Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3445/18.6T8VFR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: RECONVENÇÃO
ADMISSIBILIDADE DA RECONVENÇÃO
CAUSA DE PEDIR
FACTOS ESSENCIAIS
Nº do Documento: RP201910223445/18.6T8VFR-A.P1
Data do Acordão: 10/22/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADO EM PARTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Só o fundamento factual/jurídico da acção e da defesa podem conduzir à reconvenção – em consequência lógica, a causa de pedir, quer da acção, quer da reconvenção, tem de existir à data da propositura da acção, sob pena de inadmissibilidade do pedido reconvencional.
II - Os factos essenciais podem conceber-se enquanto factos essenciais principais, ou factos essenciais complementares ou concretizadores - só os factos essenciais principais desempenham função individualizadora ou identificadora e só a respectiva omissão implica a ineptidão da petição inicial, para efeitos do disposto no artº 186º nº2 al.a) CPCiv (veja-se o actual artº 5º nºs 1 e 2 CPCiv, na esteira do que já dispunha a norma do artº 264º CPCiv, proveniente da revisão de 95/96).
III - Os danos invocados não têm por força que ser quantificados, para que possam proceder, mesmo que num quadro de alegação complementar ou concretizadora, visto o disposto no artº 566º nº3 CCiv, mas o Juiz deve ainda utilizar os factos que conduzam directamente à quantificação, até à pronúncia em 1ª instância, desde que tenha conferido expressamente às partes a possibilidade de sobre eles se pronunciarem – cf. artº 5º nº2 al.b) CPCiv, no quadro dos respectivos poderes/deveres oficiosos em matéria probatória – artº 411º CPCiv.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ● Rec.3445/18.6T8VFR-A.P1.

Relator – Vieira e Cunha.
Adjuntos – Des. Maria Eiró e Des. João Proença Costa.
Decisão de 1ª Instância de 22/05/2019.
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Razão do Recurso
Recurso de apelação interposto na acção com processo comum de declaração nº3445/18.6T8VFR-A, do Juízo Central Cível de Stª Mª da Feira.
Autora – B…, Ldª.
– C…, Ldª.
Pedido Principal:
Que se condene a Ré a pagar:
1 – A quantia de €200.000, pela denúncia antecipada do contrato.
2 – A quantia de €200.000 pelo não oferecimento nem respeito da preferência da Autora.
3 – Os juros dessas quantias, a calcular à taxa aplicável às operações comerciais, desde a citação até integral pagamento.
4 – A quantia de €41.433,09, relativa à factura nº ¼, de 6/9/2018.
5 – Os juros vencidos sobre o capital dessa factura, no valor de €238,38, calculados à taxa aplicável às operações comerciais, contados desde 11/9/2018 até 11/10/2018.
6 – Ainda os juros vincendos, até integral pagamento, à razão de €7,94/dia.
Pedido Subsidiário:
1 – Que se declare que a carta que a Ré enviou em 16/11/2017 configura uma resolução ilegal do contrato, por inexistência de justa causa para isso, razão pela qual deverá pagar a quantia de €200.000.
2 – Além disso, ser a Ré condenada a pagar à Autora a quantia de €200.000, pelo não oferecimento nem respeito da preferência da Autora,
3 – bem como os juros dessas quantias, a calcular à taxa aplicável às operações comerciais, desde a citação e até integral pagamento.
4 – Ainda a quantia de €5.800, mais IVA, relativa ao trabalho desenvolvido pela Autora para a Ré, entre os dias 16/11/2017 e 31/12/2017,
5 – bem como os juros desta quantia, a calcular à taxa aplicável às operações comerciais, desde a citação e até integral pagamento.

Pedido Reconvencional:
Que a Autora seja condenada a pagar à Ré a quantia de € 450 000, acrescida de juros à taxa legal, desde a notificação da contestação/reconvenção, até integral pagamento.

Tese da Autora
A Autora é uma empresa que se dedica à mediação de seguros, e à consultoria e gestão nessa área; a Ré é uma empresa que se dedica ao transporte de mercadorias por estrada, nacional e internacional.
A carteira de seguros da Ré era acompanhada pela Autora em exclusividade.
A Ré pôs fim ao contrato antes do respectivo termo final.
