Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
307/21.3GALD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO VAZ PATO
Descritores: PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
PRAZO DE APRESENTAÇÃO DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
INTEGRAÇÃO DE LACUNAS
Nº do Documento: RP20230621307/21.3GALD.P1
Data do Acordão: 06/21/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELA ASSISTENTE.
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I – Quando foi deduzida acusação pela prática de crime de ofensa à integridade física simples; foi requerida pela assistente a abertura de instrução com base no artigo 287.º, n.º 1, b), do Código de Processo Penal, por se entender que o arguido deveria ser pronunciado por outros factos que integrariam a prática de crime de violência doméstica, e não apenas a prática de crime de ofensa à integridade física; mas este vem a ser pronunciado apenas pelos factos que constavam da acusação (embora qualificados como crime de prática de crime de ofensa à integridade física grave), justifica-se que o prazo de dedução do pedido de indemnização civil relativo aos factos constantes da acusação se conte a partir da notificação da pronúncia, e não a partir da notificação da acusação.
II - No momento em que a assistente foi notificada da acusação, ela não poderia, obviamente, prever se a instrução que pretendia requerer levaria, ou não, à pronúncia pelos novos factos que vinha invocar e que naturalmente pretendia que servissem de base ao pedido de indemnização civil por si formulado; de modo algum se justificaria exigir dela que nessa fase antecipadamente renunciasse a tal pedido com base nesses factos novos, ou se visse na alternativa de, não renunciando antecipadamente ao pedido com base nesses factos novos, corresse o risco de deixar passar o prazo de dedução de qualquer pedido de indemnização civil se a instrução não viesse a conduzir à pronúncia com base nesses factos novos.
III - Nesta situação, a possibilidade de dedução do pedido de indemnização civil no prazo de 20 dias a partir da notificação do despacho de pronúncia decorrerá já não da interpretação extensiva da última parte do n.º 3 do artigo 77.º do Código de Processo Penal (será difícil dizer que neste caso não houve acusação quanto aos factos que constam da pronúncia), mas da integração de uma lacuna (pois, claramente, a situação não foi prevista pelo legislador), de acordo com os princípios do processo penal e a coerência do sistema, à luz do disposto no artigo 4.º do mesmo Código.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 307/21.3GALD. P1


Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto


I – A assistente e demandante AA veio interpor recurso do douto despacho do Juiz 2 do Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia do Tribunal Judicial da Comarca do Porto que indeferiu liminarmente, por intempestivo, o pedido de indemnização civil por ela formulado.

São as seguintes as conclusões da motivação do recurso:
«I – A decisão recorrida viola os ns 2 e 3 do art. 77 do CPP. Pois esses normativos estabelecem prazo para o PIC, a partir do despacho da acusação ou da pronunciação, se não houver despacho e acusação.
II – Igualmente, o despacho de acusação não introduz o processo em tribunal, ou na fase de julgamento, não dando origem à Instância Crime se estiver em apreciação em Instrução Criminal por RAI do assistente que pretenda ver o arguido acusado por factos diferentes dos constantes da acusação pública e por integração jurídica diferente da constante da acusação pública.
III – O assistente não pode, por ser juridicamente inadmissível, impugnar a acusação pública, quer quanto aos factos, quer quanto à integração jurídica, em RAI, e concordar com ela, subscrevendo-a ou aderindo, ou reproduzindo os factos como fundamento de Pedido de Indemnização Civil;
IV - O assistente não pode acusar por factos diferentes, nem por integração jurídica diferente da acusação do MP, pelo que o seu RAI, embora tenha de ter a estrutura de uma acusação, não introduz o processo em Juízo de Instrução Criminal;
V - O que introduz o processo em Instrução Criminal de julgamento é a Decisão Instrutória que pronuncia o arguido;
VI – Os nºs 2 e 3 do artigo 77º do CPP têm de ser interpretados no sentido de que, deduzido RAI pelo assistente, ou pessoa com legitimidade para se constituir assistente, e que peça a pronúncia do arguido por factos diferentes e subsunção jurídica diferente da constante na acusação pública, o prazo para deduzir o PIC conta-se a partir da pronúncia feita em Decisão Instrutória;
VII – A decisão recorrida violou os artigos 72º e 77º, nºs 2 e 3, do CPP, e 119º do CP.»

Não foi apresentada resposta à motivação do recurso.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.


II – A questão que importa decidir é, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, a de saber se deve, ou não, ser rejeitado, por intempestivo, o pedido de indemnização civil formulado pela recorrente.


