Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4910/16.5T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
CONCEITO DE ALOJAMENTO
REGULAMENTO DO CONDOMÍNIO
Nº do Documento: RP201609154910/16.5T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 09/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 69, FLS.160-168)
Área Temática: .
Sumário: I - Se no título constitutivo da propriedade horizontal apenas se estabelece que determinada fracção se destina à habitação, não existe, em princípio, impedimento a que o seu proprietário a afecte a alojamento local de turistas.
II - O conceito de alojamento está contido no conceito de habitação.
III - O facto de determinada utilização ser feita mediante contrato de prestação de serviços não é bastante para caracterizar a finalidade dessa utilização, tudo dependendo da forma como essa prestação de serviços é efectuada.
IV - O Regulamento de Condomínio não pode, a pretexto de regular a utilização do imóvel, impor restrições materiais ao conteúdo do direito de propriedade de cada condómino sobre a sua fracção que não resultem do título de constituição da propriedade horizontal ou a que o condómino tenha dado o seu consentimento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
Processo n.º 4910/16.5T8PRT-A.P1 [Comarca do Porto / Inst. Local / Porto / Sec. Cível]

Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
O Condomínio do Edifício em propriedade horizontal sito na Rua …, … a …, e na Rua …, .., no Porto, representado pelo seu administrador B…, Lda., instaurou procedimento cautelar não especificado contra C…, contribuinte fiscal n.º ………, residente no Porto, pedindo o decretamento da seguinte medida cautelar: «a) … ordenada a imediata suspensão da actividade de prestação de serviços de alojamento local na fracção identificada …; b) … o requerido seja condenado em sanção pecuniária compulsória … no montante de €150,00 por dia, até efectivo cumprimento do pedido em A.».
Para o efeito, alegou que o requerido é proprietário de uma fracção do prédio que constitui o condomínio requerente, a qual se destina única e exclusivamente a habitação, conforme definido na constituição da propriedade horizontal, mas, não obstante isso, o requerido está a afectar a fracção a fins não habitacionais, designadamente a alojamento local. Mais alegou que essa utilização da fracção viola o disposto no artigo 1422.º, n.º 2, alínea c) do Código Civil, e bem assim o artigo 9.º do Regulamento de Condomínio que estabelece que os condóminos podem arrendar as suas fracções mas não podem dar-lhe «utilidade “turística/hoteleira”». Acrescentou que essa utilização da fracção gera a entrada e saída de estranhos no prédio, barulhos até de madrugada e um desgaste acrescido dos equipamentos do prédio, o que provoca insegurança nos condóminos, perturba o sossego e a paz entre vizinhos e o aumento de despesas do condomínio.

O requerido foi ouvido e apresentou oposição, não impugnando que esteja a utilizar a sua fracção como alojamento local mas defendendo que essa utilização é legítima constituindo uma modalidade de arrendamento para habitação, sendo que se a lei permite ao arrendatário, sem alteração da finalidade do arrendamento, exercer no locado indústria doméstica, tal faculdade caberá igualmente ao proprietário da fracção. Acrescentou que o artigo do Regulamento do Condomínio citado pelo requerente não está em vigor por ter merecido oposição do requerido, mas, de todo o modo, alojamento local não é utilidade turística/hoteleira. Por fim defende que o alegado pelo requerente não é suficiente para demonstrar a possibilidade de lesões graves ou irreparáveis que possam justificar o deferimento de uma providência cautelar e revela mesmo que que o prejuízo resultante da providência excederia muito o que com ela se pretende evitar, razões pelas quais a providência deve ser indeferida.
Após audiência foi proferida decisão julgando o procedimento parcialmente procedente e ordenando a suspensão imediata pelo requerido da actividade de prestação de serviços de alojamento local na fracção.
Do assim decidido, o requerido interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1. O requerente pretende, expressa e exclusivamente, ver julgado o seu direito de não ver posto em causa a finalidade do arrendamento pelo condómino requerido, reclamando ter sido violado o disposto no regime de propriedade horizontal e assim o disposto no artigo 1422.º, n.º 2, alínea c), Código Civil.
2. Tal violação fundamenta-se no facto de invocar, o requerente, condomínio, que o requerido, ora recorrente, alterou essa finalidade ao arrendar a fracção para alojamento local.
3. A pretensão do requerente é pois clara e unívoca, direito a não ver alterado o fim para que a fracção se destina.
4. O tribunal na sua douta sentença omitiu, não decidindo sobre a pretensão do requerente, fundamento da providência cautelar, em violação grosseira do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil que “é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
5. Pelo está ferida de nulidade a sentença em apreço. Mesmo que assim se não entenda a sentença deve ser revogada.
6. Efectivamente o alojamento local não altera os fins para habitação da fracção porquanto este não é mais que um arrendamento para habitação por menos de trinta dias.
