Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
229/19.8GCVFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO PEDRO PEREIRA CARDOSO
Descritores: DOLO
CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
PROVA
REGRAS DA EXPERIÊNCIA
INDÍCIOS
Nº do Documento: RP20211110229/19.8GCVFR.P1
Data do Acordão: 11/10/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A prova do dolo e da consciência da ilicitude dificilmente se alcança de forma direta, a não ser por confissão, e, por isso, há que proceder à conjugação da demais factualidade julgada provada com as regras da experiência comum e do conhecimento da vida para se poder concluir pela prova daqueles.
II - Além da confissão do arguido, o único meio de prova que realmente satisfaz a necessidade de provar o dolo é a prova indiciária (ou prova indireta).
III - É possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo possa concluir-se, entre os quais surge, com a maior representação, o preenchimento dos elementos materiais integrantes da infração.
IV - Dentro das regras da experiência podem identificar-se dois grupos: as leis científicas (obtidos pelas investigações das ciências, a que se atribui o carácter de empíricas) e as regras de experiência quotidiana (obtidas através da observação, ainda que não exclusivamente cientifica, de determinados fenómenos ou práticas e a respeito das quais se podem estabelecer consenso).
V - Como indícios relevantes na prova do dolo encontramos apontados na doutrina, a título meramente exemplificativo, os seguintes indicadores: (i) Indícios relativos à oportunidade física e real do arguido; (ii) Indícios relativos à idoneidade do meio ou importância do local do corpo atingido; (iii): Indícios relativos à conduta anterior e posterior do arguido; (iv) Indícios referentes às características pessoais do sujeito; (v) Indícios de Participação no Crime; (vi) Indícios relativos às razões do arguido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 229/19.8GCVFR.P1
Recurso penal

Acordam, em conferência, na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

1. RELATÓRIO
Após realização da audiência de julgamento no Processo 229/19.8GCVFR do Juízo de Competência Genérica de Estarreja - Juiz 2, foi em 4 de junho de 2021 proferida sentença, e na mesma data depositada, na qual – além do mais - se decidiu (transcrição):
A) condenar o arguido B… pela prática de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153º, nº1 e 155º, nº1, al a), do Código Penal, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de cinco euros, o que perfaz a multa global de €500,00.

Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o arguido, para este tribunal da Relação do Porto, pugnando pela sua revogação e consequente absolvição do arguido, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que se transcrevem:
Conclusões
I - O Tribunal recorrido apreciou erradamente a prova e, por via disso, deu como provado o ponto n.º 1 do elenco dos factos provados da sentença, o que constitui fundamento para o presente recurso, nos termos conjugados dos artigos 410.º, n.º 2, al. c) e n.º 3. al. a), ambos do CPP.
II - A manter-se tal factualidade, o que apenas por dever de patrocínio se concede, terá a mesma de ser alterada, como se descreve:
“No dia 17 de Julho de 2019, pelas 21:34h, no decurso de desentendimentos anteriores relacionados com empréstimos de dinheiro contraídos por C… junto do arguido B…, quando o primeiro se encontrava numa obra situada na Rua … em Estarreja, este último telefonou-lhe, dizendo-lhe, entre o mais, que estava à espera dele em sua casa e que lhe ia dar um tiro.”
III - Sopesada a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, não deveria ter o tribunal a quo dado como provados os pontos constantes dos números 3, 4 e 5 do elenco dos factos provados, antes devendo atentar ao contexto de discussão telefónica e exaltação em que se produziu a expressão em causa, que impunha que se considerasse que o arguido agiu com o ânimo alterado, movido pelo desespero, ante o incumprimento, pelo queixoso, das obrigações que tinha para consigo.
IV - Por assim ser, acaso tivesse a sentença recorrida analisado criticamente tal contexto, principalmente atribuindo consequência às características da personalidade do queixoso, justamente descrito como titubeante, confuso e incoerente, em momento algum teria dado como provados tais factos, pela insusceptibilidade dos mesmos serem provocados pelo mero telefonema entre dois homens adultos.
V – A sentença em crise errou ao subsumir a factualidade em apreço ao tipo legal de crime de ameaça agravada, tal qual previsto nos artigos 153.º, n.º e 155.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, o que se traduz numa errada interpretação de tais normas, que, assim e por tal via, se mostram violadas – 412.º, n.º 2, als. a) e b) do CPP.
VI - A conduta do arguido não preenche o tríplice requisito do crime de ameaça: a) mal futuro, cuja ocorrência dependa da vontade do agente, não podendo o mal ser iminente; b) não pode existir iminência na execução do mal (tal qual prevista no artigo 22.º, n.º 2, al. c) do Código Penal); c) é indispensável que a ocorrência do mal dependa da vontade do agente.
VII – A expressão que o arguido possa ter proferido terá se compreender-se no contexto de exasperação, aflição, desesperança e exaltação em que se encontrava, não concretizando uma promessa séria de um mal futuro.
VIII – Na senda da mais recente jurisprudência, expressões como a que proferida, em contexto de acesa discussão e/ou envolvimento físico, não concretizam qualquer ameaça de mal futuro, e, sendo censuráveis do ponto de vista da urbanidade que deve pautar o comportamento dos cidadãos, não merecem contudo a tutela do direito penal, que se mantém a ultima ratio do sistema sancionatório do Estado.
XIX – A expressão proferida pelo arguido foi-o em momento de exaltação, a título de desabafo, no calor de uma discussão em que procurava resolver problemas que há muito tentava dirimir com o queixoso, a quem jamais quis causar medo ou inquietação, sendo que logo abandonou o local onde se encontrava aquando do telefonema em questão.
X- Finalmente, a existência do crime depende da vontade do agente de fazer o mal, 12 donde, se apesar desse anúncio, tal vontade não existe, cai igualmente, por não existir, o crime de ameaça (153.º do Código Penal), arrastando consigo a agravação prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 155.º do Código Penal, que se não sustenta autonomamente.
*
Por despacho proferido em 1.09.2021 foi o recurso apresentado pelo arguido regularmente admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
Respondeu o Ministério Público junto do tribunal a quo às motivações de recurso vindas de aludir, entendendo que o recurso interposto pelo arguido deve ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se integralmente a decisão proferida.

Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no qual, acompanhando os considerandos constantes da resposta do Ministério Público na 1ª instância, pugna pela improcedência do recurso, mantendo-se a douta decisão recorrida.

Na sequência da notificação a que se refere o art. 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, o arguido nada disse.

Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
*
2. FUNDAMENTAÇÃO
Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior - artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal) [1].
O essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, excetuadas as questões de conhecimento oficioso” – cfr. Ac. do STJ, de 15.04.2010, in http://www.dgsi.pt. [2].
Posto isto,
as questões submetidas ao conhecimento deste tribunal são:
1ª Do erro de julgamento da matéria de facto (art. 410°, nº2, do Código Processo Penal): a) Erro notório na apreciação da prova.
2ª Da violação dos princípios da livre apreciação da prova e in dubio pro reo
3ª Do preenchimento do tipo de crime: mal futuro e dolo

Com relevo para a resolução das questões objeto do recurso importa recordar
a fundamentação de facto da decisão recorrida, que é a seguinte (transcrição):
Factos Provados:
1. No dia 17 de Julho de 2019, pelas 21:34h, no decurso de desentendimentos anteriores relacionados com empréstimos de dinheiro contraídos por C… junto do arguido B…, quando o primeiro se encontrava numa obra situada na Rua … em Estarreja, este último telefonou-lhe, dizendo-lhe, entre o mais e por mais de uma vez, que estava à espera dele em sua casa e que lhe iria dar um tiro.
2. Fê-lo em tom convicto e firme.
3. As expressões proferidas são meio idóneas a provocar medo e inquietação, o que aconteceu, na medida em que o ofendido, em consequência dos mesmos, ficou a temer pela sua vida e integridade física.
4. O arguido sabia que a sua conduta era apta a causar medo ou inquietação no ofendido e prejudicar a sua liberdade de determinação, o que quis, não se abstendo de agir do modo descrito.
5. Agiu de forma livre, deliberada e consciente.
6. Os factos foram praticados pelo arguido em estado de exaltação por entender que o queixoso tinha para consigo dívidas que não se aprestava a saldar ou a tentar resolver.
7. Após o telefonema o arguido, que se encontrava junto da casa do ofendido, abandonou o local.
8. O arguido encontra-se desempregado, reside com a companheira em casa desta.
9. Não esta a receber qualquer rendimento.
10. Tem duas filhas, as quais residem com a progenitora na Suíça e a quem não paga pensão de alimentos.
11. Tem o 7º ano de escolaridade.
12. Não tem antecedentes criminais.

