Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0530542
Nº Convencional: JTRP00037745
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
Nº do Documento: RP200502240530542
Data do Acordão: 02/24/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: .
Sumário: I- Para o cálculo da capitação de rendimentos do agregado familiar do menor, referida no artº 3º do Dec.-Lei nº 164/99, de 13 de Maio, há que atender ao rendimento efectivamente auferido independentemente do montante das despesas suportadas pelo agregado em causa consideradas normais e inerentes à vida familiar.
II- O conceito de alimentos previsto da nossa lei, como obrigação dos pais para com os filhos menores, tem um sentido amplo, abrangendo não só o que é indispensável à satisfação das necessidades básicas imprescindíveis à sua sobrevivência, mas, também, tudo quanto o menor necessita para ter uma vida em consonância com a sua condição social, as suas aptidões e a sua idade, com vista ao normal desenvolvimento físico, intelectual e moral da vida do alimentando.
III- São diferentes os critérios que o Cód. Civil fixa para a determinação dos alimentos em relação aos previstos para o caso de ressarcimento através do Fundo de Garantia dos Alimentos a Menores. É que se no primeiro caso apenas se consubstancia a forma de concretização de um dos deveres em que se desdobra o exercício do poder paternal, já na obrigação do Fundo - prestação nova, actual e autónoma, com natureza subsidiária, embora sem ser mera obrigação de garantia da prestação que o tribunal fixara anteriormente-- está em causa a imposição ao Estado dos deveres de assegurar a garantia da dignidade da criança como pessoa em formação a quem deve ser concedida a necessária protecção.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

RELATÓRIO:

No .....º Juízo, ....ª Secção, do Tribunal de Família e Menores do Porto, correm uns autos de Incumprimento do Poder Paternal em que é requerente B................................ e requerido C...................., designadamente, na parte respeitante à prestação de alimentos devida pelo requerido, pai do menor D.................. .

Alegou a requerente que o pai do menor não vem pagando os alimentos ao filho, desde Junho de 2003.

Notificado nos termos do disposto no artº 181º-2 da O.T.M., o requerido confessou o invocado incumprimento, mas alegou estar desempregado e numa situação económica difícil.

Foi solicitado ao I.S.S.S informação sobre a situação económica do requerido, com cópia a fls. 24 destes autos de recurso, bem assim se solicitou a realização do inquérito a que alude o artº 4º, nº1, do Dec.-Lei nº 164/99, de 13 de Maio, cuja cópia do relatório igualmente se encontra a fls. 20 a 23 destes autos de recurso.

O Mº Pº emitiu o seu parecer.
Foi, então, proferida decisão, ao abrigo do disposto no artº 2º da Lei nº 75/98, de 19 de Novembro e arts. 3º, nº3 e 4º do citado Dec.-Lei nº 164/99, de 13.05, fixando em 100 € (cem euros) o montante mensal que o Estado deve prestar a título de alimentos ao menor D....................., quantia esta a ser entregue à sua mãe, ora requerente.

Inconformada com esta decisão, veio a requerente, B........................., interpor recurso desta decisão, em conformidade com o disposto no artº 3º, nº5, da citada Lei nº 75/98, apresentando alegações que remata com as seguintes

