fabrico, ainda assim, não seria possível vincular a recorrida, com fundamento na responsabilidade do produtor, ao dever de indemnizar .
II- Em primeiro lugar, porque a adstrição do produtor ao dever de reparar o dano só existe se o defeito do produto que fabricou ou colocou em circulação revestir uma feição particular: afectar a segurança com que legitimamente se pode contar.
III- Ora, do facto de um produto patentear um defeito não se segue, como corolário que não possa ser recusado, que se trate de um produto inseguro, podendo este ser contratualmente desconforme e, não obstante, não carecer de segurança, por não representar um fonte de perigo para a pessoa e bens do adquirente e de terceiros.
IV- Os danos cujo ressarcimento é pedido não se compreendem no perímetro daqueles cuja reparação é assegurada pelo esquema da responsabilidade civil do produtor.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1073/2000.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório.
B……… SA pediu ao Sr. Juiz de Direito do 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de S. João da Madeira, a condenação de C……… SRL, a pagar-lhe as quantias de 3 171 400$00 e de 1 500 000$00, a título de e indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, respectivamente, acrescidas de juros, à taxa anual de 12%, contados desde a citação até ao pagamento.
Fundamentou a sua pretensão no facto de as solas que a ré lhe vendeu, e que aplicou no calçado que fabrica e vendeu aos seus clientes, partirem após pouco tempo de uso, o que motivou a sua devolução e lhe causou o prejuízo, em materiais aplicados, mão-de-obra e margem de lucro, de 3 171 400$00, e de aquele facto, por a marca de calçado que comercializa ser conceituada, ter afectado o seu bom nome, credibilidade e reputação.
A ré defendeu-se por excepção dilatória, invocando a incompetência internacional do tribunal português, por excepção peremptória, alegando a caducidade do direito da autora, e por impugnação, relativamente à existência, nas solas que vendeu à autora, de qualquer defeito, e aos prejuízos alegados por aquela.
Realizada uma primeira audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que, julgando procedente a excepção dilatória da incompetência internacional do tribunal português, absolveu a ré da instância.
Todavia, esta Relação concluiu, no recurso de apelação interposto pela autora, pela competência do tribunal português, e deliberou anular o julgamento, acórdão de que a ré interpôs recurso, mas a que o Supremo Tribunal de Justiça negou provimento.
Repetido o julgamento foi proferida sentença que, com fundamento em que foi a prova de que a coisa – as solas – padeciam elas próprias de um defeito, no sentido de que as mesmas não tinham as qualidades que o credor, por força do contrato, poderia legitimamente esperar, ou por outro lado, que as mesmas apresentassem um desvio à qualidade normal de coisas daquele tipo, que a A. não conseguiu provar (veja-se a resposta negativa ao quesito 12º), matéria essa que, atentas as regras do ónus da prova, lhe incumbia, julgou a acção improcedente.
Apelou, claro, a autora, pedindo que, por via do recurso, se declare a acção procedente.
Com o propósito de mostrar a falta de bondade da decisão recorrida, a recorrente segregou da sua alegação estas conclusões:
1. Da matéria provada nos autos, resulta que a Autora comprou SOLAS à Ré, que logo que a Autora recebeu da Ré TAIS SOLAS, começou a aplicá-las nos sapatos, e que, vendidos os sapatos onde estas solas tinham sido aplicadas, estes, com pouco tempo de uso, APARECIAM COM AS SOLAS PARTIDAS.
2. Os concretos termos em que tais solas apareciam partidas são os que decorrem dos vários elementos de prova juntos aos autos.
3. Em noção ampla, defeito, corresponde a um desvio à qualidade devida, desde que a divergência seja relevante, sendo que o defeito pode ser entendido em sentido objectivo ou subjectivo.
4. Em sentido objectivo, o defeito corresponde a um desvio à qualidade normal da coisa daquele tipo. Em sentido subjectivo, haverá um defeito sempre que a coisa não tenha as qualidades que o credor, por força do contrato, poderia legitimamente esperar, se bem que o devedor nada tenha prometido.
5. No regime instituído pelo Código Civil, a noção de defeito assenta em critérios objectivos e subjectivos. Assim, tanto no art. 913º, como no art. 1218º, fala-se em vícios e em qualidades asseguradas, devendo os primeiros ser aferidos em função da normalidade.
6. A noção de defeito deverá, por conseguinte, ser entendida num sentido híbrido, pois ela é, em simultâneo, objectiva e subjectiva.
7. Para o efeito, importa verificar se o bem corresponde à qualidade normal de coisa daquele tipo e, em seguida, determinar se é adequado ao fim, implícita ou explicitamente estabelecido no contrato.
8. Os vícios correspondem a imperfeições relativas à qualidade normal, enquanto que as desconformidades são discordâncias com respeito ao fim acordado.
9. O conjunto dos vícios e das desconformidades constituem os defeitos da coisa. Os dois elementos fazem parte do conteúdo do defeito, determinam-se através do contrato e dependem da interpretação deste.
10. Com pouco tempo de uso AS SOLAS PARTIRAM. Objectiva e subjectivamente é este o defeito.
11. Ou seja, as solas tinham um vício que as desvalorizava, tinham um vício que impediram a realização do fim a que se destinavam e não tinham as qualidades necessárias para a realização do fim a que se destinavam.
12. Em suma, e ao contrário do concluído na douta sentença de que se recorre, A AUTORA PROVOU O DEFEITO.
13. Questão diferente é a de aferir a quem imputar a culpa no defeito verificado.
14. Quanto à culpa, presume-se a culpa do vendedor – art. 799º nº 1 do Código Civil.
15. A Ré, ora recorrida, sempre reconheceu que havia problemas com as solas. O que a Ré não aceitou é que lhe fosse de imputar qualquer responsabilidade pelos defeitos verificados.
