Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
24541/16.9T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDO SAMÕES
Descritores: DIREITO AO AMBIENTE
PERSISTÊNCIA RUIDOSA
INSTALAÇÃO COMERCIAL
REDUÇÃO DO HORÁRIO DE FUNCIONAMENTO
Nº do Documento: RP2017121424541/16.9T8PRT.P1
Data do Acordão: 12/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 802, FLS 163-174)
Área Temática: .
Sumário: I - A acareação só pode ser requerida na fase da instrução que termina com o início das alegações orais, podendo ter lugar posteriormente, apenas por iniciativa oficiosa do juiz, ao abrigo do disposto do art.º 607.º, n.º 1, 2.ª parte, do CPC, no caso de “não se julgar suficientemente esclarecido”.
II - A reapreciação da prova pela Relação tem a mesma amplitude dos poderes da 1.ª instância e visa garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, sendo de manter quando apreciada em conformidade com os princípios e as regras do direito probatório.
III - A persistência ruidosa de uma exploração comercial/industrial que afecte direitos de personalidade de um vizinho confere a este o direito de exigir a redução do horário de funcionamento da sua laboração.
IV - A sanção pecuniária compulsória pressupõe uma obrigação de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, e tem lugar sempre que esta se verifique e seja requerida pelo credor.
V - A teoria da causalidade adequada, adoptada pelo art.º 563.º do Código Civil, impõe a existência de um facto concreto condicionante de um dano e que tal facto, apreciado em abstracto, seja apropriado para produzir danos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 24541/16.9T8PRT.P1
Do Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Cível do Porto - Juiz 5.

Relator: Fernando Samões
1.º Adjunto: Dr. Vieira e Cunha
2.º Adjunto: Dr.ª Maria Eiró
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto - 2.ª Secção:

I. Relatório

B..., residente na Rua ..., n.º ..., 2.º andar, Porto, instaurou a presente acção declarativa com processo comum contra C..., LDA., com sede na Rua ..., n.º ..., Porto, pedindo que a ré seja condenada:
- a encerrar o estabelecimento à hora imposta pela Câmara Municipal ..., das 23h às 7h;
- quando tal não ocorrer, a pagar o valor de 500,00 €, a título de sanção pecuniária compulsória;
- e a pagar-lhe a indemnização não inferior a 15.000,00 € por todos os prejuízos que lhe têm vindo a ser causados, em virtude de noites consecutivas sem dormir.
Para tanto, alegou, em resumo, o seguinte:
Reside no 2.º andar do prédio que confronta com o prédio em cujo rés-do-chão funciona o restaurante da ré denominado “D...”.
Desde o início do seu funcionamento, nunca cumpriu os horários fixados para o efeito, produzindo sempre muito ruído, que lhe perturba o descanso e o sono, o que o levou a fazer vários protestos e participações junto das entidades policiais e administrativas, tendo a Câmara Municipal ... imposto que o estabelecimento estivesse encerrado desde as 23h até às 7h, imposição que também nunca foi cumprida.
Sente-se exausto, intimidado, humilhado e frustrado, devido ao comportamento da ré que nada fez para a resolução daquele problema.

A ré contestou, por excepção, invocando a ilegitimidade passiva por serem infundadas as imputações feitas e serem da responsabilidade de terceiros, a litispendência, devido à pendência de uma providência cautelar, e por impugnação motivada negando que seja o barulho do seu estabelecimento que incomoda o autor, pois fez obras no estabelecimento, existem outros estabelecimentos na mesma rua e observa o horário de funcionamento, não lhe sendo possível expulsar os seus clientes. Concluiu pela improcedência da acção.

O autor não respondeu à matéria das excepções, apesar de ter sido notificado para tanto.

Teve lugar a audiência prévia, na qual foi fixado o valor da causa, foi proferido despacho saneador, onde foram julgadas improcedentes as excepções da ilegitimidade passiva e da litispendência, foi identificado o objecto do litígio, bem como foram enunciados os temas de prova, sem reclamações.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, a qual decorreu em três sessões: 17 e 31 de Maio e 28 de Junho de 2017, data em que foi encerrada.
Em 7 de Julho de 2017, a ré, invocando contradições entre as declarações do autor e os depoimentos das testemunhas E... e F..., quanto à vivência, solitária ou acompanhada, daquele na habitação, requereu a sua acareação, a fim de aferir da sua credibilidade.
Este requerimento foi apreciado, imediatamente antes da sentença, proferida em 30/8/2017, nos seguintes termos:
Indefere-se, por manifestamente extemporâneo, o requerido pela Ré no ponto 13.º do requerimento apresentado em 07/07/2017”.
Seguiu-se a douta sentença que culminou com o seguinte dispositivo:
“Face ao exposto, julga-se a presente ação parcialmente procedente, por parcialmente provada e, consequentemente, condena-se a Ré a encerrar o seu estabelecimento id. sob a al. c) dos factos provados, à hora imposta pela Câmara Municipal ..., das 23h às 7h, bem como no pagamento do valor de € 500,00 (quinhentos euros), a título de sanção pecuniária compulsória, nos termos do artigo 879.º, n.º4 do Código Civil, por cada infração ao cumprimento do referido horário, e no pagamento de uma indemnização no montante de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), a título de compensação por danos não patrimoniais, absolvendo-se a Ré do demais peticionado.
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Custas a cargo de ambas as partes, na proporção do respetivo decaimento, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário concedido ao Autor.
Registe e notifique.”

