Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1974/21.3T8PNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: DANO BIOLÓGICO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
EQUIDADE
Nº do Documento: RP202304171974/21.3T8PNF.P1
Data do Acordão: 04/17/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO PROCEDENTE; DECISÃO REVOGADA.
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Devendo o dano biológico ser entendido como uma violação da integridade físico-psíquica do lesado, com tradução médico-legal, tal dano existe em qualquer situação de lesão dessa integridade, mesma que sem rebate profissional e sem perda do rendimento do trabalho.
II - Para efeitos de indemnização autónoma do dano biológico, na sua vertente patrimonial, só relevam as implicações de alcance económico, sendo as demais vertentes do dano biológico, que traduzem sequelas e perda de qualidade de vida do lesado sem natureza económica, ponderadas em sede de danos não patrimoniais, razão pela qual o dano biológico na vertente de dano patrimonial futuro não pode ser também indemnizado autonomamente como dano biológico a se.
III - Nos casos em que não há (imediata) perda de capacidade de ganho, não existindo, como não existe, qualquer razão para distinguir os lesados no valor base a atender, deverá usar-se, no cálculo do dano biológico, um valor de referência comum sob pena de violação do princípio da igualdade, já que, só se justificará atender aos rendimentos quando estes sofram uma diminuição efetiva por causa da incapacidade, por só aí é que o tratamento desigual dos lesados terá fundamento.
IV - Na apreciação, em sede de recurso, o montante arbitrado a título de compensação por danos não patrimoniais, estando em causa critérios de equidade, o juiz deve levar em conta os sofrimentos efectivamente padecidos pelo lesado, a gravidade do ilícito e os demais elementos do “factie specie”, de modo a achar uma soma adequada ao caso concreto, a qual, em qualquer caso, deve evitar parecer mero simulacro de ressarcimento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1974/21.3T8PNF.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este-Juízo Central Cível de Penafiel-J4
Relator: Des. Dr. Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Dr. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Drª Fátima Andrade
5ª Secção


Sumário:
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I-RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
1. AA e BB, residentes na Rua ..., ..., intentaram a presente acção sob a forma de processo comum contra A..., SA., com sede na Rua ..., ... Porto, alegando em síntese que foram intervenientes num acidente de viação, que se ficou a dever a culpa exclusiva do condutor segurado da R., pelo que esta é responsável pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que lhes advieram do aludido acidente.
Concluem pedindo a procedência da acção e a condenação da Ré a pagar ao Autor as quantias referidas nos artigos 23º, 82º e 85º da PI, no montante global de €7.500,00 e à Autora as quantias referidas nos artigos 66º, 72º, 76º e 90º da PI, no montante total de €105.428,83.
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Contestou a Ré, alegando, em suma, que assume a responsabilidade pelo sinistro, colocando, contudo, em causa os danos peticionados.
Conclui pedindo que a acção seja julgada consoante a prova que se vier a produzir em audiência de julgamento.
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Foi elaborado despacho saneador que fixou o objecto do litígio e os temas da prova, conforme consta de fls. 76 e ss., que não mereceram qualquer reclamação.
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Realizou-se uma tentativa de conciliação, que resultou infrutífera.
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Designou-se dia para a audiência de julgamento que teve depois lugar com a observância do formalismo legal.
Em acta de audiência final de 30/11/2022, os ilustres mandatários das partes, por acordo, consideraram como assente a seguinte matéria: a dinâmica do acidente, os pagamentos feitos pela Ré à Autora referidos nos artigos 7º e 10º da contestação. Mais, as partes acordaram em eliminar o último tema da prova, em face das alegações que as partes fizeram, designadamente no artigo 77º da Petição Inicial e da respetiva confissão que a ré aceitou, nomeadamente os factos atinentes ao valor da reparação da mota, que já foi paga, e ao seu valor venal, que ficaram totalmente prejudicados, ficando só em discussão a eventual desvalorização da mota e privação do uso.
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A final foi proferida a seguinte decisão que:
1. Condenou a Ré A..., SA., a pagar:
A) ao autor BB:
- a título de danos não patrimoniais, a quantia global de €2.800,00 (dois mil e oitocentos euros);
B) À autora AA:
- a título de danos patrimoniais a quantia global de €2.201,55 (dois mil duzentos e um euros e cinquenta e cinco cêntimos);
- a título de dano pela perda da capacidade de ganho e pelos esforços acrescidos, a quantia global de €12.000,00 (doze mil euros);
- a título de danos não patrimoniais, a quantia global de €20.000,00 (vinte mil euros);
C- no mais, foi a Ré absolvida do peticionado.