7. É o que decorre do Decreto-Lei 128/2014, legislação que sobre esta matéria rege e que visa sobretudo evitar a fuga ao fisco nos arrendamentos de pequena duração;
8. Tal emerge do seu preâmbulo e do conceito que estabelece para este tipo de arrendamento, designadamente no seu artigo terceiro, onde fixa o conceito de apartamento como “estabelecimento de alojamento local cuja unidade de alojamento é constituída por uma fracção autónoma de edifício ou parte de prédio urbano susceptível de utilização independente”
9. Não se vislumbra que outra fracção de prédio urbano pode ser usufruída para alojamento local que não a de um prédio destinado a habitação já que a lei impede que locais turísticos ou prédios destinados a escritórios seja dela objecto;
10. Não se verifica pois qualquer violação do direito dos condóminos;
11. Mas a verificar-se mesmo indiciariamente a violação de tal direito – a não alteração dos fins do arrendamento - não estão reunidos os requisitos para o deferimento de providência cautelar no sentido julgado na douta sentença recorrida.
12. Desde logo por não estarem verificados os pressupostos para o deferimento da providência, e merecedores da sua tutela provisória, seja o fundado receio de lesões graves e irreparáveis ou de difícil reparação;
13. Por muita vontade e esforço que se faça não se percebe como pode o direito de que se arroga, expressa e exclusivamente o requerente – não alteração do fim a que se destina a fracção arrendada - merecer a tutela provisória objecto da presente providência cautelar;
14. Depois o prejuízo causado pelo seu deferimento é substancialmente maior que aquele que resultaria do seu não deferimento;
15. Na verdade o direito de personalidade dos condóminos se prejudicado poderá e deverá ser objecto de processo próprio, porquanto não é a alteração da afectação da fracção que dá causa a esse eventual dano;
16. Doutra forma tal raciocínio levar-nos-ia ao absurdo de proibir o próprio proprietário de habitar a sua fracção porque a sua conduta prejudicava de forma, mesmo que reiterada, o sossego e segurança dos condóminos vizinhos.
A douta sentença deve ser declarada nula por violação do estabelecido na alínea d) do n.º 1 do artigo 615º do CPC. Por força da regra da substituição, declarada nula a sentença requer-se que esse venerando tribunal se pronuncie sobre do objecto da apelação, nº 1 do artigo 665°do Código de Processo Civil revogando a douta sentença;
A não se entender nula a sentença deverá a mesma ser revogada por outra que julgue o procedimento cautelar totalmente improcedente por violação do estabelecido no artigo 362 e seguintes do Código de Processo Civil e no estabelecido nos artigos 3ª e 4ª do Decreto-Lei 128/2014.
O recorrido respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i) Se a sentença é nula por não se ter pronunciado sobre a questão que devia apreciar e conhecido de questão de que não podia tomar conhecimento.
ii) Se está vedado ao requerido usar a sua fracção como estabelecimento de alojamento temporário de turistas.
iii) Se é grave ou dificilmente reparável a lesão do interesse juridicamente tutelado do requerente.

III. Os factos:
Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1. O requerido é dono da fracção designada pela letra ., do prédio sito na Rua …, … a …, e Rua …, … a …, no Porto, descrito na Conservatória de Registo Predial sob o n.º 54514, destinando-se aquela a habitação (cf. doc. junto sob o nº 1, a fls. 6 a 10, aqui dado por integralmente reproduzido).
2. O requerido está a afectar a dita fracção ao alojamento local para turistas (cf. docs. juntos sob o nº 2 e 3, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
3. A dita fracção tem uma taxa de ocupação de quase 100% até Setembro deste ano.
4. Devido ao mencionado alojamento entram e saem, constantemente, do prédio pessoas a ele estranhas, sendo-lhes entregues as respectivas chaves.
5. Algumas das mencionadas pessoas fazem barulhos até de madrugada.
6. As aludidas pessoas utilizam o elevador e as escadas do prédio.
7. O autor é representado pelo seu Administrador, o qual foi eleito em Assembleia Geral Ordinária, realizada em 3 de Julho de 2015, por deliberação da maioria dos condóminos presentes, para o exercício das funções de Administrador do respectivo Condomínio (cf. Ata n.º 46 junta aos autos como doc. 6, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido).
8. Foi deliberado por decisão da maioria dos condóminos a propositura do presente procedimento judicial (cf. Ata n.º 48, junta aos autos, aqui dada por inteiramente reproduzida).
9. Dou ainda por reproduzido o teor dos restantes documentos juntos aos autos.

IV. O mérito do recurso:
A] da nulidade da sentença:
O recorrente defende que a sentença recorrida é nula por nela o juiz não se ter pronunciado sobre a concreta questão que lhe cabia decidir e que consiste em saber se a utilização para alojamento local de turistas de uma fracção destinada a habitação traduz um uso diverso do fim a que a fracção é destinada, tendo-se pronunciado, ao invés, sobre uma questão que não lhe estava suscitada e que se traduz em saber se essa utilização da fracção viola o direito dos restantes condóminos ao sossego, à tranquilidade e à segurança.
Nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil a sentença é nula “quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
As questões a decidir são os problemas jurídicos concretos que o tribunal tem de resolver em função da causa de pedir e do pedido, bem como, se for caso disso, das excepções e contra-excepções invocadas.