A decisão de facto teve por base a prova produzida em audiência, globalmente considerada, que consistiu no seguinte:
O tribunal atendeu, essencialmente ao depoimento de D…, o qual descreveu os factos provados de uma forma que se afigurou ao tribunal como isenta e credível, tendo prestado um depoimento seguro, coerente e sem exageros.
Com efeito, o mesmo não denotou conhecer especialmente bem o ofendido, não conhecendo de todo o arguido, não se afigurando que tenha vindo a julgamento descrever factos que não presenciou. Não há dúvida, até porque o arguido não o nega, que tenha telefonado no dia em causa ao queixoso, nem que o fez usando um tom de voz agressivo por se encontrar enervado pelo facto de o queixoso não cumprir com a sua palavra, no que respeitava a negócios que ambos mantinham. Ora, é precisamente neste âmbito que o queixoso afirma que por estar já a ser ofendido e ameaçado pelo arguido que, por ali se encontrar, chama a testemunha D… pondo o telefone em alta voz, o que este confirma, tendo ainda ouvido o arguido dizer que iria dar um tiro ao queixoso, percebendo que o mesmo se referia à falta de entrega de dinheiro e ferramentas. Afirma a testemunha que o queixoso ficou muito perturbado no momento, tendo-o, por isso mesmo, transportado na sua viatura até a um posto da GNR, dizendo os militares que o acompanhariam a casa, seguindo então o seu caminho.
Ora, quer este facto, quer a queixa, apresentada no dia imediato, quer a própria postura da testemunha que não se propôs a levar o queixoso a casa, fazem indiciar o medo que quer o queixoso, quer a testemunha tiveram de que o arguido se pudesse ali efectivamente se encontrar, temendo ambos este encontro. Isso apenas se justifica caso as referidas ameaças tenham sido proferidas. Houvessem os factos decorrido como os narra o arguido e não se justifica este estado de medo, ou a apresentação da queixa.
E o certo é que, como se disse, a testemunha afigurou-se muito credível.
Já o queixoso, foi bastante titubeante, confuso e algo incoerente, sendo, contudo, que estes dados se afiguraram ao tribunal mais como características do mesmo do que a prestação de um depoimento inverídico. Com efeito, o queixoso acaba por assumir dever dinheiro ao arguido, que por ele foi ajudado e que se sentiu assoberbado pelas exigências de trabalho que o arguido lhe impunha, o que é conforme com a versão do arguido. Assim, aquelas falhas de raciocínio percepcionadas em julgamento, entenderam-se precisamente como isso, como alguma dificuldade que o próprio tem em expressar-se e descrever qualquer factualidade. Com efeito, esta forma de falar, titubeante e confusa manteve-se mesmo em questões laterais que lhe eram colocadas e em relação às quais não há qualquer motivo para duvidar do afirmado.
Assim sendo, não ficaram dúvidas ao tribunal de que, ainda que motivado por desespero na não resolução pelo queixoso dos negócios em comum, o arguido proferiu as expressões referidas em 1.
As condições sócio económicas do arguido resultaram provadas em face das declarações que o mesmo prestou, sendo que, a este propósito, não levantaram dúvidas ao tribunal.
Considerou-se o CRC junto para prova da falta de antecedentes criminais registados do arguido.
***
Conhecendo as questões suscitadas, cumpre decidir.

1ª. Do erro de julgamento da matéria de facto
O recorrente suscita o erro de julgamento da matéria de facto, concretamente dos factos dados como provados, nos pontos 1, 3, 4 e 5, com os seguintes fundamentos previsto no nº 2 do art. 410° do Cód. Proc. Penal:
c) Erro notório na apreciação da prova.
Os vícios decisórios – a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova – previstos no nº 2 do art. 410º do CPP, traduzem defeitos estruturais da decisão penal e não do julgamento e por isso, a sua evidenciação, como dispõe a lei, só pode resultar do texto da decisão, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum.
Não é permitido, para a demonstração da sua verificação, o recurso a quaisquer elementos que sejam externos à decisão recorrida.
Do erro notório na apreciação da prova.
O erro notório da apreciação da prova, vício da decisão previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, supõe factualidade contrária à lógica e às regras da experiência comum, detetável por qualquer cidadão de formação cultural média – cfr. STJ 2015-03-12 (Pires da Graça) www.dgsi.pt.
Estamos em presença de erro notório na apreciação da prova sempre que do texto da decisão recorrida resulta, com evidência, um engano que não passe despercebido ao comum dos leitores e que se traduza numa conclusão contrária àquela que os factos relevantes impõem. É necessário que perante os factos provados e a motivação explanada se torne evidente, para todos, que a conclusão da decisão recorrida é ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum [3]
O erro notório na apreciação da prova verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.
Para se verificar este vício tem pois de existir uma “(…) incorrecção evidente da valoração, apreciação e interpretação dos meios de prova, incorrecção susceptível de se verificar, também, quando o tribunal retira de um facto uma conclusão ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum” [4].
Também na doutrina, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Lisboa/S.Paulo, 1994, pág. 327, recorda que o erro notório na apreciação da prova verifica-se quando se evidencia a desconformidade com a prova produzida em audiência ou com as regras da experiência por se ter decidido contra o que se provou ou não provou ou por se ter dado por provado o que não podia ter acontecido. Este erro tem de ser ostensivo, que não escapa ao homem com uma cultura média. Dito de outro modo, o requisito da notoriedade do erro afere-se pela circunstância de não passar despercebido ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente, acrescenta o mesmo Autor.
Por sua vez, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 7ª ed., 2008, pág. 77, escrevem que tal vício ocorre quando se verifica “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram como provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que efetivamente se provou ou não provou, ou seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável. (…) há um tal erro quando um ser humano médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o Tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis”.
Ao tribunal de recurso apenas cabe “(…) aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significara que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração”. [5]
Daí que o eventual erro na apreciação da prova, por regra, nunca emerge como erro notório na apreciação da prova. Quando os recorrentes entendem que a prova foi mal apreciada devem proceder à impugnação da decisão sobre a matéria de facto conforme o art.412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal e não invocar o vício do erro notório.
Contudo, estando em causa a “apreciação da prova não pode deixar de dar-se a devida relevância à perceção que a oralidade e a imediação conferem aos julgadores do Tribunal a quo.
Deste modo, quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova se baseia na opção assente na imediação e na oralidade, o Tribunal de recurso só pode censurá-la se demonstrado ficar que tal opção é de todo em todo inadmissível face às regras de experiência comum.
Como se escreve no ac STJ 2013-07-18 (Rui Gonçalves) in www.dgsi.pt, “são os Juízes de 1.ª instância quem de forma direta e “imediata” podem observar, as intransferíveis sensações que derivam das declarações e que se obtêm a partir do que os arguidos e das testemunhas disseram, do que calaram, dos seus gestos, da palidez ou do suor do seu rosto, das suas hesitações. É uma verdade empírica que frente a um mesmo facto diversos testemunhos presenciais, de boa-fé, incorrem em observações distintas. A congruência dos testemunhos entre si, o grau de coerência com outras provas que existam e com outros factos objetivamente comprováveis, quer dizer, a apreciação conjunta das provas, são elementos fundamentais para dar maior credibilidade a um testemunho que a outro.
Para tal, a convicção do Tribunal tem de ser formada na ponderação de toda a prova produzida, não podendo censurar-se aquele por nesse juízo ter optado por uma versão em detrimento de outra. Não existindo prova legal ou tarifada que se impusesse ao Tribunal, o Tribunal julga a prova segundo as regras de experiência comum e a livre convicção que sobre ela forma (art. 127.º do Código de Processo Penal)”.
Em síntese, o vício vindo de referir refere-se às situações de falha grosseira e ostensiva, na análise da prova e não se confunde com a mera discordância ou diversa opinião quanto à valoração da prova produzida levada a efeito pelo julgador, antes traduz-se em distorções de ordem lógica entre os factos provados ou não provados, ou na evidência de uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável e, por isso, incorreta e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio.

