Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
8/22.5T8STS-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO INDISPONÍVEL DO INSOLVENTE
Nº do Documento: RP202209128/22.5T8STS-B.P1
Data do Acordão: 09/12/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A regra da anualidade que decorre do nº 2, do artigo 240º e do nº 1, do artigo 241º, ambos os artigos do CIRE, dirige-se ao fiduciário, tendo em vista a prestação de informações aos credores e ao juiz e a afetação dos rendimentos que ao longo do ano foram sendo por ele recebidos.
II - O salário mínimo nacional, enquanto referência ou padrão mínimo para a estipulação – pelo tribunal e olhando às particularidades de cada caso concreto - do (mínimo) rendimento indisponível do devedor, ou seja, não sujeito a cessão ao fiduciário (artigo 239, n.º 2 e n.º 3, alínea b), ii) do CIRE) é o salário mínimo nacional mensal, legalmente fixado, e não o equivalente a um duodécimo da multiplicação por catorze daquele valor.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Insolv-CesRend-8/22.5T8STS-B.P1
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SUMÁRIO[1] (art. 663º/7 CPC):
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I. Relatório
AA, maior, portador do cartão de cidadão n.º ..., com data de validade até 05/03/2030, e titular do NIF ..., residente na Rua ..., n.º ..., 2.º direito, ... Trofa veio apresentar-se à insolvência e requereu a exoneração do passivo restante.
Para fundamentar o pedido de insolvência e de exoneração do passivo restante alegou, em síntese, que exerce a profissão de motorista de reboque de carros, encontrando-se atualmente empregado, na empresa S... S.A, titular do NIPC ..., e com sede na Rua ..., N.º ... ... Póvoa de Varzim, sendo o único elemento do seu agregado familiar a trazer sustento para aquele e tendo uma dependente a seu cargo onde comparticipa com parte das despesas escolares.
Mais alegou que o seu agregado familiar tem vindo ao longo dos últimos meses a contar com a da ajuda de familiares/terceiros para sobreviver e pagar as despesas que vão surgindo e viu a sua situação financeira agravar-se irremediavelmente, acumulando dívidas que não consegue solver, o que veio a culminar no incumprimento das suas obrigações.
Mais alegou que não dispõe de quaisquer meios para conseguir liquidar as suas dívidas, pois a totalidade dos rendimentos auferidos já não são suficientes para dar resposta às suas despesas mensais, as quais consistem em: alimentação - €300,00; renda de casa- €400,00 luz-€75,00; água - € 45,00; serviços de telecomunicações - €45,00; transportes - € 40,00; despesas escolares de dependente - 200€ .
A falta de liquidez deve-se a várias dívidas pendentes que foram surgindo ao longo do tempo: € 272,35 (duzentos e setenta e dois euros e trinta e cinco cêntimos) à Banco 1..., SA; uma quantia que ascende ao valor de € 166,69 (cento e sessenta e seis euros e sessenta e nove cêntimos) ao Banco 2..., SA,; uma quantia que ascende ao valor de € 51,29 (cinquenta e eu euros e vinte e nove cêntimos) ao Banco 2..., SA; uma quantia que ascende ao valor de € 17865,02 (dezassete mil oitocentos e sessenta e cinco euros e dois cêntimos) cinquenta e eu euros e vinte e nove cêntimos) à X..., S.A., NIPC ..., com sede na RUA ..., Nº ... - 14º ANDAR, ... Lisboa.
Declarou que estão reunidos os requisitos para lhe ser concedido o benefício e ainda, aceitar as condições previstas nos art. 237º a 239º CIRE.
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Proferiu-se sentença em 13 de janeiro de 2022 que declarou a insolvência do requerente.
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O Administrador da Insolvência veio apresentar o relatório, ao abrigo do art. 155º CIRE, propondo o encerramento do processo e pronunciou-se no sentido de ser deferido liminarmente o incidente de exoneração do passivo restante, por não dispor de elementos que lhe permitam considerar que deva ser indeferido.
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Notificados os credores não foi deduzida oposição.
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Em 06 de abril de 2022 proferiu-se despacho que deferiu liminarmente o incidente de exoneração do passivo restante e considerou-se “adequado e suficiente para o sustento condigno do insolvente, o valor correspondente a um salário mínimo nacional (12 meses no ano). E, no total do agregado familiar, aqui incluindo os rendimentos e despesas da esposa, que não se apresentou à insolvência, o valor total correspondente a dois salários mínimos nacionais.