O objecto do processo é delimitado pela causa de pedir eleita pela parte. Cabe à parte, no exercício do seu direito do dispositivo, definir o fundamento de facto pelo qual deduz a sua pretensão, o direito de que emergirá ou que dará suporte a essa pretensão (artigos 5.º, n.º 1, 552.º, n.º 1, alínea d), e 581.º do Código de Processo Civil), opção que deverá ser feita na petição inicial e que só excepcionalmente poderá se alterada em momento posterior (artigos 260.º, 264.º, 265.º do Código de Processo Civil). O tribunal, por sua vez, está obrigado a respeitar essa opção, não lhe cabendo a faculdade de corrigir a opção do autor, elegendo outro fundamento para acolher a pretensão deduzida, sob pena de incorrer em nulidade por excesso de pronúncia (artigo 615.º, n.º 1, alínea d), segunda parte, do Código de Processo Civil).
No caso, a causa de pedir foi definida pelo requerente no requerimento inicial, ao alegar que a fracção pertencente ao réu tem como destino exclusivo a habitação, que o réu a vem utilizando para prestação do serviço turístico de alojamento local e que esta utilização viola a norma imperativa que impede o proprietário de uma fracção de um prédio em propriedade horizontal a outro fim que não o estabelecido no instrumento de constituição da propriedade horizontal, tal como viola norma do regulamento do condomínio.
Ficou então definido que o direito – melhor dizendo, o interesse juridicamente protegido – que o condomínio do prédio onde se situa a fracção pretende acautelar com o procedimento é o de assegurar que os condóminos usam as suas fracções para o fim estabelecido na propriedade horizontal, a habitação, e se abstêm de as utilizar para fins diferentes, designadamente para a prestação do serviço de alojamento a turistas.
É certo que na petição inicial o autor alegou igualmente que a utilização da fracção para alojamento local gera a entrada e saída de estranhos no prédio, barulhos até de madrugada e um desgaste acrescido dos equipamentos do prédio, provocando insegurança nos condóminos, perturbando o sossego e aumentando as despesas do condomínio. Todavia, esta alegação tinha manifestamente como objectivo, compreensível aliás, justificar o interesse do condomínio em agir e a necessidade da providência cautelar sem aguardar que a questão possa ser decidida na acção declarativa própria, ou seja, evidenciar a dimensão da gravidade da lesão.
A Mma. Juíza a quo parece ter tido dúvidas sobre a configuração da acção e daí que tenha ordenado a notificação do requerente para «esclarecer qual o direito que pretende exercer, ou seja, qual o fundamento de direito subjacente à presente acção», na sequência do que o requerente informou que «o direito que o requerente pretende fazer valer prende-se com o previsto no art. 1422.º n.º 2 alínea c) Código Civil: “É especialmente vedado aos condóminos: c) dar-lhe (à fracção) uso diverso do fim a que é destinada”», deixando assim claro que tal com a configurou e era o seu objectivo a providência cautelar não tem por objecto a defesa de direitos de personalidade, designadamente o direito ao sossego e tranquilidade, absolutamente ausentes da resposta do requerente.
Nesse contexto processual, parece claro que a sentença recorrida enferma mesmo da nulidade apontada. Com efeito, nela, em vez de conhecer e decidir a questão colocada – se a utilização da fracção como alojamento local para turistas é compatível com o fim da finalidade que a constituição de propriedade horizontal consigna para a fracção –, respeitando a causa de pedir, a Mma. Juíza a quo entendeu conhecer e decidir a questão distinta de saber se na utilização da fracção têm vindo a ser cometidas violações do direito de personalidade dos condóminos ao sossego e tranquilidade, acabando por decretar a providência cautelar requerida com esse fundamento, sem analisar o fundamento apresentado pelo requerente ou em que medida a providência requerida para acautelar um concreto direito seria igualmente adequada e proporcional para tutelar outro direito. Por outras palavras, na sentença a Mma. Juíza a quo deixou de se pronunciar sobre a questão que devia apreciar e conheceu de questão de que não podia tomar conhecimento, o que conduz à nulidade da sentença.
Nos termos do artigo 665.º do Código de Processo Civil, face à regra da substituição do tribunal recorrido pelo tribunal de recurso, não obstante a nulidade da sentença recorrida a Relação deve conhecer do objecto da apelação, ou seja, decidir se a providência cautelar ordenada em 1.ª instância deve ou não ser mantida, verificando para o efeito o preenchimento dos requisitos da concessão da tutela provisória do direito que o recorrente sustenta não estarem preenchidos.
Nos termos do artigo 362.º do Código de Processo Civil, as providências cautelares não especificadas podem ser requeridas «sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado».
Acrescenta o artigo 365.º que na petição, o requerente deve oferecer prova sumária do direito ameaçado e justificar o «receio da lesão». No tocante à decisão o artigo 368.º prescreve que a providência é decretada desde que haja «probabilidade séria da existência do direito» e se mostre «suficientemente fundado o receio da sua lesão».