Dito isto, relendo a motivação do recurso em análise, são invocados quanto aos factos dados como provados nos pontos 1, 3, 4 e 5:
a) o erro notório na apreciação da prova, com alusão expressa à al. c) do nº 2 do art. 410º.
Transcrevendo os factos dados como provados:
1. No dia 17 de Julho de 2019, pelas 21:34h, no decurso de desentendimentos anteriores relacionados com empréstimos de dinheiro contraídos por C… junto do arguido B…, quando o primeiro se encontrava numa obra situada na Rua … em Estarreja, este último telefonou-lhe, dizendo-lhe, entre o mais e por mais de uma vez, que estava à espera dele em sua casa e que lhe iria dar um tiro.
2. (…)
3. As expressões proferidas são meio idóneas a provocar medo e inquietação, o que aconteceu, na medida em que o ofendido, em consequência dos mesmos, ficou a temer pela sua vida e integridade física.
4. O arguido sabia que a sua conduta era apta a causar medo ou inquietação no ofendido e prejudicar a sua liberdade de determinação, o que quis, não se abstendo de agir do modo descrito.
5. Agiu de forma livre, deliberada e consciente.
Concretizando, quanto ao ponto 1, aceita o recorrente como corretamente provado que no dia 17 de Julho de 2019, pelas 21:34h, no decurso de desentendimentos anteriores relacionados com empréstimos de dinheiro contraídos por C… Silva junto do arguido B…, quando o primeiro se encontrava numa obra situada na Rua … em Estarreja, este último telefonou-lhe, dizendo-lhe, entre o mais, que estava à espera dele em sua casa.
Discorda o arguido é do número de vezes e exato teor da expressão utilizada, já que se provou ter dito, sem o repetir, “que lhe ia dar um tiro” e não “que lhe iria dar um tiro”.
Outrossim, acrescenta o recorrente, da conjugação da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, não deveria ter o tribunal a quo dado como provados os pontos constantes dos números 3, 4 e 5 do elenco dos factos provados.
Aqui chegados constata-se que nenhum erro notório se verifica na apreciação destes factos, nem o recorrente o explica a partir do texto da decisão recorrida.
Consta-se, na verdade, que a análise efetuada pelo recorrente não se cinge ao teor da decisão recorrida, mormente à motivação da decisão de facto, antes convoca o conteúdo dos meios de prova por si elencados, sobretudo os testemunhais, com a finalidade de contrariar a valoração da prova vertida na sentença recorrida quanto aos pontos de facto indicados, deste modo extravasando os limites da arguição do convocado vício decisório.
Da leitura da motivação de recurso resulta, isso sim, que nessa parte o arguido pretende impugnar a matéria de facto nos termos da impugnação ampla a que se refere o art. 412º, nºs 3, 4 e 6.
Na verdade, da leitura da decisão recorrida não sobressai qualquer erro clamoroso, que tenha resultado provado algum facto que não possa ter acontecido ou que a prova tenha sido valorada contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados.
Do seu texto e contexto lógico e de fundamentação não resulta que os factos dados como provados se contradigam entre si ou violem os conhecimentos adquiridos pelas regras da experiência comum.
Pelo contrário, quanto ao aludido excerto da matéria de facto provada a decisão recorrida apresenta-se bem estruturado, encontrando-se a factualidade provada e não provada, adequada, cristalina, detalhadamente fundamentada, com indicação e exame crítico das provas proficiente, concatenada com as regras da experiencia comum e de harmonia com o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art.127º.
Nesta parte, tendo em conta todos estes ensinamentos e lendo a decisão recorrida não logramos descortinar onde a mesma é absurda, ilógica ou atentatória das regras da experiência comum.
O que o recorrente pretende é colocar em crise a convicção que o Tribunal recorrido formou perante as provas produzidas em audiência e substituir essa convicção pela sua própria convicção.
Ora, como já se disse, a divergência de convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e aquela que o Tribunal formou, não se confunde com o vício de erro notório de apreciação de prova nem qualquer outro do artigo 410º nº 2 do CPP.
Da leitura do texto da decisão recorrida conjugada com as regras da experiência comum, facilmente se percebe que a mesma é escorreita, doutamente fundamentada e os juízos que são feitos são apreendidos pelo leitor comum, isto é, são lógicos, prudentes, não arbitrários e estribam-se nas referidas regras da experiência.
Em conclusão, evidenciando a explicitação lógica e escorreita do modo como o julgador formou a sua convicção sobre os factos em apreço, o texto da decisão recorrida não padece nessa parte do vício previsto no art. 410º, 2, al. c), nem para o que aqui releva, qualquer outro vício desta norma, o que se declara.
*
Passemos agora à impugnação ampla da matéria de facto.
2ª Da violação dos princípios da livre apreciação da prova e in dubio pro reo
Nos termos do art. 428º, nº 1, as Relações conhecem de facto e de direito e de acordo com o artigo 431º “Sem prejuízo do disposto no artigo 410º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada, nos termos do nº 3, do artigo 412º; ou c) Se tiver havido renovação da prova.”
Por outro lado, dispõe o art. 412º, nº 3 que “Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.”.
No nº 4 que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”
E no nº 6 “No caso previsto no nº 4 o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa
Quanto a esta última modalidade de impugnação impõe-se pois ao recorrente o dever de especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa. Tal ónus tem de ser observado para cada um dos factos impugnados, devendo ser indicadas em relação a cada facto as provas concretas que impõem decisão diversa e bem assim tem de ser referido qual o sentido em que devia ter sido produzida a decisão.
O erro de julgamento da matéria de facto, tal como resulta do artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, reporta-se, normalmente, a situações como as seguintes:
- o Tribunal a quo dar como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha e a mesma nada declarou sobre o facto;
- ausência de qualquer prova sobre o facto dado por provado;
- prova de um facto com base em depoimento de testemunha sem razão de ciência da mesma que permita a prova do mesmo;
- prova de um facto com base em provas insuficientes ou não bastantes para prova desse mesmo facto, nomeadamente com violação das regras de prova;
- e todas as demais situações em que do texto da decisão e da prova concretamente elencada na mesma e questionada especificadamente no recurso e resulta da audição do registo áudio, se permite concluir, fora do contexto da livre convicção, que o tribunal errou, de forma flagrante, no julgamento da matéria de facto em função das provas produzidas.
Posto isto, cabe referir que o reexame da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento, mas apenas sindicar aquele que foi efetuado, despistando e sanando os eventuais erros procedimentais ou decisórios cometidos e que tenham sido devidamente suscitados em recurso como se lê no Ac. STJ de 16.06.2005 disponível in www.dgsi.pt, assim como todos os demais arestos a que se venha a fazer referência.
Com efeito, o recurso da matéria de facto não representa um novo julgamento (o que só ocorre nos casos restritos de renovação da prova em segunda instância, nos termos do art. 430º); ele constitui um meio de cura para os eventuais vícios de julgamento em primeira instância, sempre tendo em atenção que este último tribunal julga em condições diversas do tribunal de recurso: a oralidade e a imediação são princípios basilares na recolha dos elementos probatórios; é na primeira instância que, em regra, o juiz se encontra em condições de avaliar a validade e a credibilidade de um documento, ou de um depoimento, quer de um declarante, quer de uma testemunha, quer mesmo de um arguido.
E posto que o juízo de credibilidade (das provas oralmente produzidas) depende logicamente do carácter, da postura e da integridade moral de quem as presta e não sendo tais qualidades apreensíveis mediante leitura, exame e análise das peças processuais onde as mesmas se encontram documentadas, mas sim através do contacto com as pessoas, é notório e evidente que o tribunal superior, salvo algumas exceções, adotará o juízo valorativo formulado pelo e no tribunal a quo; esta linha orientadora de pensamento encontra eco e está hoje traduzida de forma duradoura na jurisprudência dos tribunais superiores.