16. Competia à Ré provar que os concretos defeitos verificados nas solas não provinham do seu deficiente fabrico.
17. Dos factos provados resulta que os defeitos podem ter decorrido do fabrico das solas.
18. Ou seja, a Ré não ilidiu a presunção de culpa que sobre si impende.
19. A douta sentença sob recurso fez errada interpretação e aplicação ao disposto, entre outros, nos artigos 342º nº 1, 798º e seguintes, mais especificamente, do art. 799º, e ainda 913º e segts todos do Código Civil.
20. A douta sentença incorre em vício ao não aplicar aqui, como lhe competia, o disposto no D.L nº 383/89 de 6 de Novembro que institui o regime da responsabilidade objectiva do produtor, sendo que a Ré, como produtora da sola, é a responsável, independentemente de culpa, pelos danos causados.
A recorrida pronunciou-se, na resposta, pela improcedência do recurso.

2. Factos provados.
O Tribunal de que provém o recurso julgou provados os factos seguintes:
2.1. A autora dedica-se ao fabrico e comercialização de calçado (A).
2.2. A autora encomendou à ré solas para calçado (B).
2.3. Na sequência da encomenda da autora à ré, esta enviou à autora, 217 pares de solas para calçado, referência 1849 e denominada "fondo col. nero op. + nero op. + suola", tendo-lhe ainda enviado, depois mais 130 pares das mesmas solas (C).
2.4. Por tal motivo, a ré emitiu e enviou à autora: -a factura n.° 77/I, datada de 29.2.2000, no valor global de 1.909.600 liras italianas; -e a factura n.° 121/I, datada de 31.3.2000, no valor global de 1.144.000 liras italianas, conforme documentos n.°s 1 e 2, cujo conteúdo foi dado por reproduzido (D).
2.5. A autora já pagou à ré estas facturas (E).
2.6. As partes não escolheram qual a lei a aplicar ao contrato (F).
2.7. A marca "B…….." é muito conhecida, devido aos seus modelos inovadores de calçado e aos elevados padrões de qualidade do produto final que comercializa (1º).
2.8. No mercado nacional o calçado de senhora comercializado pela autora é identificado e aceite pelos principais comerciantes de calçado, que a autora regularmente fornece, como uma marca que obedece a rigorosos padrões de qualidade (2°).
2.9. A encomenda da autora à ré foi feita por intermédio da sociedade "D……….., Lda.", com sede na Rua ……, ….., Santa Maria da Feira, a qual era um intermediário e angariador de clientela da ré em Portugal, sem obrigação de o fazer e sem carácter duradouro (3° e 30°).
2.10. Todos os assuntos ligados à encomenda de mercadoria à ré, bem como eventuais devoluções, reclamações ou qualquer outro assunto corrente eram tratados pela autora por intermédio da referida sociedade "D…….." (4°).
2.11. Logo que a autora recebeu da ré tais solas, começou a aplicá-las nos sapatos que comercializa sob a marca B………" (7°).
2.12. A autora aplicou as solas fornecidas pela ré nos seguintes modelos e referências de calçado: 73 pares modelo baby, refª 3760; 109 pares modelo baby, refª 3950, 8 pares modelo baby, refª 3390, 14 pares modelo baby, refª 3410, 37 pares modelo baby, ref.ª 3420, 8 pares modelo baby, refª 3400, 26 pares modelo txorica, refª 3760, 5 pares modelo txorica, refª 3420, 7 pares modelo aplic. Refª 3430, 7 pares modelo baby, refª 4540, 8 pares modelo aplic. Refª 4550, e 10 pares refª 3390, após o que os enviou aos clientes, nos termos em que estes os tinham encomendado à autora (8°).
2.13. Pouco tempo após a autora ter enviado o calçado aos seus clientes, estes começaram a receber devolvidos tais sapatos de clientes a quem, entretanto, os tinham vendido, invocando como fundamento da devolução o facto das solas dos sapatos, e após pouco tempo de uso, partirem (9°).
2.14. Tais reclamações à autora por parte de clientes seus começaram a ser frequentes e em relação a um grande número de sapatos que apresentavam sempre a sola partida (10°).
2.15. Estas reclamações começaram a afectar a imagem da marca dos sapatos (11°).
2.16. A autora solicitou a devolução do calçado junto de todos os seus clientes a quem havia fornecido calçado composto por tais solas (13°).
2.17. Logo que a autora recebeu dos seus clientes as primeiras reclamações, nos dias imediatos entrou em contacto com a sociedade "D………." (14°).
2.18. Informando-a das reclamações e pedindo-lhe para disso informar a ré, solicitando uma solução para o problema (15°).
2.19. A referida sociedade deu disso conhecimento à ré (16°).
2.20. A ré recusou aceitar qualquer responsabilidade, conforme comunicou à sociedade "D…….." e esta transmitiu à autora pelo fax junto a fls. 75 (17°).
2.21. A autora comercializara o calçado aos seguintes preços unitários: -o modelo baby, refª 3760, a Esc. 8.750$00; -o modelo baby, ref.ª 3950, a Esc. 8.750$00; -o modelo baby, ref.ª 3390, a Esc. 8.750$00; -o modelo baby, refª 3410, a Esc. 8.750$00; -o modelo baby, ref.ª 3420, a Esc. 8.750$00; -o modelo baby, ref.ª 3400, a Esc. 8.750$00; -o modelo txorica, ref.ª 3760, a Esc. 11.500$00; -o modelo txorica, ref.ª 3420, a Esc. 11.200$00; -o modelo aplic. ref.ª 3430, a Esc. 15.200$00; -o modelo baby, ref.ª 4540, a Esc. 8.750$00; -o modelo aplic. ref.ª 4550, a Esc. 12.000$00; - e a ref.ª 3390 a Esc. 9.350$00 (19°).