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Não se conformando com o assim decidido vieram os Autores interpor o presente recurso, rematando com as seguintes conclusões:
1ª. Sem culpa sua, os autores foram vítimas de acidente de viação no dia 24.02.2020, quando circulavam na moto com a matrícula ..-XZ-.., tripulada pelo autor marido pela direita da faixa de rodagem e em marcha moderada, e foram embatidos pela dianteira esquerda da carrinha ..-..-BR, com a responsabilidade civil transferida para a ré, por ela assumida;
2ª. Ao serem embatidos, os autores foram projetados ao chão, onde ficaram caídos até serem socorridos pelos Bombeiros de ..., que lhes colocaram colar cervical e os conduziram de ambulância ao Hospital Padre Américo, de Penafiel;
3ª. Por via do embate, a autora sofreu as lesões corporais referidas nas antecedentes alíneas B, C e D e suas subalíneas, aqui dadas como reproduzidas, em especial golpes profundos no joelho esquerdo, que foram suturados com mais de 20 pontos no aludido Hospital;
4ª. Além dos exames, radiografias e tratamentos a que foi submetida e que ficam referidos, na autora foi submetida a mais duas intervenções cirúrgicas: uma, em 10.09.2020, às cicatrizes resultantes das lesões no joelho, com o objetivo de melhorar o seu aspeto; outra, em 11.08.2020, à fratura sofrida no hallux do pé esquerdo, para extração de fragmento ósseo não consolidado;
5ª. Por efeito do “golpe de coelho”, entorses e distensões musculares da região cervical, a autora passou a sentir dores (cervicalgias) ao nível do pescoço, que irradiavam para a base da cabeça, e que ainda hoje dificultam os movimentos de flexão e rotação da cabeça, nomeadamente para a autora olhar as mercadorias colocadas nas prateleiras superiores do Supermercado onde trabalha;
6ª. A autora teve necessidade de receber assistência médica ao trauma psicológico consequente ao acidente, pelas razões expostas na sobredita alínea D), aqui dadas como reproduzidas, em especial por sentimentos de desproteção, lembranças e sonhos, e medo de retomar os habituais passeios em moto, assistência que ainda subsiste;
7ª. A autora passou pela doença, períodos de convalescença e incapacidades referidas na alínea F e suas subalíneas, aqui dadas como reproduzidas, nomeadamente no que respeita à sua repercussão nas atividades desportivas e de lazer, na realização sexual, e quantum doloris, ao défice funcional e dano estético;
8ª. A autora é portadora das sequelas do acidente referidas nas alíneas B-r, C-w, D-zc e E-zd, aqui dadas como reproduzidas, em virtude das quais a autora, então com 22 anos de idade, casada e escorreita, se transformou de pessoa alegre e participativa que era, em pessoa triste e introvertida, com marcha claudicante, que sente vergonha de exibir as suas cicatrizes, por isso de usar roupas que deixem o joelho à mostra e de ir à praia e à piscina, e a inibem, por vergonha, de viver em plenitude o ato sexual e a sua juventude;
9ª. Estas limitações, impondo à autora uma alteração no seu modo de ser e no seu estilo de vida, traduzem-se num dano biológico importante e relevante;
10º: A autora perdeu 5 pontos em 100 na avaliação global da sua integridade físico-psíquica como pessoa humana, com repercussão na sua capacidade de ganho e demais atividades, nomeadamente desportiva e de lazer;
11ª. Por todos estes seus danos corporais, físicos, morais e psicológicos, com repercussão na sua saúde e estilo de vida, sexualidade e bem-estar (aportando um relevante trauma psicológico, um considerável dano biológico e um enorme desgosto), tratamentos a que teve de sujeitar-se, inclusive 3 intervenções cirúrgicas, e a sua permanência na vida da autora ainda por longos anos, deve ser concedida à autora compensação não inferior a 60.000,00€.
12ª. Pela sua repercussão negativa na atividade profissional da autora, com as referidas limitações ao nível dos movimentos da cabeça, com cervicalgias, considerando pelo menos ainda 48 anos de vida ativa, o aumento salarial, a crescente desvalorização do poder de compra da moeda e a inflação dos bens essenciais, e o dano biológico ao nível da atividade laboral, deve ser concedida à autora indemnização não inferior a 40.000,00€.
13ª. Às quantias supra referidas, acrescem os 2.201,55€ em que a ré vem condenada, a título de danos patrimoniais, na alínea B-a) da parte decisória da douta sentença, e que, nessa parte, se aceita.
14ª. O autor sofreu as lesões, as vicissitudes e os tratamentos supra referidos, aqui dados como reproduzidos e que nos dispensamos de repetir;
15ª. Foi, como a autora, imobilizado pelos bombeiros de ... com aplicação de colar cervical e transportado de ambulância ao Hospital Padre Américo, onde foi submetido a exames clínicos e tratamentos, e de onde teve alta à tarde nesse dia;
16ª. Apresenta, como sequela da lesão sofrida na região do tornozelo, por compressão, com inchaço do pé, uma área cicatricial com cerca de 2,5 cm de diâmetro, revestida por pele fina e desidratada, por isso mais exposta a lesões;
17ª. A consolidação médico-legal ocorreu em 15 de março (19 dias após o acidente), com uma incapacidade para o trabalho de 21 dias. Foi-lhe atribuído um quantum doloris de 1 ponto em 7 e no mesmo grau o dano estético.
18ª. Além das dores que persistem, o suor provocado pelo uso obrigatório como agente da PSP de bota de cano alto provoca-lhe picadelas e comichões nessa área cicatricial hiperpigmentada, sendo por vezes obrigado a interromper os exercícios e caminhadas a que está obrigado.
19ª. Tinha 21 anos na data do acidente, faltando-se, portanto, 45 anos de vida ativa, até à sua reforma.
20ª. Por estes seus danos corporais e biológicos, passados, presentes e futuros, não parece exagerada uma compensação de pelo menos 4.500,00€.
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Devidamente notificada contra-alegou a Ré concluindo pelo não provimento do recurso.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são as seguintes as questões a decidir:
a) - saber se a indemnização pelo défice funcional permanente da integridade físico-psíquica sofrido pela Autora/recorrente devia ter sido fixada em quantia superior;
b) - saber se os montantes fixados a título de danos não patrimoniais quer para Autora quer para o Autor devia também ser superiores.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É a seguinte a matéria de facto que o tribunal de 1ª instância deu como provada:
1. No dia 24 de Fevereiro de 2020, cerca das 16H30, ocorreu um embate.
2. Os AA. circulavam na moto com a matrícula ..-XZ-.., da marca ..., tripulada pelo autor BB, na Rua ..., no sentido de ..., em ..., do município de Paredes, pela direita da faixa de rodagem e em marcha “moderada”.
3. Chegados ao entroncamento com a Rua ..., voltaram à esquerda para esta Rua, sendo então embatidos pela dianteira esquerda da carrinha ... com a matrícula ..-..-BR, conduzida por CC, que, circulando no sentido inverso por esta Rua, invadiu a faixa de rodagem contrária e não aguardou que os autores completassem a manobra que executavam,
4. chocando com a lateral esquerda da moto e com eles, projectando-os ao chão.
5. A responsabilidade civil por danos causados a terceiros com a circulação da referida carrinha achava-se transferida para a ré por contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel titulado pela apólice n.º ...32, em vigor na data do acidente.
6. Responsabilidade que a ré assumiu, tendo já suportado alguns prejuízos dos autores, conforme documentos 3, 4 e 5 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
7. No momento do embate e ao ser atirados ao chão, os autores sofreram um susto e ali ficaram caídos até serem socorridos pelos bombeiros de ..., que os imobilizaram com colar cervical e os transportaram de ambulância ao Hospital Padre Américo, em Penafiel, onde foram sujeitos a exames clínicos e tratamentos.