Pelo que, determino que o insolvente ceda ao fiduciário todos os seus rendimentos que em cada mês ultrapassem tal valor, logo que reúna condições para tal.
Advirta-se pessoal e expressamente o devedor das obrigações a que fica sujeito, constantes dos artigos 239.º, n.º 4 e 240.º, n.º 1 do CIRE.
Notifique e publicite (cfr. artigo 247.º do CIRE).
Mais advirta que o período de cessão se inicia com o trânsito em julgado deste despacho, atendendo ao consagrado no artigo 6.º, n.º 6, do D.L. n.º 79/2017, de 30-06 (adaptado à presente situação)”.
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O insolvente veio interpor recurso do despacho que fixou o rendimento indisponível.
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Nas alegações que apresentou o apelante formulou as seguintes conclusões:
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Termina por pedir o provimento do recurso e a revogação parcial da decisão e a sua substituição por outra que determine que o rendimento indisponível do recorrente deve corresponder a um salário mínimo nacional, multiplicado por 14 meses e no total do agregado familiar aqui incluído os rendimentos e despesas da mulher, que não se apresentou à insolvência o valor total correspondente a dois salários mínimos nacionais multiplicados por 14 meses e em conclusão que cada uma das parcelas mensais não deverá ser inferior à RMMG multiplicada por 14, cujo produto é dividido por 12 e em alternativa ou para o caso de assim não se entender, que por se tratarem de dividas anteriores ao casamento do insolvente com a sua atual mulher e não tendo operado o regime da comunicabilidade das dividas ser de excluir no total do agregado familiar, aqui incluídos os rendimentos (hipotéticos futuros) e despesas da mulher, que não se apresentou à insolvência do rendimento indisponível, fixando-se somente ao insolvente o equivalente a um salário mínimo nacional, multiplicado por 12 meses.
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Não foi apresentada resposta ao recurso.
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O recurso foi admitido como recurso de apelação.
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Dispensaram-se os vistos legais.
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Cumpre decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
A questão a decidir consiste em determinar se a parte do rendimento excluído da cessão se mostra suficiente para garantir o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar.
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2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal de 1ª instância:
1.O insolvente nasceu a .../.../1975 e é casado desde abril de 2011;
2. O agregado familiar do insolvente é composto pelo próprio, pela esposa e por uma filha desta, já maior, que estuda;
3. A esposa do insolvente não se apresentou à insolvência;
4. A esposa do insolvente encontrava-se desempregada;
5. O insolvente tem como profissão motorista de reboque de carros, encontrando-se atualmente empregado na empresa “S... S.A.” e é com o vencimento do insolvente e com ajuda de familiares que são suportadas as despesas do agregado familiar;
6. O insolvente indica como despesas médias do agregado familiar as referentes a alimentação, de €300,00; renda de casa, €400,00, luz de €75,00; água de € 45,00; serviços de telecomunicações, de €45,00; transportes de € 40,00; despesas escolares de 200€;
7. Foram reconhecidos créditos que ascendem ao valor total de € 16.113,32
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3. O direito
- Da cessão do rendimento disponível -
Nas conclusões de recurso insurge-se o apelante contra o despacho que fixou o montante dos rendimentos excluídos da cessão, por entender que não se ponderou todas as despesas e encargos que o requerente suporta, concluindo que o valor adequado se deve calcular tendo por base catorze meses e corresponder ao produto resultante da multiplicação de um RMMG por catorze meses, dividido por doze, sendo igual o critério em relação ao salário que a mulher do devedor venha a auferir.
No despacho que deferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, o juiz do tribunal “a quo“ considerou excluído do rendimento objeto de cessão, o valor correspondente a um salário mínimo nacional (12 meses no ano). E, no total do agregado familiar, aqui incluindo os rendimentos e despesas da esposa, que não se apresentou à insolvência, o valor total correspondente a dois salários mínimos nacionais.
Pretende-se, assim, apurar se face aos factos apurados e elementos que constam dos autos, o valor fixado no despacho recorrido é suficiente para satisfazer o sustento minimamente digno do insolvente e do seu agregado familiar.
