Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
174/19.7T9VFR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RAÚL CORDEIRO
Descritores: CRIME
COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL
PENA APLICÁVEL
TRIBUNAL COLECTIVO
COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL SINGULAR
COMPETÊNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO
FUNDAMENTAÇÃO
Nº do Documento: RP20231109174/19.7T9VFR-A.P1
Data do Acordão: 11/09/2023
Votação: DECISÃO SINGULAR
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (DECISÃO SUMÁRIA)
Decisão: REJEITADO, POR MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA, O RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Decorre linearmente da lei que a competência para julgar os processos em que estejam em causa crimes cuja pena máxima abstracta aplicável seja superior a cinco anos compete ao tribunal colectivo, apenas podendo ser julgados pelo tribunal singular se o Ministério Público, na acusação ou em requerimento posterior, mas neste caso apenas nas situações de conhecimento superveniente de concurso, fizer uso do disposto no nº 3 do artigo 16º do Código de Processo Penal, manifestando o entendimento de que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a cinco anos.
II – O recurso a tal normativo tem de ser expresso, quer seja pela sua menção, quer ainda pela indicação, mínima que seja, das razões que levam o Ministério Público a optar pelo julgamento perante tribunal singular, pois que tal constitui uma forma de limitar o tribunal de julgamento na aplicação da pena, na medida em que, sendo embora o máximo da moldura superior, ela não poderá ser fixada em mais de cinco anos.
III – Isto porque a decisão do Ministério Público a esse respeito não é discricionária, devendo antes assentar num juízo objectivo, fundamentado na apreciação de todas as circunstâncias relativas à ilicitude, à culpa e à punibilidade dos agentes.
IV – Esta medida foi adoptada pelo legislador para melhor racionalizar os recursos disponíveis na área da justiça, atribuindo-se, por esta via, a um só juiz a competência que pertenceria a três juízes, sem com isso beliscar os direitos dos sujeitos processuais, designadamente do arguido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 174/19.7T9VFR-A.P1

PUBLICAÇÃO EM 09-11-2023 (Despacho do JLC que, em função da moldura da pena aplicável, sem que o MP tenha recorrido ao disposto no art. 16.º, n.º 3, do CPP, considerou competente para o julgamento o Juízo Central Criminal – Tribunal Colectivo / Invocação pelo arguido da nulidade de tal despacho e posterior recurso / Rejeição liminar, por manifesta improcedência).
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Decisão sumária (arts. 417.º, n.º 6, al. b), e 420.º, n.º 1, al. a), do CPP):
Nos autos de Processo Comum n.º 174/19.7T9VFR, então pendentes no Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira – Juiz 1, foram proferidos despachos, em 23-05-2023 e 07-06-2023, a determinar, respectivamente, que a competência para o julgamento cabe ao tribunal colectivo, ordenando-se a remessa os autos ao respectivo Juízo Central Criminal, e a julgar improcedente a nulidade invocada pelo arguido AA relativamente ao primeiro deles, por alegada violação das regras de competência do tribunal, nos termos do artigo 119.º, alínea e), do CPP, pugnando o mesmo pela prossecução do julgamento perante Tribunal Singular (ref.ªs 127274293 e 127784585).
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Não se conformando com o decidido, o mesmo interpôs recurso, tendo apresentado a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:
1. O Aqui Arguido/Recorrente não se conforma com o despacho proferido nos Autos, datado de 23/05/2023, que indeferiu o pedido de prossecução do julgamento da presente ação em Tribunal Singular, julgando improcedente a nulidade insanável invocada, por violação das regras de competência do tribunal, neste caso, em razão da matéria, conforme perfilha o artigo 119.º, al. e), do CPP.
2. Salvo o devido e merecido respeito, o mesmo é nulo, por violação flagrante de preceitos legais, entre outros, mormente do disposto nos artigos 399.º, 400.º, n.º 1, a contrario, 401.º, n.º 1, alínea b), 402.º, n.º 1, 403.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), 406.º, n.ºs 1 e 2, 407.º, n.ºs 1 e 2, 408.º, 412.º, n.º 2, e 427.º todos do Código de Processo Penal.