Do que se conclui que o recurso sobre a matéria de facto não pressupõe a reapreciação pelo tribunal de recurso de todos os elementos de prova que foram produzidos e que serviram de fundamento à sentença recorrida, mas apenas e tão-só a reapreciação da razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo, a incidir sobre os pontos de factos impugnados e com base nas provas indicadas pelo recorrente cfr. Ac. do STJ de 10.01.2007.
Por seu turno, o nosso código de processo penal consagra no art. 127º o princípio da livre apreciação da prova. De acordo com este princípio, o tribunal é livre na formação da sua convicção, mas encontra-se vinculado às regras da experiência e da lógica comum, bem como às provas que estão subtraídas a essa livre convicção, sendo esta motivada, e estando ainda o tribunal sujeito aos princípios do processo penal, como o da legalidade das provas e in dubio pro reo. E este princípio, emanação da injunção constitucional da presunção da inocência do arguido, na vertente de prova (art. 32º, nº 2 da Constituição da Republica Portuguesa), constitui um limite do princípio da livre apreciação da prova na medida em que impõe nos casos de dúvida fundada sobre os factos que o Tribunal decida a favor do arguido.
Por conseguinte, feito este enquadramento, cabe concluir que assim e para além da violação das provas subtraídas à livre apreciação do julgador, ou da violação dos referidos princípios, o juízo decisório da matéria de facto só é suscetível de ser alterado, em sede de recurso, quando a racionalidade do julgamento da matéria de facto corresponda, de um modo objetivo, a um juízo desrazoável ou mesmo arbitrário da apreciação da prova produzida.
Donde, não basta para a procedência da impugnação e correspetiva modificação da decisão de facto que as provas produzidas permitam uma decisão diversa da proferida pelo tribunal, sendo necessário que as provas especificadas pelo recorrente imponham decisão diversa da recorrida.
Cabe, portanto, a este tribunal de recurso verificar se o julgador, ao formar a sua convicção, fez um bom uso do supra mencionado princípio da livre apreciação da prova, aferindo da legalidade do caminho que prosseguiu para chegar ao veredicto de facto, sendo que, na base desse controlo deverá estar a motivação elaborada pelo tribunal de primeira instância, na fundamentação daquela que foi a sua opção, ao dar cumprimento ao disposto o art. 374º, nº 2.
Sem olvidar que a convicção do tribunal é formada não só através dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas produzidas, mas também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e, ainda, não menos importante, das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im) parcialidade, ansiedade, serenidade, olhares, postura corporal, tom de voz, coerência de raciocínio e de atitude, coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência, de tais declarações e depoimentos.
Em suma, a administração e valoração das provas cabe, em primeira linha, ao tribunal perante o qual foram produzidas, que apreciará e decidirá sobre a matéria de facto segundo o princípio estabelecido no artigo 127º do Código de Processo Penal.
Assim, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção da entidade competente.
Contudo, a livre convicção não significa apreciação segundo as impressões, nem inexistência de pressupostos valorativos, ou a desconsideração do valor de critérios, ainda objetivos ou objetiváveis, determinados pela experiência comum das coisas e da vida, e pelas inferências lógicas do homem comum suposto pela ordem jurídica – cfr. Ac STJ 13/07/2005 e STJ de 17/03/2004, ambos do Cons. Henriques Gaspar, in www.dgsi.pt
A livre convicção constitui antes um modo não estritamente vinculado de valoração da prova e de descoberta da verdade processualmente relevante, isto é, uma conclusão subordinada à lógica e à razão e não limitada por prescrições formais exteriores (cfr., Cavaleiro de Ferreira, "Curso de Processo Penal", II, pág. 27).
O princípio, tal como está inscrito no artigo 127º do CPP, significa, no rigor das coisas, que o valor dos meios de prova não está legalmente pré-estabelecido, devendo o tribunal apreciá-los de acordo com a experiência comum, com o distanciamento, a ponderação e a capacidade crítica, na «liberdade para a objectividade» [6].
A livre apreciação da prova pressupõe, pois, a concorrência de critérios objetivos que permitam estabelecer um substrato racional de fundamentação da convicção, que emerge da intervenção de tais critérios objetivos e racionais. Apenas a fundamentação racional e lógica, que possa fazer compreender a intervenção e o sentido das regras da experiência, permite formar uma convicção motivada e apreensível, afastando as conclusões que sejam suscetíveis de se revelar como arbitrárias, ou em formulação semântica marcada, meramente impressionistas (cfr. Marques Ferreira, "Jornadas de Direito Processual Penal", ed. CEJ, pág. 226).
Descendo já ao caso que nos ocupa, cabe referir que o recorrente na sua motivação deu cumprimento satisfatório às exigências do citado art. 412º, nºs 3 e 4, indicando os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, bem como as concretas provas que, no seu entendimento, impõem decisão diversa da recorrida e tendo referenciado concretamente as passagens em que funda a sua impugnação.
Nesta conformidade, elenca como meios de prova a atender, as suas próprias declarações que negou ter proferido as expressões ali narradas e os depoimentos do ofendido e da testemunha D….
Assim, na motivação do recurso o recorrente enunciou os diferentes pontos factuais que entendeu controversos procurando demonstrar que tais provas apontam para diferente conclusão da vertida na decisão recorrida, conferindo-lhes obviamente uma interpretação pessoal, o que ainda assim não obstaculiza a sua pretensão.
Vejamos então se os convocados meios de prova se revelam ou não idóneos à pretendida alteração da matéria de facto.
Quanto ao ponto 1, a discordância do recorrente em relação à decisão impugnada reside apenas no exato teor da expressão (ameaçadora) utilizada pelo arguido e no número de vezes que foi verbalizada.
A propósito refere a acusação que o arguido “telefonou-lhe e disse-lhe (…) que lhe iria dar um tiro”.
Afirmou a sentença que o arguido “telefonou-lhe, dizendo-lhe, entre o mais e por mais de uma vez, que estava à espera dele em sua casa e que lhe iria dar um tiro”.
Discorda o recorrente afirmando, ainda que o próprio o tivesse negado em julgamento, que se provou ter dito, sem o repetir, “que lhe ia dar um tiro” e não “que lhe iria dar um tiro”.
Ora, ouvidos os depoimentos das testemunhas D… e C… , nos quais se alicerçou nesse particular a convicção do tribunal a quo, ambas afirmaram ter escutado o arguido dizer ao ofendido que estava à espera dele em sua casa e que lhe dava/ ia dar um tiro que o matava, bem entendido, quando o ofendido ali chegasse, o que fez com que este não se dirigisse para casa, mas ao posto da GNR, com receio daquele.
Considerando que o julgador utilizou a técnica narrativa do discurso indireto [7], ao escrever que o arguido disse para o ofendido “que estava à espera dele em sua casa e que lhe iria dar um tiro” corresponde exatamente ao que o arguido afirmou que lhe iria fazer quando a vítima ali chegasse.
O que não resultou claro das declarações das referidas testemunhas foi que o arguido tivesse repetido essa expressão, donde a dúvida insanável, séria e fundada a esse respeito, deva ser resolvida a favor do arguido, ao abrigo do princípio in dubio pro reo.
Este princípio, emanação da injunção constitucional da presunção da inocência do arguido, na vertente de prova (art. 32º, nº 2 da Constituição da Republica Portuguesa), constitui um limite do princípio da livre apreciação da prova na medida em que impõe nos casos de dúvida fundada sobre os factos que o Tribunal decida a favor do arguido.
Assim, corrigida em conformidade a matéria de facto, apenas deve ser eliminada a expressão “e por mais de uma vez”.
Aqui chegados, por constarem do processo todos os elementos de prova que lhe servem de base, nos termos do art.431º, al.a), do Código Processo Penal, corrigindo o apontado erro na apreciação da prova em conformidade com o explanado juízo probatório,
reformula-se a decisão de facto quanto ao ponto 1) nos termos seguintes:
Factos Provados
“1. No dia 17 de Julho de 2019, pelas 21:34h, no decurso de desentendimentos anteriores relacionados com empréstimos de dinheiro contraídos por C… junto do arguido B…, quando o primeiro se encontrava numa obra situada na Rua … em Estarreja, este último telefonou-lhe, dizendo-lhe, entre o mais, que estava à espera dele em sua casa e que lhe iria dar um tiro”.