2.22. À autora foi devolvida parte significativa dos pares de sapatos acima referidos, tendo ela solicitado a devolução dos restantes (20°).
2.23. A autora já creditou aos clientes as quantias relativas ao preço do calçado, e comprometeu-se com os respectivos clientes a creditar-lhes o preço do calçado ainda não devolvido (21°).
2.24. O calçado devolvido à autora não tem qualquer valor comercial e destina-se a ser inutilizado, daí nada se aproveitando (22°).
2.25. Entre os materiais aplicados no calçado, a mão-de-obra utilizada e a margem de lucro que a autora auferiria, esta, globalmente, sofreu um prejuízo de valor não concretamente apurado (23°).
2.26. A autora viu-se obrigada a deixar de utilizar o tipo de sola referido naqueles modelos de calçado, nos quais tinha boas expectativas em termos comerciais (25°).
2.27. O representante da referida sociedade "D………", nas deslocações que para o efeito fez às instalações da autora, sempre reconheceu que havia problemas com as solas (27°).
2.28. A ré colocou a mercadoria à disposição da autora em Itália, tendo a autora levantado esta mercadoria através do transitário "E………, S.P.A" pela mesma contratado (28°).
2.29. O local designado para a entrega das 217 pares de solas foi a fronteira italiana e para os 130 pares foi a fábrica da ré, em Itália (29°).
2.30. Os 217 pares de solas para calçado foram entregues pela ré, em Itália, no dia 29/02/2000, ao transitário "E……..", contratado pela autora (31°).
2.31. A ré entregou ao mesmo transitário, contratado pela autora, os 130 pares de solas, no dia 31/03/2000 (32°).
2.32. A mercadoria foi levantada em Itália pelo transitário contratado pela autora, "E…….., S.P.A." (33°).
2.33. Foi este transitário quem, depois de receber, em nome e por conta da autora, a mercadoria entregue em 29/02/2000 e 31/03/2000, transportou a mesma, em nome e por conta da autora, até às respectivas instalações em Portugal (34°).
2.34. A autora apresentou reclamação directamente à ré, através de carta datada de 03/07/2000 e por ela recebida na primeira quinzena do mesmo mês, na qual referia, designadamente, que desde os últimos dias de Maio de 2000 começou a receber reclamações dos seus clientes (35°).
2.35. Para além de um deficiente fabrico das solas, outros factores poderiam contribuir para que as mesmas apresentassem os referidos problemas, designadamente uma inadequada pressão sobre o calçado ou um manuseamento incorrecto durante o processo produtivo do calçado em que foram aplicadas (36°).
2.36. Solas iguais às fornecidas à autora foram submetidas a testes de qualidade pelo conceituado instituto italiano "F………, SRL", não tendo sido detectado qualquer problema (37°).
2.37. Nos termos acordados, o pagamento seria efectuado com a chegada a Portugal das mercadorias e respectivos documentos (38°).
2.38. Em ambos os casos o pagamento das mercadorias foi efectuado em Portugal contra a entrega à autora, ainda em Portugal dessas mercadorias e respectivos documentos (39°).
2.39. Conforme é uso comercial e aconteceu no caso vertente, o transitário só estava autorizado pela ré, a proceder à entrega da mercadoria e documentos à autora, em Portugal, contra o recebimento do meio de pagamento (40°).
2.40. Os defeitos que a Autora invoca não eram visíveis ou detectáveis com a entrega das mercadorias (resposta ao artigo 39º). 2.41. E apenas se manifestaram com as primeiras utilizações que, dos sapatos, eram efectuadas pelos seus compradores (resposta ao artigo 41º).

3. Fundamentos.
3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.
Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).
Nas conclusões da sua alegação, é lícito ao recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso (artº 684 nº 2 do CPC). Porém, se tiver restringido o objecto do recurso no requerimento de interposição, não pode ampliá-lo nas conclusões[1].
A razão determinante da improcedência da acção foi o não cumprimento, pela recorrente, do ónus da prova relativo à existência do defeito dos bens – solas para calçado – que lhe foram vendidos pela recorrida. A recorrente discorda deste julgamento, sustentando, veementemente, que fez a prova da existência daquele facto.
Nestas condições, tendo em conta o conteúdo da decisão impugnada e das alegações de ambas as partes, a questão concreta controversa que o acórdão deve resolver é a de saber se, realmente, a recorrente demonstrou que a recorrida lhe prestou coisas defeituosas e, correspondentemente, se a decisão impugnada deve ser revogada e substituída por outra que, julgando a acção procedente, condene a recorrida a indemnizar a recorrente do dano, patrimonial e não patrimonial, suportada pela última.
A resolução deste problema exige que toquem, ainda que levemente, os problemas da natureza jurídica do acordo de vontades concluído entre a recorrente e a recorrida, e as consequências jurídicas que se associam ao mau cumprimento ou ao cumprimento defeituoso da prestação que por força desse acordo, a última se encontra adstrita.

3.2. Qualificação do acordo de vontades concluído entre a recorrente autor e a recorrida.
Desde que a recorrente entregou à recorrente, por encomenda desta, mediante um preço, uma dada quantidade de bens móveis – 347 pares de solas para sapatos - não oferece qualquer dúvida que entre aquela e esta foi celebrado um típico contrato de compra e venda (artºs 874 e 875 do Código Civil). E de um típico contrato de compra e venda comercial, dado que a aquisição daquelas coisas foi feita por um empresário para um uso empresarial: a autora comprou aquelas coisas para as aplicar nos produtos – calçado – que fabrica e comercializa (artº 2, 2º parte, do Código Comercial).
Do contrato de compra e venda emergem no Direito Português, três efeitos primordiais: o efeito translativo do direito; a obrigação de entrega da coisa e a obrigação de pagamento do preço (artºs 408 nº 1 e 879 do Código Civil). Não oferece dúvida, a qualificação deste contrato como bivinculante, sinalagmático e oneroso: do contrato derivam obrigações para ambas as partes, como contrapartida uma das outras e ambas suportando esforço económico.