III – É o seguinte o teor do douto despacho recorrido:

«Em 13.01.2023 (cf. fls. 247 e ss.) veio a assistente AA deduzir pedido de indemnização civil contra o arguido, aderindo ao aos factos imputados ao arguido na acusação pública.
No dia 22.03.2022, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido, imputando-lhe a prática de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143º do Código Penal.
O arguido foi notificado da acusação, por via postal simples com prova de depósito remetida em 28.03.2022, ocorrendo o depósito da carta no dia 30.03.2022.
A ora assistente foi notificada da acusação, por via postal simples com prova de depósito remetida em 28.03.2022, ocorrendo o depósito da carta no dia 30.03.2022.
A notificação remetida apresentava o seguinte a menção que a aqui assistente disponha de 20 dias, contados a partir da notificação, para requerer, caso queira, a abertura da instrução, nos termos do disposto no art.º 287º, n.º 1, al. b) do mesmo diploma, bem como podia ainda no mesmo prazo, deduzir, querendo, o pedido de indemnização civil em requerimento articulado, nos termos do disposto no art.º 77º, n.º 2, do C. P. Penal, caso tenha manifestado nos autos tal propósito (artº 75º, nº 2 do mesmo diploma legal).
Em 29.04.2022 a aqui assistente requereu a abertura de instrução propugnado pela pronúncia do arguido pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, al. b) do Código Penal.
Em 05.01.2023 foi proferido despacho de pronúncia do arguido, pelos mesmíssimos factos constantes da acusação pública deduzida em 22.03.2022, contudo imputando-lhe a prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, n.º 1, 145º, n.º 1, al. a) e 2, por referência ao artigo 132º, n.º 2, al. b) todos do Código Penal.
Cumpre apreciar.
Nos termos do disposto no artigo 77.º, n.º 2, do Código de Processo Penal: «O lesado que tiver manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização civil, nos termos do n.º 2 do artigo 75º, é notificado do despacho de acusação, ou, não o havendo, do despacho de pronúncia, se a ela houver lugar, para, querendo, deduzir o pedido, em requerimento articulado, no prazo de 20 dias.».
Por sua banda, preceitua o artigo 77.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, que prevê que: «Se não tiver manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização ou se não tiver sido notificado nos termos do número anterior, o lesado pode deduzir o pedido até 20 dias depois de ao arguido ser notificado o despacho de acusação ou, se não o houver, o despacho de pronúncia.».
In casu, a assistente (à data em que o Ministério Público deduziu a acusação «ainda ofendida) deveria ter apresentado o pedido de indemnização civil contra o arguido, quanto aos factos constantes da acusação pública, no prazo de 20 dias a contar da notificação que, tanto a ela como ao seu ilustre mandatário, foi feita da acusação deduzida pelo Ministério Público.
Ora, no caso dos autos, tendo-se efectuado a notificação da acusação à ora assistente, no dia 04.04.2022 (cfr. artigo 113º, n.º 2 Código de Processo Penal), pelo que quando foi apresentado, no dia 13.01.2023, já o pedido de indemnização civil era extemporâneo, sendo assim indeferido liminarmente.»