Deste modo o decretamento da providência cautelar não especificada tem como requisitos a probabilidade séria da existência do direito invocado que se pretende acautelar – fumus boni iuris – e o fundado receio de lesão grave ou dificilmente reparável desse direito - periculum in mora –. É ainda necessário que a providência seja concretamente adequada para assegurar a efectividade do direito.
Por vezes é referido que são ainda requisitos da providência cautelar a insusceptibilidade de a providência gerar um prejuízo superior ao dano que com ela se pretende evitar e, no caso dos procedimentos comuns, a inaplicabilidade de qualquer dos procedimentos cautelares típicos, mas preferimos qualificar estas circunstâncias como excepções impeditivas do decretamento da providência e não como pressupostos da mesma.
Vejamos então se estão reunidos os pressupostos para o decretamento da providência.
Conforme já se assinalou, o interesse juridicamente protegido que o condomínio requerente pretende ver protegido é o de que o condómino requerido se abstenha de usar a sua fracção para um fim diverso do fixado na constituição da propriedade horizontal: para habitação. Por isso para se poder afirmar que esse interesse existe e é susceptível de protecção jurídica a questão que cabe decidir é se ao utilizar a fracção para prestar o serviço de alojamento a turistas o requerido ainda está a usar a fracção para habitação.
Devemos referir que a questão está longe de ser tão linear como ambas as partes defendem, naturalmente em sentidos opostos, e que ao invés suscita alguma dificuldade, não sendo a solução de todo líquida.
A figura do alojamento local foi criada pelo Decreto-Lei n.º 39/2008, de 7 de Março, para permitir a prestação de serviços de alojamento temporário em estabelecimentos que não reunissem os requisitos legalmente exigidos para se qualificarem como empreendimentos turísticos. No dizer do respectivo artigo 3.º, são estabelecimentos de alojamento local as moradias, apartamentos e estabelecimentos de hospedagem que, dispondo de autorização de utilização, prestem serviços de alojamento temporário, mediante remuneração, mas não reúnam os requisitos para serem considerados empreendimentos turísticos. Portanto, os alojamentos locais eram estabelecimentos que prestavam serviços turísticos de alojamento temporário mas não eram ainda empreendimentos turísticos.
Tendo verificado o surgimento de “uma série de realidades que ofereciam serviços de alojamento a turistas sem qualquer formalismo e à margem da lei” e que “a dinâmica do mercado da procura e oferta do alojamento fez surgir e proliferar um conjunto de novas realidades de alojamento [que não são] um fenómeno passageiro [ou] residual, mas um fenómeno consistente e global” – texto do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de Agosto –, após a experiência das Portarias n.º 517/2008, de 25 de Junho, e n.º 138/2012, de 14 de Maio, que regulavam aspectos do alojamento local, o legislador sentiu necessidade de regular de forma autónoma esta realidade turística, aprovando o regime jurídico da exploração dos estabelecimentos de alojamento local através do Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de Agosto, entretanto alterado pelo Decreto-Lei n.º 63/2015, de 23 de Abril.
Nos termos do artigo 2.º deste regime jurídico, “consideram-se «estabelecimentos de alojamento local» aqueles que prestem serviços de alojamento temporário a turistas, mediante remuneração, e que reúnam os requisitos previstos no presente decreto-lei”. E nos termos do artigo 4.º “para todos os efeitos, a exploração de estabelecimento de alojamento local corresponde ao exercício, por pessoa singular ou colectiva, da actividade de prestação de serviços de alojamento”. Destes preceitos resulta que a exploração de um «estabelecimento de alojamento local» consiste na prestação do serviço de alojamento temporário a turistas mediante remuneração. Trata-se pois de uma prestação onerosa de serviços turísticos, realizada numa unidade de alojamento, em que o serviço prestado tem por objecto o alojamento temporário de turistas.
A utilização do apartamento do requerido para alojamento local de turísticas é assim uma utilização para o exercício de uma actividade de prestação de serviços, visando a obtenção de proveitos económicos dessa actividade. Nessa medida, afasta-se da utilização para habitação, em sentido estrito, que é a finalidade atribuída à fracção no título constitutivo da propriedade horizontal.
Com efeito, os conceitos de habitação e alojamento não são coincidentes, pelo que a habitação (do proprietário ou de terceiros mediante autorização do proprietário ou contrato com este celebrado, designadamente de arrendamento) e o alojamento temporário de turistas não são equivalentes. O conceito de habitação é mais amplo ou intenso. O turista é alguém que está de passagem, que se desloca para conhecer ou visitar outros locais e que vai regressar ao espaço onde tem organizada a sua vida e onde habita. Por isso, o turista não habita nos locais onde se hospeda ou aloja, ele apenas pernoita e descansa nesses locais para satisfação das suas necessidades de sono e repouso, aí guardando, durante o tempo da estadia, os bens indispensáveis à viagem que está a fazer.
Todavia, o conceito de alojamento está contido no conceito de habitação. Habitar é algo mais do que apenas alojar, mas inclui todos os actos e utilidades característicos do conceito de alojar. Proporcionar habitação é mais do que alojar, mas é também alojar. Nesse contexto, sendo certo que quem pode o mais deverá poder o menos, a utilização para alojamento temporário de turistas não diverge da utilização para habitação (de não turistas ou mesmo de turistas), porque a pessoa alojada não pratica no local de alojamento algo que nela não pratique quem nele habita: dorme, descansa, pernoita, tem as suas coisas.