CONCLUSÕES:
“1 - Salvo melhor opinião, a douta Decisão deverá alterar-se no sentido de aumentar o valor da prestação a pagar pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menor, dado que se logrou provar que o tribunal a quo não levou em consideração as despesas mensais da própria requerente, nem a totalidade das despesas do menor.
II - Com efeito, na douta Decisão não consta qualquer menção às despesas que a requerente suporta com o seu sustento.
III - A requerente aufere o valor líquido de 646,84, que conjuntamente com a prestação familiar do menor, perfaz um total de € 669,84, para um agregado familiar composto de duas pessoas.
IV - Consta do relatório aqui junto como doc. nº 1 que este agregado suporta de despesas fixas mensais o valor de 227,00, sendo que tais despesas também o são em proveito do menor.
V - O menor tem despesas mensais no montante de € 299,47, que estão a ser suportadas unicamente pela requerente desde Junho de 2003, data desde a qual o requerido deixou de pagar a prestação de alimentos.
VI - Deduzido o valor total das despesas mensais ao rendimento do agregado, apenas restam € 143,37 para a requerente fazer face às despesas com o seu sustento, incluindo alimentação, saúde, higiene, transporte, entre outras.
VIl - Ora, o Tribunal a quo quando atribuiu o valor da prestação a ser paga pelo Fundo de Garantia de Alimentos a Menor, € 100,00, não teve em consideração a totalidade dos gastos do menor.
VIII - A prestação fixada pelo tribunal a quo não é proporcional à capacidade económica do agregado familiar, nem às necessidades específicas do menor.
IX - Estão preenchidos de forma clara e rigorosa os requisitos da Lei para que o montante da prestação seja aumentado para € 150,00 que se entende como mínimo necessário para fazer face aos gastos mensais do menor.

Nestes termos e nos melhores de Direito, deve a douta Sentença ser alterada, fixando-se uma prestação de alimentos a ser paga ao menor pelo Fundo de Garantia de Alimentos devido ao Menor, no montante de € 150,00 mensais;

Caso assim não se entenda, deve ser fixado o montante de € 134,00, entendido pelo Mº Pº como o valor correcto face às necessidades do menor;

E em última instância, deverá manter-se a prestação de alimentos em vigor € 130,00.

Assim decidindo, V. Exas. farão como sempre,
SÃ JUSTIÇA”

O Mmº Juiz a quo sustentou a manutenção do decidido.
Foram colhidos os vistos.

II. FUNDAMENTAÇÃO.
II.1. AS QUESTÕES:

Tendo presente que:
--O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do C. P. Civil);
-- Nos recursos se apreciam questões e não razões;
-- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, a questão a resolver consiste em saber se deve, ou não, manter-se a prestação alimentícia a ser paga ao menor pelo Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores.

II.2. OS FACTOS:

Os factos a ter em conta são os supra relatados e ainda os seguintes:
- O menor é estudante a frequentar o 3º ano do 1º Ciclo de Ensino Básico.
Tem sido saudável, vindo, porém, a ser acompanhado ao nível da psicologia, acompanhamento que vem a ser dado por uma técnica da Junta de Freguesia de Ramalde.
- As despesas mensais “médias” referidas na decisão recorrida resultam das seguintes verbas:
a)- 227 € de habitação (renda de casa), consumo de água, luz, electricidade (61,23 €), pagamento da prestação mensal de crédito pessoal (48,55 €), mensalidade do crédito automóvel (88,48 €);
b)- 299, 47 de despesas mensais do menor, resultantes de frequência de ATL (87,23 €), seguro de saúde (4,50 €), vestuário, calçado, alimentação e material escolar (207,74 €).
- O pai do menor não lhe vem pagando a prestação de alimentos mensais fixada em € 134,00 e não vem recebendo qualquer rendimento, não sendo, por isso, possível a cobrança coerciva dos alimentos em dívida.

III. O DIREITO

Dispõe a Lei nº 75/98, de 19.11 - diploma que rege a “Garantia dos alimentos a menores” - o seguinte:

Artº 1º:
“Quando a pessoa judicialmente obrigada alimentos a menor residente em território nacional não satisfizer as quantias em dívida pela formas previstas no artº 189º do Decreto-Lei nº 314/78, de 27.10, e o alimentado não tenha rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, o Estado assegura as prestações previstas na presente lei até ao início do efectivo cumprimento da obrigação.”

Artº 2º:
“1- As prestações atribuídas nos termos da presente lei são fixadas pelo tribunal e não podem exceder, mensalmente, por cada devedor, o montante de 4 Ucs.
2. Para a determinação do montante referido no número anterior, o tribunal atenderá à capacidade económica agregado familiar, ao montante da prestação de alimentos fixada e às necessidades específicas do menor”.

Acrescenta nº 3 do artº 3º da mesma Lei que “o juiz mandará proceder às restantes diligências que entenda indispensáveis e a inquérito sobre as necessidades do menor, posto o que decidirá”.