8. Após o que o autor teve alta hospitalar, com a perna ligada.
9. O autor foi embatido pela carrinha na parte lateral do seu corpo, nomeadamente na parte inferior da perna esquerda, tendo sofrido, por compressão, lesões na parte inferior da perna e em especial no tornozelo, com inchaço do pé, tendo sido aconselhado a colocar gelo para reduzir o inchaço e a tomar Paracetamol para as dores, conforme documento 7 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
10. O autor era então agente provisório da PSP e frequentava um curso de ingresso na mesma Corporação Policial, sendo obrigado a exercícios físicos, tais como, caminhadas, corridas, marchas, que com o uso das botas em cabedal de cano alto, para ele constituíam dores e incómodos, na medida em que o suor lhe causava e continua a causar picadelas e comichões na zona sendo, por vezes, obrigado a interromper os exercícios e caminhadas.
11. O A. sofreu dores físicas, incómodos e mal-estar e ainda é portador de cicatriz arredondada e de bordo avermelhado do tamanho de uma moeda de dois euros na região interior imediatamente acima do tornozelo, tendo tido necessidade de adquirir um fármaco cicatrizante.
12. O A. viu a sua moto, com cerca de 8 meses de uso, sofrer danos, tendo a R. pago €9.042,00 referente à aludida moto, conforme documentos 4 e 5 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
13. A autora ia sentada na moto atrás de seu marido, o autor, que a tripulava e foi embatida na região anterior do joelho esquerdo pelo farol esquerdo da carrinha, que partiu.
14. Com esse embate, sofreu esfacelo extenso da face anterior do joelho com diversos golpes nessa região do seu corpo e no pé esquerdo, o joelho ficou retalhado e a sangrar, com dores físicas.
15. As lesões foram suturadas no Hospital Padre Américo, em Penafiel, sob anestesia local, com mais de vinte pontos de fio cirúrgico monofilamento e colocado dreno em telha, ficando, durante mais de 15 dias, com o aspecto visualizado nas fotos juntas como Docs. 12 e 13 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
16. Para melhorar o aspecto visual das cicatrizes e marcas deixadas pelos pontos, os Serviços Clínicos da ré submeteram a autora, em 10.09.2020, a “cirurgia plástica e reconstrutiva e estética”, conforme documento 15 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
17. Após o que as cicatrizes e o seu aspecto visual melhoraram, mas sem reconstruir integralmente os tecidos danificados, continuando a ser visíveis cicatrizes transversais ao joelho, sem indicação de melhoria com cirurgia.
18. Em 11.08.2020 a autora foi internada e submetida a exérese de fragmento não consolidado da falange proximal hallux do pé esquerdo, conforme Doc. 18 da PI, cujo teor aqui se dá como integralmente reproduzido.
19. Antes do acidente a autora era uma pessoa escorreita e sem defeitos físicos aparentes.
20. As lesões sofridas no acidente, seus tratamentos, com duas intervenções cirúrgicas, e as sequelas que delas restam desencadearam na autora um “trauma psicológico”, que requereu assistência médica da especialidade, que lhe foi e vem sendo prestada pela psicóloga Drª. DD, no Largo ..., ..., sala ..., em Paredes, conforme documento 18 da PI (relatório), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
21. De acordo com o Relatório da Drª DD, a autora é portadora de sentimentos de desprotecção, lembrança/sonhos recorrentes acerca da vivência traumática, bem como, sinais persistentes de aumento da ativação e evitamento de situações em que poderá ser exposta a estímulos semelhantes, dificuldades ao nível do sono, hipervigilância e respostas de sobressalto exageradas, que afecta o seu funcionamento global, em específico nos domínios social e ocupacional, continuando a carecer, na data daquele Relatório (02.04.2021), de acompanhamento psicológico.
22. A A. nasceu a .../.../1997 e o A. nasceu a .../.../1998.
23. A A. sente vergonha de exibir essa parte do seu corpo, evita ir à praia e piscina (o que antes fazia) e de usar roupas que deixem o joelho à mostra.
24. A autora sofreu internamento hospitalar durante um dia, teve de submeter-se a tratamentos clínicos e a exames, sessões de fisioterapia ao joelho e ao pé (Setembro de 2020 a Março de 2021), ficando o joelho por vezes edemaciado e com dores, viu o seu emprego suspenso e não pôde cuidar da sua vida doméstica durante vários meses.
25. Teve de utilizar canadianas para se deslocar pelo menos até 11.08.2020.
26. Algum tempo depois do acidente, a autora passou a sentir dores intermitentes na região do pescoço, com irradiação para a base da cabeça, como sequelas do “golpe de coelho” e hiperextensão muscular que a autora sofreu com a interrupção brusca da marcha da moto, não obstante fazer uso de capacete de protecção.
27. No Boletim de Alta dos Serviços Clínicos da ré, de 31.03.2021, apontam-se precisamente como Lesões resultantes do acidente, entre outras, cervicalgia, entorses e distensões do pescoço, fractura de um dente e contusão de um pé, conforme Doc. 20 da PI, cujo teor aqui se dá como integralmente reproduzido.
28. Essas dores dificultam os movimentos da cabeça da autora, nomeadamente os seus movimentos de flexão e rotação, ou para levantar a cabeça e olhar os artigos expostos nas prateleiras superiores do Supermercado onde exerce a sua actividade profissional.
29. A A. apresenta as seguintes sequelas: − Ráquis: cervicalgia residual com dor nos movimentos resistidos da coluna cervical na hiperflexão, hiperextensão e rotações muito provavelmente relacionado com "Whiplash cervical" associado ao acidente; − Membro inferior esquerdo: apresenta várias cicatrizes de orientação horizontal na face anterior do joelho distróficas e com aspeto queloide ligeiro, a maior com 16 cm e as outras duas com 6 cm e 4 cm respetivamente; apresenta mais duas cicatrizes, uma na face anterior do terço médio da perna com 4 cm e uma outra na face interna do terço médio da perna com 3 cm; cicatriz na face lateral do hállux com 3,5 cm; joelho com mobilidades relativamente conservadas e simétricas; dor ligeira na face lateral do 1º metatarsiano na dorsiflexão do hállux; tibiotársica com mobilidades conservadas e inversão/eversão do pé conservadas e simétricas; -apresenta marcha claudicante.
30. A data da consolidação médico-legal das lesões da A. é fixável em 31/03/2021.
O Período de Défice Funcional Temporário Total é fixável num período de 3 dias.
O Período de Défice Funcional Temporário Parcial é fixável num período 399 dias.
O Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total é fixável num período total de 402 dias.
O Quantum Doloris é fixável no grau 4/7.
O Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica é fixável em 5 pontos.