A distinção mais importante entre as modalidades do contrato de compra e venda é que cinde a compra e venda de coisa, quer dizer, do direito de propriedade sobre a coisa – da compra e venda e direito. No caso, estamos nitidamente perante a primeira modalidade.
As obrigações de entrega da coisa, a cargo do vendedor, e de pagamento do preço, a cargo do comprador, são obrigações simples. Mas sendo obrigações, elas surgem sempre acompanhadas de deveres acessórios.
Entre os deveres acessórios específicos da compra e venda e que também derivam de lei expressa, contam-se, desde logo, os deveres legais atinentes á responsabilidade por vícios ou defeitos da coisa.
O vendedor, adstrito ao dever de entregar a coisa objecto mediato do contrato, pode violar esse seu dever de prestar por uma de duas formas: ou pelo puro e simples incumprimento ou impossibilitando a prestação (artºs 798 e 801 nº 1 do Código Civil). Existe, no entanto, uma terceira possibilidade, que, relativamente ao contrato de compra e venda, é objecto de previsão específica: a de ter havido um cumprimento defeituoso ou inexacto (artº 913 e ss. do Código Civil). O vendedor não está só adstrito à obrigação de entregar certa coisa; ele encontra-se ainda vinculado entregar uma coisa isenta de vícios e conforme com o convencionado, quer dizer, sem defeitos (artº 913 Código Civil).
Coisa defeituosa é, portanto, aquela que tiver um vício ou se mostrar desconforme com aquilo que foi acordado. O vício corresponde a imperfeições relativamente à qualidade normal de coisas daquele tipo; a desconformidade representa uma discordância com respeito a fim acordado[2].
Quando não houver acordo das partes acerca do fim a que a coisa se destina, atende-se à função normal de coisas da mesma categoria (artº 913 nº 2 do Código Civil). Há, portanto, um padrão normal relativamente à função de cada coisa: é com base nesse padrão que se aprecia a existência de vício. Por exemplo, pressupõe-se que na casa vendida não haja infiltrações de água ou que o tractor agrícola possa ser utilizado para arar.
O conceito de defeito abrange, assim, quatro categorias: vícios que desvalorizam a coisa; vícios que impedem a realização do fim a que a coisa se destina; falta de qualidades asseguradas pelo vendedor; falta de qualidades necessárias para a realização do fim a que a coisa se destina. Numa palavra: diz-se defeituosa a coisa imprópria para o seu uso concreto a que é destinada contratualmente – função concreta programada pelas partes – ou para a função normal das coisas da mesma categoria ou tipo, se do contrato não resultar o fim a que se destina[3].

3.3. Consequências jurídicas do cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda.
A lei assinala à prestação de coisa defeituosa, várias consequências jurídicas que assentam num plano comum: a culpa, ainda que meramente presumida do vendedor: a responsabilidade deste pelo cumprimento defeituoso é necessariamente subjectiva (artº 799 nº 1 do Código Civil)[4].
Assim e em primeiro lugar, faculta-se ao comprador a supressão do contrato, fonte de qualquer daquelas obrigações (artº 905, ex-vi artº 913 nº 1 do Código Civil). E supressão não pela da anulação do contrato, mas através da resolução dele.
Efectivamente, apesar da remissão que é feita para o regime da venda de bens onerados, a venda de coisa defeituosa faculta ao comprador, não a anulação do contrato – mas a sua resolução (artº 905, ex-vi, artº 913 do Código Civil)[5].
Em segundo lugar, reconhece-se ao comprador a possibilidade de exigir a reparação do defeito, caso esta seja possível, ou a substituição da coisa defeituosa, naturalmente se esta for fungível e se a entrega da coisa de coisa substitutiva não corresponder a uma prestação excessivamente onerosa para o vendedor, atento o proveito do comprador (artºs 914 e 921 do Código Civil); em terceiro lugar, atribui-se ao comprador o direito de reclamar a redução do preço convencionado (artº 911 ex-vi artº 913 nº 1 do Código Civil; por último, concede-se ao comprador a faculdade de pedir uma indemnização (artº 911, ex-vi artº 913 do Código Civil).
O direito de indemnização reconhecido ao comprador de coisa defeituosa assenta necessariamente na culpa do vendedor (artº 908, ex-vi artº 913 do Código Civil). Ao contrário do que sucede na venda de coisas oneradas, na venda de coisas defeituosas, só foi estabelecida uma responsabilidade subjectiva (artº 915 do Código Civil). Esta obrigação de indemnização não é independente das demais pretensões do devedor, estando, pelo contrário, sujeita aos mesmos pressupostos e é complementar dessas pretensões. Ela não pode ser pedida em substituição de qualquer dos outros pedidos - mas é complemento deles, com vista a reparar o prejuízo excedente.
Da prestação de coisa defeituosa podem emergir danos na própria coisa vendida (danos circa rem) – por exemplo, diminuição do seu valor ou da utilidade – bem como danos pessoais sofridos pelo comprador ou ocasionados no seu património (dano extra rem)[6]. Quando a prestação defeituosa causa, em simultâneo, danos dessas duas espécies, o comprador tem direito a indemnização, mas há concurso de normas, embora não de responsabilidades.
Os diversos meios jurídicos facultados ao comprador no caso de prestação de coisa defeituosa, não podem ser exercidos em alternativa, estando entre si numa ordem lógica: em primeiro lugar o vendedor está adstrito a eliminação do defeito da coisa; depois à sua substituição; frustrando-se estas pretensões, o comprador pode reclamar a redução do preço e, por fim, a extinção do contrato.