Por sua vez, o Dec.-Lei nº 164/99, de 13 de Maio - que veio regulamentar e dar execução à citada Lei nº 75/99, de 19.11 (cfr. artº 7º desta Lei) - dispõe o seguinte:

Artº 1º
“O presente diploma regula a garantia de alimentos devidos a menores prevista na Lei nº 75/98, de 19 de Novembro.”

Artº 2º:
“1 - É constituído, no âmbito do Ministério do Trabalho e da Solidariedade, o Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores, adiante designado por Fundo, gerido em conta especial pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social.
2 - Compete ao Fundo assegurar o pagamento das prestações de alimentos atribuídas a menores residentes em território nacional, nos termos dos artigos 1º e 2º da Lei nº 75/98, de 19 de Novembro.
3 - O pagamento das prestações referidas no número anterior é efectuado pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, na qualidade de gestor do Fundo, por ordem do tribunal competente, através dos centros regionais de segurança social da área de residência do alimentado.”

Artº 3º:
“1 - O Fundo assegura o pagamento das prestações de alimentos referidas no artigo anterior até ao início do efectivo cumprimento da obrigação quando:
a) A pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189º do Dec.-Lei nº 314/78, de 27 de Outubro; e
b) O menor não tenha rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre.
2 - Entende-se que o alimentado não beneficia de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, superiores ao salário mínimo nacional, quando a capitação de rendimentos do respectivo agregado familiar não seja superior àquele salário.
3 - As prestações a que se refere o Nº 1 são fixadas pelo tribunal e não podem exceder, mensalmente, por cada devedor, o montante de 4 UC, devendo o tribunal atender, na fixação deste montante, à capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação de alimentos fixada e às necessidades específicas do menor.”

Artº 4º:
“1 - A decisão de fixação das prestações a pagar pelo Fundo é precedida da realização das diligências de prova que o tribunal considere indispensáveis e de inquérito sobre as necessidades do menor, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público.
2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, o tribunal pode solicitar a colaboração dos centros regionais de segurança social e informações de outros serviços e de entidades públicas ou privadas que conheçam as necessidades e a situação sócio-económica do alimentado e da sua família.
3 - A decisão a que se refere o nº 1 é notificada ao Ministério Público, ao representante legal do menor ou à pessoa a cuja guarda se encontre e respectivos advogados e ao Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social.
4 - O Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social deve de imediato, após a notificação, comunicar a decisão do tribunal competente ao centro regional de segurança social da área de residência do alimentado.
5 - O centro regional de segurança social inicia o pagamento das prestações, por conta do Fundo, no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal.”

Assim transcritas as normas legais aplicáveis ao caso sub judice, vejamos como resolver a questão suscitada pela agravante.

Dúvidas não há que se mostram reunidos os pressupostos - previstos nos arts. 1º da Lei nº 75/98, de 19-11 e 3º nºs 1 e 2 do Dec.-Lei nº 164/99, de 13-05 - para a fixação de uma prestação alimentícia a favor do menor e a pagar pelo Estado, pois provado está a impossibilidade de cobrança coerciva das prestações de alimentos fixadas ao menor e a cargo do seu progenitor (134 € mensais e artº 189º da OTM), bem assim que o menor não tem rendimentos da sua progenitora em montante superior ao salário mínimo nacional, atendendo à capitação dos rendimentos do agregado familiar.

É bom que se diga que nos ditos diplomas se teve em consideração, para trazer à colação o salário mínimo nacional, o rendimento efectivamente auferido independentemente do montante das despesas suportadas pelo agregado em causa.
Ou seja, para o cálculo da capitação relativa ao agregado do menor alimentando, nada permite concluir que se haja de apurar o respectivo rendimento após a dedução das despesas consideradas normais e inerentes à vida familiar.
“O que se compreende, atenta a margem de discricionaridade que a qualificação das despesas relevantes para operar uma tal dedução necessariamente viria trazer a um regime cuja aplicação o legislador (certamente no intuito de prevenir abusos) pretendeu imprimir algum rigor” (Ac. Rel. Lisboa de 18.01.2001, na Internet, em DGSI, doc. nº RL2001011800104618).