As sequelas descritas, em termos de Repercussão Permanente na Actividade Profissional, são compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços suplementares.
O Dano Estético Permanente é fixável no grau 4/7.
A Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer fixável no grau 2/7.
A Repercussão permanente na Atividade Sexual é fixável no grau 1/7.
31. Antes do acidente, a autora era uma pessoa alegre, comunicativa, participativa e não tinha as dores que hoje sente.
32. Tornou-se numa pessoa triste, insegura, cabisbaixa, introvertida, passou a isolar-se, rejeitando a possibilidade a continuar a fazer passeios de mota.
33. A autora foi submetida a RM (ressonância magnética) pelos Serviços Clínicos da ré, conforme documento 20, cujo teor aqui se dá como integralmente reproduzido.
34. À data do acidente a autora trabalhava no supermercado da firma B... Lda, em ..., com o salário base mensal de 635,00€ x 14 meses + abono para falhas x 11 meses + 78,30€ x 11 meses de subsídio de alimentação, conforme Docs. 22 e 23 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
35. Conservando, embora, a sua categoria profissional de Operadora Ajudante 1º ano da limpeza, a autora desenvolvia a sua actividade noutros sectores do supermercado, nomeadamente na arrumação e reposição das prateleiras e na caixa.
36. Esteve com baixa médica, por doença, desde o acidente até 31.03.2021, data em que os Serviços Clínicos da ré lhe deram alta ‘curada com desvalorização’, conforme Docs. 20, 24 a 43 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
37. A autora deixou de receber 15 (13 + 2) meses x 635,00€ de salário base + 78,30€ x 13 meses de subsídios de alimentação, no total de €10.542,00, conforme Docs. 44 a 53 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
38. A A. recebeu da ré, a título de perdas salariais, as quantias de €5.241,02; €1.325,11 e €1.902,17, e da Segurança Social o subsídio salarial de €102,15, conforme Docs. 54 e 55 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
39. Em 17/03/2020 foi atribuído pela ré à moto do A., o valor comercial de €12.500,00, com perda total, conforme documento 4 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
40. A moto demorou, por gestão da oficina, cerca de cinco meses até ficar reparada, sendo necessários três dias de reparação e tendo sido efectuada a peritagem a 28/02/2020, não podendo o A. utilizá-la nesse período como antes fazia, para passeios e para se deslocar para o seu local de trabalho, para o que teve de utilizar outros meios de transporte.
41. Em relação às lesões do A. apurou-se que:
A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 15/03/2020.
O Período de Défice Funcional Temporário Total é fixável num período de 2 dias.
O Período de Défice Funcional Temporário Parcial é fixável num período 19 dias.
O Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total é fixável num período total de 21 dias.
O Quantum Doloris 1/7.
O A. apresenta como sequela, no membro inferior esquerdo, com caráter permanente: “área cicatricial circular hiperpigmentada coberta com pele fina e desidratada localizada na face medial da região maleolar esquerda (retro maleolar) com 2,5 cm de diâmetro; mobilidade articular de tornozelo sem limitação e mobilidade do pé sem limitação”, ou seja, apresenta área cicatricial que não é causa de atingimento a nível funcional nem situacional além da queixa associada ao uso de bota de farda;
O Dano Estético Permanente é fixável no grau 1/7.
Sem Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer e sem Repercussão permanente na Atividade Sexual.
42. Já depois da alta dada pelos Serviços Clínicos da ré, a autora procurou os serviços clínicos do ortopedista Dr. EE e da enfermeira FF, com vista ao tratamento e recuperação das sequelas do acidente, com o que despendeu a quantia global de €100,00, em 20.02 e 20.03 de 2020, e recorreu a consultas no Centro de Saúde ..., no que gastou, em taxas moderadoras, a quantia de € 9,00, e em deslocações de táxi à Clínica ... e regresso e outras ao Porto, em 16.07, 16.09, 17.09.2020 e 31.03.2021, a autora despendeu a quantia de € 121,10, conforme Docs. 56 a 65, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
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Factos não provados
Não se provou que:
a) Só pela “compreensão” dos seus superiores, o autor não teve de abandonar o curso e foi admitido a frequentá-lo com as limitações da lesão, claudicando ligeiramente, situação que se prolongou por mais de um mês.
b) Por pouco não foi atingido o tendão ou ligamento patelar da A., o que, a acontecer, comprometeria os movimentos do joelho.
c) A autora continua a receber assistência de psiquiatria.
d) A moto do A. sofreu uma desvalorização comercial de pelo menos €1.500,00.
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III. O DIREITO
Como supra se referiu a primeira questão que vem colocada no recurso prendem-se com:
a) - saber se a indemnização pelo défice funcional permanente da integridade físico-psíquica sofrido pela Autora/recorrente devia ter sido fixada em quantia superior.
Como se evidencia da decisão recorrida, sob este conspecto, o tribunal a quo fixou o montante indemnizatório no valor de €12.000,00 (doze mil euros).
É, pois, contra esse valor que se insurge a Autora apelante, para quem tal valor indemnizatório devia ter sido fixado no montante de €40.000,00 (quarenta mil euros).
Que dizer?
No segmento indemnizatório aqui em apreciação movemo-nos no âmbito do que a jurisprudência e a doutrina têm apelidado de dano biológico ou fisiológico, que constitui, no fundo, um dano à saúde, violador da integridade física e do bem-estar físico, psíquico e social.
A jurisprudência, de forma maioritária, tem vindo a considerar este dano biológico como sendo de cariz patrimonial e, por isso, indemnizável nos termos do artigo 564.º, nº 2 do Cód. Civil.
Tem-se afirmado que a afectação da pessoa do ponto de vista funcional, porque determinante de consequências negativas ao nível da sua actividade geral, justifica a sua indemnização no âmbito do dano patrimonial.
Em abono deste entendimento, a tónica é posta nas energias e nos esforços suplementares que uma limitação funcional geral implicará para o exercício das actividades profissionais do lesado, destacando-se que uma incapacidade permanente parcial, sem qualquer reflexo negativo na actividade profissional do lesado e no seu efectivo ganho, “se repercutirá, residualmente, em diminuição da condição e capacidade física e correspondente necessidade de um esforço suplementar para obtenção do mesmo resultado”.[1]
Porém, outros entendem, como por exemplo no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/10/2009[2], que também é lícito defender-se que o ressarcimento do dano biológico deve ser feito em sede de dano não patrimonial.