Na apreciação da questão, por efeito da sucessão de leis no tempo, cumpre ter presente que o presente processo de insolvência foi instaurado em janeiro de 2022, vigorando à data, o regime previsto no DL 53/2004 de 18/03, na redação do DL 200/2004 de 18/08, com as alterações introduzidas pelo DL 116/2008 de 04/07, DL 185/2009 de 12/08, Lei 16/2012 de 20 de abril, DL 79/2017 de 30 de junho, Lei 8/2018 de 02 de março (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que passaremos a designar de forma abreviada “CIRE”).
Em 11 de abril de 2022 entraram em vigor das alterações introduzidas pela Lei 09/2022 de 11 de janeiro. O art. 10º da citada lei fixou um regime transitório de acordo com o qual as alterações se aplicam aos processos pendentes, alterações que não relevam para o caso presente.
Determina o art. 239º/2 do Código da Insolvência que proferido despacho que admite liminarmente o incidente de exoneração do passivo restante, nesse despacho determina-se, ainda, que durante os cinco anos - agora três - subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a um fiduciário.
No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, refere-se a respeito deste regime: “o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa-fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da ‘exoneração do passivo restante’. O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
A efetiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos - designado período da cessão - ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afetará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento”.
No regime criado, confrontamo-nos com dois interesses fundamentais a ponderar: por um lado, o interesse dos credores, que pretendem, naturalmente, reaver os seus créditos e o do insolvente em libertar-se do passivo.
A lei permite que o insolvente obtenha a exoneração dos créditos sobre a insolvência não integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste (art.º 235 e 236, do CIRE), de modo a poder reiniciar a sua vida económica livre das dívidas contraídas.
Como este resultado é conseguido à custa dos credores, importa seguir com especial atenção a lisura do comportamento do devedor e a sua boa-fé, visto que a medida em causa, gravosa quanto àqueles, só se compreende à luz da ideia de que o insolvente deseja orientar a sua vida de modo a não se envolver de novo em situações similares[2].
Neste contexto, a lei estabelece limites que passam pelo indeferimento do pedido de exoneração (art.º 238/1, CIRE) e a cedência do rendimento disponível aos credores (art.º 241), como forma de minorar o prejuízo destes e de responsabilizar o devedor pelo cumprimento das suas obrigações, ainda que parcialmente.
Nos termos do art. 239º/3 CIRE integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor.
Contudo, ficam excluídos do rendimento disponível, como prevê o mesmo preceito:
a) os créditos a que se refere o artigo 115º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;
b) o que seja razoavelmente necessário para:
i - o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii - o exercício pelo devedor da sua atividade profissional;
iii - outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.
Cumpre-nos atender de modo particular à interpretação da previsão do art. 239º/3-b) i) do CIRE, por ser nesse âmbito que se coloca a questão do presente recurso.
Desde logo, a possibilidade de excluir do rendimento disponível uma parcela para garantir “o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar” não pode deixar de ser interpretada no âmbito dos interesses a tutelar com a aplicação da medida, ou seja, por um lado, a medida de exoneração do passivo restante visa conceder uma oportunidade ao devedor insolvente, mas também garantir o cumprimento, pelo menos em parte, das obrigações assumidas pelo devedor, para demonstrar, por esta via, que está disposto a alterar a sua conduta, no sentido de passar a gerir de forma mais equilibrada e ponderada os seus rendimentos face às despesas que assumiu.
Por outro lado, constituindo os rendimentos do devedor o único meio de que dispõe para suportar os encargos normais, no sentido de garantir a sua subsistência, justifica-se que parte dos rendimentos fique excluída da cessão.
A jurisprudência tem vindo a defender de forma que se pode considerar uniforme que a exclusão que aqui se aprecia, consagrada na subalínea (i), trata-se da resposta natural, forçosa e obrigatória às necessidades e exigências que a subsistência e sustento colocam ao devedor insolvente e ao seu agregado familiar.
Assim, na definição da amplitude do “rendimento disponível”, fosse qual fosse a técnica legislativa utilizada, sempre teria que ficar de fora desse “rendimento disponível” a ceder uma parte do rendimento do devedor/insolvente; parte essa suficiente e indispensável a poder suportar economicamente a sua existência.