Ora, como resulta da matéria de facto provada, no caso sub judice o rendimento efectivamente auferido pelo agregado familiar do menor, independentemente, portanto, das supra apontadas despesas, não permite uma capitação de rendimentos desse agregado igual ou superior ao salário mínimo nacional.
Daqui que se justifique a intervenção do Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores.
E só nestas situações se justifica.
É que - como se acentuou no Ac. da Rel. de Guimarães de 20.11.2002, no processo nº 867/2002--, “Assim, quando o menor tem assegurada a sua subsistência no agregado familiar em que está inserido, pelo facto deste ter um rendimento superior ao salário mínimo nacional, por cabeça, nos termos do artigo 3º, nº2 do Dec.-lei nº 164/99, de 13.05, o Estado não deverá intervir com esta prestação, apesar de haver incumprimento do devedor de alimentos.
Isto porque, primeiramente deve intervir a família, por força dos vínculos familiares que criam deveres de alimentos.
Vigora o primado da responsabilidade familiar, pelo sustento dos elementos do seu agregado familiar, e, só, excepcionalmente, o Estado intervém, no caso da sociedade familiar, em que o menor se insere, não puder suportar a subsistência do menor, face à sua situação económica”.

Mas merecerá censura o montante da prestação de alimentos fixado na decisão recorrida?
Vejamos.

O direito das crianças à protecção, como função da sociedade e do Estado, tendo em vista o seu desenvolvimento integral, vem consagrado na CRP (artº 69º), o que implica a imposição ao Estado dos deveres de assegurar a garantia da dignidade da criança como pessoa em formação a quem deve ser concedida a necessária protecção. Daqui o direito a alimentos, decorrência, ele mesmo, do direito à vida (artº 24º CRP).
Tem-se verificado um enfraquecimento no cumprimento dos deveres inerentes ao poder paternal, designadamente no que respeita ao dever de alimentos - por inúmeras razões, que aqui não importa descriminar--, por vezes inviabiliando-se o cumprimento desses mesmos deveres. E daqui que o Estado se tenha visto na contingência de criar mecanismos capazes de assegurar o direito a alimentos, na falta de cumprimento da obrigação dos obrigados aos mesmos.
Assim surgiu uma nova prestação social com a Lei nº 75/98, de 19.11, assim se avançando significativamente na direcção (certa) do reforço da protecção social que os menores exigem e lhes era devida.
Desta forma se protege, também, a relação familiar - salientando-se que, como refere o Prof. Pereira Coelho, in R.L.J., ano 120º-82 ss, a família constitucionalmente protegida -- no artº 67º da CRP - não é só a do casamento, mas ainda a natural, a adoptiva e ainda a união de facto - se bem que esta última tenha «um conteúdo incomparavelmente mais pobre que a relação matrimonial». Nem a tanto fará obstáculo, como refere o mesmo Professor «o disposto no artº 1576º do CC, pois o elenco das relações familiares constantes deste preceito, que mantém a redacção de 1966, poderá considerar-se alterado pela evolução legislativa e jurisprudencial posterior» -- sublinhado nosso.