Acresce que os estabelecimentos de alojamento local não são equipamentos hoteleiros que tenham de dispor de equipamentos, serviços e funcionários para recepção dos turistas e prestação de outros serviços desejados pelos turistas (alimentação, limpeza, animação, piscina, spas, etc.). No alojamento local o prestador de serviço limita-se a proporcionar ao turista o local de alojamento, os seus cómodos, mobiliário e equipamento doméstico, franqueando-lhe o acesso e a utilização do mesmo e cobrando a respectiva remuneração. Por outro lado, na actual conjuntura o contacto entre o dono do estabelecimento e o turista é feito por via electrónica, através da internet e do correio electrónico, dispensando a existência de qualquer balcão físico ou pessoas no local de alojamento. Nessa medida, ainda que de uma prestação de serviços se trate, no alojamento local o único serviço que é prestado é o próprio alojamento e, como tal, o espaço é utilizado unicamente para alojamento. O contrato de prestação de serviços é apenas o modo como a utilização é proporcionada a terceiros, não é algo que defina por si mesmo o âmbito ou as características dessa.
Temos assim duas ordens de razões que por um lado afastam – ser uma prestação de serviços - e por outro lado aproximam – o serviço prestado é o alojamento - a utilização para alojamento local da utilização para habitação.
Não se encontra no regime jurídico do alojamento local norma legal que resolva este conflito, isto é, norma legal que se ocupe de definir que autorização de utilização deve o espaço possuir para poder ser usado para alojamento local.
De todo o modo, o artigo 6.º do diploma prescreve que a comunicação prévia para efeitos de registo do estabelecimento local, que é obrigatória e condição necessária para a exploração do estabelecimento, deve ser acompanhada de termo de responsabilidade, subscrito pelo titular da exploração do estabelecimento, assegurando a idoneidade do edifício ou sua fracção autónoma para a prestação de serviços de alojamento e que o mesmo respeita as normas legais e regulamentares aplicáveis. Esta norma não estabelece que autorização de utilização deve o edifício ou a fracção autónoma possuir para o efeito, mas remete claramente a definição desse aspecto legal para as disposições legais correspondentes.
Igualmente no artigo 15.º se estabelece que nos estabelecimentos de alojamento local cujas unidades de alojamento são constituídas apenas por quartos se podem instalar estabelecimentos comerciais e de prestação de serviços, designadamente de restauração e de bebidas, desde que a autorização de utilização o permita e sejam cumpridos os requisitos específicos previstos na legislação aplicável a esses estabelecimentos. Daqui resulta, de novo, que o regime jurídico do alojamento local não se ocupa de definir a autorização de utilização que o edifício ou fracção autónoma deve possuir para poder funcionar como unidade de alojamento, pressupondo que a autorização existe e é compatível com o alojamento local mas remetendo a definição desse aspecto para as normas legais pertinentes.
Também nos parece que não se pode ir buscar ao regime jurídico do arrendamento e designadamente à faculdade, salvo cláusula em contrário, de o arrendatário habitacional exercer no arrendado indústria doméstica (artigo 1092.º do Código Civil) ou ter até três hóspedes (artigo 1093.º do Código Civil), qualquer apoio para a questão que nos ocupa. Com efeito, o regime jurídico do contrato de arrendamento regula a relação jurídica entre o proprietário e o terceiro a quem ele cede contratualmente o direito ao gozo da coisa (o arrendatário), enquanto a questão que nos ocupa diz respeito ao direito real constituído em regime de propriedade horizontal e à relação que se estabelece entre os vários contitulares desse direito, a qual não é contratual.
O argumento de que se o arrendatário habitacional pode exercer no arrendado indústria doméstica ou ter hóspedes (de todo o modo apenas até três, limite que o alojamento de turistas não respeita) sem estar a violar o fim habitacional do contrato e incorrer em incumprimento do mesmo, o proprietário deverá poder gozar de igual faculdade, não pode, parece-nos, ser aqui ser usado porque o que está em causa não é o regime jurídico da utilização que o arrendatário pode fazer – nos termos do contrato - mas o regime jurídico da utilização que o proprietário pode fazer e, como todos aceitaremos com facilidade, o proprietário só pode fazer do edifício ou fracção autónoma a utilização que estiver autorizado a fazer e não é a celebração de um contrato de arrendamento que lhe vai permitir transferir para o arrendatário faculdades de utilização que não estiverem contidas no seu direito de propriedade e indirectamente passar a ter, por maioria de razão, faculdades de utilização que não estavam autorizadas só porque um arrendatário delas poderia supostamente usufruir – cf. neste sentido Sandra Passinhas, in A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal, 2.º edição, Almedina, pág. 134 e seguintes -.