Esta exclusão surge, aliás, como uma exigência do princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de Direito, afirmado no art. 1º da Constituição da República e aludido também no art. 59º, nº 1, al. a) do mesmo diploma fundamental.
O reconhecimento do princípio da dignidade humana exige do ordenamento jurídico o estabelecimento de normas que salvaguardem a todas as pessoas o mínimo julgado indispensável a uma existência condigna.
Como se refere no Ac. Rel. Porto 12.06.2012 – Proc. 51/12.2 TBESP-E.P1:
“A função interna do património, de que decorre a exclusão prevista na subalínea (i), mais não representa do que uma aplicação prática daquele princípio supraconstitucional e enquanto alicerce da existência digna das pessoas – suporte da sua vida económica – reflete-se em diversas normas da legislação ordinária, designadamente em normas destinadas a conferir justo e adequado equilíbrio entre os conflituantes interesses legítimos do credor (a obtenção da prestação) e os interesses do devedor (o direito inalienável à manutenção de um nível de subsistência condigno), do que são exemplos o art. 239º, nº 3, al. b), (i) do CIRE e o art. 824º, nºs 1 e 2 do Cód. do Proc. Civil.
Normas estas que têm o mesmo fundamento axiológico – a garantia do sustento minimamente digno das pessoas, ou seja, a defesa da dignidade humana “
Neste sentido, podem ainda ler-se, entre outros, os Ac. Rel. Porto 12.06.2012 (Proc. 3529/11.1 TBVLG-B.P1), Ac. Rel. Porto 17.04.2012 (Proc. 959/11.2 TBESP-E.P1), Ac. Rel. Porto 08.03.2012 ( Proc. 162/11.1 TJVNF-F.P1), Ac. Rel. Lisboa 16.02.2012 (Proc. 1613/11.0 TBMTJ-D.L1-2) – todos em www.dgsi.pt.
O legislador consagrou um limite máximo para o que considera ser o razoavelmente necessário para o sustento minimamente condigno do indivíduo, fixando-o, de forma objetiva, no montante equivalente até três salários mínimos nacionais. Sucede que para lá deste montante já não estará em causa a dignidade humana, o que justificará, assim, a exigência acrescida de fundamentação no caso desse limite máximo ser excedido.
Mas já no que concerne ao limite mínimo, a técnica legislativa foi diversa, uma vez que em lugar de uma formulação objetiva como no limite máximo, se enveredou por um critério geral e abstrato (o sustento minimamente condigno do devedor e seu agregado familiar), a preencher pelo juiz em cada caso concreto, conforme as circunstâncias particulares do devedor.
Como se tem defendido na jurisprudência estamos perante um conceito aberto, a objetivar face à singularidade que reveste a situação concreta de cada devedor/insolvente e que tem como subjacente o reconhecimento do princípio da dignidade humana assente na definição do montante que é indispensável a uma existência digna, o que deverá ser avaliado na peculiaridade do caso de cada devedor.
Em suma, o juiz terá que efetuar um juízo de ponderação casuística relativamente ao montante a fixar[3].
O Tribunal Constitucional tem entendido, particularmente nos casos de penhora, que “o salário mínimo nacional contém em si a ideia de que a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como o mínimo dos mínimos não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo”. Caso contrário, mostrar-se-á violado o princípio da dignidade humana decorrente do princípio do Estado de Direito, constante das disposições conjugadas dos artigos 1º, 59º, n.º 2, alínea a), e 63º, nºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa[4].
Defende-se, por isso, que o limite mínimo terá que corresponder ao valor de um salário mínimo, por ser esse o valor que é considerado adequado para garantir as necessidades mínimas e básicas de subsistência de qualquer cidadão.
Dentro destes parâmetros cumpre avaliar se no rendimento excluído da cessão se observaram estes critérios.
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No caso presente ficou excluído da cessão do rendimento disponível o valor correspondente a um salário mínimo nacional (12 meses no ano). E, no total do agregado familiar, aqui incluindo os rendimentos e despesas da esposa, que não se apresentou à insolvência, o valor total correspondente a dois salários mínimos nacionais.
Recai sobre o devedor – insolvente o ónus da prova dos factos em que funda a sua pretensão, para demonstrar que devem ser excluídos do rendimento disponível os valores necessários para garantir o seu sustento e do agregado familiar[5] ( art. 342º/1 CC ).