Tal conduta faz a Ré incorrer numa penalização prevista no próprio contrato.
Cessado o contrato, a Ré também não concedeu à Autora a preferência contratualmente prevista na mediação de seguros.
Reclama ainda da Ré outras quantias por serviços prestados no âmbito do contrato.
Invoca que o pedido reconvencional não pode ser admitido, pois não cabe na previsão de nenhuma das alíneas do artº 266º nº2 CPCiv.
Quanto ao montante peticionado, mais invoca que a reconvenção é inepta por ininteligibilidade do pedido e da causa de pedir.
Tese da Ré
Impugna motivadamente a tese da Autora, invocando ter procedido à resolução por justa causa do contrato celebrado entre as partes.
Formula pedido reconvencional, por via de a acção intentada ter lesado o nome da Ré junto da Banca, com baixa do respectivo rating (nível 3 em 10, após a propositura da acção), agravando as condições da concessão de crédito à Ré, mais invocando que tal montante deverá resultar “da inércia da conduta da Autora, ausência de informação quanto à sinistralidade e insuficiente qualidade de serviço”.
A necessidade de contratação de uma outra mediadora de seguros acarretou para a Ré um acréscimo significativo dos respectivos prémios anuais.
Respondeu à impugnação do pedido reconvencional, pugnando pela respectiva admissibilidade, bem como negando qualquer eventual ineptidão do pedido.

Integrando o despacho saneador recorrido, o Mmº Juiz a quo pronunciou-se sobre a matéria da reconvenção, nos seguintes termos: “A Reconvenção é admissível – artº 266º nºs 1 e 2 al.a) CPCiv”.
Conclusões do Recurso de Apelação:
1 – A ora Recorrente intentou acção tendo por base um contrato de prestação de serviços celebrado com a Ré e fundamenta o pedido em cláusulas deste e no facto de a Recorrida ter praticado actos que, no seu entender, consubstanciam incumprimento contratual e violação de cláusulas do mesmo.
2 – A Recorrida contestou a acção e deduziu pedido reconvencional, o qual tem como único fundamento o mero facto de a Recorrente ter intentado a acção e de, alegadamente, devido a esse facto, a avaliação de risco daquela ter descido para nível 3, estando catalogada como empresa de risco, o que, diz, lhe causou prejuízos no âmbito da sua actividade, assim como no que respeita aos prazos de pagamento e de crédito.
3 – Foi proferido despacho saneador que:
a) Admitiu a reconvenção, nos termos do artº 266º nºs 1 e 2 al.a) CPCiv;
b) Incluiu no objecto do litígio, entre o mais, “os danos alegados como sofridos (…) pela reconvinte e sua indemnização;
c) e nos temas de prova “se, em virtude da instauração da presente acção, a avaliação do risco do reconvinte desceu para nível 3, estando catalogada como empresa de risco e prejuízos decorrentes para a actividade da reconvinte, prazos médios de pagamento e de crédito”.
4 - A mera afirmação em sede de despacho saneador que “a reconvenção é admissível – artº 266º nºs 1 e 2 al.a) CPCiv” não cumpre as exigências que devem subjazer à decisão sobre a admissibilidade da reconvenção.
5 - Por outro lado, o pedido reconvencional não cabe na previsão do artº 266º nº2 al.a) CPCiv, pois não tem nada que ver com os factos jurídicos que servem de fundamento à acção, já que a Recorrida se limita a pedir o pagamento de uma indemnização, tendo por base prejuízos alegadamente sofridos.
6 - O pedido reconvencional também não emerge da defesa apresentada pela Recorrida, pois que em nada modifica, reduz ou altera o pedido formulado pela Recorrente na petição inicial, sendo por isso desprovido de qualquer efeito defensivo útil: a contestação da Recorrida funda-se na impugnação dos factos que consubstanciam o seu incumprimento do contrato de prestação de serviços e a reconvenção refere-se a alegados prejuízos sofridos com a propositura da acção, donde se verifica que a reconvenção em nada emerge dos factos que a Ré/recorrida alegou na sua defesa.
7 - Desta forma, não deveria ter sido a mesma admitida em sede de despacho saneador, ao abrigo do artº 266º nºs 1 e 2 al.a) CPCiv, que assim foi violado.