Isso mesmo se extrai do disposto no artigo 1067.º do Código Civil quando estabelece que o arrendamento urbano pode ter fim habitacional ou não habitacional, mas quando nada se estipule, o local arrendado pode ser gozado no âmbito das suas aptidões, tal como resultem da licença de utilização. Não é pois pela colocação da hipótese de um arrendamento que se definirão as possibilidades de utilização do proprietário, mas, bem pelo contrário, é a determinação destas que conduzirá inelutavelmente à delimitação das possibilidades de utilização que caberão ao eventual arrendatário e isto independentemente do regime jurídico do arrendamento pois, repete-se, se ao proprietário estiver vedado algo em relação à utilização da sua fracção não será o contrato de arrendamento a um terceiro a possuir a virtualidade jurídica que contornar o disposto no artigo 1422.º do Código Civil. Com interesse para a questão que nos ocupa, o mais que se pode retirar do regime jurídico do contrato de arrendamento para habitação é que aquele regime oferece um exemplo de uma situação em que o legislador considera o alojamento de terceiros (independentemente de serem turistas) compatível com o fim da habitação.
Uma via possível para encontrar a solução para o problema é a da interpretação da vontade que presidiu à constituição da propriedade horizontal, colocando a seguinte questão: quando definiram que a fracção autónoma se destinava a ser utilizada para habitação, os autores desse título queriam incluir ou excluir o alojamento temporário de turistas? Sucede, no entanto, que no âmbito do presente procedimento cautelar não é possível equacionar essa via de solução porque o processo não fornece qualquer elemento relevante para efeitos de interpretação do título de constituição de propriedade horizontal. Aliás, tendo a propriedade horizontal sido constituída em 13 de Agosto de 1975, altura em que o alojamento temporário de turistas fora dos estabelecimentos hoteleiros turísticos tradicionais era algo que não existia sequer, que o mercado não tinha ainda criado e que os meios tecnológicos de difusão e comercialização disponíveis ainda não permitiam que se desenvolvesse, podemos presumir que esse aspecto não foi sequer conjecturado pelas pessoas que constituíram a propriedade horizontal, pelo que, mais do que interpretar a sua vontade, o que se deve fazer é sanar essa lacuna na declaração e proceder à sua integração nos termos do artigo 239.º do Código Civil.
Como é bom de ver, esta questão coloca em confronto o direito do proprietário individual de obter melhores proveitos financeiros com a utilização da sua fracção quando não necessita dela para a sua própria habitação, cedendo o seu gozo a terceiros na modalidade que considera mais proveitosa, e o interesse do condomínio e dos demais condóminos em evitar que o prédio seja continuamente acedido por estranhos que apenas utilizam a fracção temporariamente e logo são substituídos por outros desconhecidos, situação que potencia inevitavelmente o sentimento de insegurança, para além de poder gerar maiores despesas para o condomínio e situações de perturbação da paz, do sossego e da tranquilidade dos demais condóminos que se vêm obrigados a coexistir no mesmo edifício com turistas.
Afigura-se-nos que do ponto de vista da boa fé não se deve atribuir um valor decisivo a estas preocupações do condomínio e dos demais condóminos. Não que as mesmas não mereçam tutela, mas porque a defesa dos seus interesses não fica desprotegida com a autorização do funcionamento do alojamento local. Com efeito, o direito ao descanso e à tranquilidade na sua própria habitação são dimensões do direito de personalidade de qualquer pessoa, pelo que sempre que esse direito seja violado ou posto em crise, o seu titular pode accionar os mecanismos de defesa do direito que a ordem jurídica coloca à sua disposição, pelo que a proibição de utilização para alojamento de turistas apenas porque estes podem – e muitas situações haverá em que isso não sucede porque os turistas também podem ser pessoas respeitáveis, respeitadoras e cuidadosas – vir a perturbar esses direitos de personalidade seria excessiva e desproporcionada.
Por outro lado, lendo a escritura de propriedade horizontal verifica-se que o prédio em questão não possui apenas fracções para habitação. Para além de 6 fracções para habitação, o prédio inclui ainda 5 fracções que apenas são descritas como “estabelecimentos”, não contendo sequer qualquer delimitação do âmbito da actividade passível de ser exercida nesses estabelecimento. Essa circunstância, não só abre a possibilidade de no edifício se desempenharem actividades bem mais prejudiciais – para o edifício e/ou para a vida dos seus habitantes - do que o alojamento temporário de turistas, como retira força à eventual argumentação dos demais condóminos de que no momento em que adquiriram as suas fracções teriam uma expectativa fundada de que o prédio seria exclusivamente usado para habitação própria dos proprietários ou eventuais arrendatários e que nunca teriam estranhos a aceder e usar o prédio.
Acresce que não resulta dos autos que para efeitos de exploração da fracção para alojar turistas, o requerido tenha instalado na fracção algum escritório ou recepção aberta ao público onde alguém se ocupe de receber os turistas interessados em arranjar alojamento, mostrar-lhes a fracção, negociar com eles preço do alojamento e/ou proporcionar-lhe qualquer outros serviços (como p. ex. a alimentação, o depósito de bens ou serviços de tratamento de roupa ou de guia turístico). Nessa situação talvez se acentue a dimensão do estabelecimento de prestação de serviços e a utilização se afaste de forma irremediável da mera habitação, justificando decisão diversa da que aqui acolhemos, mas não é essa a situação que nos vem apresentada.