Na data em que foi proferida a decisão – 06 de abril de 2022 - a retribuição mínima mensal garantida ascendia a € 705,00 (setecentos e cinco euros) - Decreto-Lei n.º 109-B/2021 de 7 de dezembro (entrou em vigor no dia 01 de janeiro de 2022).
Nas conclusões de recurso, sob os pontos I a XII, considera o apelante que o rendimento da mulher do insolvente não deveria ser considerado na insolvência, porque as dividas que motivaram a apresentação à insolvência são anteriores à celebração do casamento, não tendo ocorrido a regime da comunicabilidade das dívidas trazidas de trás do insolvente.
Mostra-se irrelevante apurar a natureza da divida, porque apenas está em causa fixar o rendimento condigno para garantir minimamente a subsistência do devedor e do seu agregado familiar. Aliás, qualquer questão relacionada com a separação de bens deve ser tratada em sede própria, no processo previsto no art. 141º/1 b) CIRE.
Não resulta dos factos provados que o cônjuge do devedor exerça uma profissão remunerada ou possua qualquer rendimento proveniente do trabalho.
No casamento os proventos do trabalho constituem um bem comum ( art. 1724º/a) CC).
Nos termos do art. 239º/3 CIRE integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor.
Os proventos do trabalho do cônjuge do devedor não estão excluídos da cessão, por constituírem um bem comum do casal.
Conclui-se que não merece censura o despacho recorrido quando ponderou “no total do agregado familiar, aqui incluindo os rendimentos e despesas da esposa, que não se apresentou à insolvência, o valor total correspondente a dois salários mínimos nacionais”.
Nas conclusões de recurso, sob os pontos XIII a XIX e XXX, insurge-se o apelante contra o facto de não se ponderar os encargos com a sua enteada, que deviam ser objeto de ponderação autónoma, segundo a escala da OCDE “escala de Oxford”.
Cumpre ter presente desde logo que o apelante não se insurge contra a matéria de facto apurada.
Resultam provados os factos que configuram as despesas do agregado familiar, sem se distinguir despesas extraordinárias com a enteada, maior com 21 anos de idade. As despesas escolares foram consideradas no despacho recorrido, atento o que resulta dos factos provados.
Outras despesas que venham a justificar-se com a educação da enteada, sempre poderão ser apreciadas, ao abrigo do art. 239º/3 (iii) CIRE.
A escala de Oxford funciona como um critério referencial, não vinculativo e que no caso concreto não releva no contexto dos factos apurados.
Não merece censura o despacho que fixou o rendimento indisponível, porque considerou as despesas com a educação da enteada, no limite dos factos provados.
Por fim, nas conclusões de recurso, sob os pontos XX a XXIX e XXXI, sugere o apelante a alteração do valor do rendimento indisponível mensal, o qual no cômputo anual deve reportar-se a 14 meses ou então, deve corresponder ao RMMG multiplicado por catorze e dividido por doze, face às caraterísticas do agregado familiar.
No despacho recorrido ficou excluído da cessão do rendimento disponível o valor correspondente a um salário mínimo nacional (12 meses no ano).
A questão que se coloca consiste em apurar o montante mensal do que possa ser considerado o “salário mínimo nacional”. Se tal valor deve corresponder a 14 meses e não doze, como se fixou na decisão recorrida ou, se corresponde ao valor anual, como o produto da multiplicação do valor mensal por catorze, dividido por doze.
A primeira ideia a reter é a que no caso de rendimento necessários ao sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar excluídos da cessão terem sido fixados no montante de um salário mínimo, o apuramento do que em cada momento integra o rendimento disponível é feito mensalmente, já que a unidade temporal pela qual se afere o salário mínimo nacional é o mês.
Nos termos do disposto no artigo 239º/2 do CIRE o despacho inicial determina que no quinquénio subsequente ao encerramento do processo de insolvência, denominado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido ao fiduciário.
Esta previsão legal tem sido interpretada no sentido de resultar da mesma que a entrega dos rendimentos auferidos pelo beneficiário da exoneração do passivo restante deve ser feita diretamente ao fiduciário, entregando este depois os rendimentos excluídos da cessão ao devedor.