No mais, o recorrente faz uma análise pessoal dos meios de prova produzidos para concluir que os pontos 3, 4 e 5 dos factos provados, deveriam ter sido dados como não provados.
Porém, lidos, escutados e analisados os segmentos da prova reproduzidos não se extraem motivos objectivos que justifiquem a modificação da aludida matéria de facto impugnada e determinem o afastamento do raciocínio lógico desenvolvido pelo tribunal a quo, mas antes se confirmam os fundamentos em que se alicerçou a convicção do tribunal sobre a matéria provada.
Como já se disse e repete-se no nosso sistema processual vigora o princípio da livre apreciação da prova - cfr. art. 127º -, em conformidade com o qual o juiz tem total liberdade, de acordo com a sua íntima convicção, de proceder à valoração dos meios de prova obtidos. Mas a livre apreciação da prova só está sujeita ao controlo desta instância de recurso, quando a violação do princípio da objetividade for manifesta. Donde, por regra, e ressalvadas as exceções previstas na lei, na apreciação da prova e partindo das regras de experiência, o tribunal é livre de formar a sua convicção.
O duplo grau de jurisdição na apreciação da decisão da matéria de facto não tem, portanto, a virtualidade de abalar o princípio da livre apreciação da prova que está conferido ao julgador de primeira instância.
Cabe deste modo concluir que, e para além da violação das provas subtraídas à livre apreciação do julgador, ou da violação dos referidos princípios, o juízo decisório da matéria de facto só é susceptível de ser alterado, em sede de recurso, quando a racionalidade do julgamento da matéria de facto corresponda, de um modo objectivo, a um juízo desrazoável ou mesmo arbitrário da apreciação da prova produzida.
Nessa decorrência, e consciente das limitações que o recurso da matéria de facto necessariamente tem de envolver, o legislador teve o cuidado de enunciar que as provas a atender pelo Tribunal ad quem são aquelas que “impõem” e não as que “permitiriam” decisão diversa - cfr. art. 412º, nº 3, al. b).
Donde, não basta para a procedência da impugnação e correspetiva modificação da decisão de facto que as provas produzidas permitam uma decisão diversa da proferida pelo tribunal, sendo necessário que as provas especificadas pelo recorrente imponham decisão diversa da recorrida.
A negação e/ou diferente interpretação dos factos por parte do arguido, por si só, não impõe a alteração factual pretendida, mostrando-se plenamente justificada a credibilidade e interpretação conferida ao relato das referidas duas testemunhas quanto aos pontos 3, 4 e 5 dos factos provados, em conjugação com as regras da experiência comum e da normalidade do acontecer.
Com efeito, entende este tribunal que os sobreditos factos foram corretamente julgados e a prova criticamente apreciada, com respeito pelo princípio geral da livre apreciação da prova e da convicção do julgador, posto que a factualidade dada como provada foi sustentada pela concatenação de toda a prova produzida.
Daí que não se vislumbram razões para sobrepor o juízo interpretativo do recorrente referente àquela prova, ao que foi alcançado na decisão impugnada, tão pouco se mostram incumpridas as regras da experiência comum, entendendo-se assim que a decisão da matéria de facto se deverá manter inalterada, respeitando a convicção pessoal do julgador no âmbito do uso do principio que vigora neste domínio, o da livre apreciação da prova vertido no art. 127º, não nos merecendo aquela qualquer reparo ou censura.
No caso foi efetuado um exame critico e consistente às provas produzidas, tendo o tribunal a quo formado a sua livre convicção, quanto ao modo como os factos ocorreram e a intencionalidade do agente, sendo que a decisão recorrida só seria de alterar se se revelasse evidente que as provas não conduziriam àquela decisão, o que, in casu, não sucedeu, sendo irrelevante se a interpretação que o recorrente faz dessa prova é diversa da interpretação do julgador.
Por outras palavras, a alteração da matéria de facto, por via da impugnação ampla, não pode basear-se na virtualidade de formulação de um juízo probatório diverso daquele que subjaz à decisão recorrida, mais exige a lei que a prova indicada pelo recorrente infirme ou invalide a decisão que foi tomada e determine, de modo inequívoco e inabalável, desiderato não alcançado no caso presente.
E o que é evidente é que em relação aos pontos 3, 4 e 5 dos factos provados o recorrente constrói um mero exercício de critica descontextualizado, à margem das regras da experiência e da lógica, relativamente ao sentido atribuído pelo tribunal à expressão utilizada pelo arguido no contexto do comportamento do mesmo.
Tanto mais que a prova do dolo e da consciência da ilicitude, a que se reportam os factos impugnados, dificilmente se alcança de forma direta, a não ser por confissão, havendo que proceder à conjugação da demais factualidade julgada provada com as regras da experiência comum e do conhecimento da vida para se poder concluir pela prova daqueles, valendo em matéria de presunções naturais que interferem na valoração da prova indiciária os ensinamentos, que aqui acompanhamos, plasmados no ac STJ 06-10-2010 (Henriques Gaspar) www.dgsi.pt.
O dolo pertence à vida interior e afetiva de cada um e, é portanto, de natureza subjetiva, insuscetível de direta apreensão [8]
Como fenómeno psicológico interno, só observável diretamente por quem o experiencia, o dolo, assim como qualquer outro estado subjetivo, é de difícil apreensão, o que na maioria das vezes dificulta a sua prova e respetiva imputação [9].
Quando não existe confissão, a prova do dolo tem que ser feita por inferência, isto é, terá que resultar da conjugação da prova de factos objetivos – em particular, dos que integram o tipo objetivo de ilícito – com as regras de normalidade e da experiência comum.
Além da confissão do arguido, o único meio de prova que realmente satisfaz a necessidade de provar o dolo é a prova indiciária (ou prova indireta). Na falta de confissão, todos os elementos de estrutura psicológica, como o conhecimento e a vontade de praticar um crime, terão de ser deduzidos de outros elementos, esses sim empiricamente observáveis e que funcionam, segundo as regras da experiência e da lógica, como indicadores da sua existência.
No caso concreto do dolo, terá de ficar demonstrado que, de acordo com os padrões racionais de comportamento e com os critérios de normalidade social, o arguido não pôde ter deixado de representar e querer o resultado em causa.
É possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo possa concluir-se, entre os quais surge, com a maior representação, o preenchimento dos elementos materiais integrantes da infração.