Por fim, e como já foi assinalado, o alojamento temporário de turistas não diferirá em regra de uma utilização similar à que seria feita pelo proprietário ou por um arrendatário para habitação do respectivo agregado familiar. O barulho que os turistas farão pode ficar mesmo aquém do que seria feito pelos membros desse agregado, designadamente se o mesmo integrar crianças ou jovens, estudantes universitários ou pessoas com uma vida social doméstica intensa. Nessa medida, não vislumbramos qualquer incompatibilidade essencial para recusar à partida a possibilidade de a fracção destinada à habitação ser usada para alojamento temporário de turistas.
Isto dito, embora admitindo dúvidas e aceitando que novos argumentos possa surgir, somos levados a concluir que resultando da constituição da propriedade horizontal que a fracção se destina à habitação mas não resultando que isso exclua o alojamento temporário de turistas, a circunstância de esse alojamento ser prestado em regime de prestação de serviços não é bastante para afirmar que a utilização para alojamento é diversa e incompatível com a utilização para aquele destino autorizado.
Cabe só perguntar se isso se altera quando, como aqui sucede, o Regulamento do Condomínio vem a estabelecer posteriormente que da fracção não pode ser retirada «utilidade “turística/hoteleira”». Refira-se que nos articulados do procedimento cautelar foi suscitada a questão da vigência do Regulamento que introduziu essa alteração, aspecto que não foi inteiramente apurado aquando do julgamento nem surge reflectido na matéria de facto, inviabilizando a pronúncia sobre esse aspecto. Como quer que seja, parece-nos que independentemente disso é já possível, com razoável segurança, responder negativamente àquela pergunta.
O regulamento do condomínio é, nos termos do artigo 1429.º-A do Código Civil o instrumento destinado a disciplinar o uso, a fruição e a conservação das partes comuns do edifício. O artigo 1418.º, n.º 2, do Código Civil prevê ainda que possa ainda fazer parte do título constitutivo da propriedade horizontal um regulamento do condomínio a disciplinar o uso, a fruição e a conservação quer das partes comuns quer das fracções autónomas. Em qualquer dos casos, o regulamento, pela sua própria definição, tem natureza regulatória, de pura disciplina de um regime que ficou definido em termos gerais no título constitutivo e na lei mas que importa ajustar ao caso concreto e às particularidades das necessidade e da vontade dos condóminos.
Excepto se houver concordância do condómino afectado, o regulamento não pode ultrapassar esse âmbito e interferir directamente com o conteúdo material do direito de cada um dos condóminos sobre a sua fracção, reduzindo-o ou excluindo algumas das suas valências. Se o condómino adquire a sua fracção encontrando-se a mesma autorizada pelo título e pela licença de utilização a ser afecta a determinado fim, ao condómino não pode posteriormente, contra a sua vontade, ser oposta pela assembleia de condóminos uma deliberação que a propósito de disciplinar o uso da fracção importe na prática uma restrição material do conteúdo do seu direito exclusivo de propriedade sobre a fracção que lhe pertence.
Só assim se compreende, aliás, o disposto no artigo 1422.º do Código Civil que impede os condóminos de darem à sua fracção um uso diverso do fim a que é destinada: o mais que os restantes condóminos podem exigir é que o fim a que a fracção é destinada seja respeitado, não podem impor eles mesmos uma alteração, modificação ou restrição desse uso desde que ele respeite a autorização contida no título de constituição da propriedade horizontal que delimita o conteúdo do direito real transmitido para o adquirente da fracção. Será o caso, por exemplo, de o regulamento estabelecer que as fracções habitacionais não poderão ser arrendadas ou que não o poderão ser a turistas, a estudantes ou a pessoas de determinada etnia, raça ou nacionalidade. Quando isso suceder, as disposições do regulamento são pura e simplesmente ineficazes em relação ao condómino afectado. É o caso a disposição do regulamento invocada pelo requerente, à qual o requerido se opôs aquando da respectiva deliberação, que pretende impedir o requerido de retirar da sua fracção utilidade turística/hoteleira ainda que se considere que a mesma respeita o fim da habitação autorizado pelo título constitutivo da propriedade horizontal.
Podemos então agora concluir pela falência do primeiro dos pressupostos da providência cautelar. No contexto que acaba de ser explanado, não julgamos demonstrado que o requerente seja titular do interesse juridicamente relevante – correspondente a uma posição de sujeição jurídica do requerido – que pretende acautelar, conforme era necessário para o decretamento da providência.
O mesmo se verifica, aliás, segundo pensamos, em relação ao outro requisito da providência, o periculum in mora.
Recordamos que o fundado receio de lesão grave ou dificilmente reparável não é um facto naturalístico, mas antes um conceito normativo que carece de concretização jurisprudencial em função da factualidade alegada, da função instrumental da tutela cautelar, do princípio da efectividade dos direitos que constitui elemento destes e justificação da tutela cautelar, quando necessária, e do princípio da utilidade da intervenção judicial que conduz à rejeição de situações em que a afirmação dos direitos acabe por ser meramente platónica.