Como se observa no Ac. Rel. Porto 30 de abril de 2020, Proc. 2441/16.2T8AVR-D.P1 (acessível em www.dgsi.pt) :[e]sta leitura resulta reforçada pela alínea c) do nº 4 do artigo 239º do CIRE e da qual resulta de forma incisiva que o recebimento de rendimentos pelo devedor é uma situação excecional. No mesmo sentido aponta a necessidade do fiduciário notificar a cessão de rendimentos às entidades de que o devedor tenha direito a receber rendimentos, notificação que visa possibilitar a entrega direta dos rendimentos do devedor por parte de tais entidades ao fiduciário”.
No caso presente, o rendimento necessário ao sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar excluídos da cessão foi fixado no montante de um salário mínimo, o apuramento do que em cada momento integra o rendimento disponível é feito mensalmente, já que a unidade temporal pela qual se afere o salário mínimo nacional é o mês (art.273º do Código do Trabalho).
A circunstância de ser anual a informação prestada pelo fiduciário a cada credor e ao juiz nos termos do disposto no nº 2, do artigo 240º do CIRE e de a afetação dos rendimentos nos termos do disposto no nº 1, do artigo 241º do CIRE ser feita no final de cada ano não significa que o apuramento do rendimento disponível apenas se processe no final de cada ano apurando a média auferida nesse período temporal.
No final de cada ano processa-se a afetação dos montantes recebidos até então e não a liquidação do rendimento disponível nesse momento, liquidação que pelo contrário se foi processando, mensalmente, pelo menos, quando como sucede no caso, o devedor é trabalhador por conta de outrem, sendo os seus rendimentos percebidos mensalmente.
A regra da anualidade que decorre do nº 2, do artigo 240º e do nº 1, do artigo 241º, ambos os artigos do CIRE, dirige-se ao fiduciário, tendo em vista a prestação de informações aos credores e ao juiz e a afetação dos rendimentos que ao longo do ano foram sendo por ele recebidos.
Uma segunda ideia a considerar é a de que o valor do salário mínimo corresponde à prestação mensal atribuída, sem englobar nesse valor os duodécimos do subsídio de férias e do subsídio de Natal ( os catorze meses a que se refere o apelante), quando considerado como referencial para determinar o rendimento minimamente condigno a atribuir ao insolvente e excluído da cessão.
Como bem refere o apelante esta questão não tem obtido da jurisprudência uma resposta unânime.
No sentido proposto pelo apelante podem citar-se entre outros, os Ac. Rel. Porto 22 de maio de 2019, Proc. 1756/16.4T8STS-D.P1 e Ac. Rel. Porto 15 de junho de 2020, Proc. 1719/19.8T8AMT.P1 (ambos em www.dgsi.pt).
Considera-se no Ac. Rel. Porto 22 de maio de 2019: “[d]e facto, sendo a RMMG recebida 14 vezes no ano, podemos afirmar que o seu valor anual é constituído pelo montante mensal multiplicado por 14 (artigos 263º e 264º/1 e 2 do Código do Trabalho), e, portanto, o mínimo necessário ao sustento minimamente digno do insolvente não deverá ser inferior à remuneração mínima anual. Interpretação que é conformada pelo próprio conceito de Retribuição Mínima Nacional Anual (RMNA, a que alude o artigo 3º do decreto-lei 158/2006, de 8 de agosto, que define “o valor da retribuição mínima mensal garantida (RMMG), a que se refere o n.º 1 do artigo 266.º do Código do Trabalho, multiplicado por 14 meses”. Na verdade, os subsídios de férias e de Natal são parcelas de retribuição do trabalho e não extras para umas férias ou um Natal melhorados. A retribuição mínima nacional anual é constituída pela RMMG multiplicada por 14, pelo que a RMMG garantida mensalmente disponibilizado corresponde à àquela RMMG multiplicada por 14 e dividida por 12. O mesmo é dizer que este valor médio mensal que o trabalhador dispõe para o seu sustento corresponde àquele que o Estado fixa como o mínimo necessário ao sustento minimamente digno do trabalhador.
Transpondo este princípio para o valor do rendimento necessário ao sustento minimamente digno do insolvente, teremos de admitir que esse valor é retido 14 vezes ao ano ou, então, cada uma das parcelas mensais não deverá ser inferior à RMMG multiplicada por 14, cujo produto é dividido por 12”.