3. Impondo-se, pois, uma substituição do despacho recorrido para um outro que admita o Julgamento da presente ação por Tribunal Singular.
4. Ferindo os mais básicos e elementares princípios legais, nomeadamente, os processuais de competência dos tribunais, do contraditório, defesa, acesso à justiça, igualdade, etc…
Vejamos,
5. Os Arguidos foram surpreendidos com o envio dos Autos para Julgamento por Tribunal Coletivo, surpresos tanto mais que, assemelha-se-nos, sem prévia promoção do Ministério Público, que se impunha, tanto que o Requerimento pode ser superveniente – cfr. artigo 16.º, n.º 3. do CPP.
6. Por outro lado, compulsada a Acusação, é a mesma explicita no sentido em que o Ministério Público deduziu acusação para Julgamento mediante “processo comum e com a intervenção de Tribunal Singular”. Cfr. Acusação Pública logo na sua 1.ª página.
7. E, portanto, é assim evidente que o Ministério deduziu acusação, para Julgamento do Tribunal Singular, pelo que, contrariamente ao fundamentado, foi feito uso da prorrogativa do 16.º n.º 3 do CPP.
8. Estamos, pois, perante uma nulidade insanável, ao abrigo do disposto no artigo 119.º, alínea e), do CPP, uma vez que se colocam em questão as regras da competência do Tribunal Singular/Coletivo – artigos 15.º e 16.º do CPP, e, portanto, o Despacho em crise deverá ser declarado inválido, por nulo, não produzindo qualquer efeito.
9. E, consequentemente, deverá ordenar-se o regresso dos Autos ao Juízo Local Criminal, seguindo-se os demais ulteriores termos, nomeadamente para Julgamento por Tribunal Singular, por não se perspetivar, na ótica do Ministério Público, a aplicação de pena superior a 5 anos de prisão, conforme consta da Acusação.
TERMOS em que, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, no sentido das conclusões acima tomadas e, em consequência, deverá ser revogado o despacho recorrido e se proceda à sua substituição, por um outro que defira integralmente, o julgamento do presente processo por Tribunal Singular.
Assim se fazendo a inteira e desejada JUSTIÇA!”.
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Admitido e autonomizado tal recurso, a Exm.ª Magistrada do Ministério Público apresentou resposta, sustentando, em síntese, que o Ministério Público não fez uso, no despacho de acusação, do disposto no artigo 16.º, n.º 3, do CPP, pois que nada referiu a tal respeito, pelo que, atenta a moldura penal do crime aí imputado aos arguidos, a competência para o julgamento cabe ao Tribunal Colectivo, sendo o Tribunal Singular incompetente para tal, concluindo que o despacho recorrido observou a lei e não enferma da apontada nulidade, devendo o mesmo ser mantido e improceder o recurso.
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Sustentado tal despacho e remetidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer dizendo subscrever a argumentação do Ministério Público na resposta ao recurso, concluindo que o mesmo deverá improceder.
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O recorrente apresentou resposta a tal parecer, dizendo reiterar inteira e integralmente as alegações e conclusões do recurso.
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Cumpre apreciar.
A lei processual penal estabelece que o relator profere decisão sumária sempre que, além do mais, o recurso dever ser rejeitado, o que ocorrerá, designadamente, quando for manifesta a sua improcedência, limitando-se tal decisão a identificar o tribunal recorrido, o processo e os seus sujeitos e a especificar sumariamente os fundamentos da decisão (arts. 417.º, n.º 6, alínea b), e 420.º, n.ºs 1, alínea a), e 2 do CPP).