Para tanto o julgador deverá ter em conta alguns indicadores externos do dolo revelados pela conduta externa do agente, mas também todas as circunstâncias concretas que envolveram o crime, evitando assim cair no erro de tentar presumir o dolo pela simples materialidade do crime.
A prova do dolo faz-se, normalmente, de forma indireta, com recurso a inferências lógicas e presunções ligadas ao princípio da normalidade ou às chamadas máximas da vida e regras da experiência [10].
Assim, na ausência de confissão, em que o arguido reconhece ter sabido e querido os factos que realizam um tipo objetivo de crime e ter consciência do seu carácter ilícito, a prova terá de fazer-se por ilações, a partir de indícios, através de uma leitura do comportamento exterior e visível do agente [11].
Como afirma Ana Maria Barata de Brito in A valoração da prova e a prova indireta,pg.125 [12]: “O julgador deve resolver a questão de facto decidindo que (ou se) o agente agiu internamente da forma como o revelou externamente.
Salientando a dificuldade de obtenção deste tipo de prova, Ragués i Vallès, in “Considerationes sobre la prova del dolo”, [13] propõe, na falta da confissão, a utilização de regras de atribuição do conhecimento, convocando a análise das designadas regras da experiência sobre o conhecimento alheio que permitem determinar, a partir da concorrência de certos dados externos, o que representou o sujeito no momento de pôr em prática uma certa conduta.
Mas, segundo o mesmo Autor, o que permite ter como correta uma regra de experiência é a existência de um amplo consenso em torno da sua vigência. O juiz não deve construir ou inventar regras de experiência para cada caso, mas socorrer-se da interação social para as encontrar e, no caso particular da prova do dolo, deve deitar mão àquelas regras que se aplicam em sociedade para as atribuições mútuas de conhecimentos entre cidadãos [14].
Dentro das regras da experiência podem identificar-se dois grupos: as leis científicas (obtidos pelas investigações das ciências, a que se atribui o carácter de empíricas) e as regras de experiência quotidiana (obtidas através da observação, ainda que não exclusivamente cientifica, de determinados fenómenos ou práticas e a respeito das quais se podem estabelecer consenso.
Como indícios relevantes na prova do dolo encontramos apontados na doutrina [15], a titulo meramente exemplificativo, os seguintes indicadores:
1- Indícios relativos à oportunidade física e real do arguido: indícios relativos à presença do arguido no lugar dos factos, a posse de certos instrumentos do delito, o conhecimento do lugar ou de certas circunstâncias, etc.
2- Indícios relativos à idoneidade do meio ou importância do local do corpo atingido: por exemplo, não parece credível que um determinado sujeito dispare para o coração da vítima alegando que apenas pretendia lesionar ou assustá-la.
3- Indícios relativos à conduta anterior e posterior do arguido: A intenção do agente é, normalmente, uma conclusão que o tribunal pode e deve fazer a partir da avaliação da conduta do réu, na medida em que seja uma consequência ou prolongamento dos factos a este imputáveis. Imagine-se uma discussão anterior à prática do crime entre o arguido e a vítima.
4- Indícios referentes às características pessoais do sujeito: por exemplo a profissão, os estudos, o nível cultural e as competências adquiridas pelo arguido podem ser relevantes para atribuir certos conhecimentos. É necessário o juiz proceder a uma correta contextualização das características pessoais do agente com a situação concreta do crime. Relevantes são também eventuais condenações anteriores do arguido, quando estas revelem um "modus operandi" semelhante com a prática do crime em análise.
5- Indícios de Participação no Crime: dizem respeito às circunstâncias que se relacionem com o delito, exemplo: sinais de fractura, sangue, golpes, o próprio instrumento do delito. O arguido que esconde o instrumento ou corpo delito evidencia de acordo com as regras da experiência comum, dado o modo de execução, a intenção e consciência de praticar o crime.
6- Indícios relativos às razões do arguido: indícios ligados aos motivos, como a vingança, ódio, raiva, necessidade do arguido.
Retomando o caso dos autos estamos em crer que de acordo com as máximas da lógica e da experiência comum, baseadas no consenso social sobre a normalidade da vida, a literalidade da expressão utilizada pelo arguido (que lhe dava um tiro, referiu, aliás, o ofendido que aquele lhe disse que o rachava e lhe dava dois tiros), o local e modo como o fez (telefonando-lhe para dizer que esperar pelo ofendido em casa deste), a discussão séria e forte em que ocorreu tal verbalização, o contexto atual e anterior de sério desentendimento entre ambos sobre o não pagamento do que o ofendido lhe devia [16], confessando o arguido ter atuado de forma bruta, ríspida, sem esconder a raiva que sentia nesse momento, são indicadores seguros de que o arguido agiu como o tribunal a quo deu provado nos pontos 4 e 5, não havendo igualmente razões para duvidar que as expressões proferidas são meio idóneas a provocar medo e inquietação, o que aconteceu, na medida em que o ofendido, em consequência dos mesmos, ficou a temer pela sua vida e integridade física (ponto 3).
“Encontrando-se o arguido enervado, em verdadeiro desespero pelo queixoso não cumprir as obrigações que tinha para consigo, pelo que, para além das exigências que lhe fez e das imputações que lhe possa ter dirigido”, como o próprio reconheceu em declarações no julgamento e agora na motivação do recurso, não vemos como à luz da lógica e da experiência comum possa ter-se como mero desabafo as expressões por si utilizadas, por aquelas razões motivado, e menos ainda que as mesmas fossem insuscetíveis de causar medo ou inquietação à vítima, o que veio acontecer, condicionando a sua liberdade de movimentos.
Ao caso é indiferente se o arguido, que se encontrava junto da casa do ofendido, após o telefonema, abandonou o local, tanto mais que se ignora quanto tempo depois o fez e se desse facto teve conhecimento imediato a vítima.
Assim, entende-se, nessa decorrência que a decisão da matéria de facto se deverá manter inalterada, respeitando a convicção pessoal do julgador no âmbito do uso do principio que vigora neste domínio, não nos merecendo aquela qualquer reparo ou censura.
Assim, falece a argumentação do recorrente quanto a estes pontos da matéria de facto, que foram de modo fundado vertidos nos factos provados.
Donde, obtém procedência parcial o recurso do arguido no que ao ponto 1 dos factos provados concerne, mantendo-se no mais inalterada a matéria de facto impugnada.
Do que se vem dizendo, e como se antevê, imediatamente se impõe concluir pela Improcedência do recurso à matéria de direito, que se crê corretamente aplicada e interpretada pelo tribunal a quo, como se explanará.