Escreveu-se o seguinte neste aresto:
Nesta perspectiva, há que considerar, desde logo, que o exercício de qualquer actividade profissional se vai tornando mais penoso com o decorrer dos anos, o desgaste natural da vitalidade (paciência, atenção, perspectivas de carreira, desencantos (…) e da saúde, tudo implicando um crescente dispêndio de esforço e energia.
“E esses condicionalismos naturais podem é ser agravados, ou potenciados, por uma maior fragilidade adquirida a nível somático ou em sede psíquica.
“Ora, tal agravamento, desde que não se repercuta direta–ou indiretamente–no estatuto remuneratório profissional ou na carreira em si mesma e não se traduza, necessariamente, numa perda patrimonial futura ou na frustração de um lucro, traduzir-se-á num dano moral.
“Isto é, o chamado dano biológico tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como compensado a título de dano moral.
“A situação terá de ser apreciada casuisticamente, verificando se a lesão origina, no futuro, durante o período activo do lesado ou da sua vida e, só por si, uma perda da capacidade de ganho ou se traduz, apenas, uma afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, para além do agravamento natural resultante da idade.
“E não parece oferecer grandes dúvidas que a mera necessidade de um maior dispêndio de esforço e de energia, mais traduz um sofrimento psico-somático do que, propriamente, um dano patrimonial.”[3]
Sustentam, outros ainda, que o dano corporal ou dano à saúde deve ser reconhecido como dano autónomo, verdadeiro “tertium genus” de natureza específica, com um lugar próprio que não se esgota nem é assimilado pela dicotomia clássica entre o que é patrimonial e o que não é patrimonial, impondo-se como uma realidade digna de reparação autónoma.
Entendimento este a que não são alheias as grandes dificuldades e delicadíssimos problemas suscitados pela determinação e avaliação das consequências pecuniárias e não pecuniárias do dano corporal no quadro da distinção dano patrimonial/dano não patrimonial.
Concretamente, quanto à indemnização de perdas patrimoniais futuras, a título de lucros cessantes, lembra-se que o lesado terá que provar a subsistência de sequelas permanentes que se repercutem negativamente sobre a sua capacidade de trabalho, destacando-se que a avaliação e reparação das chamadas pequenas invalidades permanentes se deve confinar à área do chamado dano corporal ou dano à saúde.[4]
Como quer que seja, independentemente da sua integração jurídica nas categorias do dano patrimonial ou do dano não patrimonial-ou eventualmente como tertium genus, como dano de natureza autónoma e específica, por envolver prioritariamente uma afetação da saúde e plena integridade física do lesado-, o certo é que a perda genérica de potencialidades laborais e funcionais do lesado constitui inequivocamente um dano ressarcível, englobando-se as sequelas patrimoniais da lesão sofrida seguramente no domínio dos lucros cessantes, ressarcíveis através da aplicação da denominada teoria da diferença.
Ora, a posição maioritária, que também sufragamos, vem considerando que este dano deve ser calculado como se de um dano patrimonial futuro se tratasse: há uma perda de utilidade proporcionada pelo bem corpo, nisso constituindo o prejuízo a indemnizar, irrelevando para este efeito o facto de as lesões sofridas pelo demandante não terem implicado, de forma imediata, a perda de rendimento.
Neste conspecto, a casuística que sufraga tal posição vem recorrentemente enfatizando que a afetação da pessoa do ponto de vista funcional, ainda que não se traduza em perda de rendimento do trabalho, releva para efeitos indemnizatórios – como dano biológico/patrimonial-porque é determinante de consequências negativas ao nível da atividade geral do lesado e, especificamente da sua atividade laboral, designadamente num jovem, condicionando as suas hipóteses de emprego, diminuindo as alternativas possíveis ou oferecendo menores possibilidades de progressão na carreira, bem como uma redução de futuras oportunidades no mercado de trabalho, face aos esforços suplementares necessários para a execução do seu trabalho.
Evidentemente que casos há em que as lesões físicas não causam nenhum acréscimo, para o lesado, de esforço na actividade profissional que ele exerce. Uma ligeira desvalorização no plano físico, mesmo que relacionada com a mobilidade, não tem para um lesado que desenvolve uma actividade profissional sedentária e marcada pelo esforço intelectual, qualquer repercussão nesta.
Por isso, em certas situações justifica-se que, apesar da comprovada desvalorização do lesado no plano físico em consequência do acidente, o dano correspondente seja ressarcido apenas no plano não patrimonial, por este não se repercutir, directa ou indirectamente, na sua situação profissional, tanto em termos de remuneração como de carreira.
*
Isto dito e assentando na qualificação do aludido dano como dano patrimonial futuro, debrucemo-nos agora sobre as particularidades do caso concreto, no concernente à determinação do respetivo quantum indemnizatório.
Como deflui do regime vertido nos artigos 564.º e 566.º, nº 3 do CCivil, o princípio geral a presidir à tarefa de determinação desse quantum deve assentar em critérios de equidade, sendo tal noção absolutamente indispensável para que a justiça do caso concreto funcione, devendo, assim, ser rejeitados puros critérios de legalidade estrita.
No entanto, a equidade não corresponde a arbitrariedade. Por isso, de há longo tempo, a jurisprudência, num esforço de clarificação na matéria, tem procurado definir critérios de apreciação e de cálculo do dano em causa, assentando fundamentalmente nos seguintes parâmetros-força:
1ª) A indemnização deve corresponder a um capital produtor do rendi­mento que a vítima não auferirá e que se extingue no final do período provável de vida;
2ª) No cálculo desse capital interfere necessariamente, e de forma decisiva, a equi­dade, o que implica que deve conferir-se relevo às regras da experiência e àquilo que, segundo o curso nor­mal das coisas, é razoável;
3ª) As tabelas financeiras por vezes utilizadas para apurar a indemnização têm um mero carácter auxiliar, indicativo, não substituindo de modo algum a ponderação judicial com base na equi­dade;
4ª) Deve ponderar-se o facto de a indemnização ser paga de uma só vez, o que per­mitirá ao seu beneficiário rentabilizá-la em termos financeiros; logo, haverá que considerar esses proveitos, introduzindo um desconto no valor achado, sob pena de se verificar um enriquecimento sem causa do lesado à custa alheia;
5ª) E deve ter-se preferencialmente em conta, mais do que a esperança média de vida ativa da vítima, a esperança média de vida, uma vez que, como é óbvio, as necessidades básicas do lesado não cessam no dia em que deixa de trabalhar por virtude da reforma (em Portugal, no momento presente, a esperança média de vida dos homens já se aproxima dos 78 anos, e tem tendência para aumentar).[5]
Acolhendo tais directrizes e regressando ao caso dos autos, importa, desde logo respigar o seguinte quadro factual:
“- A Autora tinha 22 anos à data do acidente.