Embora a lei não apresente qualquer definição para o que deva entender-se por manifesta improcedência do recurso, é entendimento generalizado que tal será o caso em que, através de uma avaliação sumária da sua fundamentação, se pode concluir, com segurança, que o mesmo está claramente votado ao insucesso, isto é que os seus fundamentos são inatendíveis. Atente-se, a este propósito, no Acórdão do STJ de 19/12/2007 (Proc. n.º 07P4201, acessível em www.dgsi.pt, citando também o Ac. d STJ de 16-06-2005 – Proc. n.º 2104/05), em cujo sumário se exarou que o recurso é manifestamente improcedente “quando no exame meramente perfunctório a que se procede no visto preliminar, se pode concluir, face à alegação do recorrente, à letra da lei e às posições da jurisprudência sobre as questões suscitadas, que aquele recurso está votado ao insucesso.”
Para melhor perceber e apreciar o que vem impetrado pelo recorrente, importa ter presente a seguinte tramitação processual:
a) Por despacho de 01-02-2023, o Ministério Público, requerendo julgamento “em processo comum e com a intervenção do Tribunal Singular”, deduziu acusação contra os arguidos A..., Lda, e AA, imputando-lhes a prática de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido pelos artigos 7.º, n.ºs 1 e 3, 103.º e 104.º, n.º 2, al. a), e n.º 3, do RGIT, além de pedir que seja declarada perdida a favor do Estado Português a quantia de €288.254,08, de acordo com o disposto no artigo 110.º, n.º 1, alínea b), e n.º 4, do Código Penal (ref.ª 125695198).
b) Os autos seguiram para distribuição como Processo Comum Singular e foram distribuídos ao Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira - Juiz 1, tendo aí sido proferido, em 23-03-2023, o seguinte despacho:
“Para julgamento em processo comum com intervenção de tribunal singular, foi deduzida acusação contra os arguidos
- A..., Lda.; e
- AA, ambos com os sinais dos autos,
imputando-lhes a prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos art.ºs 7.º, 1 e 3, 103.º e 104.º, 2 a), e 3, todos do RGIT.
Tal crime imputado aos arguidos é punível com pena máxima, abstractamente aplicável, superior a 5 anos de prisão (de 2 a 8 anos para pessoas singulares).
Assim, porque não foi usada pelo MP a faculdade prevista no art.º 16.º, 3, do CPP, a competência para o julgamento cabe não ao tribunal singular (art.º 16.º “a contrario sensu” do CPP) mas ao tribunal colectivo (cfr. art.º 14.º, 2 b), do CPP).
Face ao exposto, ordena-se a remessa dos autos ao Juízo Central Criminal de SMF.
Not. os sujeitos processuais e após trânsito dê baixa estatística e remeta.” (ref.ª 127274293).
c) Notificado de tal despacho, por requerimento apresentado a 31-05-2023, o arguido, ora recorrente, arguiu a nulidade insanável do mesmo, prevista no artigo 119.º, alínea e), do CPP, por considerar que o Ministério Público ao deduzir acusação para julgamento mediante “processo comum e com a intervenção do tribunal singular” fez uso da prorrogativa prevista no artigo 16.º, n.º 3, do mesmo Código, pelo que deverá ordenar-se a manutenção dos autos no Juízo Local Criminal, para julgamento por Tribunal Singular.
d) Sobre tal requerimento, o Ministério Público pronunciou-se a 05-06-2023, sustentando que não foi usada a faculdade prevista no artigo 16.º, n.º 3, do CPP, pelo que é competente para o julgamento o Tribunal Colectivo, além de que aquela faculdade não é judicialmente sindicável, promovendo que julgue não verificada a nulidade arguida (ref.ª 127765329).
e) Pelo despacho de 07-06-2023 foi julgada improcedente a nulidade invocada, o qual tem o seguinte teor:
Arguição de nulidade de 31.05.2023 (art.º 119.º, 1 e), do CPP):
O MP pronuncia-se pelo indeferimento do requerido.
A simplicidade da questão merece análise condizente.