Não se questiona aqui o conceito e sentido de agregado familiar que está subjacente, designadamente no campo da segurança social - o qual não deve ser visto de forma ou no sentido estrito, puramente técnico, das “fontes das relações jurídicas familiares” constantes do art 1576º do CC, mas no sentido muito mais amplo.
Efectivamente, não curou aqui o legislador de saber a fonte de onde brota o agregado familiar do menor. Quis saber, sim, como funciona esse agregado familiar e quem o compõe - entendido em termos amplos, como uma comunidade de interesses, motivações, finalidades, com comparticipação, não só de casa (mesa e habitação) mas, também, nas despesas daquele núcleo, ligado, não só por relações jurídico-familiares estritas, ou tecnicamente entendidas, mas por muito mais.
Ou seja, o que importa, para efeitos de saber quem faz parte do agregado familiar a considerar para efeitos dos aludidos diplomas no âmbito do direito da segurança social, é saber a pessoa x ou y – que pode ser um familiar, ou alguém não ligado por laços de parentesco -- se integra no núcleo de pessoas ligado entre si pelos interesses e valores referidos, núcleo esse de que faz parte a pessoa a cuja guarda se encontra o menor D.............., no caso a sua mãe, ora requerente.
Se se integrar em tal núcleo, o seu rendimento entra para a aludida capitação de rendimentos do agregado familiar em questão; não se integrando, não deverá ser considerado.
Portanto, neste domínio, o agregado familiar vai muito além da previsão decorrente do citado artº 1576º do CC. Basta, aliás, pensar na hipótese de o menor ficar à guarda de terceira pessoa, que não os progenitores. É manifesto que, também aqui, esse terceiro não podia deixar de ser tido em consideração para efeitos do aludido conceito de agregado familiar.
Na situação sub judice, é claro que o “agregado familiar” a que pertence ou onde se insere o menor D.............. é constituído apenas por ele e sua mãe, a B............................ .
É tendo presente este agregado e os respectivos rendimentos que se decidirá se o montante fixado na decisão recorrida a título de alimentos ao menor deve ser mantido ou alterado.

Ora, está provada nos autos (cfr. relatório do inquérito e informação solicitados ao ISSS, ao abrigo do disposto no artº 4º, nºs 1 e 2 do DL 164/99, de 13.05, juntos aos autos a fls. 20 a 24 destes autos de recurso) a seguinte factualidade:
O menor é estudante, a frequentar o 3º ano do 1º Ciclo de Ensino Básico.
Vem sendo acompanhado ao nível da psicologia, acompanhamento que vem a ser dado por uma técnica da Junta de Freguesia de Ramalde.
As despesas mensais do agregado familiar são as seguintes:
a)- 227 € de habitação (renda de casa), consumo de água, luz, electricidade (61,23 €), pagamento da prestação mensal de crédito pessoal (48,55 €), mensalidade do crédito automóvel (88,48 €);
b)- 299, 47 de despesas mensais do menor, resultantes de frequência de ATL (87,23 €), seguro de saúde (4,50 €), vestuário, calçado, alimentação e material escolar (207,74 €).
- A prestação de alimentos mensais fixada para ser paga pelo pai do menor - e que este deixou de pagar, não sendo possível a cobrança coerciva dos alimentos em dívida -- é de € 134,00.

Face a estes elementos, somos de parecer que mal andou a decisão recorrida.

A obrigação de prestar alimentos que a lei impõe aos que s encontram adstritos a prestá-los abrange tudo o que é indispensável à satisfação das necessidades da vida do alimentando, como seja, o seu sustento, habitação, vestuário, instrução e educação.
Trata-se de um sentido amplo que deve ser dado ao conceito de alimentos, tal qual resulta da lei (ut arts. 1878º, nº1, 1885º e 2003º, do Cód. Civil.
É este, também, o entendimento que vem sendo seguido pela doutrina e jurisprudência (cfr. Moitinho de Almeida, in Scientia Jurídica, 1967, nºs 84/85, a pág. 269; Vaz Serrra, Rev. Leg. Jur., ano 102, pág. 262 e Ac. da Rel. do Porto, de 22.07.77, in Col. Jur., 1977, a pág. 1164).
O mesmo é dizer que o que está em causa no âmbito da problemática da obrigação alimentícia a cargo dos pais e em relação aos filhos menores é, não apenas a satisfação das necessidades básicas que sejam imprescindíveis à sua sobrevivência, mas também de tudo quanto o menor necessita para ter uma vida em consonância com a sua condição social, as suas aptidões e a sua idade, atendendo ao seu normal desenvolvimento físico, intelectual e moral.