IV – Cumpre decidir.
A questão que importa decidir diz respeito à interpretação do disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 77.º do Código de Processo Penal, disposições relativas ao prazo de dedução do pedido de indemnização civil, no caso em que (como sucedeu nos presentes autos) o assistente e demandante requereu, ao abrigo do disposto no artigo 287.º. n.º 1, b), do mesmo Código, a abertura de instrução relativamente a factos que poderiam constitui uma alteração substancial em relação aos que constam da acusação pública (no caso em apreço, por factos que consubstanciariam um crime de violência doméstica quando foi deduzida acusação pública pela prática de crime de ofensa à integridade física simples).
Estatui o referido n.º 2 do artigo 77.º do Código de Processo Penal: «O lesado que tiver manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização civil, nos termos do n.º 2 do artigo 75º, é notificado do despacho de acusação, ou, não o havendo, do despacho de pronúncia, se a ela houver lugar, para, querendo, deduzir o pedido, em requerimento articulado, no prazo de 20 dias». E estatui o n.º 3 do mesmo artigo: «Se não tiver manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização ou se não tiver sido notificado nos termos do número anterior, o lesado pode deduzir o pedido até 20 dias depois de ao arguido ser notificado o despacho de acusação ou, se não o houver, o despacho de pronúncia».
Considera o despacho recorrido que, à luz destes preceitos, a demandante, assistente e ora recorrente deveria ter deduzido o seu pedido de indemnização civil no prazo de 20 dias contados desde a data em que foi notificada da acusação pública, e não desde a data em que foi notificada da pronúncia (o que só se verificaria se não tivesse havido acusação).
Considera, porém, a recorrente que esta interpretação levaria a que, numa situação como a dos presentes autos, em que ela, como assistente, requereu a abertura de instrução relativamente a factos que constituem uma alteração substancial em relação aos que constam da acusação pública (neste caso, factos que consubstanciariam um crime de violência doméstica quando foi deduzida acusação pública pela prática de crime de ofensa à integridade física simples), esta devesse necessariamente formular o seu pedido de indemnização civil apenas com base nos factos constantes da acusação pública (retirando, assim, em grande medida, o efeito útil desse requerimento de abertura de instrução, como se mais não lhe restasse do que aderir a tal acusação).
Afigura-se que, neste aspeto, assiste razão à recorrente.
É certo que se o requerimento de abertura de instrução se destinasse apenas a uma alteração de qualificação jurídica (o que alguma doutrina e jurisprudência vêm admitindo), a questão não se colocava nesses termos, pois os factos que serviriam de base ao pedido de indemnização civil seriam os mesmos, independentemente da sua qualificação jurídico-criminal, e em nada ficaria prejudicado o demandante se tivesse que formular o pedido de indemnização civil apenas com base nos factos que constam da acusação. Mas o referido artigo 287.º, n.º 1, b), do Código de Processo Penal confere ao assistente a faculdade de requerer a abertura de instrução por factos que não constam da acusação pública e que em relação aos factos que desta constam possam constituir uma alteração substancial. Exigir do demandante que formule o seu pedido de indemnização civil apenas com base nos factos que constam da acusação pública retirará, em grande medida, efeito útil a esta faculdade que a lei lhe confere de requerer a abertura de instrução.
Impõe-se outra interpretação dos referidos preceitos do artigo 77.º do Código de Processo Penal, que pode decorrer de uma interpretação extensiva, ou da integração de uma lacuna nos termos do artigo 4.º do mesmo Código (pois se trata de uma situação não prevista pelo legislador).
Assim, se, depois de requerida a abertura de instrução com base no referido artigo 287.º, n.º 1, b), o arguido vier a ser pronunciado por factos e por um crime que constituem uma alteração substancial em relação aos que constam da acusação, poderá dizer-se, por interpretação extensiva, que esta situação se equipara àquela em que não foi deduzida acusação (situação literalmente prevista na parte final do citado n.º 3 do artigo 77. º do Código de Processo Penal). Na verdade, pode dizer-se que não chegou a ser deduzida acusação quanto aos factos e qualificação jurídica constantes da pronúncia, embora tenha sido deduzida acusação por outros factos e qualificação jurídica. Quanto a esses factos e qualificação jurídica constantes da pronúncia, pode dizer-se que não foi deduzida acusação e justifica-se plenamente que o prazo de dedução do pedido de indemnização civil relativo a tais factos se conte a partir da notificação da pronúncia, e não a partir da notificação da acusação.
No caso vertente, porém, apesar de ter sido requerida a abertura de instrução com base no referido artigo 287.º, n.º 1, b), do Código de Processo Penal, a pronúncia não contém factos que não constassem já da acusação (embora eles sejam aí qualificados como ofensa à integridade física qualificada, quando na acusação eram qualificados como ofensa à integridade física simples). Mas também neste caso se justifica que o prazo de dedução do pedido de indemnização civil relativo a tais factos se conte a partir da notificação da pronúncia, e não a partir da notificação da acusação. Não se justifica que esta situação (que é a dos presentes autos) tenha um tratamento diferente. No momento em que a assistente foi notificada da acusação, ela não poderia, obviamente, prever se a instrução que pretendia requerer levaria, ou não, à pronúncia pelos novos factos que vinha invocar e que naturalmente pretendia que servissem de base ao pedido de indemnização civil por si formulado. De modo algum se justificaria exigir dela que nessa fase antecipadamente renunciasse a tal pedido com base nesses factos novos, ou se visse na alternativa de, não renunciando antecipadamente ao pedido com base nesses factos novos, corresse o risco de deixar passar o prazo de dedução de qualquer pedido de indemnização civil se a instrução não viesse a conduzir à pronúncia com base nesses factos novos (e foi isso que se verificou neste caso).
Nesta situação, a possibilidade de dedução do pedido de indenização civil no prazo de 20 dias a partir da notificação do despacho de pronúncia decorrerá já não da interpretação extensiva da última parte do citado n.º 3 do artigo 77.º do Código de Processo Penal (será difícil dizer que neste caso não houve acusação quanto aos factos que constam da pronúncia), mas da integração de uma lacuna (pois, claramente, a situação não foi prevista pelo legislador), de acordo com os princípios do processo penal e a coerência do sistema, à luz do disposto no artigo 4.º do mesmo Código.
Deve, assim, considerar-se que o pedido de indemnização civil formulado pela recorrente deverá ser admitido, por ser tempestivo, uma vez que foi apresentado no prazo de 20 dias contados desde a data em que ela foi notificada do despacho de pronúncia.
Deve, por isso, ser concedido provimento ao recurso.

Não há lugar a custas (artigo 515.º, n.º 1, b), a contrario, do Código de Processo Penal).


V – Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pela assistente e demandante, determinando que seja admitido o pedido de indemnização civil por ela formulado.

Notifique


Porto, 21 de junho de 2023
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Vaz Pato
Luís Coimbra
Pedro M. Menezes