Contrariamente à pretensão do arguente, a análise da questão da competência material do tribunal singular não está dependente de prévia promoção do MP. É efectuada, tão só, ao abrigo do disposto no art.º 311.º, 1, do CPP.
Depois, também em sentido contrário ao defendido pelo arguido/requerente, a hipótese em que o requerimento do MP superveniente tem aplicação para uso do art.º 16.º, 3, do CPP é apenas “quando seja superveniente o conhecimento do concurso”, que não é o caso dos autos, até porque não é imputado qualquer concurso de crimes na acusação.
Finalmente, a expressão “Em processo comum e com intervenção de tribunal singular, o Ministério Público deduz acusação”, não é, só por si, bastante para a formalização do uso do art.º 16.º, 3, do CPP, que impõe a sua menção expressa, com fundamentação específica relativa ao entendimento da não aplicação, em concreto, de pena de prisão superior a 5 anos, o que in casu não se verificou. Embora o arguido a consiga vislumbrar (com toda a criatividade manifestada), a verdade é que a vontade dos sujeitos processuais não basta para fazer constar da acusação o que lá não figura.
Neste conspecto, julga-se improcedente, por ostensivamente contrária à lei, a pretensão (dilatória) do arguente/nulidade invocada.
Custas do incidente a cargo do requerente.
Taxa de justiça: 1 UC (art.º 7.º, 4 e 8, do RCP).” – (ref.ª 127784585).
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Vejamos.
Como é sabido, o Tribunal da Relação conhece de facto e de direito (art. 428.º do CPP).
Relativamente ao recurso de direito, como é o caso, a lei impõe que sejam indicadas, além do mais, “as normas jurídicas violadas” e “o sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela deveria ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada” (als. a) e b) do n.º 2 do art. 412.º do CPP).
Os recursos constituem um meio de impugnação das decisões judiciais, cuja finalidade consiste na eliminação dos erros, defeitos ou vícios nelas contidos, através da sua análise por outro órgão jurisdicional, representando, assim, um instrumento processual de consagração prática dos princípios constitucionais de acesso ao direito e de garantia do duplo grau de jurisdição (arts. 20.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da CRP).
Mas a decisão de interpor recurso, não sendo o mesmo obrigatório, é em si mesma uma opção responsabilizante, pois que o recorrente - no caso do arguido através do seu Defensor -, tem o ónus de apresentar a motivação, ou seja, invocar as concretas razões da sua discordância relativamente à decisão recorrida, bem como de condensar estas nas respectivas conclusões, enunciando as questões que pretende ver reapreciadas, aí resumindo “as razões do pedido” (n.º 1 do citado art. 412.º).
Nessa medida, a apreciação da justeza ou da validade da decisão judicial é balizada pela fundamentação apresentada pelo recorrente na motivação, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, designadamente os vícios enunciados no n.º 2 do artigo 410.º do CPP (cfr. Ac. do STJ de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/95, de 19-10-1995, in DR I, de 28-12-1995).
Na situação sub judice está em causa apreciar se a referida menção constante da acusação leva a considerar que o Ministério Público fez uso do disposto no artigo 16.º, n.º 3, do CPP, devendo, por isso, o julgamento decorrer perante Tribunal Singular, como sustenta o recorrente AA.
Como é sabido, a competência material e funcional dos Tribunais encontra-se regulada nos artigos 10.º a 18.º do CPP, relevando, para o que agora interessa, a competência do tribunal colectivo e a do tribunal singular, respectivamente previstas nos artigos 14.º e 16.º desse Código.
Um dos critérios de distribuição da competência entre ambos esses tribunais (colectivo e singular) é a pena aplicável, dispondo o artigo 14.º, n.º 2, alínea b), que “Compete ainda ao tribunal colectivo julgar os processos que, não devendo ser julgados pelo tribunal singular, respeitem a crimes: (…) Cuja pela máxima, abstractamente aplicável, seja superior a 5 anos de prisão mesmo quando, no caso de concurso de infracções, seja inferior o limite máximo correspondente a cada crime.