Para a determinação do montante dos alimentos a pagar por aquele que “houver de prestá-los”, diz a lei que se deve ter em conta os meios daquele que houver de prestá-los e a necessidade daquele que houver de recebê-los (artº 2004º CC).
Já quanto à determinação do montante de alimentos a pagar pelo Fundo de Garantia dos Alimentos a Menores, prevê a lei critérios bem definidos para o efeito.
Assim, como vimos, dispõe o nº 3 do artº 3º do Dec.-Lei nº 164/99, de 13.05, os alimentos “não podem exceder, mensalmente, por cada devedor, o montante de 4 UC”, “devendo o tribunal atender, na fixação deste montante, à capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação de alimentos fixada e às necessidades específicas do menor.”

Como vimos, o rendimento global do agregado familiar do menor é de € 646,84 mensais, sendo, por sua vez, a prestação de alimentos fixada pelo tribunal no montante de € 134,00 mensais.
Por outro lado, igualmente vimos que as despesas mensais fixas com o menor rondam € 299,47.
Ora, mesmo considerando apenas estes gastos com o menor -- que, porém, nos parece pecarem seguramente por defeito, como à frente melhor salientaremos --, se tivermos em consideração que a progenitora do menor (sua mãe e ora agravante) só em renda de casa, consumo de água, luz, electricidade, pagamento da prestação mensal de crédito pessoal e mensalidade do crédito automóvel despende € 227, restarão uns parcos € 120 para as despesas com ela própria (em alimentação, vestuário, calçado, higiene, etc., etc.)!
E, então, de duas uma: ou a requerente corta nas despesas com o menor, designadamente nas atinentes às necessidades básicas deste (vestuário, calçado, alimentação, saúde, educação, etc.), ou muito possivelmente terá que “passar as passas do inferno” para suportar as despesas minimamente exigíveis com ela própria.

Daqui logo se vê que, se aqui não se questiona o montante da prestação de alimentos fixado pelo tribunal, atendendo a que aí se teve em conta “os meios daquele que houver de prestá-los” (artº 2004º do CC), já se não pode aceitar o montante da prestação de alimentos fixada na decisão recorrida, a pagar pelo Estado, através do dito Fundo de Garantia.
É que, nesta última situação - como vimos--, o que o dito Dec.-Lei impõe é apenas e só um tecto (limite) para o montante de alimentos: 4 Ucs, mensalmente, por cada devedor. Mas não obriga que na determinação do valor das prestações de alimentos se tenha em conta apenas o montante da prestação de alimentos fixada pelo tribunal (no caso, os € 134), antes mandando atender a outros factores: “à capacidade económica do agregado familiar e [....] às necessidades específicas do menor”.

Efectivamente, são, de facto, bem diferentes os critérios que o CC fixa para a determinação dos alimentos em relação aos previstos para o caso de ressarcimento através do Fundo.
O que bem se compreende. É que quanto ao Fundo, o que está em causa é apenas satisfazer as necessidades essenciais resultantes do princípio programático contido na Constituição da República, qual seja, o « ...acesso às condições de subsistência mínima...», suficientes para proporcionar condições essenciais ao desenvolvimento do menor e a uma vida digna, devendo o tribunal atender aos aspectos referidos no citado artº 3º, nº 3 do DL nº 164/99.
Portanto, são, seguramente, prestações bem diferentes aquela a cargo do Fundo e a prevista no CC, com critérios bem diferenciados, sendo patente que o montante da prestação fixada pelo tribunal apenas constitui um dado a ponderar na fixação do novo valor.
Assim, desde logo, a prestação do Estado não pode ver-se como um mero meio de satisfação da prestação em dívida. Trata-se de uma nova e autónoma prestação. Autónoma e actual que não visa que se tenha querido garantir ao menor os alimentos a que o progenitor estava obrigado por decisão anterior e que não satisfez.
Se esta prestação visa assegurar, no desenvolvimento da política social do Estado, a necessária protecção da criança, relativamente ao acesso da mesma às condições de subsistência mínimas - tem esta prestação, portanto, a natureza de prestação social visando o reforço da protecção social que o Estado deve a menores, e não de mera obrigação de garantia da prestação que o tribunal fixara anteriormente--, já a prestação de alimentos fixada ao abrigo do CC apenas consubstancia a forma de concretização de um dos deveres em que se desdobra o exercício do poder paternal.
Escreve Remédios Marques, in Algumas Notas Sobre Alimentos (Devidos a Menores), pág. 221, que o Fundo não visa substituir definitivamente uma obrigação legal de alimentos devida a menor, antes proporcionar uma prestação a forfait de um montante por regra equivalente - mas que pode ser menor ou até maior - ao que fora fixado judicialmente.
E tal obrigação do Fundo não pode deixar de ter natureza subsidiária, pois é seu pressuposto legitimador a não realização coactiva da prestação alimentícia já fixada através das formas previstas no artº 198º da OTM. O Estado substitui-se ao devedor, não para pagar as prestações que este deva, mas para assegurar os alimentos de que o menor precise.
Como aflorado supra, está em causa a imposição ao Estado dos deveres de assegurar a garantia da dignidade da criança como pessoa em formação a quem deve ser concedida a necessária protecção.