Inconformada com o assim decidido, a ré interpôs recurso e apresentou as suas alegações que terminaram nas seguintes conclusões:
“A) Este processo tem por base as reclamações de um morador da rua onde se situa o restaurante da Recorrente (o único vizinho que alguma vez reclamou) que se queixa do ruído causado pelos clientes daquela.
B) Outra das queixas que apresenta é a imputação de inúmeros atos ilícitos à Recorrente ou pessoas singulares com aquela relacionadas, pese embora, e bem, o tribunal a quo tenha dado como não provadas todas estas alegações.
C) Se o tribunal de 1ª instância deu certos factos como não provados, uma vez que alegações apenas comprovadas pelas declarações do Autor e Recorrido, não se entende como tenha dado outros como provados, embora tivessem como base aquelas declarações.
D) Desde logo, a testemunha F... declarou que, desde o período em que foi reduzido o horário de funcionamento do restaurante das 2 horas da manhã para as 23 horas da noite, não mais vê clientes à porta deste estabelecimento depois das 23 horas da noite (e mesmo que tenha visto depois desta hora em período anterior àquele redução de horário, tal facto não é ilícito, pois o restaurante tinha autorização para funcionar até as 2 horas da manhã).
E) Acontece que o Recorrido não merece a credibilidade que lhe foi imputado pelo tribunal a quo, nomeadamente pelo facto de ter mentido quanto a partilhar o apartamento onde vive com a sua mãe, na última audiência de julgamento deste processo,
F) Assim, através da audição dos depoimentos prestados pelo Recorrido, pela testemunha E... (sua alegada namorada e testemunha essencial) e pela testemunha F..., tanto nas declarações prestadas no processo cautelar que correu por apenso a este processo, como pelas declarações prestadas no presente processo, é possível perceber que, ou estas testemunhas não merecem credibilidade por não conhecerem os factos como deram a entender conhecer, ou as declarações do Recorrido não merecem credibilidade por ter mentido,
G) Questão que a aqui Recorrente pretendeu esclarecer, através de requerimento enviado aos autos a 7 de julho de 2017, onde pede ao tribunal a quo que proceda à prova de acareação entre o Recorrido e as testemunhas, para tentar perceber qual dos intervenientes não merece credibilidade,
H) Requerimento esse que o tribunal considerou extemporâneo, mas de forma errada, pois os artigos 523º, 524º e 607º, nº1, 2ª parte, todos do CPC, permitiam ao tribunal ordenar a produção da referida prova, além de a sentença recorrido ser de agosto de 2017.
I) Ao não ter permitido averiguar da veracidade das declarações daqueles dois intervenientes processuais, nomeadamente em relação à credibilidade dos mesmos e das suas declarações, o tribunal a quo restringiu, injustificadamente, o direito de defesa e o direito a um julgamento justo e equitativo (constitucionalmente tutelado) da Ré e Recorrente.
J) A testemunha H... confirmou que não há clientes no restaurante da Recorrente, após as 23 horas da manhã, desde a alteração do horário de funcionamento,
K) A testemunha I... confirma a existência de outros restaurantes na mesma rua, abertos até mais tarde,
L) Todas as testemunhas agentes da PSP confirmam que a Recorrente não é fonte de perturbações naquela rua e que o Recorrido, sempre que chamou as autoridades, recusou a entrada das mesmas em sua casa,
M) A testemunha J... afirmou que o restaurante fecha às 23 horas e que na mesma rua se situam outros estabelecimentos, abertos até depois das 23.
N) A Recorrente, com base na prova indicada, pretende que sejam dados como factos não provados os da alínea f, g, h, i e q, da fundamentação de facto da sentença.
O) Depois, parece uma contradição que o tribunal de 1ª instância dê como assente que há outros estabelecimentos até mais tarde e que os clientes desses estabelecimentos circulem, para lá das 23 horas, na Rua ..., passando em frente à casa do Recorrido, para depois dar como não provado que os ruídos que este ouve possam ser originados pelos tais clientes dos outros estabelecimentos,
P) É uma contradição e deve ser esclarecida no sentido de dar como assente que o Recorrido ouvia ruído originado pelos clientes dos restantes estabelecimentos, nomeadamente tendo em conta a estrutura daquela rua.
Q) Outra conclusão do tribunal de 1ª instância que merece reprovação é o entendimento, na Fundamentação de Direito, de que não obstante as obras realizadas (e comprovadas) pela Recorrente, o ruído persiste,
R) Mas nada poderia levar aquele tribunal a concluir neste sentido, uma vez que as próprias testemunhas do Recorrido confirmaram que, depois das 23 horas, o restaurante da Recorrente já se encontra encerrado!
S) A condenação em sanção pecuniária compulsória é atentatória das mais basilares regras de senso-comum, pois deixa a Recorrente depende da boa vontade dos seus clientes (incumpridores do horário de funcionamento, mesmo que avisados para saírem antes das 23 horas),
T) O que deve a Recorrente fazer quando um cliente se recusa a sair antes das 23 horas? A Recorrente pode ser responsabilizada pela atuação de terceiros à causa?
U) Na condenação ao pagamento de 2.500 euros ao Recorrido, com base na responsabilidade civil extracontratual, a Recorrente impugna essa mesma condenação pois faltam dois elementos desta responsabilidade: o nexo de causalidade e a culpa.
V) Se, por um lado, a Recorrente não tem culpa nos alegados danos de ruído provocado por clientes seus (a Recorrente cumpre todas as normas legais, o seu horário de funcionamento e não foi autuada por nenhum agente da PSP que se tenha deslocado ao local),
W) Por outro, não ficou provado o nexo de causalidade entre a atuação da Recorrente e os danos alegados pelo Recorrido, pois, através da teoria da causalidade adequada, não é de prever pela Recorrente que, numa rua com mais estabelecimentos, abertos até mais tarde do que o restaurante daquela, provado que ficou que circulam na mesma rua clientes desses restaurantes, e respeitando a Recorrente o horário de funcionamento, que possam ser identificados os seus clientes como a fonte perturbadora do sono reparador do Recorrido.
Termos em que deve este douto Tribunal da Relação aceitar o presente recurso e declarar o mesmo procedente, consequentemente revogando a douta decisão recorrida e absolvendo a Recorrente e Ré do pedido, ou, se assim não entender, que ordene a renovação de prova ou a produção de novos meios de prova, tendo em conta a dúbia credibilidade de alguns dos depoentes já mencionados ao longo das alegações de recurso.”

O autor contra-alegou sustentando a confirmação da sentença recorrida.

O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, modo se subida e efeitos que foram mantidos pelo Relator.

Tudo visto, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso.
Sabido que o seu objecto e âmbito estão delimitados pelas conclusões da recorrente (cfr. art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC), não podendo este Tribunal de 2.ª instância conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, e tendo presente que se apreciam questões e não razões, as questões a dirimir consistem em saber:
1. Se o requerimento de 7/7/2017 é oportuno;
2. Se deve ser alterada a matéria de facto no sentido propugnado pela apelante;
3. Se o ruído persiste ilicitamente, não obstante a realização de obras;
4. Se a condenação em sanção pecuniária compulsória é injusta por estar sujeita ao comportamento de terceiros;
5. E se a indemnização não é devida por inexistência do nexo de causalidade e de culpa.