3ª Do preenchimento do tipo de crime: mal futuro e dolo
Do crime de ameaça agravada
Por apelo à matéria de facto julgada provada, entendeu o tribunal a quo que se mostrava preenchido o tipo legal de crime de ameaça, que agravou por o arguido ameaçar o ofendido com a prática do crime de homicídio.
Desde já se adianta que a alteração factual ora decidida não acarreta qualquer modificação quanto ao enquadramento jurídico penal dos factos aqui dados como assentes.
Vejamos.
Resta apreciar se os factos dados como provados são suscetíveis de integrar o crime de ameaça agravada, p. e p. pelos art. 153.º n.º1 e 155.º n.º1 alínea a), ambos do Código Penal.
De acordo com as referidas disposições legais: “Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação pessoal ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”.
Em virtude da reforma do Código Penal decorrente da entrada em vigor da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, foi alterada a redação do art. 153.º do C.P., transitando a agravação do tipo legal de ameaça do n.º2 do art. 153.º para o art. 155.º n.º1 do C.P. Assim, para o que ora releva, dispõe a alínea a) do n.º 1 do art. 155.º do C.P. que, quando os factos previstos no art. 153.º do C.P. forem realizados por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.
Temos assim que este normativo prevê uma agravação do tipo legal de crime de ameaça, traduzido numa agravação da moldura abstrata. A alínea a) nos moldes a que vimos de aludir deve ser entendida como uma agravação reportada a uma ameaça com a prática de um facto ilícito típico, punível com pena superior a três anos.
O bem jurídico protegido pelo art. 153.º do C.P. é a liberdade de decisão e de acção, já que a ameaça, ao provocar um sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo na pessoa do ameaçado, afecta, naturalmente, a paz individual que é condição de uma verdadeira liberdade. Há, efectivamente, uma conexão íntima entre a paz individual e a liberdade de decisão e de acção – cfr., neste sentido, Taipa de Carvalho “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, p. 342.
No que tange aos elementos constitutivos do tipo de ilícito, dir-se-á que são três as características essenciais do conceito de ameaça: anúncio de um mal que configure a prática de um ilícito típico, que seja futuro (não iminente), cuja ocorrência dependa da vontade do agente, entendendo-se esta dependência segundo um critério objectivo-individual, na perspectiva do homem comum, isto é, da pessoa adulta e normal, sem prejuízo das características individuais do ameaçado.
O critério da adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação é objectivo-individual, de tal forma que dever-se-á ter em conta as características de personalidade do agente e as circunstâncias em que a mesma é proferida no sentido de averiguar se, face às mesmas, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do “homem comum”), bem como, concomitantemente, as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada, exigindo-se, ainda, que, em concreto, seja adequado a produzir tais efeitos (crime de perigo concreto).
Com efeito, “ameaça adequada é a ameaça que, de acordo com a experiência comum, é susceptível de ser tomada a sério pelo ameaçado (tendo em conta as características do ameaçado e conhecidas do agente, independentemente de o destinatário da ameaça ficar, ou não intimidado)” - cfr. Taipa de Carvalho, ob. cit., p. 344.
O crime de ameaça configura-se, enquanto crime de mera ação ou de perigo, sempre que a ameaça com a prática de algum dos crimes referenciados na previsão da norma seja suscetível, segundo a experiência comum, de ser tomada a sério pelo destinatário da mesma, atendendo aos termos da atuação do agente e às circunstâncias do visado, conhecidas daquele, independentemente de o destinatário da ameaça ficar ou não com medo ou inquietação ou prejudicado na sua liberdade de determinação.
Necessário é, no entanto, que a ação reúna certas características, por forma a que seja adequada, do ponto de vista do agente e objetivamente, tendo em conta a generalidade das pessoas, a provocar medo. E a adequação da ameaça em vista a determinar ou provocar na pessoa do ameaçado um sentimento de insegurança, intranquilidade ou temor há-de aferir-se em função de um critério objectivo individual [17].
O medo é o temor ou receio de que o mal anunciado ou prometido venha efectivamente a acontecer, e a inquietação é a intranquilidade, desassossego que a ameaça provoca no destinatário.
Por outro lado, há prejuízo na liberdade de determinação quando o ameaçado fica constrangido pela ameaça e, em vez de agir de acordo com a sua livre vontade, actua por forma a não desagradar o ameaçador, ainda que isso lhe custe.
No que concerne ao tipo subjectivo de ilícito, trata-se de um crime essencialmente doloso, sendo absolutamente irrelevante que o agente tenha, ou não, a intenção de concretizar a ameaça. E “não é necessário que a acção do agente vise, especificamente, humilhar ou constranger o coagido (dolo específico), bastando que o agente, sejam quais foram as suas motivações, tenha consciência de que a violência que exerce ou a ameaça que faz é susceptível de constranger e com tal se conforme” – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22/10/2008, P.º 282/07. 7GAALB.C1 (www.dgsi.pt).
Ora, vista a comprovada conduta do arguido é mister concluir que a mesma preenche inteiramente o tipo de crime em causa.
A factualidade apurada em sede de audiência de discussão e julgamento permite concluir que o arguido, em resultado da tentativa de recuperar o que lhe pertencia, no decurso de uma conversa telefónica mantida com o queixoso, lhe terá dito, no contexto de exaltação em que se que encontrava, que estava à espera em casa dele para lhe dar um tiro, corolário da discussão.
Recorda o recorrente a jurisprudência segundo a qual expressões como "eu mato-te" ou "eu parto-te a boca toda", ou " vou-te apanhar onde estiveres e vou-te matar", proferidas em contexto de acesa discussão e/ou envolvimento físico, não concretizam qualquer ameaça de um mal futuro [18].
Contudo, não vemos que o estado de exasperação ou exaltação do arguido afaste a seriedade e adequação da ameaça de um mal futuro feita ao ofendido, com a verbalização de que estava em casa dele à espera e lhe ia dar um tiro.
Pelo contrário, no contexto em que ocorreu, esse estado emocional reforça a suscetibilidade da ameaça criar o comprovado receio na vítima, como comprovadamente aconteceu, ou pelo menos a adequação da mesma para provocar no ameaçado medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.
Comprovadamente a expressão foi proferida pelo arguido num contexto de exaltação, como é próprio deste tipo de crime, o que não afasta, antes confirma, a existência de uma intimação séria, objetiva e real, suscetível de concretizar a ameaça em causa.
Ao dirigir-se a casa do ofendido e anunciar-lhe, ao telefone, de forma exaltada, em tom convicto e firme, que estava à espera dele em casa e lhe ida dar um tiro, o arguido agiu com dolo de ameaça – como se alcança da factualidade apurada – ainda que o tivesse feito – como é natural neste tipo de crime – no calor de uma discussão.
Nessa medida, bem andou o tribunal a quo ao condenar o arguido pela prática do crime de ameaças que lhe era imputado, assim improcedendo o recurso.
Ao agir da forma descrita, o arguido, como provado, concretizou uma promessa séria de um mal futuro, cujo cometimento anunciado dependia naturalmente da vontade do arguido.
Mantendo-se o crime fundamental, igual destino terá a agravante prevista no artigo 155.º, n.º 1, al. a) do Código Penal.
Ao decidir como decidiu, o tribunal a quo interpretou corretamente os normativos ínsitos nos artigos 153.º e 155.º, n.º 1 do Código Penal, que assim se mostram respeitados, com a consequente subsunção da factualidade ao tipo legal de crime ali previsto.