8 - Ademais, se o que a Recorrida pretende por via da reconvenção – pedir uma indemnização pelo mero facto de a acção ter sido proposta e a eventual má imagem comercial resultante desse facto – fosse de admitir, então cair-se-ia o exagero que não parece coadunar-se com o espírito do artº 266º CPCiv, nem cabe em nenhuma das suas alíneas, pois a ser assim, todas as acções intentadas em tribunal admitiriam pedido reconvencional, com base nesse fundamento.
9 - Por outro lado, a Recorrida não concretizou, com o grau de precisão que se impõe quanto à alegação dos factos que integram a causa de pedir, os supostos prejuízos em que funda o seu pedido reconvencional, ficando a Recorrente impedida de perceber os factos – a causa de pedir – que sustentam o pedido indemnizatório formulado contra si, o que determina a nulidade da reconvenção e a absolvição da instância da recorrente/reconvinda – artºs 186º nº2 al.a), 577º al.b) e 278º CPCiv.
10 - Em face de todo o exposto, entende a Recorrente que o douto despacho saneador recorrido não deveria ter considerado admissível a reconvenção deduzida pelo Recorrido.
11 - Assim, deverá o recurso interposto merecer provimento e, em consequência, ser o douto despacho saneador recorrido substituído por outro que determine a inadmissibilidade da reconvenção – seja pelo facto de não se enquadrar na al.a) do artº 266º nº2 CPCiv (ou em nenhuma das demais), seja pela ininteligibilidade do pedido e da causa de pedir, o que determina a nulidade da reconvenção e a absolvição da instância do reconvindo/recorrente.
12 - Nessa sequência, deverá também retirar-se do douto despacho saneador, que venha a substituir o de que agora se recorre, qualquer menção à reconvenção deduzida, tanto no que concerne o objecto do litígio como os temas de prova.

Por contra - alegações, a Ré/Apelada pugna pela confirmação do despacho recorrido.
Factos Apurados
Encontram-se provados os factos supra resumidamente descritos e relativos à tramitação processual, para além das posições assumidas no processo pela Apelante e pela Apelada e o teor decisório do douto despacho impugnado.
Discussão e Decisão
A questão colocada pelo presente recurso será a de conhecer da invocada inadmissibilidade do pedido reconvencional e/ou da ineptidão desse mesmo pedido.
Apreciemo - la seguidamente.
I
O pedido em causa tem por base uma causa de pedir desdobrada em três segmentos (isto pese embora os prejuízos invocados venham contabilizados numa única quantia liquidada - €450.000):
- os prejuízos decorrentes da propositura da acção;
- os prejuízos decorrentes da resolução do contrato, por parte da Reconvinte – acréscimo de prémios de seguro;
- os prejuízos decorrentes da execução contratual, motivadora da justa causa de resolução – a conduta em geral da Reconvinda, a ausência de informação quanto à sinistralidade.
Quanto ao primeiro dos apontados segmentos do pedido, tem razão a douta impugnação recursória.
Na verdade, só o fundamento factual/jurídico da acção e da defesa podem conduzir à reconvenção – em consequência lógica, a causa de pedir, quer da acção, quer da reconvenção, tem de existir à data da propositura da acção – neste sentido, Ac.R.P. 14/1/88 Bol.373/600, relatado pelo Consº Jorge Vasconcelos.
No mesmo sentido, veja-se o Ac.S.T.J. 22/5/03, pº 03A3141, relatado pelo Consº Afonso de Melo, baseado na doutrina do Ac.S.T.J. 2/3/45 Bol.28/99, com anotação concordante da Revista dos Tribunais, 63º/169 e 86º/365.
Por isso mesmo, da forma concreta como o autor articula os factos da presente acção não se podia deduzir o concreto pedido reconvencional, pois não nos encontramos perante idêntica causa de pedir; de forma idêntica, está também vedada a dedução de pedido reconvencional se a defesa invoca que o Autor promove alegação atentatória do seu bom nome, com efeitos junto das entidades de crédito.
O Ac.R.P. 16/10/86 Col.IV/236, relatado pelo Consº Flávio Pinto Ferreira, entendeu que os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos com a propositura da acção devem integrar pedido de indemnização com base em litigância de má fé, sem excluir a possibilidade de dedução de acção própria.