Porém, outro tem sido o entendimento nos Ac. Rel. Porto 07 de maio de 2018, Proc. 3728/13.1TBGDM.P1, Ac. Rel. Porto 23 de setembro de 2019, Proc. 324/19.3T8AMT.P1, Ac. Rel. Porto 29 de abril de 2021, Proc. 1544/18.3T8STS.P1 e Ac. Rel Porto 01 de março de 2021, Proc.1784/19.8T8STS.P1; Ac. Rel. Porto 28 de outubro de 2021, Proc. 2161/18.3T8STS.P1 (todos acessíveis em www.dgsi.pt) com argumentos que acolhemos e fazemos nossos.
Em síntese, defende-se nesta posição, que os subsídios consistem em prestações, legalmente consagradas, destinadas aos trabalhadores por conta de outrem (e aos beneficiários de pensões de reforma) que visam proporcionar aos seus titulares um acréscimo de rendimento (equivalente ao valor da retribuição, duas vezes ao ano – no período de férias e de natal – a fim de que os mesmos usufruam de forma plena esses dois períodos festivos.
No caso do subsídio de férias o mesmo constitui um aumento do rendimento que vai proporcionar a quem os usufrui o seu gozo efetivo, com um melhor aproveitamento do tempo livre sem trabalhar, proporcionando o descanso merecido no final de um ano de trabalho.
No caso específico do subsídio de natal, o mesmo visa proporcionar ao seu titular o usufruto pleno da época natalícia, no meio familiar, com os inerentes gastos da época.
Trata-se, em ambos os casos, de um valor “extra”, de um acréscimo do rendimento que visa proporcionar ao seu titular um acréscimo de bem-estar, com efetivo descanso e com a realização das despesas inerentes a esses períodos.
Sem pôr em causa a natureza retributiva de tais subsídios é de considerar que por força da submissão do devedor ao instituto da exoneração do passivo restante, aquilo a que o mesmo tem direito, é apenas a um montante que lhe proporcione um sustento minimamente condigno – por respeito para com os seus credores – e os subsídios em causa, enquanto acréscimos ao valor do seu salário mensal, não são imprescindíveis para o sustento minimamente condigno do devedor/insolvente, pelo que os mesmos têm que ser, na medida em que ultrapassem o valor do salário fixado a título de rendimento disponível, incluídos no rendimento a disponibilizar ao fiduciário para os fins da insolvência.
Este sacrifício imposto ao devedor tem como contrapartida a sua libertação das suas dívidas, decorrido o período da cessão, permitindo-lhe recomeçar de novo, totalmente desonerado.
O salário mínimo nacional, enquanto referência ou padrão mínimo para a estipulação – pelo tribunal e olhando às particularidades de cada caso concreto - do (mínimo) rendimento indisponível do devedor, ou seja, não sujeito a cessão ao fiduciário (artigo 239, n.º 2 e n.º 3, alínea b), ii) do CIRE) é o salário mínimo nacional mensal, legalmente fixado, e não o equivalente a um duodécimo da multiplicação por catorze daquele valor.
Como bem se refere no Ac. Rel. Porto 23 setembro 2019, Proc. 324/19.3T8AMT.P1 (acessível em www.dgsi.pt) o que está em causa “não é uma questão de qualidade, mas de quantidade[…]o salário mínimo nacional, sempre que utilizado como referência e como equivalente ao mínimo de subsistência é, tão-só mas relevantemente, um valor, um montante, uma quantidade”.
No despacho recorrido o salário mínimo nacional foi utilizado como critério referencial para fixar o rendimento indisponível e durante doze meses.
O apuramento do que em cada momento integra o rendimento disponível é feito mensalmente, já que a unidade temporal pela qual se afere o salário mínimo nacional é o mês e não o equivalente a um duodécimo da multiplicação por catorze daquele valor.
Considerou-se ser este o valor necessário para garantir o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, mesmo ponderando o eventual rendimento do cônjuge do devedor. Não se provaram factos que revelem o contrário.