Segundo o afirmado no Acórdão da Relação de Lisboa de 04.12.2012, relatado por Tomé Gomes, in www.dgsi.pt, o periculum in mora é um «conceito jurídico indeterminado gradativo, “carecido de preenchimento valorativo” a fazer no confronto do caso concreto, à luz dos padrões socioculturais do tipo de comportamento ou situação social relevante e da teleologia subjacente à norma em que se inscreve (…). Nessa perspectiva, não se deverá partir de uma bitola genérica, meramente abstracta, mas antes tomar em linha de conta as particularidades da situação singular em presença, de forma a perscrutar nelas os sinais apelativos de uma justiça equitativa que permita, de algum modo, a aplicação flexível da norma, num esforço de conciliação ou síntese entre os valores ético-sociais e o direito. Há, no entanto, que evitar interpretações arbitrárias e por isso recorrer a directrizes objectiváveis e sustentadas numa base de razão prática. Por isso, a doutrina e jurisprudência têm firmado o critério de que a lesão relevante se tem de situar num padrão de gravidade qualificada pela difícil reparabilidade dos danos ocorridos ou previsíveis, não se bastando com uma simples lesão nem com uma lesão de gravidade reduzida».
Também se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.01.2006, relatado por Salvador da Costa, in www.dgsi.pt, que “a gravidade da previsível lesão deve aferir-se à luz da sua repercussão na esfera jurídica do requerente, tendo em conta que, no concernente aos prejuízos materiais, eles são, em regra, passíveis de ressarcimento através de restituição natural ou de indemnização substitutiva”. O que releva, portanto, não é a natureza dos prejuízos que o requerente poderá sofrer até à decisão definitiva sobre o direito, mas a sua repercussão na esfera jurídica do requerente.
Acompanhando o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22.11.2011, relatado por Pinto dos Santos no processo n.º 1408/11.1TJPRT.P1, in www.dgsi.pt, pode afirmar-se que “para a concretização do que se deve entender por lesão dificilmente reparável podem ser apontados dois critérios: a) um critério subjectivo que atende às possibilidades concretas do requerido para suportar economicamente uma eventual reparação do direito do requerente; b) um critério objectivo, aferido em função do tipo de lesão que a situação de perigo pode vir a provocar na esfera jurídica do requerente, o que significa que dependerá da natureza do direito alvo dessa lesão e da sanção que a ordem jurídica impõe para reparação do dano decorrente da lesão, sendo admissível o recurso à tutela cautelar, sempre que a reparação da lesão possa implicar a chamada reintegração por sucedâneo”.
Para considerar demonstrado este requisito, a fazer fé no que consta da motivação da decisão da matéria de facto, a Mma. Juíza a quo deixou-se impressionar pelo depoimento das testemunhas ouvidas na audiência, olvidando que a decisão tem de se apoiar em exclusivo no teor dos factos julgados provados.
Ora apenas foi julgado provado – a decisão sobre a matéria de facto não vem impugnada no recurso pelo que aquele elenco é definitivo e baliza igualmente a decisão desta Relação – o seguinte: a fracção tem uma taxa de ocupação de quase 100% até Setembro deste ano; entram e saem, constantemente, do prédio pessoas a ele estranhas; essas pessoas utilizam o elevador e as escadas do prédio; algumas dessas pessoas fazem barulhos até de madrugada.
Ignorando-se quantas pessoas ocupam a fracção em cada momento, se a utilização que fazem do elevador e das escadas é superior à que seria feita por um agregado familiar comum que habitasse na fracção, a intensidade do barulho que fazem e a frequência com que se prolonga pela noite dentro, parece seguro que a situação em apreço não ostenta uma gravidade que justifique de imediato proibir a utilização da fracção.
Essa conclusão é ainda mais clara se tivermos presente que ainda que esteja demonstrada a lesão do direito a providência não pode ser decretada se a lesão não for grave, tiver uma gravidade reduzida ou for facilmente reparável e que a defesa dos direitos de personalidade, no caso de serem afectados, poderá sempre ser feita, com base noutra causa de pedir, mas para a sua tutela cautelar poderá ser bastante uma medida menos grave, como a intimação do requerido para assegurar que os seus alojados não fazem barulho no período de descanso nocturno.
Finalizamos concluindo que no caso não se mostram demonstrados factos necessários para preencher os requisitos de que dependia o decretamento da providência cautelar pretendida, pelo que o procedimento devia ter sido julgado improcedente. Procede assim o recurso, impondo-se a revogação da decisão recorrida.

V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso procedente e, em consequência, declaram nula a sentença recorrida e, em substituição do tribunal recorrido, decidem julgar o procedimento cautelar improcedente, recusando a providência cautelar requerida.
Custas do procedimento e do recurso pelo recorrente (tabela I-B).

Porto, 15 de Setembro de 2016.
Aristides Rodrigues de Almeida (Relator; Rto 292)
Inês Moura
Teles de Menezes e Melo