Apesar de apenas a propósito do contrato de empreitada a lei se referir aos defeitos ocultos e aos defeitos aparentes ou reconhecíveis, esta distinção deve valer também para a compra e venda, desde que se admita, como se deve – sob pena de se premiar a negligência do comprador - o dever deste de proceder, no momento da entrega da coisa, á verificação do defeito (artº 1218 do Código Civil)[7].
No contexto da compra e venda, defeito oculto é, portanto, aquele que, sendo desconhecido do comprador pode ser legitimamente ignorado, pois não era detectável através de um exame diligente, i.e. não era reconhecível pelo bonus pater famílias[8]; defeito aparente é aquele que é detectável mediante um exame diligente, que o comprador se poderia ter apercebido usando de normal diligência[9].
Maneira que o defeito da coisa prestada só faculta ao comprador os meios jurídicos enunciados se o desconhecer sem culpa. Por outras palavras: a responsabilidade emergente de coisas defeituosas só existe em caso de defeito oculto.
Aos vícios supervenientes, i.e., sobrevindos após a celebração do contrato de compra e venda e antes da entrega da coisa, como de resto, à venda de coisa futura ou de coisa genérica, manda a lei aplicar as regras relativas ao não cumprimento das obrigações (artº 918 do Código Civil). Esta estatuição mostra que lei reporta a garantia edilícia apenas aos vícios preexistentes ou contemporâneos da conclusão do contrato e tem directamente em vista a venda de coisa específica, certa e determinada[10].
A distribuição do ónus da prova quando à existência e à gravidade do defeito, observa as regras gerais: é o comprador que está adstrito à demonstração de qualquer daqueles factos (artº 342 nº 1 do Código Civil)[11].
A exposição precedente teve por objecto o regime clássico ou comum da responsabilidade do vendedor, tal como surge recortado no Código Civil. Há, porém, que ponderar, entre outros, o regime especial da responsabilidade do produtor, que coexiste com aquela responsabilidade contratual (artº 13 do DL nº 389/89, de 6 de Novembro)[12].
A responsabilidade do produtor caracteriza-se, desde logo, por esta nota fundamental: trata-se de uma responsabilidade puramente objectiva. O produtor, declara terminantemente a lei, responde, independentemente de culpa, pelos danos causados pelos defeitos dos produtos que põe em circulação (artº 1º do DL nº 389/89, de 6 de Novembro).
A natureza objectiva da responsabilidade do produtor não produz qualquer refracção às regras gerais do ónus da prova: é ao lesado pelo produto defeituoso que tem de provar, além do dano, o defeito – e o nexo causal entre um e outro[13]. A única coisa que o lesado não terá de provar é a culpa ou sequer a ilicitude da conduta do produtor, dado que nem uma nem outra são elementos constitutivos da responsabilidade objectiva que o vulnera o último.
Esta responsabilidade objectiva vulnera o produtor. Dada, naturalmente, a sua importância, a lei teve o cuidado de dar uma noção de produtor (artº 2 nºs 1 e 2 do DL nº 383/89, de 6 de Novembro).
Trata-se de uma definição ampla que compreende, no seu perímetro, o produtor real ou produtor em sentido estrito, i.e., toda a pessoa, física ou meramente jurídica que, sob a sua responsabilidade, participa na criação do produto, seja do produto acabado, de uma parte componente ou da matéria-prima (artº 2 nº 1, 1ª parte, do DL nº 383/89, de 6 de Novembro); o produtor aparente ou quase-produtor, quer dizer, aquele que se apresente como tal pela oposição no produto do seu nome, marca ou outro sinal distintivo (artº 2 nº 1, 2ª parte, do DL nº 383/89, de 6 de Novembro); o produtor presumido, entendendo-se como tal o produtor que, na Comunidade Económica Europeia – ou numa leitura actualista, na União Europeia – e no exercício da sua actividade comercial, importe do exterior da mesma produtos para venda, aluguer, locação financeira ou outra qualquer forma de distribuição (artº 2 nº 2 b) do DL nº 383/89, de 6 de Novembro) e, finalmente, o fornecedor de produto anónimo, i.e., qualquer fornecedor de produto cujo produtor comunitário ou importador não esteja identificado, salvo se, notificado por escrito, comunicar ao lesado, no prazo de três meses, igualmente por escrito, a identidade de um ou de outro, ou a de algum fornecedor precedente (artº 2 nº 2, b) do DL nº 383/89, de 6 de Novembro)[14].
Produto é, no contexto da responsabilidade civil do produtor, qualquer coisa móvel, ainda que incorporada noutra coisa móvel ou imóvel, sendo indiferente que se trata de bens de consumo ou de bens duradouros ou que as coisas, com a sua incorporação, percam ou não a sua autonomia (artº 3 nº 1 do DL nº 383/89, de 6 de Novembro). Cabem, portanto, aqui, todos os tipos de bens produzidos – com excepção dos imóveis – independentemente de se tratar de bens de consumo – v.g., electrodomésticos, brinquedos – bens de produção – v.g. materiais de construção – bens industriais – v.g. máquinas – ou até bens artesanais.
Por defeito entende-se, neste domínio, a falta de segurança legitimamente esperada - e não a falta de conformidade ou qualidade, a inaptidão ou inidoneidade da coisa para a realização do fim a que se destina[15] (artº 4 nº 1 do DL nº 383/89, de 6 de Novembro).
Não há assim uma rigorosa coincidência entre a conformidade ou qualidade do produto – em que assenta a garantia edilícia – e a segurança do produto: este último conceito é nitidamente mais compreensivo, o que permite a extensão da tutela disponibilizada pela responsabilidade civil do produtor a todos os lesados por produtos que causam danos utilizados na específica função para que foram concebidos e fabricados. Em contrapartida, o produto pode ser impróprio para o fim a que se destina - e, portanto, desconforme com o contrato – e, não obstante, não ser inseguro.