II. Fundamentação

1. De facto

Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:
a) O Autor reside numa casa arrendada na Rua ..., n.º .., 2.º, ....
b) Desde meados dos anos 70, o rés-do-chão do prédio confrontante pela parte sul com o do Autor, é explorado para o ramo da restauração.
c) Em fevereiro de 2009, veio ocupar este espaço nova gerência, aqui Ré, tendo o referido estabelecimento passado a ter a denominação “D...”.
d) O Autor, como até aí sempre acontecia, simpatizava com o espaço e com a comida, chegando a ser cliente assíduo.
e) A partir de abril de 2014, a Câmara Municipal ... concedeu à Ré autorização para encerrar às 02 horas da manhã.
f) O Restaurante funcionou poucas vezes até às 02 horas.
g) Em casa do Autor, ouvia-se, durante a madrugada, o rojar das mesas e cadeiras produzido pelos clientes enquanto entram e se acomodam, o barulho produzido pelos clientes enquanto conversam e jantam, o barulho dos copos, pratos e chávenas para o serviço aos clientes, o barulho com o manuseamento de tachos, panelas e frigideiras e, ainda, o barulho produzido pelos funcionários do estabelecimento, já depois do seu fecho, a arrumar mesas e cadeiras, a louça e até a arrumar o lixo e a levá-lo para o contentor.
h) Como dentro do estabelecimento não é autorizado fumar, os clientes vêm para o seu exterior e para debaixo da janela do quarto do Autor fumar, conversar e bebericar.
i) Tais situações ocorriam, indiscriminadamente, durante a semana e aos fins de semana, seja verão ou inverno.
j) O Autor sentiu-se e sente-se frustrado.
k) O Autor solicitou o apoio das autoridades locais, nomeadamente da PSP, tendo-o feito por inúmeras vezes, apresentando diversas queixas, na sequência das quais agentes da PSP se deslocaram ao local.
l) A situação manteve-se.
m) O Autor também apresentou queixas na Câmara Municipal ... e na ASAE.
n) Foi feita uma Avaliação da Incomodidade Sonora que o Restaurante produz no exterior do mesmo, considerando a Câmara Municipal ..., a 15/09/2015, que “não se verifica em conformidade da situação específica de ruído com os limites estabelecidos”, conforme documento junto a fls. 38v.º a 43v.º
o) Por tal razão, a Câmara Municipal ... impôs à Ré que encerrasse o Restaurante no período das 23h às 7h, conforme documento junto a fls. 44v.º e 45.
p) Tal imposição não foi sempre cumprida, pelo menos, até à data de entrada da presente ação em juízo, em 14/12/2016.
q) O Autor não descansava nem dormia tranquilamente durante uma noite completa, pelo menos, desde o verão de 2014 até à entrada da presente ação em juízo, e passava as noites em alerta, num nervosismo constante.
r) O Autor sentia-se exausto, andava constantemente com sono, sem energia e sem motivação.
s) Na mesma rua onde a Ré explora um restaurante, outros 3 a 5 restaurantes/bares igualmente o fazem, até mais tarde que a Ré, estando a distâncias nunca superiores a 50/100 metros da casa do Autor.
t) Naquela zona encontram-se outros restaurantes e bares, cujo horário de funcionamento vai até à 1h ou 2h da manhã.
u) Na mesma rua e passeio, até horários para além das 23h, os clientes desses mesmos estabelecimentos circulam, conversam e até discutem.
v) No rés-do-chão de praticamente toda a rua ..., na ..., Porto, não existem habitações, mas pastelarias, lojas de móveis e pronto-a-vestir, restaurantes, bares, cafés, imobiliárias e um pingo doce.
w) A Ré realizou obras de isolamento acústico no seu restaurante, nomeadamente instalando um novo sistema de portas de vidro na entrada, em junho de 2016.
x) A Ré colocou indicações escritas, dentro do restaurante, para que se feche a porta ao entrar e sair, para que não se fique parado à porta do restaurante, no exterior, e para que não se faça barulho.
y) Parte da vizinhança é cliente habitual da Ré.

2. De direito

2.1. Da (in)oportunidade do requerimento de acareação

O art.º 523.º do CPC permite a realização da acareação das pessoas em contradição (entre testemunhas ou entre estas e as partes, seja em depoimento de parte, seja em declarações), quando houver oposição directa acerca de determinado facto, a qual pode ser ordenada oficiosamente ou a requerimento de qualquer das partes.
Não está aqui em causa o fundamento da acareação, por não ter sido esse o motivo do indeferimento.
Ele ocorreu apenas por o respectivo requerimento ter sido considerado “manifestamente extemporâneo”.
E afigura-se-nos que foi bem indeferido, visto que já havia sido encerrada a audiência final, tendo sido formulado numa altura em que o processo já estava concluso para sentença.
Tendo as invocadas contradições surgido no decurso dessa audiência, era durante a mesma que devia ter sido feito o requerimento com vista à realização da pretendida acareação.
É que esta é uma diligência instrutória e a fase da instrução (em sentido lógico) termina com o início das alegações orais [cfr. art.º 604.º, n.º 3, al. e), do CPC].
Ela só poderia ter lugar, por iniciativa oficiosa do juiz, ao abrigo do disposto do art.º 607.º, n.º 1, 2.ª parte, do CPC, no caso de “não se julgar suficientemente esclarecido”, o que implicaria a reabertura da audiência final e consequente aplicabilidade do disposto nos art.ºs 604.º, n.ºs 3 a 8, 605.º e 606.º, todos do mesmo Código[1].
Não sendo esse o caso, é óbvio que o requerimento foi bem indeferido, pelo que improcedem as correspondentes conclusões.