- O défice funcional permanente de integridade físico-psíquica é fixável em 5 pontos;
- As sequelas descritas, em termos de Repercussão Permanente na Actividade Profissional, são compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços suplementares (cfr. pontos 22. e 31. da resenha dos factos provados).
Importa enfatizar que a propósito do factor rendimento, alguma jurisprudência[6] vem considerando que nos casos, como o presente, em que não há (imediata) perda de capacidade de ganho, não existindo, como não existe, qualquer razão para distinguir os lesados no valor base a atender, deverá usar-se, no cálculo do dano biológico, um valor de referência comum sob pena de violação do princípio da igualdade, já que só se justificará atender aos rendimentos quando estes sofram uma diminuição efetiva por causa da incapacidade, por só aí é que o tratamento desigual dos lesados terá fundamento.
Em busca do tratamento paritário, no cálculo que efetue, o julgador terá que partir de uma base uniforme que possa utilizar em todos os casos, para depois temperar o resultado final com elementos do caso que eventualmente aconselhem uma correção, com base na equidade.[7]
Com efeito, a integridade psicofísica é igual para todos (artigos 25.º, nº 1, da CRPortuguesa e 70.º, nº1, do Código Civil) de modo que, no cálculo da indemnização, não deve ser relevada a situação económica do lesado sob pena de violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º, nº 1 e nº 2 da Constituição.
O dano biológico expresso no grau de incapacidade de que o lesado fica a padecer, e quando não interfere na capacidade de ganho, determinando a necessidade de um esforço acrescido para viver e para todas as actividades diárias, levando a uma diminuição da qualidade de vida em geral, é igualmente grave para quem exerce um profissão remunerada com €5.000,00 ou com €500,00 sendo a dimensão do direito à saúde que está em causa e que é, tal como o direito à vida, igual para qualquer ser humano.
Fazer interferir o valor do salário de cada um ou o do salário mínimo nacional quando o lesado não exerce ou não tem profissão, pode até, a nosso ver gerar situações injustas.
A Portaria 377/2008 de 26 de Maio faz consignar o montante da remuneração mínima mensal garantida como valor para efetuar o cálculo do dano biológico.
Ora, considerando que o legislador faz interferir o salário como elemento fundamental para o cálculo da indemnização, temos então como mais correto que se pondere, para o efeito, o valor do salário médio nacional e não a remuneração mínima mensal garantida.
A informação estatística da base de dados da Pordata, em Portugal, in www.pordata.pt indica que o ordenado médio mensal dos trabalhadores por conta de outrem no ano de 2017 (não há valores para os anos posteriores) foi de €943,00.
Este valor é então um dos elementos a ponderar para o cálculo da indemnização do dano biológico, havendo também que considerar a idade do lesado, que era no caso de 35 anos à data do acidente e o grau de desvalorização ou incapacidade que é de 3 pontos.
Como assim, tendo por referência um rendimento anual de €13.202,00 (€943,00 x 14) a indemnização a arbitrar deve corresponder a um capital produtor do rendimento que se extinguirá no termo do período provável da vida do lesado, determinado com base na esperança média de vida (e não apenas em função da duração da vida profissional ativa), com uma dedução que razoavelmente se pode estimar em 1/4, dado o facto de ocorrer uma antecipação do pagamento de todo o capital.[8]
De acordo com os enunciados fatores, considerando que a Autora ficou afetada de um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica fixável em 5 pontos, temos que a perda patrimonial anual corresponde a €660,10 [ (€943.000,00 x 14) x 5%], o que permitiria alcançar, ao fim de 61 anos de vida (considerando-se, neste ponto, que à data do acidente A autora contava 22 anos de idade e que a sua esperança média de vida se situa nos 83 anos de idade), o montante de €40.266,10 apurando-se um valor de €30.199,58 após se operar o apontado desconto de ¼.
Isto dito importa ainda, para se atingir a solução que, neste caso, se haja de considerar como a mais equitativa, apelar à jurisprudência que se vem pronunciando sobre situações com alguma similitude.
Constata-se assim o seguinte:
- Com uma incapacidade avaliável em 3 pontos, a um lesado com a idade de 40 anos foi fixada a indemnização por dano biológico em 8.000,00€;
- Com uma incapacidade de 4 pontos, a uma lesada de 73 anos foi fixada a indemnização por dano biológico em 2.500,00€;
- Com uma incapacidade de 4 pontos, a uma lesada de 78 anos foi fixada a indemnização respectiva em 8.000,00€;
- Com uma incapacidade de 5 pontos, a um lesado de 36 anos fixou-se indemnização aproximada a 12.000,00€;
- Com uma incapacidade de 5 pontos, a um lesado de 39 anos, também motorista, foi fixada a indemnização de 12.500,00€;
- Com uma incapacidade de 6 pontos, a uma lesada de 46 anos, que auferia rendimento mensal médio bruto de aproximadamente 7.500,00€, foi fixada a indemnização pelo dano biológico em 55.000,00€;
- Com uma incapacidade de 6 pontos, a um lesado de 44 anos, que auferia rendimento mensal global de 3.100,00€, foi fixada a indemnização pelo dano biológico em 25.000,00€;
- Com uma incapacidade de 8 pontos, a um lesado de 42 anos foi arbitrada a indemnização de 12.000,00€;
- Com uma incapacidade de 8 pontos, num lesado de 49 anos foi fixada a indemnização de 20.000,00€
- Com uma incapacidade de 7 pontos, num lesado de 39 anos foi fixada a indemnização de 15.000,00€.[9]
Como assim, sopesando o quadro factual apurado, relevando especialmente que as sequelas sofridas pelo demandante implicam esforços suplementares na sua atividade profissional, parece-nos justo e equilibrado-quer na vertente da justiça do caso, quer na ótica da justiça comparativa-, fixar em €30.000,00 (trinta mil euros) o montante destinado a reparar o dano em causa, e não os €12.000,00 fixados pelo tribunal recorrido.