Esta diferença mais não reflecte que a diversidade de fundamentos finais da falta de segurança do produto e da falta de conformidade ou idoneidade do fim a que esse mesmo produto se destina: no primeiro o objectivo é a protecção da vida e da integridade física e psíquica das pessoas; no segundo visa-se, limitadamente, garantir o equilíbrio entre a prestação e a contraprestação, subjacente ao cumprimento pontual do contrato, através da realização de uma prestação de coisa com as qualidades e características adequadas ao fim a que se destina, de harmonia com o convencionado.
Produto defeituoso é, portanto, o produto que, no momento da sua entrada em circulação e de harmonia com a utilização que dele possa razoavelmente ser feita, comporta um grau de insegurança ou perigosidade com que legitimamente se não pode contar, compreendendo quer a que resulta de vícios intrínsecos – defeitos de concepção e de fabrico - como a que deriva de vícios extrínsecos – defeitos de informação.
Por último, deve ter-se presente que nem todos os danos causados por defeitos de segurança de um produto são ressarcíveis.
O produtor apenas está vinculado a reparar os danos resultantes de morte ou lesão pessoal e os danos diversos em coisas diversas do produto defeituoso, desde que seja normalmente destinada ao uso ou consumo privado e o lesado lhe tenha dado principalmente esse destino (artº 8 do DL nº 383/89, de 6 de Novembro).
No caso de morte ou lesão pessoal – seja da integridade física ou psíquica - são ressarcíveis todos os danos sejam patrimoniais ou não patrimoniais (artº 496 do Código Civil). Na determinação da extensão dos danos, do quantum debeatur, valem, por inteiro, as regras gerais de direito comum (artº 566 nº 2 do Código Civil).
No tocante aos danos causados em coisas, apenas são reparáveis os danos causados em coisa diversa do produto defeituoso, desde que normalmente destinado ao uso ou consumo privado e o lesado lhe tenha dado principalmente esse destino, com dedução de uma franquia de 500,00€ (artº 8 nº 1 e 9 do DL nº 383/89, de 6 de Novembro)[16]. Excluem-se, portanto, do perímetro da reparabilidade, os danos sofridos no proprio produto defeituoso, os danos ulteriores que possam resultar da destruição das coisas de uso privado e os danos patrimoniais puros, i.e., os danos que são autónomos e independentes da violação de direitos absolutos.
O contraste entre os danos da morte ou na lesão pessoal e a danificação de coisas revela, no plano subjectivo, esta diferença fundamental: ao passo que no plano danos pessoais a tutela é disponibilizada a qualquer pessoa, ainda que seja um profissional que utiliza o produto no exercício da sua profissão, no domínio dos danos em coisas, apenas se protege o consumidor em sentido estrito, i.e., aquele utilizava a coisa destruída ou danificada pelo produto defeituoso, para um fim privado, pessoal ou doméstico e não para um fim profissional (artº 2 nº 1 da Lei nº 24/96, de 31 de Julho).
Por último, deve sublinhar-se que esta responsabilidade civil do produtor não afasta a responsabilidade decorrente de outras disposições legais (artº 13 do DL nº 383/89, de 6 de Novembro). A responsabilidade civil do produtor concorre cumulativamente com outras fontes de responsabilidade, permitindo ao lesado optar por outro ou outros regimes de responsabilidades porventura mais favoráveis.
Este viaticum habilita-nos a decidir a espinhosa questão que constitui objecto do recurso.

3.4. Concretização.
O sentido da decisão depende dos factos fornecidos pelo processo – com consideração do princípio da aquisição processual – e da análise do cumprimento do ónus da prova (artºs 516 do CPC e 346, 2ª parte do Código Civil).
Como já se notou, na espécie do recurso o motivo determinante da improcedência foi o não cumprimento pela recorrente do ónus de demonstrar que os bens fornecidos pela recorrida tinham um defeito.
É exacto que se demonstrou que as solas fornecidas pela recorrida, que a recorrente aplicou no calçado que fabrica, após pouco tempo de uso se partiam. Todavia, não o é menos que não está demonstrado que a etiologia da fractura das solas radique em qualquer vício material ou físico, i.e., em defeito intrínseco ao seu estado material e, portanto, que a coisa entregue pela recorrida, não seja conforme ao contrato, por não corresponder às características convencionadas ou legitimamente esperadas pela recorrente.
Esta conclusão decorre, de um aspecto, do facto de as solas entregues pela recorrida terem sido submetidas a testes de qualidade por um conceituado instituto italiano, não tendo sido detectado qualquer problema, e de outro, da resposta negativa dada pelo tribunal da audiência ao enunciado de facto no qual se perguntava se as solas se partiram devido ao deficiente fabrico das mesmas.
A coisa prestada pela recorrida é um bem de produção, dado que não tinha por finalidade o seu uso isolado, mas antes a sua incorporação num outro bem fabricado pela recorrente. Esta circunstância deixou a dúvida irresolúvel – que a decisão da matéria de facto reflecte – relativamente ao motivo da quebra das solas, à causa próxima dessa fractura, quando o produto acabado em que foram incorporadas foi sujeito a uso a que se destinava.
Os deveres de prestar que para o vendedor emergem do contrato de compra a venda seguem, num ponto fundamental, o regime geral das obrigações: em caso de violação, funciona também relativamente ele a fundamental presunção de culpa do devedor e, ocorrendo danos, dá lugar a pretensões de indemnização (artº 799º nº 1 do Código Civil). Na ilicitude contratual, o princípio é, realmente, a presunção de culpa do devedor remisso. Trata-se, naturalmente, de uma presunção iuris tantum, dado que se limita a inverter o ónus da prova, fazendo recair sobre o devedor o encargo de a afastar mediante prova do contrário (artº 350º nº 2, 1ª parte, do Código Civil).