2.2. Da alteração da matéria de facto

O art.º 662.º, n.º 1, do CPC dispõe que “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Como temos vindo a escrever em vários acórdãos, desta norma resulta que a modificação da decisão de facto constitui um dever da Relação a ser exercido sempre que a reapreciação dos meios de prova determine um resultado diverso daquele que foi declarado na 1.ª instância, devendo, para tanto, os recorrentes observar os ónus impostos pelo art.º 640.º do mesmo Código[2].
Não está em causa a verificação desses ónus, sendo que eles foram observados, satisfatoriamente, pela recorrente, nas alegações e nas conclusões, pelo que nada obsta à reapreciação da matéria de facto impugnada.
Vejamos, pois, os factos impugnados pela recorrente.
Tais factos são os que foram dados como provados sob as alíneas f), g), h), i) e q) da fundamentação de facto e os que foram dados como não provados no antepenúltimo parágrafo do elenco desses factos.
E pretendem que os primeiros sejam dados como não provados e os segundos como provados.
Estes são do seguinte teor:
Os ruídos que o Autor ouve na sua rua, seja a que hora for, são provocados por todos os clientes de todos os restaurantes/bares, ou por meros transeuntes que por ali circulem, sem qualquer tipo de ligação ao estabelecimento da Ré ou a esta.”.
Dentre as considerações e razões feitas nas alegações e nas conclusões é possível descortinar, se bem as interpretamos, que a recorrente questiona os factos indicados, essencialmente, com fundamento nos depoimentos das testemunhas F... e da E..., por um lado, para pôr em causa a credibilidade das declarações do autor, e, por outro, das testemunhas H..., I... e J... para demonstrar que existem restaurantes na mesma rua a encerrar depois das 23 horas e que o da autora fecha a essa hora, bem como dos agentes da PSP, que nem sequer identifica, para comprovar que o autor não os deixou entrar na sua casa para comprovar aí a existência de ruído.
Todavia, sem razão.
A apreciação das provas feita pelo tribunal é livre e mostra-se suficientemente fundamentada.
Embora as declarações de parte, à semelhança do depoimento de parte, vise obter a confissão, relativamente ao reconhecimento de factos desfavoráveis que não possa valer como confissão, vale como elemento probatório a apreciar livremente pelo tribunal (cfr. art.ºs 361.º do Código Civil e 466.º, n.º 3, do CPC), no confronto com a demais prova produzida.
Foi, aliás, o que foi feito, ainda que não resulte claramente da motivação da decisão de facto, mas que aqui se deixa expresso, tendo as declarações de parte do autor sido confirmadas, no essencial, pelas testemunhas F..., E..., H..., K..., L... e M....
A F... presenciou o barulho provindo do restaurante D..., que denominou de “cavalariça”, ou causado pelos seus clientes quando estavam na esplanada ou próximo do mesmo, até altas horas da noite, muito embora tenha deixado de o ouvir há cerca de um ano, bem como revelou ter conhecimento das queixas por ele feitas à polícia.
A E..., namorada do autor com quem pernoita, por vezes, na casa de habitação deste, desde há cerca de um ano e meio, ouviu aí barulho, provindo do restaurante da ré, até altas horas da noite (3-4 horas), o que perturbava o seu descanso e o sono, fazendo com que andasse perturbado e tendo chamado a polícia, sendo que só a partir de Abril, segundo pensa, na altura da decisão da providência cautelar, existe mais sossego.
O H... visitou o autor, de quem é amigo, na sua habitação e ouviu aí barulho, pelo menos até Junho/Julho de 2016.
O K... presenciou, várias vezes, barulho quando passava à frente do restaurante e da casa do autor, à 1 hora, e revelou ter conhecimento das queixas do demandante e do seu estado.
A L... viu pessoas “descontroladas” no passeio, junto ao restaurante, e revelou ter conhecimento do estado debilitado e receoso em que se encontrava o autor de quem é amiga desde os tempos em que foi seu aluno, há cerca de 25 anos.
O M... também disse ter conhecimento do barulho provindo do restaurante da ré e da perturbação que provoca no autor.
Os depoimentos da F... e da E..., de forma alguma, retiram credibilidade às declarações do autor, antes as confirmam. Ainda que a primeira tenha dito que há cerca de um ano deixou de ouvir barulho, quando por ali passava, vinda do seu trabalho ou de passear o cão, a segunda já referiu que o barulho se prolongou até Abril de 2017, data que associou à decisão da providência cautelar. Se vive só ou na companhia da mãe é indiferente, sendo certo que foi dito que ela apenas se desloca à sua casa para trabalhar como modista. De resto, o que foi dito no procedimento cautelar desconhecemo-lo e é aqui irrelevante, pois nem o julgamento da matéria de facto, nem a decisão final nele proferida, têm qualquer influência no julgamento da acção principal, que é a presente, nos termos do art.º 364.º, n.º 4, do CPC.
Contrariamente ao afirmado pela recorrente, o H... não disse que não há clientes no restaurante após as 23 horas, muito menos “da manhã”, desde a alteração do horário de funcionamento, mas que assistiu ao barulho em casa do autor em Junho/Julho de 2016, como se referiu.
Que existem outros restaurantes na mesma rua, abertos até mais tarde que o da ré, é um facto indesmentível, tanto assim que foi dado como provado na alínea s), não impugnado, pelo que não há necessidade de chamar à colação o depoimento do I..., o qual é absolutamente inútil para a matéria aqui em discussão. O mesmo se diga do depoimento do J... relativamente à existência de outros estabelecimentos, sendo que o mesmo não comprova que o da ré feche sempre às 23 horas.
É certo que os agentes da PSP que se deslocaram ao local após na sequência da efectivação das denúncias pelo autor – as testemunhas N..., O..., P... e Q... – disseram que este recusou a entrada na sua casa. Mas daí não resulta que as queixas fossem infundadas, nem que não se verificasse barulho no aludido estabelecimento. Do facto de eles não o terem presenciado também não resulta que não tivesse existido em momentos anteriores. Aliás, o mesmo foi verificado pelos Técnicos do Laboratório de Ruído da Câmara Municipal ..., que procederam à medição do ruído no quarto do autor, nos dias 11 e 12 de Setembro de 2015, à 1h21m e 1h51m, conforme Relatório de fls. 38 v.º a 44, onde concluíram que pela análise dos resultados da avaliação acústica, para o período ali em referência, “não se verifica a comodidade da situação específica de ruído com os limites estabelecidos na alínea b), do n.º 1 do artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de Janeiro. Para o período de referência nocturno, o valor obtido está acima 2 dB(A) do valor limite estabelecido na legislação 5 dB(A).” A mesma situação mantinha-se em 7/6/2016, conforme verificaram Técnicos dos mesmos Serviços, aquando de uma visita técnica ao estabelecimento da ré, constatando que as medidas referidas nas alegações que havia apresentado aquando da audição para redução do horário de funcionamento “não haviam sido dirigidas para as fontes perturbadoras”, existindo, portanto, “reservas quanto à sua relevância na minimização do ruído, e consequentemente, para questionar as conclusões da avaliação acústica”, constante do aludido relatório (Rel._ A.15.09.028), conforme informação de fls. 46.
Não existe qualquer contradição entre os factos dados como provados - de existirem outros estabelecimentos abertos até mais tarde e de os clientes desses estabelecimentos circularem depois das 23 horas [cfr. alíneas s) e t)] – e o facto dado como não provado que “os ruídos que o autor ouve possam ser originados pelos clientes dos outros estabelecimentos”. É que jamais pode haver contradição entre um facto provado e outro não provado, pois este é como se não existisse no mundo do direito, não se podendo extrair daí quaisquer consequências jurídicas.
Não há dúvida de que o ruído provinha do restaurante da ré, e não de qualquer outro, atenta a prova produzida, como se deixou dito, nomeadamente a técnica que não deixa margem para dúvidas, nada havendo a esclarecer.
Da reapreciação efectuada por este Tribunal, procedendo a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da nossa própria convicção, considerada a prova em causa no seu conjunto, não há razões para nos afastarmos do entendimento tido na 1.ª instância, relativamente aos factos impugnados, pois que não se vislumbra qualquer desconformidade notória entre a dita prova e a respectiva decisão, em violação dos princípios que devem presidir à apreciação da prova, ou seja, critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas no seu meio social, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica, já que tudo isto contribui, afinal, para a formação de raciocínios e juízos que conduzem a determinadas convicções reflectidas na decisão de cada facto.
Da análise crítica da prova indicada como fundamento da impugnação, bem como da restante prova, não pode ficar-se com a convicção indicada pela recorrente.
E é essa análise crítica e integrada dos depoimentos com os outros meios de prova que os juízes devem fazer, pois a sua actividade, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos, muito menos truncados e interessados, como é o caso de alguns dos indicados pela recorrente.
A fundamentação da decisão de facto mostra-se criteriosa, bem fundamentada e tem pleno suporte na gravação da prova e nos demais elementos constantes dos autos, tendo sido feita uma correcta análise do seu valor probatório.
Por isso, não pode este Tribunal alterar os factos impugnados, pelo que se mantêm.