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Sob este conspecto importa ainda salientar que para efeitos de indemnização autónoma do dano biológico, na sua vertente patrimonial (como foi o caso), só relevam as implicações de alcance económico, sendo as demais vertentes do dano biológico, que traduzem sequelas e perda de qualidade de vida do lesado sem natureza económica, ponderadas em sede de danos não patrimoniais, sob pena de duplicação de indemnizações.
A indemnização emergente de acidente de viação não visa um enriquecimento ilegítimo à custa do lesante mas, antes, a reparação do dano causado.
A referência doutrinal e jurisprudencial ao dano biológico não tem visado esse desiderato.
Por esta razão, ao contrário do que parecem dar a entenderem os recorrentes, o défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 5 pontos de que a Autora ficou a padecer apenas pode ser valorizado nesta vertente e não também na vertente de danos não patrimoniais.
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A segunda questão colocada no recurso prende-se com:
c)- saber se o montante fixado a título de danos não patrimoniais quer para a Autora quer para o Autor apelantes, devia ter sido superior ao fixado pelo tribunal recorrido.
Na decisão recorrida fixou-se a este título para a Autora o montante de €20.000,00.
Com este montante não concorda a Ré apelante, alegando que o mesmo não deveria ter sido fixado em €60.000,00.
Quid iuris?
Os danos não patrimoniais são indemnizáveis, quando pela sua gravidade, merecerem a tutela do direito, conforme o artigo 496.º, nº 1, do C. Civil, consequência do princípio da tutela geral da personalidade previsto no artigo 70.º do mesmo diploma legal.
A gravidade mede-se por um padrão objectivo, conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias concretas; por outro lado, aprecia-se em função da tutela do direito. Neste caso o dano é de tal modo grave que justifica a concessão da indemnização pecuniária aos lesados.
Existem danos não patrimoniais sempre que é ofendido objectivamente um bem imaterial, cujo valor é insusceptível de ser avaliado pecuniariamente. Nestes casos, a indemnização visa proporcionar ao lesado “uma compensação ou benefício de ordem material (a única possível) que lhe permita obter prazeres ou distracções-porventura de ordem espiritual-que, de algum modo, atenuem a sua dor”.[10]
E, o montante da indemnização, nos termos dos artigos 496.º, nº 3 e 494.º do Código Civil, será fixado equitativamente pelo tribunal, que atenderá ao grau de culpa do lesante às demais circunstâncias que contribuam para uma solução equitativa, bem como aos critérios geralmente adoptados pela jurisprudência e às flutuações do valor da moeda.[11]
No caso que nos ocupa, o dano violado foi a integridade física da Autora, que viu o acidente causar-lhe danos corporais que deixaram sequelas.
Assim releva no prisma–danos não patrimoniais- que a Autora as sofreu as lesões descritas no relatório médico-legal junto aos autos, com necessidade e sujeição a tratamentos, cirurgias (realizou três cirurgias), lesões essas que foram causa directa e necessária das sequelas permanentes e que originaram uma incapacidade de 5 pontos (já considerados anteriormente e valorizados em sede de dano biológico).
Provou-se, ainda, que a A. sofreu dores que ainda hoje se mantêm, usou canadianas, claudica, deixou de praticar actividades que antes praticava, reflectido na repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer no grau 2/7, tendo ainda um dano estético de 4/7, um quantum doloris de 4/7 e repercussão na actividade sexual de 1/7.
Há que considerar, ainda, que a A. esteve incapacitada durante um período global de 402 dias (cfr. designadamente, pontos 7., 13. a 21. e 23. a 33. do elenco dos factos provados).
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Importa, por outro lado, sopesar que o acidente foi causado por culpa exclusiva do condutor carrinha ... com a matrícula ..-..-BR, cujo proprietário havia transferido para a Ré a responsabilidade decorrente de acidentes de viação causados por aquele veículo (ponto 13. da fundamentação factual)
Realçando a componente punitiva da compensação por danos não patrimoniais pronunciam-se no seu ensino os tratadistas.
Assim, Menezes Cordeiro[12] ensina que “a cominação de uma obrigação de indemnizar danos morais representa sempre um sofrimento para o obrigado; nessa medida, a indemnização por danos morais reveste uma certa função punitiva, à semelhança aliás de qualquer indemnização”.
Galvão Telles[13] sustenta que “a indemnização por danos não patrimoniais é uma “pena privada, estabelecida no interesse da vítima–na medida em que se apresenta como um castigo em cuja fixação se atende ainda ao grau de culpabilidade e à situação económica do lesante e do lesado”.
Menezes Leitão[14] realça a índole ressarcitória/punitiva, da reparação por danos morais quando escreve: “assumindo-se como uma pena privada, estabelecida no interesse da vítima, de forma a desagravá-la do comportamento do lesante”.
Pinto Monteiro[15], de igual modo, sustenta que, a obrigação de indemnizar é “uma sanção pelo dano provocado”, um “castigo”, uma “pena para o lesante”.
Por outro lado, ao liquidar o dano não patrimonial, o juiz deve levar em conta os sofrimentos efectivamente padecidos pelo lesado, a gravidade do ilícito e os demais elementos do “factie specie”, de modo a achar uma soma adequada ao caso concreto, a qual, em qualquer caso, deve evitar parecer mero simulacro de ressarcimento.
Os critérios jurisprudenciais constituem importante baliza para o raciocínio, posto que aplicáveis, ainda que por semelhança, ao caso concreto, sendo que, nesta ponderação de valores, tem defendido que os montantes não poderão ser tão escassos que sejam objectivamente irrelevantes, nem tão elevados que ultrapassem as disponibilidades razoáveis do obrigado ou possam significar objectivamente um enriquecimento injustificado.[16]
Registe-se, de qualquer modo, que nesta matéria, ao invés de buscar exemplos que possam servir de comparação, entende-se mais significativo salientar que o Supremo Tribunal de Justiça[17] vem acentuando que estando em causa critério de equidade, as indemnizações arbitradas apenas devem ser reduzidas quando afrontem manifestamente as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das regras da vida, como igualmente acentua que o valor indemnizatório deve ter carácter significativo, não podendo assumir feição meramente simbólica.