Simplesmente, só quando se encontra reconhecida falta de cumprimento de uma obrigação ou o seu cumprimento imperfeito ou defeituoso é que o devedor fica adstrito ao ónus de provar a falta de culpa[17]. Dito doutro modo, a culpa do devedor só se presume, assente a ilicitude da sua conduta na realização da prestação.
No caso, a recorrente não se libertou do espinhoso ónus de provar que a coisa prestada pela recorrida se encontrava ferida com qualquer vício intrínseco – v.g. defeito de fabrico - que a tornou irremediavelmente inadequada para a finalidade que lhe é inerente. Ora desde que a recorrente não demonstrou a desconformidade da prestação realizada pela recorrida, i.e., que os bens entregues não possuíam as características acordadas – v.g. de qualidade – nem serviam as finalidades especificas a que se destinavam ou não eram funcionalmente adequadas às utilizações de coisas idênticas, segue-se que não se coloca o problema da culpa, ainda que meramente presuntiva, da apelada na realização da prestação e, portanto, a responsabilidade ex contractu da última.
Prevenindo a dificuldade, a recorrente sustenta que a sentença apelada incorreu também num erro de qualificação ao não escolher, para enquadrar o caso, as normas relativas à responsabilidade – objectiva – do produtor.
É claro que o tribunal goza, na indagação, interpretação e aplicação das regras de direito de inteira liberdade, embora esteja adstrito, no exercício dessa liberdade, a um dever de consulta sempre que decida enquadrar juridicamente a situação de forma diferente daquela que é perspectivada pelas partes (artºs 3 nº 3 e 664 do CPC).
No caso, é verdade que a sentença apelada se limitou a aferir o amparo da pretensão material da recorrente a partir da garantia edilícia não tendo ponderado da procedência dessa pretensão por aplicação do regime da responsabilidade do produtor. A explicação para esta omissão radica, decerto, na patente inaplicabilidade, no caso, das normas jurídicas correspondentes.
Aquela peculiar responsabilidade exige, como a responsabilidade contratual comum, a prova deste facto fundamental: o defeito. E a recorrente, como já se sublinhou, não fez – como lhe competia - essa prova.
Mas vamos que a recorrente tinha feito a prova de que, realmente, a coisa prestada pela recorrida, padecia, efectivamente de um defeito, por exemplo, de fabrico. Ainda assim, não seria possível vincular a recorrida, com fundamento na responsabilidade do produtor, ao dever de indemnizar cujo cumprimento lhe é exigido pela apelante. Por várias razões, de resto.
Em primeiro lugar, porque a adstrição do produtor ao dever de reparar o dano só existe se o defeito do produto que fabricou ou colocou em circulação revestir uma feição particular: afectar a segurança com que legitimamente se pode contar. Ora, do facto de um produto patentear um defeito não se segue, como corolário que não possa ser recusado, que se trate de um produto inseguro. Como se mostrou, um produto pode ser contratualmente desconforme e, não obstante, não carecer de segurança, por não representar um fonte de perigo para a pessoa e bens do adquirente e de terceiros. Pense-se, por exemplo, na televisão que não funciona. No caso, mesmo que se devesse admitir a falta de conformidade da coisa prestada pela apelada com o concreto, a matéria de facto não evidencia, de todo, a falta se segurança daquele bem.
Depois, porque os danos cujo ressarcimento é pedido não se compreendem no perímetro daqueles cuja reparação é assegurada pelo esquema da responsabilidade civil do produtor. Por definição – dado que a recorrente é uma sociedade comercial e, consequentemente, uma pessoa meramente jurídica, é claro que não faz o mínimo sentido falar relativamente a ela do dano morte ou de dano pessoal, i.e., de dano na sua integridade física ou psíquica (artº 8, 1ª parte, do DL nº 383/89, de 6 de Novembro). De outro aspecto, dado que os bens fornecidos pela recorrida fora utilizados na prossecução do seu objecto social – fabrico de calçado – é patente que mesmo os danos sofridos em coisa diversa daquela que lhe foi prestada não são reparáveis com fundamento naquela espécie de responsabilidade: o direito ao ressarcimento deste tipo de danos apenas é reconhecido ao consumidor, stricto sensu (artº 8, 2ª parte, do DL nº 383/89, de 6 de Novembro).
Nestas condições, há que assentar – como fez a sentença impugnada – em que não estão adquiridos para o processo todos os factos que conduzem à aplicação de uma norma jurídica que favoreça a recorrente, parte onerada com a prova. O proferimento de uma decisão desfavorável a essa parte é, por isso, meramente consequencial.
O recurso não deve, pois, ser provido.
As custas do recurso deverão ser satisfeitas pela parte sucumbente: a apelante (artº 446 nºs 1 e 2 do CPC).

4. Decisão.
Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.
Custas pela recorrente.

10.07.14
Henrique Ataíde Rosa Antunes
Ana Lucinda Mendes Cabral
Maria do Carmo Domingues
_______________
[1] Acs. do STJ de 16.10.86, BMJ nº 360, pág. 534 e da RC de 23.03.96, CJ, 96, II, pág.24.
[2] Pedro Romano Martinez, Cumprimento Defeituoso, em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, Almedina, Coimbra, 1994, pág. 185. É portanto, à luz do fim da coisa prestada pelas partes – concepção subjectivo-concreta de defeito – ou, na sua falta, à luz do uso corrente, habitual – noção objectiva do defeito – que se aprecia a existência do vício. Cfr. João Calvão da Silva, Estudos Jurídicos (Pareceres), Almedina, Coimbra, 2001, págs. 335 e 336.
[3] Calvão da Silva, Responsabilidade Civil do Produtor, Almedina, Coimbra, 1990, págs. 189 e 190, e Compra e Venda de Coisas Defeituosas, Almedina, Coimbra, 2001, pág. 41.