Improcedem, assim, ou são irrelevantes as respectivas conclusões.

2.3. Da persistência ilícita do ruído

Como é sabido, e já tivemos oportunidade de escrever nos acórdãos de 15/1/2013 e de 8/7/2015[3], «a jurisprudência tem decidido, de forma reiterada, que a produção ou emissão de ruídos, geradora de poluição sonora, lesiva de direitos individuais e colectivos, obviamente carecidos de protecção e tutela, pode ser encarada por três ópticas distintas, embora, em muitos casos, conexionadas e interligadas, que são:
- a do direito ao ambiente, enquanto causa de evidente poluição ambiental, com assento primacial no próprio texto constitucional, no plano dos direitos e deveres sociais, de natureza análoga aos direitos fundamentais, em que se insere o direito a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado (art.º 66.º da CRP), complementado e densificado pelas normas constantes da Lei de Bases do Ambiente, fundamentalmente orientada, imediatamente e em primeira linha, para a protecção de interesses colectivos ou difusos;
- a clássica visão da tutela do direito de propriedade, no domínio das relações jurídicas reais de vizinhança, permitindo ao proprietário de um prédio opor-se às emissões, provenientes de prédios vizinhos, que importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam (art.º 1346.º do Código Civil);
- e a dos direitos fundamentais de personalidade, consagrados, desde logo, no texto constitucional – direito à integridade física e moral e ao livre desenvolvimento da personalidade (art.ºs 25.º e 26.º, n.º 1 da CRP) e reiterados no Código Civil, ao contemplar, no art.º 70.º, a tutela geral da personalidade dos indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral –, sendo óbvio e inquestionável que o direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade de vida na sua própria casa se configuram manifestamente como requisitos indispensáveis à realização do direito à saúde e à qualidade de vida, constituindo emanação do referido direito fundamental de personalidade[4].
Na verdade, o direito ao sossego, ao repouso e ao sono traduzem-se em factores que se mostram potenciadores, em grau muito elevado, da recuperação física e psíquica do indivíduo, nomeadamente nas situações da vida quotidiana na sua própria casa, tem como principal escopo a prossecução de tais fins, constituindo-se, por esse motivo, os referidos direitos como uma emanação do direito à integridade física e moral da pessoa humana e a um ambiente de vida sadio, direitos esses que se mostram acolhidos como direitos da personalidade humana na Declaração Universal dos Direitos do Homem (art.º 24.º), estão constitucionalmente consagrados como direitos fundamentais nos art.ºs 16.º e 66.º da CRP e são objecto de protecção na lei ordinária no âmbito do citado no art.º 70.º do Código Civil, nos art.ºs 2.º e 22.º da Lei n.º 11/87, de 7/4 (Lei de Bases do Ambiente) e no DL n.º 9/2007, de 17/1 (Regulamento Geral do Ruído), impendendo sobre o seu infractor a responsabilidade civil por tal lesão, a qual se traduz na obrigação de proceder ao ressarcimento dos danos causados ao lesado, nos termos do preceituado no art.º 483.º e seguintes do Código Civil, sem prejuízo de este poder requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de atenuar os efeitos da ofensa já cometida, ao abrigo do n.º 2 do já mencionado art.º 70.º[5].
É importante realçar que as normas, constitucionais e legais, acabadas de referenciar, tutelam a preservação do direito básico de personalidade, pelo que não podem ser vistas como contendo uma mera proclamação retórica ou platónica, sendo essencial que lhes seja conferido o necessário relevo e efectividade na vida em sociedade, não sendo, por conseguinte, tolerável que o interesse no exercício ou exploração lucrativa de quaisquer actividades lúdicas, de diversão ou económicas se faça com o esmagamento dos direitos básicos de todos os cidadãos que tiverem o azar de residir nas proximidades, aniquilando, em termos claramente desproporcionados, o direito a gozar de um mínimo de tranquilidade, sossego e qualidade de vida no seu próprio domicílio. Cada um tem o direito de viver em tranquilidade na sua casa de habitação, não só no desempenho dos seus afazeres diários e nos momentos de lazer, mas também, e especialmente, nas horas destinadas ao sono e ao repouso, indispensáveis ao retempero do desgaste físico e anímico que a vida provoca no ser humano, pois é essencial a uma vida saudável, equilibrada e física e mentalmente sadia[6].
Daí que, em regra, se imponha a conclusão de que, em caso de conflito, efectivo e relevante, entre o direito de personalidade e o direito ao lazer ou à exploração económica de qualquer estabelecimento comercial ou industrial, importa preservar os direitos básicos de personalidade, por serem de hierarquia superior à dos segundos, nos termos do n.º 2 do art.º 335.º, do Código Civil.
Mas, isto só em regra, sem prejuízo de uma concreta e casuística ponderação judicial, a realizar em função do princípio da proporcionalidade acerca da intensidade e relevância da invocada lesão da personalidade[7].
Neste sentido, pode ainda ver-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/3/2007, proferido no processo n.º 07B585, publicado no mesmo sítio da dgsi, onde se afirmou, na parte que ora interessa:
“Caso a caso, importa averiguar se a prevalência dos direitos relativos à personalidade não resulta em desproporção intolerável, face aos interesses em jogo, certo que o sacrifício e compressão do direito inferior apenas deverá ocorrer na medida adequada e proporcionada à satisfação dos interesses tutelados pelo direito dominante”.
E, para fundamentar esta afirmação, escreveu-se ali:
“Porém, mesmo o direito inferior deve ser respeitado até onde for possível e apenas deve ser limitado na exacta proporção em que isso é exigido pela tutela razoável do conjunto principal de interesses.