Como assim, tendo o quadro factual que nos autos se mostra provado a este respeito, e sopesando que a Autora tinha apenas 22 anos à data do acidente, que sofreu dores que ainda hoje se mantêm, usou canadianas, claudica, deixou de praticar actividades que antes praticava, reflectido na repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer no grau 2/7, tendo ainda um dano estético de 4/7, um quantum doloris de 4/7 e repercussão na actividade sexual de 1/7 e que sofre de danos psicológicos que se reflectem no seu dia-a-dia, e atendendo por último à sua situação sócio-económica, julga-se equitativo justo e equilibrado fixar em 35.000,00 (trinta e cinco mil euros) a indemnização a título de danos não patrimoniais.
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Analisemos agora o segmento recursivo interposto pelo Autor relativamente a esta categoria de danos.
Respigando a decisão recorrida dela se retira que a este nível (indemnização pelos danos não patrimoniais) foi fixado o montante de €2.500,00.
Deste montante discorda o Autora apelante propugnando antes o valor de €4.500,00€.
Quid iuris?
Valem aqui, mutatis mutandis, as mesmas considerações teórica-jurídicas supra expostas relativas à indemnização da mesma categoria de danos sofridos pela Autora apelante.
Em relação ao Autor provou-se (factos 7. a 11., 22. e 41.) que à data do acidente tinha 21 anos de idade, que sofreu dores, apresenta como sequela uma cicatriz no tornozelo que o condiciona no uso de bota de farda, tem um dano estético de 1/7 e um quantum doloris de 1/7, tendo estado incapacitado durante um período global de 21 dias, sem qualquer défice funcional permanente da integridade físico-psíquica.
Como assim, sopesando o referido quadro factual, entendemos que a compensação por esta categoria de danos fixada pelo tribunal recorrido se revela justa e equilibrada nos termos do artigo 566.º, nº 3 do Cód. Civil.
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Improcedem, assim, as conclusões 14ª a 20ª e procedem, em parte, as conclusões 1ª a 13ª formuladas pela Ré recorrente e, com elas, o respectivo recurso.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar o recurso parcialmente procedente, por provado, e consequentemente revoga-se a decisão recorrida condenando-se a Ré a pagar à Autora a quantia de:
a)- €30.000,00 (trinta mil euros) pelo défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de que ficou a padecer:
b) a quantia de 35.000,00 (trinta e cinco mil euros) a título de danos não patrimoniais.
No mais mantém-se a decisão recorrida.
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Custas por apelantes e apelada na proporção do respetivo decaimento (artigo 527.º, nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 17 de Abril de 2023.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
Fátima Andrade
_______________
[1] Cfr. Ac. STJ de 20.1.2010, p. 203/99.9 TBVRL.P1.S1 e Ac. STJ de 11.12.2012, p. 269/06.7 GARMR, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
[2] Cfr. proc. nº 560/09.0 YFLSB, disponível in www.dgsi.pt.
[3] Cfr. também Ac. STJ de 20.1.2010, p. 203/99.9 TBVRL e Ac. Rel. Porto de 20.3.2012, p. 571/10.3 TBLSD.P1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
[4] Cfr. João António Álvaro Dias, “Dano Corporal, Quadro Epistemológico e Aspectos Ressarcitórios”, Almedina, 2001, Cap. II, secção I.
[5] Segundo as Tábuas de Mortalidade relativas ao triénio 2014-2016, a esperança de vida à nascença em Portugal foi estimada em 77,61 anos para os homens e de 83,33 anos para as mulheres.
[6] Entre outros, Ac. do STJ de e acórdão do STJ de 26.01.2012 (processo nº 220/2001.L1.S1), onde expressamente se enfatiza que o desenvolvimento da noção do dano biológico em Itália partia, entre outros, do pressuposto da “irrelevância do rendimento do lesado como finalidade da liquidação do ressarcimento, Ac. de Coimbra de 04/06/2013, da Relação de Lisboa de 22/11/2016 (processo nº 1550/13.4TBOER.L1-7), de 25/02/2021 852/17.5T8AGH.L1 e 24/10/2019 processo nº 3570/17.0T8LSB.L1-2 e da Relação do Porto, de 19/03/2018 processo nº 1500/14.0T2AVR.P1.
[7] Cfr. Rita Mota Soares, O dano biológico quando da afetação funcional não resulte perda da capacidade de ganho– o princípio da igualdade, Revista Julgar, nº 33, p. 126.
[8] Tem sido esta a solução preconizada, designadamente, pelo Conselheiro SOUSA DINIS em trabalho publicado na CJ, Acórdãos do STJ, ano V, tomo 2º, págs. 15 e seguintes.
[9] Cfr., entre muitos outros, respectivamente, Acs. Rel. Porto de 20.3.2012, p. 571/10.3 TBLSD.P1, 17.9.2013, proc. 7977/11.9 TBMAI.P1, 7.4.2016, proc. 171/14.9 TVPRT.P1, de 1.7.2013, p. 2870/11.8 TJVNF.P1 de 17.6.2014, proc. 11756/09.5 TBVNG.P1, de 24.2.2015, proc. 435/10.0 TVPRT.P1, de 9.12.2014, proc. 1494/12.7 TBSTS.P1, 10.12.2013, p. 2236/11.0 TBVCD.P1, de 9.12.2014, p. 149/12.7 TBSTS.P1, disponíveis in www.dgsi.pt, e da Rel. Guimarães de 27.2.2012, p. 2861/07.3 TABRG.G1, e de 22.3.2011, p. 90/06.2 TBPTL, da Relação de Lisboa de 24/10/2019 processo nº 3570/17.0T8LSB.L1-2disponíveis www.dgsi.pt.
[10] Cfr. Pessoa Jorge, “Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil”, 1972, pág. 375.
[11] Cfr. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5ª edição, Coimbra, 1991, págs. 484 e 485.
[12] In Direito das Obrigações, 2° vol. pag. 288.
[13] In Direito das Obrigações, pág. 387.
[14] In Direito das Obrigações, vol. I, 299.
[15 In “Sobre a Reparação dos Danos Morais”, RPDC, n° l, 1° ano, Setembro, 1992, p. 21.
[16] Ac. STJ 28.11.2013, Proc. 177/11.0TBPCR.S1, Ac. STJ 07.05.2014, Proc. 436/11.1TBRGR.L1.S1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt
[17] Cfr., por todos, acórdão de 7.12.2011 (processo nº 461/06.4GBVLG.P1.S1), disponível em www.dgsi.pt.