[4] Ressalva-se, evidentemente, a responsabilidade sem culpa do vendedor, se for dada garantia de bom funcionamento (artº 921 do Código Civil). Mas esta responsabilidade objectiva não vale para todas as pretensões edilícias – mas apenas para os deveres de reparar a coisa e de proceder à sua substituição.
[5] Pedro Romano Martinez, Contratos em Especial, UCP, Lisboa, 1996, págs. 129 e ss. e Da Cessação do Contrato, Almedina, Coimbra, 2005, págs. 264 e 265. Quanto a este ponto, a jurisprudência é acorde no sentido de aplicar o regime do incumprimento e não o da anulabilidade. É, possível contudo, estabelecer um distinguo, entre as decisões que, aludindo à anulação com base no erro, não retiram qualquer conclusão do regime do erro – e aquelas que sustentam, peremptoriamente, que o caso não é de erro, mas de incumprimento. Para ilustrar a primeira daquelas posições, cfr., v.g., os Acs. do STJ de 25.02.93, CJ, STJ, I, pág. 54, da RL de 30.07.81, CJ, VI, IV, pág. 92, e de 27.05.93, CJ, XVIII, III, pág. 116; como exemplo da segunda podem apontar-se, v.g., os Acs. do STJ de 21.05.81, BMJ nº 307, pág. 250, de 03.04.90, BMJ nº 396, pág. 376, de 26.09.95, CJ, STJ, II, pág. 143 e da RP de 23.05.93, CJ, XVIII, III, pág. 201 e de 05.05.97, CJ, XIII, III, pág. 179.
[6] Pedro Romano Martinez, Cumprimento Defeituoso, cit., pág. 260 e ss. e Acs. RC de 31.01.94, CJ, XIX, III, pág. 22, da RL de 6.12.88, CJ, XIII, V, pág. 114, RE de 31.01.91, CJ, XVI, pág. 292, de 20.02.92, CJ XVII, I, pág. 237 e STJ de 31.5.94, BMJ nº 356, pág. 349.
[7] Pedro Romano Martinez, Compra e Venda e Empreitada, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil, e dos 25 anos da Reforma de 1977, vol. III, Coimbra Editora, págs. 246 e 247 e Contratos em Especial, UCP, Lisboa, 1996, pág. 128 e João Calvão da Silva, cit. pág. 336;
[8] Ac. da RL de 21.02.91, CJ, XVI, I, pág. 161
[9] Ac. da RP de 17.11.92, CJ, XVIII, V, pág. 224.
[10] Neste sentido, João Calvão da Silva, Compra e Venda de Coisas Defeituosas, Conformidade e Segurança. Almedina, Coimbra, 2001, págs. 82 a 84. Mas o ponto é duvidoso. Cfr., no sentido da aplicação, no tocante às situações de defeito superveniente, as regras específicas da venda de coisas defeituosas – e, portanto, propondo uma interpretação restritiva do preceito no sentido de que se pretendeu unicamente esclarecer, que no caso previsto, têm aplicação as regras gerais relativas à transferência da propriedade e do risco - Pedro Romano Martinez, Cumprimento Defeituoso, cit., págs. 214 e 215 e 224 a 227.
[11] Acs. da RE de 23.01.97 e do STJ de 03.03.98 e 20.10.09, www.dgsi.pt. e Nuno Manuel Pinto de Oliveira, Contrato de Compra e Venda, Noções Fundamentais, Almedina, Coimbra, 2007, pág. 294.
[12] Com as modificações que lhe foram introduzidas pelo DL nº 131/2001, de 24 de Abril. Note-se que, tendo os factos invocados pela recorrente como causa petendi ocorrido em data anterior a 2001, de harmonia com os princípios gerais de aplicação na lei no tempo - por força dos quais, o facto lesivo, e os seus efeitos são regulados pela lei vigente à data da sua ocorrência (tempus regit factum), o regime da responsabilidade civil do produtor aplicável no caso seria o decorrente do DL nº 383/89, de 6 de Novembro, antes das modificações a que foi sujeito pelo DL nº 131/2001, de 24 de Abril. Cfr., João Baptista Machado, Sobre a Aplicação no Tempo do Novo Código Civil, Almedina, Coimbra, 1968, págs. 99 e 100.
[13] João Calvão da Silva, Responsabilidade Civil do Produtor, Almedina, Coimbra, 1998, págs. 495 e 496, e Compra e Venda de Coisas Defeituosas, Almedina, Coimbra, 2001, pág. 187, e Acs. do STJ de 05.03.96, CJ, STJ, I, pág. 119 e de 25.03.10, www.dgsi.pt, da RC de 08.04.97, CJ, II, pág. 38, e de 06.03.01, CJ, II, pág. 16 e da RL de 23.05.95, CJ, III, pág. 113.
[14] José A. Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, Coimbra, 2009, págs. 279 e 280. Ao contrário do que sucede com o produtor real, com o produtor aparente e com o produtor presumido, a responsabilidade do fornecedor de produto anónimo é meramente subsidiária, visto que este último só responde se não indicar ao lesado a identidade do produtor ou de qualquer outro distribuidor que o proceda na cadeia comercial.
[15] É também sobre a falta de segurança com que razoavelmente se pode contar que assenta a noção de defeito contida no artº 2 nº 1 b) do DL nº 311/95, de 20 de Novembro – entretanto alterado pelo DL nº 16/2000, de 29 de Fevereiro – que transpôs para a nossa ordem jurídica a Directa 02/59/CEE, de 29 de Junho de 1992, relativa à segurança geral dos produtos.
[16] Ac. do STJ de 27.04.04, www.dgsi.pt. Na redacção originária deste preceito, esta franquia era apenas de 70 000$00. Em contrapartida, estabelecia-se como limite máximo global de responsabilidade a quantia de 10 000 milhões de escudos.
[17] Acs. do STJ de 29.09.98, CJ, STJ, VI, III, pág. 44, e de 22.04.97, CJ, STJ, V, II, pág. 70.