No caso de conflito entre um direito de personalidade e um direito de outro tipo, a respectiva avaliação, refere Capelo de Sousa (O Direito Geral de Personalidade, pág. 547), «abrange não apenas a hierarquização entre si dos bens ou valores do ordenamento jurídico na sua totalidade e unidade, mas também a detecção e a ponderação de elementos preferenciais emergentes do circunstancialismo fáctico da subjectivação de tais direitos, maxime, a acumulação, a intensidade e a radicação de interesses concretos juridicamente protegidos. Tudo o que dará primazia, nuns casos, aos direitos de personalidade ou, noutros casos, aos com eles conflituantes direitos de outro tipo».
E exemplifica:
«Assim, quando num prédio de habitação seja montado um estabelecimento em que habitualmente haja produção de ruídos ou de cheiros susceptíveis de incomodar gravemente os habitantes do prédio, o direito ao sossego, ao ambiente e à qualidade de vida destes deve considerar-se superior ao direito de exploração de actividade comercial ou industrial ruidosa ou incómoda. Mas, já o direito ao sossego, à tranquilidade e ao repouso dos moradores não prevalece sobre o direito de propriedade alheio, face aos ruídos normalmente provocados por vozes de aves domésticas legitimamente mantidas em quintais de residências vizinhas».
Ou, como ensina Pessoa Jorge (Pressupostos da Responsabilidade Civil, pág. 201), «…No n.º 2 desse normativo estabelece-se, na hipótese de colisão de direitos desiguais ou de espécie diferente, a prevalência do que se considerar superior, a definir em concreto».”
Por outro lado, em conformidade com os ensinamentos do citado acórdão de 7/4/2011, impõe-se “distinguir claramente os planos de uma possível ilegalidade administrativa no exercício das actividades que geram a poluição ambiental, decorrente do desrespeito das normas regulamentares ou atinentes ao licenciamento e à polícia administrativa, e da ilicitude, consubstanciada na lesão inadmissível do direito fundamental de personalidade. Tal diferenciação de planos tem justificadamente conduzido à conclusão de que os tribunais constituem a última linha de defesa daquele direito fundamental de personalidade, sempre que o mesmo não tenha sido devidamente acautelado pela actividade regulamentar ou de polícia da Administração, em nada obstando à tutela prioritária do direito fundamental lesado a mera circunstância de ter ocorrido licenciamento administrativo da actividade lesiva ou os níveis de ruído pericialmente verificados não ultrapassarem os padrões técnicos regulamentarmente definidos (vejam-se, por exemplo, os acs. do STJ de 22/10/98 - p. 97B1024 - de 13/3/97 – p. 96B557 - e de 17/1/02 – p. 01B4140).»
No presente caso, já foi verificada e reconhecida a ilicitude, consubstanciada na lesão inadmissível do direito fundamental de personalidade do autor, pelos Serviços competentes da Câmara Municipal ... ao reduzir o horário de funcionamento do estabelecimento comercial da ré, inicialmente concedido, das 2 horas para as 23 horas, ficando assim com o horário de funcionamento entre as 7 horas e as 23 horas, com exclusão, consequentemente, do período nocturno entre as 23 horas e as 7 horas.
É o que resulta dos factos provados, designadamente dos constantes nas alíneas n) e o).
Em bom rigor, a recorrente não questiona, neste recurso, a ilicitude da conduta da ré assim constatada, já que se insurge apenas contra a persistência do ruído após a realização das obras em Junho de 2016, as quais consistiram em “obras de isolamento acústico no seu restaurante, nomeadamente instalando um novo sistema de portas de vidro na entrada”, como foi dado como provado na alínea w), não impugnada.
Acontece, porém, que os mesmos Serviços Municipais promoveram uma visita técnica ao estabelecimento em 7/6/2016 e constataram que tais obras, porque não foram dirigidas para as fontes perturbadoras, não eram relevantes para a minimização do ruído, mantendo as conclusões da avaliação acústica anteriormente realizada, referenciada na alínea n) dos factos provados e acima especificada, a propósito da motivação da decisão de facto (cfr. informação de fls. 46).
E também consta dos factos provados que a ré não acatou totalmente a imposição da redução do horário de funcionamento, pelo menos até à data de entrada da presente acção, em 14/12/2016 [cfr. alínea p), não impugnada], sendo que não se mostra provado, nem sequer foi alegado, no respectivo articulado, que tenham sido realizadas obras posteriormente por forma a diminuir a produção de ruído para níveis aceitáveis sem pôr em causa os direitos do autor.
Por outro lado, este continuou a não descansar nem dormir tranquilamente durante uma noite completa, passando as noites em alerta, num nervosismo constante, pelo que andava exausto, com sono e sem energia e motivação [cfr. alíneas q) e r) dos factos provados].
Daqui resulta, inexoravelmente, a ilicitude da conduta da ré, mantendo em funcionamento o seu estabelecimento comercial, em manifesta e inadmissível violação não só das normas regulamentares, mas também, e sobretudo, do direito fundamental de personalidade do autor.
É inquestionável que a poluição sonora (ruídos prejudiciais, sobretudo nas horas consagradas ao descanso reparador da generalidade das pessoas) constitui uma das variantes dos atentados ao direito a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, susceptível de violar direitos de personalidade, legal, constitucional e supranacionalmente tutelados, como se disse e é por demais sabido.
A supremacia do direito ao sossego, ao ambiente e à qualidade de vida do autor sobre o direito de exploração da actividade comercial ruidosa da ré confere àquele o direito de redução do horário de funcionamento, como vem pedido e foi reconhecido na sentença, na sequência, aliás, do que havia sido imposto pela Câmara Municipal, não se pretendendo aqui, na prática, mais do que o cumprimento da sua decisão.
Improcedem, assim, as respectivas conclusões.