Constata-se, aliás, que o rendimento excluído da cessão (€ 705,00) é superior ao montante do próprio rendimento mensal (€ 700,00), o que desde logo leva a concluir que tal montante ultrapassa o que se possa considerar necessário para garantir as necessidades do insolvente. Com esse rendimento já suportava, sozinho, as despesas normais de um agregado familiar com alimentação, transportes, telecomunicações, água e eletricidade e ainda, os encargos com a sua enteada e por isso, o valor agora atribuído será de igual modo adequado para garantir todos os encargos normais e o sustento minimamente digno do insolvente-apelante e do seu agregado familiar, aspetos que estiveram presentes no valor estabelecido, porque se considerou o valor que constitui o mínimo exigível para garantir a subsistência e ainda, o facto de ter uma enteada maior a seu cargo.
Resta referir que todas as considerações se aplicam quanto ao segundo segmento da decisão, quando se determina: “E no total do agregado familiar, aqui incluindo os rendimentos e despesas da esposa, que não se apresentou à insolvência, o valor total correspondente a dois salários mínimos nacionais”.
Desta forma, o valor atribuído mostra-se adequado para satisfazer “o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar” ( art. 239º/3/b) i) CIRE ).
Resta referir que o apelante encontra-se numa situação de insolvência para a qual contribuiu, na medida em que voluntariamente, contraiu dívidas e assumiu obrigações, sem dispor de rendimentos suficientes para o fazer.
Assumindo o devedor-insolvente o propósito de satisfazer parte das dívidas e dadas as circunstâncias particulares que estão na origem da situação de insolvência, justificou-se conceder a exoneração do passivo restante.
Contudo, o benefício é concedido atendendo ao facto do devedor se dispor a pagar parte dos créditos e por isso, é legítimo e justifica-se que se exija um esforço da parte do devedor, no sentido de cumprir com as obrigações que assumiu na medida em que no termo dos cinco anos (agora três) vai ficar dispensado do pagamento do passivo restante. Este esforço reflete a intenção de alterar a sua conduta, o que está subjacente ao regime previsto no instituto em causa.
O insolvente terá de reformular os seus gastos e reordenar as suas prioridades.
Neste contexto, o valor indicado no despacho recorrido afigura-se adequado para garantir o sustento minimamente digno do insolvente e do seu agregado familiar ficando a parte restante dos rendimentos cedidos ao fiduciário afeta ao cumprimento das obrigações assumidas pelo devedor durante o período de cinco (agora três) anos.
A parte restante dos respetivos rendimentos deve ficar afeta ao pagamento aos credores, durante o período de três anos, ainda que isso envolva algum esforço do devedor na gestão dos rendimentos, mas só dessa forma se atinge o objetivo proposto na medida de exoneração do passivo restante.
Improcedem, desta forma, as conclusões de recurso.
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Nos termos do art. 304º do CIRE as custas são suportadas pela massa insolvente, sem prejuízo do disposto no art. 241º/1 a) e 248º do CIRE.
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar o despacho.
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Custas a cargo da massa insolvente, sem prejuízo do disposto no art. 241º/1 a) e 248º do CIRE.
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Porto, 12 de setembro de 2022
(processei e revi – art. 131º/6 CPC)
Assinado de forma digital por
Ana Paula Amorim
Manuel Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
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[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
[2] Ac. Rel. Lisboa 07.02.2011 – Proc. 1592/01.1TBSSB-B.L1.2 – www.dgsi.pt
[3] Cfr. entre outros os Ac. Ac. Rel. Porto 12.06.2012 (Proc. 3529/11.1 TBVLG-B.P1), Ac. Rel. Porto 17.04.2012 (Proc. 959/11.2 TBESP-E.P1), Ac. Rel. Porto 08.03.2012 (Proc. 162/11.1 TJVNF-F.P1), Ac. Rel. Lisboa 16.02.2012 (Proc. 1613/11.0 TBMTJ-D.L1-2), Ac. Rel. Porto 02.02.2012 (Proc. 584/11.8 TBVFR-D.P1), Ac. Rel. Porto 19.01.2012 (Proc. 7576/08.2 TBVNG-E.P1), Ac. Rel. Porto 15.09.2011 (Proc. 692/11.5 TBVCD-C.P1) – todos em www.dgsi.pt.
[4] Ac. Trib. Constitucional nº 62/2002, 06.02.2002 DR II série, nº 59 de 11.03.2002
[5] Ac. Rel. Porto 06.03.2012 – Proc. 1719/11.6TBPNF-D.P1 – www.dgsi.pt