Finalmente, apesar do disposto no art.403º, nº3, do Código Processo Penal, não obstante a alteração da matéria de facto provada, a pena de multa aplicada não se mostra exagerada, desproporcionada e/ou injusta, devendo, por isso, manter-se.
***
3. DECISÃO
Nesta conformidade, acordam os juízes desta Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento parcial ao recurso interposto pelo arguido e em consequência:
a. corrigir o ponto 1 dos factos provados exclusivamente com eliminação da expressão “e por mais de uma vez”;
b. mantendo-se no mais integralmente a decisão impugnada quanto à matéria de facto e de direito, assim se confirmando a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) UCs.

Notifique.

Acórdão elaborado pelo primeiro signatário em processador de texto que o reviu integralmente (art. 94º nº 2 do CPP), sendo assinado pelo próprio e pelo Excelentíssimo Juíz Adjunto.

Porto, 10 de novembro 2021
João Pedro Pereira Cardoso
Raul Cordeiro
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[1] Diploma a que se referem os normativos legais adiante citados sem indicação da respetiva origem.
[2] Como é jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no art. 410.º, n.º 2, do CPP – Ac. do Plenário da Secção Criminal n.º 7/95, de 19-10-95, Proc. n.º 46580, publicado no DR, I Série-A, n.º 298, de 28-12-95, que fixou jurisprudência então obrigatória (É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no art. 410.º, n.º 2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito) e verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos arts. 379.º, n.º 2, e 410.º, n.º 3, do CPP – é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões do pedido (art. 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior.
O STJ apenas pode sindicar a existência de eventuais nulidades, insanáveis, ou por omissão ou excesso de pronúncia, ou de produção de prova, ou meios de obtenção de prova, proibidos por lei (art. 410.º, do CPP) – cfr. STJ 2016-11-23 (PIRES DA GRAÇA) in www.dgsi.pt.
[3] Cfr. Ac. do STJ de 22/10/99 in BMJ 490, pág. 200.
[4] Ac. STJ 19/07/2006 (Oliveira Mendes) in www.dgsi.pt.
[5] Paulo Saragoça da Matta in “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, texto incluído na colectânea “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 253.
[6] cfr. Teresa Beleza, "Revista do Ministério Público", Ano 19º, pág. 40; cfr. sobre a génese do princípio, quadro histórico, fundamentos e conteúdo, António Alberto Medina de Seiça, "O Conhecimento Probatório do Co-arguido", Col. Studia Iuridica, Universidade de Coimbra, nº 42, pág 162-205).
[7] Por contraposição ao discurso direto, entendido este como a reprodução de maneira direta da fala das personagens ou seja, a reprodução integral , literal e bloquial, introduzida por travessão.
[8] O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto com consciência da sua censurabilidade, em qualquer das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal, é sempre um facto da vida interior do agente, um facto subjectivo, não directamente apreensível por terceiro. Por isso, a sua demonstração probatória, sobretudo, quando não existe confissão, não pode ser feita directamente, designadamente, através de prova testemunhal. Nestes casos, a prova do dolo tem que ser feita por inferência isto é, terá que resultar da conjugação da prova de factos objectivos – em particular, dos que integram o tipo objectivo de ilícito – com as regras de normalidade e da experiência comum – cfr. RC 06-07-2016 (Vasques Osório) www.dgsi.pt
O dolo – ou o nível de representação ou de reconhecimento que a sua afirmação supõe sob um ponto de vista fáctico – pertence, por natureza, ao mundo interior do agente. Por isso ou é revelado pelo próprio, sob a forma de confissão, ou tem de ser extraído dos factos objectivos – isto é, inferido através da consideração de determinado circunstancialismo objectivo com idoneidade suficiente para revelá-lo – cfr. RC 27-05-2015 (Fernando Chaves) in https://trc.pt/fundamentacao-da-materia-de-facto-nulidade-de-sentenca-prova-do-dolo/.
[9] Gonzalez Lagier in La prueba de la intención y el principio de la Racionalidad Mínima, afirma que provar uma intenção, ressalvada a confissão do arguido, é uma tarefa complicada porque as intenções não são factos externamente observáveis. Por conseguinte, os estados mentais devem ser inferidos (ou presumidos) a partir da conduta externa do agente e das circunstâncias de contexto.
Disponível no sítio http://dialnet.unirioja.es/servlet/dcfichero_articulo?codigo=964175.
[10] Nestas situações é admissível que a prova seja feita por presunções, que não se confundem com presunções legais de culpa de consagração inadmissível de acordo com o artigo 32.º, n.º2, da CRP, mas sim presunções judiciais, nas quais a autoridade judiciária, com recurso a regras de experiência e lógica, retira conclusões em matéria de facto, apoiadas em elementos concretos apurados nos autos, mediante o seu desenvolvimento dedutivo, possuindo a prova indiciária resultante valor idêntico aos meios de prova clássicos.
[11] RL 15-12-2015 (Jorge Gonçalves) www.dgsi.pt
[12] Disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/penal/eb_ProvaIndireta2020.pdf
[13] Disponível em http://web.derecho.uchile.cl/cej/recej/recej4/archivos/PRUEBA%20DEL%20DOLO%20RAGUES%20_8_.pdf
[14] O dolo é extraído a partir de um facto ou factos que se verifiquem no mundo real e que se relacionam de forma directa com a situação em concreto, sendo que nesse processo inferencial são tomadas sempre em consideração as regras da lógica jurídica e da experiência.
Na verdade, como refere Ragués i Vallès, in El dolo y su prueba en el proceso penal p. 243, na valoração da prova indiciária designadamente sobre o dolo intervêm no juízo de inferência: as chamadas regras da lógica formal e as regras da experiência.
Para se poder afirmar que a conclusão obtida através da prova de indícios coincide com a realidade afirma o mesmo Autor são necessários dois pressupostos essenciais:
- por um lado, as regras da experiência que se apliquem em termos de premissa maior devem ser enunciados por forma a que transmitam declarações seguras, e irrefutáveis, sobre o conteúdo da referida realidade; e
- por outro lado, os factos provados, que se conjugam em termos de premissa menor do silogismo judiciário, correspondam inteiramente á realidade.
[15] Dissertando sobre os indícios relevantes na prova do dolo, Nicole da Costa Pacheco in A Alegação e Prova do Dolo no Direito Processual Penal:- Em especial: As consequências da falta da sua Alegação na Acusação, pg. 42 ss; DANIEL PISFIL, La Prueba Indiciaria y su relevancia en el Proceso Penal - Circumstantial evidence and its relevance in criminal process, pg.130, disponível em file:///C:/Users/MJ01690/Downloads/10373-Texto%20del%20art%C3%ADculo-41120-1-10-20140922.pdf
[16] O próprio recorrente aceita na motivação de recurso que bem andou nessa parte a sentença ao reconhecer que “entre queixoso e arguido existiam problemas anteriores, relacionados com a cobrança de dívidas que aquele não liquidara a este, o que muito o desesperava e enervava. De tal modo que o teor da conversa entre ambos, ouvido pela testemunha D…, havia sido rude, em tom irritado, com insultos assumidos e referências constantes aos negócios, à carrinha, a ferramentas, tudo em contexto de exigência de devolução de tais materiais por parte do arguido (…).
[17] “Objectivo no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do “homem comum”); individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada (relevância das “sub-capacidades” do ameaçado” – neste sentido Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, pág. 348.
[18] Todos do Tribunal da Relação do Porto, datando de 17.11.2004, 25.01.2006, 20.12.2006 e 28.11.2007 e 27-01-2016, todos disponíveis na página www.dgsi.pt.