2.4. Da sanção pecuniária compulsória

Na sentença, a ré foi condenada no pagamento de 500,00 €, a título de sanção pecuniária compulsória, por cada infracção ao cumprimento do horário fixado.
No recurso, a recorrente limita-se a afirmar que tal condenação “é atentatória das mais basilares regras de senso-comum”, por ficar dependente do comportamento dos seus clientes, colocando questões sobre o que deve fazer no caso de estes se recusarem sair depois das 23 horas (embora refira “antes” nas conclusões S e T, certamente por lapso).
Com o devido respeito, tal condenação não fere as regras apontadas, nem os argumentos utilizados são bastantes para a questionar juridicamente, sendo certo que a recorrente encontrará excelentes juristas que a aconselharão a agir nas situações que indica, não sendo aqui o lugar próprio para o fazer, nem o momento é oportuno.
O art.º 829.º-A do Código Civil permite, ou até impõe, a condenação do devedor em sanção pecuniária compulsória, a requerimento do credor, nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, devendo tal condenação corresponder ao “pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infracção, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso” (n.º 1), sendo a mesma “fixada segundo critérios de razoabilidade, sem prejuízo da indemnização a que houver lugar” (n.º 2).
Por definição, “a sanção pecuniária compulsória é a condenação pecuniária decretada pelo juiz para constranger e determinar o devedor recalcitrante a cumprir a sua obrigação. É, pois, um meio de constrangimento judicial que exerce pressão sobra a vontade lassa do devedor, apto para triunfar da sua resistência e para determiná-lo a acatar a decisão do juiz e a cumprir a sua obrigação, sob a ameaça ou compulsão de uma adequada sanção pecuniária, distinta e independente da indemnização, susceptível de acarretar-lhe elevados prejuízos”. É, assim, “um meio indirecto de constrangimento decretado pelo juiz, destinado a induzir o devedor a cumprir a obrigação a que se encontra adstrito e a obedecer à injunção judicial”[8].
No presente caso, não há dúvida de que a ré está vinculada ao cumprimento do horário de funcionamento do seu estabelecimento, fixado entre as 7 horas e as 23 horas, com o consequente encerramento durante o período compreendido entre as 23 horas e as 7 horas.
Trata-se, por conseguinte, de uma prestação de facto infungível, que é, simultaneamente, positivo e negativo, na medida em que está obrigada a cumprir o horário de funcionamento fixado e a não desrespeitar o período de encerramento, nem a permitir que seja desrespeitado, por forma a não ser violado o direito fundamental de personalidade do autor e os que lhe estão associados, já reconhecidos, nos termos supra referidos.
Ora, tendo este requerido a condenação no pagamento de uma quantia pecuniária e demonstrada a existência da aludida obrigação de prestação de facto infungível, não vislumbramos a violação de qualquer “regra de senso-comum” ou norma legal, que de resto não vem indicada, na condenação na aludida sanção pecuniária compulsória, sendo certo que a recorrente nem sequer põe em causa o montante fixado.
É, pois, de manter tal condenação, como indicado na sentença recorrida, com a correcção da referência à norma do “art.º 879.º, n.º 4 do Código Civil”, a qual não existe, querendo, provavelmente, citar-se o n.º 4 do art.º 879.º do CPC, mas que não tem aqui aplicação por não se tratar do processo especial a que a mesma se reporta.
Improcedem, assim, ou são irrelevantes as respectivas conclusões.