Portanto, nesta parte a reconvenção era efectivamente inadmissível, à luz do disposto no artº 266º nº2 al.a) CPCiv.
II
Como visto, o Autor alega ainda:
- os prejuízos decorrentes da resolução do contrato, por parte da Reconvinte – acréscimo de prémios de seguro;
- os prejuízos decorrentes da execução contratual, motivadora da justa causa de resolução – a conduta em geral da Reconvinda, a ausência de informação quanto à sinistralidade.
Não curamos do mérito dos pedidos – apenas de saber se tais pedidos podem, ou não, considerar-se ineptos, visto o disposto no artº 186º nº2 al.a) CPCiv, por falta ou ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir.
Como é sabido, na exegese do actual artº 5º nºs 1 e 2 CPCiv, na esteira do que já dispunha a norma do artº 264º CPCiv, proveniente da revisão de 95/96, pode dizer-se que os factos essenciais podem conceber-se enquanto factos essenciais principais, ou factos essenciais complementares ou concretizadores.
Ora, só os factos essenciais principais desempenham uma função individualizadora ou identificadora, a ponto de só a respectiva omissão implicar a ineptidão da petição inicial (cf. Ac.R.P. 8/1/2018, pº 1676/16.2T8OAZ.P1, relatado pelo Des. Baldaia de Morais).
“Quanto aos factos complementares e aos factos concretizadores, embora também integrem a causa de pedir, não têm uma função individualizadora, pelo que a omissão da respectiva alegação não é passível de gerar ineptidão da petição inicial; assim, os factos complementares são os completadores de uma causa de pedir complexa, ou seja, uma causa de pedir aglutinadora de diversos elementos, uns constitutivos do seu núcleo primordial, outros complementando aquele; por seu turno, os factos concretizadores têm por função pormenorizar ou explicitar o quadro fáctico exposto, sendo essa pormenorização dos factos anteriormente alegados que se torna fundamental para a procedência da acção” – escreveu-se no mesmo aresto, aliás reproduzido pelo Prof. Teixeira de Sousa, in blog do ippc, entrada de 11/4/2018.
Sem curarmos do mérito, repetimo-lo, foram invocados danos, recorde-se, decorrentes de acréscimo de prémios de seguro (veja-se a alegação do artº 30º do articulado de resposta às excepções, por parte da Ré), e decorrentes da inércia da conduta da Autora ou da ausência de informação quanto à sinistralidade (no decurso da execução do contrato – vejam-se os artºs 55º, 67º a 69º, 79º, 82º e 83º do articulado contestação/reconvenção).
Isto posto, os danos invocados não têm por força que ser quantificados, para que possam proceder, mesmo que num quadro de alegação complementar ou concretizadora, visto o disposto no artº 566º nº3 CCiv.
A necessidade de quantificação ou de mais adequada concretização dos factos alegados deveria ter dado origem, fosse o caso, à prolação do despacho de aperfeiçoamento, previsto na norma do artº 590º nº4 CPCiv.
Todavia, há que não olvidar que os factos complementares e concretizadores, designadamente em matéria de quantificação, podem ainda ser utilizados pelo Julgador, até à pronúncia em 1ª instância, desde que se tenha conferido expressamente às partes a possibilidade de sobre eles se pronunciarem – cf. artº 5º nº2 al.b) CPCiv, no quadro dos respectivos poderes/deveres oficiosos em matéria probatória – artº 411º CPCiv.
Em resumo – não existe fundamento para afirmar que, na parte em que excede o pedido inadmissível, tal como supra expusemos, a reconvenção formulada o foi, designadamente, na ausência de causa de pedir.
Não existe assim que afirmar a ineptidão da reconvenção, por aplicação da norma do artº 186º nº2 al.a) CPCiv.
Concluindo:
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Deliberação (artº 202º nº1 CRP):
Julga-se parcialmente procedente, por provado, o interposto recurso de apelação e, consequentemente, revoga-se em parte o douto despacho impugnado, na parte em que admitiu a reconvenção relativamente aos prejuízos decorrentes da propositura da presente acção judicial.
No mais, confirma-se o douto despacho.
Custas do recurso na proporção de metade por Autora e Ré.

Porto, 22/10/2019
Vieira e Cunha
Maria Eiró
João Proença