Considerando o exposto-- e tendo em conta as “necessidades específicas do menor”, bem como as aludidas despesas fixas e as previsíveis da mãe do menor, para ver, depois, o que “sobra”,-- é claro que o valor fixado na decisão recorrida é, seguramente, reduzido para que a requerente possa, com um mínimo de dignidade, satisfazer aquelas necessidades.
Efectivamente, não se pode olvidar, ainda, que o D............. já faz este ano 10 anos de idade, frequentando o ensino obrigatório, e que irá iniciar uma fase etária em que cada vez as despesas com alimentação, vestuário e educação se revelarão com maior significado, despesas essas que os referidos (parcos) rendimentos do agregado familiar cada vez menos permitirão satisfazer.
Assim sendo, no confronto das realidades apontadas, temos como certo que a prestação fixada na decisão recorrida não é proporcional à capacidade económica do agregado familiar, nem às necessidades específicas do menor.
Como tal, há que dar satisfação à pretensão da agravante, fixando-se o montante da prestação mensal de alimentos no valor por ela aqui peticionado -- € 150,00--, o qual a pecar, será, seguramente, por defeito, já que mesmo com tal valor não deixará a mãe da menor de ter de fazer alguma “ginástica” para suportar as despesas necessárias ao normal desenvolvimento do menor.

CONCLUINDO:
Para o cálculo da capitação de rendimentos do agregado familiar do menor, referida no artº 3º do Dec.-Lei nº 164/99, de 13 de Maio, há que atender ao rendimento efectivamente auferido independentemente do montante das despesas suportadas pelo agregado em causa consideradas normais e inerentes à vida familiar.
O conceito de alimentos previsto da nossa lei, como obrigação dos pais para com os filhos menores, tem um sentido amplo, abrangendo não só o que é indispensável à satisfação das necessidades básicas imprescindíveis à sua sobrevivência, mas, também, tudo quanto o menor necessita para ter uma vida em consonância com a sua condição social, as suas aptidões e a sua idade, com vista ao normal desenvolvimento físico, intelectual e moral da vida do alimentando.
São diferentes os critérios que o Cód. Civil fixa para a determinação dos alimentos em relação aos previstos para o caso de ressarcimento através do Fundo de Garantia dos Alimentos a Menores. É que se no primeiro caso apenas se consubstancia a forma de concretização de um dos deveres em que se desdobra o exercício do poder paternal, já na obrigação do Fundo - prestação nova, actual e autónoma, com natureza subsidiária, embora sem ser mera obrigação de garantia da prestação que o tribunal fixara anteriormente-- está em causa a imposição ao Estado dos deveres de assegurar a garantia da dignidade da criança como pessoa em formação a quem deve ser concedida a necessária protecção.

IV. DECISÃO:

Termos em que acordam os Juizes da Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em dar provimento ao agravo, alterando a decisão recorrida e fixando em € 150,00 (cento e cinquenta euros) o montante mensal que o Estado deve prestar, a título de alimentos, ao menor D................, quantia essa a ser entregue à sua mãe B......................., ora agravante.

Sem custas.
Porto, 24 de Fevereiro de 2005
Fernando Baptista Oliveira
José Manuel Carvalho Ferraz
Nuno Ângelo Rainho Ataíde das Neves