2.5. Da indemnização

A recorrente questiona a sua condenação na indemnização de 2.500,00 €, sustentando a inexistência de culpa e de nexo de causalidade na produção dos danos não patrimoniais verificados e reconhecidos, que, de resto, não põe em causa.
Como é sabido, o termo “culpa” assume vários sentidos, sendo de considerar aqui o sentido dogmaticamente mais apurado que é o do pressuposto da responsabilidade aquiliana, como dolo ou negligência, contraposto à ilicitude, entendendo-se, hoje, como uma realidade normativa, isto é, “um juízo de censura formulado pelo Direito, relativamente à conduta ilícita do agente”[9].
Está provado que a ré desrespeitou o horário de funcionamento imposto pelos Serviços competentes da Câmara Municipal do Porto, na sequência da verificação de ruído perturbador do descanso do autor [cfr. alíneas n), o) e p)].
Ao assim proceder, não agiu como podia e devia, sendo a sua conduta censurável, pelo que actuou com culpa, sendo irrelevante a alegada falta de autuação policial.
Quanto ao nexo de causalidade, para além de se lhe referir o n.º 1 do art.º 483.º do Código Civil ao afirmar que a indemnização é “pelos danos resultantes da violação”, é referenciado no art.º 563.º do mesmo Código dispondo: “A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”.
Segundo o acórdão do STJ de 3/2/1999[10], “a teoria de causalidade adequada, recebida por este artigo 563.º, impõe, num primeiro momento, a existência dum facto concreto condicionante de um dano para que haja reparação desse dano sofrido.
Tal é a questão de facto.
É matéria ligada à realidade empírica existente, comparável, susceptível de juízos empíricos.
É realidade com concreta relevância jurídica, determinável no seu conteúdo e âmbito que entra na estrutura do «caso jurídico».
E que a lei fornece os meios de ser provada.
Depois, ultrapassado aquele primeiro momento pela positiva, a teoria da causalidade adequada impõe, num segundo momento, que o facto concreto apurado seja, em abstracto e em geral, apropriado, adequado para provar o dano.
E agora entra-se em questão de direito”.
Henrique Mesquita[11], a este respeito (na RLJ 128-92), com o apoio da jurisprudência (v.g., Acs. STJ de 3/12/1992 e de 11/5/2000, BMJ 422- 365 e 497-350) ensina que para que se possa afirmar que determinada pessoa causou determinados danos:
“a) Tem de provar-se - prova que incumbe ao lesado, nos termos do n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil – que os danos resultaram de um facto praticado por essa pessoa ou por agentes seus;
b) E tem de apurar-se, num segundo momento, se tal facto, apreciado em abstracto, era apropriado – adequado - para produzir danos”.
E acrescenta que “a segunda operação traduz-se numa questão de direito, pois implica um juízo normativo ou de valor, isto é, um juízo que tem de ser emitido em conformidade com um critério – o critério da causalidade adequada – fixado pelo legislador.
Mas a primeira operação, destinada a averiguar no plano naturalístico ou físico, se os danos resultaram dum acto ou emissão da pessoa em relação à qual se formula a pretensão indemnizatória, implica ou envolve unicamente uma questão de facto”.
E Vaz Serra[12] refere: “Não podendo considerar-se como causa em sentido jurídico toda e qualquer condição, há que restringir a causa àquela ou àquelas condições que se encontrem para com o resultado numa relação mais estreita, isto é, numa relação tal que seja razoável impor ao agente responsabilidade por esse mesmo resultado.… Ora, sendo assim, parece razoável que o agente só responda pelos resultados para cuja produção a sua conduta era adequada, e não por aqueles que tal conduta, de acordo com a sua natureza geral e o curso normal das coisas, não era apta para produzir e que só se produziram em virtude de uma circunstância extraordinária”.
A maioria da jurisprudência, sob influência de Antunes Varela, afirma haver no citado art.º 563.º uma formulação negativa da causa adequada. E assim parece ser, já que a lei não refere qualquer adequação.
Apesar de não se poder exigir desta norma o que ela não pretende dar, não devemos deixar de considerar que estamos no domínio da causalidade, enquanto pressuposto de responsabilidade civil, pelo que, como tal, acompanhando Menezes Cordeiro, podemos afirmar que ela se desenvolve em quatro tempos:
“- conditio sine qua non;
- adequada em termos de normalidade social;
- provocada pelo agente, para obter o seu fim;
- consoante com os valores tutelados pela norma violada.”[13]

No caso vertente, mostra-se provado que o autor ouvia ruído proveniente do estabelecimento da ré, provocado pelos seus colaboradores e pelos seus clientes, durante a semana e aos fins de semana, fora do horário de funcionamento, pelo menos, desde o Verão de 2014 até 14/12/2016, data da propositura da acção, o que prejudicou o seu descanso e perturbou o seu sono, fazendo com que se sentisse exausto, frustrado e andasse sem energia e sem motivação [cfr. als. g), i), j), l), n), o), p), q) e r)].
Deste modo, com o devido respeito por opinião contrária, cremos não haver dúvidas de que o dano resultou da conduta da ré e dos seus agentes e que esta foi adequada a produzir aquele.
Assim, não tem razão a recorrente quando nega a existência de tal nexo, ao pretender que os danos são causados por terceiros. Apesar de também se ter dado como provada a existência de outros estabelecimentos na mesma rua, com horários de encerramento posteriores ao estabelecimento da ré, e a circulação de clientes desses estabelecimentos pela mesma rua, fazendo barulho, a verdade é que os danos verificados resultaram deste estabelecimento e, por conseguinte, da conduta da demandada, e não daqueles.
Improcedem, por conseguinte, as restantes conclusões atinentes a esta questão.

A apelação tem, pois, que improceder, com a consequente manutenção da sentença recorrida.

Sumariando:
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III. Decisão

Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e confirma-se a sentença recorrida, com a rectificação do aludido lapso de escrita, mandando eliminar na parte decisória a expressão “nos termos do artigo 879.º, n.º 4 do Código Civil”.
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Custas pela apelante.
*
Porto, 14 de Dezembro de 2017
Fernando Samões
Vieira e Cunha
Maria Eiró
___________
[1] Neste sentido, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 3.ª edição, pág. 703.
[2] No mesmo sentido, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, págs. 221 e 222.
[3] Proferidos, respectivamente, na acção n.º 902/09.9TJPRT.P1 e no procedimento cautelar n.º 912/14.4T8PRT.P1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt, na parte aqui aplicável.
[4] Cfr., entre outros, os acórdãos do STJ de 7/4/2011 e de 19/4/2012, proferidos, respectivamente, nos processos n.ºs 419/06.3TCFUN.L1.S1 e 3920/07.8TBVIS.C1.S1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
[5] Cfr., sobre a amplitude daqueles direitos, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 3.ª edição, pág. 103 e Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 1980, págs. 63 e 64, e, sobre as aludidas providências, Antunes Varela, RLJ 116-145.
[6] Cfr. citados acórdãos de 7/4/2011 e 19/4/2012 e os demais ali citados, designadamente os do STJ de 13/9/2007, processo n.º 07B2198 e de 8/4/2010, processo n.º 1715/03.7TBEPS.G1.S, publicados no mesmo sítio da dgsi.
[7] Cfr. citado acórdão de 19/4/2012.
[8] Cfr. Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, págs. 355 e 393.
[9] António Menezes CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, II – Direito das Obrigações, tomo III, 2010, pág. 467 e os autores aí referenciados: Almeida Costa, Direito das obrigações, 12.ª ed., 580; Jorge Ribeiro de Faria, Direito das obrigações, 1, 451-452; Luís Menezes Leitão, Direito das obrigações, 1, 8.ª ed., 313.
[10] Publicado na CJ (STJ), Ano VII, Tomo I, pág.73.
[11] Citado no acórdão do STJ de 17/10/2002, processo n.º 02B2255, disponível em www.dgsi.pt.
[12] Citado por Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 3.ª edição, pág. 549.
[13] Tratado, op. cit., II, t. III, 550.