Essa ressalva relativa ao tribunal singular tem a ver com o disposto no n.º 3 do artigo 16.º, segundo o qual “Compete ainda ao tribunal singular julgar os processos por crimes previstos na alínea b) do n.º 2 do artigo 14.º, mesmo em caso de concurso de infracções, quando o Ministério Público, na acusação, ou, em requerimento, quando seja superveniente o conhecimento do concurso, entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a 5 anos.”
Neste caso, estabelece o n.º 4 do mesmo preceito, “o tribunal não pode aplicar pena de prisão superior a 5 anos.”
Como é bom de ver, a competência para julgar esse tipo de processos (cuja pena máxima abstracta aplicável ao crime seja superior a 5 anos) compete ao tribunal colectivo, apenas podendo ser julgados pelo tribunal singular se o Ministério Público, na acusação ou em requerimento posterior, mas neste caso apenas nas situações de conhecimento superveniente de concurso, fizer uso desse dispositivo legal (n.º 3 do art. 16.º), manifestando o entendimento de que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a 5 anos.
Pese embora todo o esforço argumentativo do recorrente em sentido contrário, afigura-se-nos como manifesto que o recurso a tal normativo tem de ser expresso, quer seja pela sua menção, quer ainda pela indicação, mínima que seja, das razões que levam o Ministério Público a optar pelo julgamento perante tribunal singular, pois que tal constitui uma forma de limitar o tribunal de julgamento na aplicação da pena, na medida em que, sendo embora o máximo da moldura superior, ela não poderá ser fixada em mais de 5 anos.
Com efeito, tal como observa Paulo Pinto de Albuquerque, a decisão do Ministério Público a esse respeito não é discricionária, devendo antes assentar num juízo objectivo, “fundamentado na apreciação de todas as circunstâncias relativas à ilicitude, à culpa e à punibilidade dos agentes.”[1]
Também Henrique Gaspar refere que “Se entender usar da faculdade para determinar concretamente a competência, o MP deve indicar (…) os fundamentos porque considera que a pena aplicável não deve ser superior a cinco anos de prisão.”[2]
Igualmente Maria do Carmo Silva Dias refere que o Ministério Público, para fazer uso do tal normativo legal, “tem de requerer julgamento pelo tribunal singular, de forma fundamentada (o que sempre o ajuda a melhor se convencer da sua decisão), isto é, explicando a razão pela qual entende que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a 5 anos, o que deve fazer na acusação ou em requerimento autónomo, quando seja superveniente o conhecimento do concurso.”[3]
Ou seja, o Ministério Público terá sempre de fazer, com base nas circunstâncias do caso, um juízo de prognose relativamente à pena concreta a aplicar, vertendo tais fundamentos nos autos.
Na verdade, ainda que frequentemente se verifique que, nestes casos, o Ministério Público se limita, aquando da dedução da acusação, a invocar o disposto no artigo 16.º, n.º 3, do CPP, tratando-se de um acto decisório que toma a forma de despacho, o mesmo deve ter, também nessa parte, suficiente fundamentação, ainda que concisa, tal como resulta do disposto no artigo 97.º, n.ºs 3, 4 e 5, do CPP.
Neste contexto, ao contrário do sustentado pelo recorrente, a mera indicação, na acusação, de requerer o julgamento “em processo comum e com a intervenção do Tribunal Singular”, quando ao crime imputado corresponde pena de prisão com máximo superior a 5 anos, como ocorre no caso concreto (não está aqui em causa a qualificação jurídica feita), não pode levar a considerar que o Ministério Público fez ou quis fazer uso do disposto no referido n.º 3 do artigo 16.º do CPP.
Com efeito, esta norma legal atribui ao Tribunal Singular uma competência “determinada de modo concreto”,[4] ou seja, casuisticamente, na medida em que, por opção expressa do Ministério Público, manifestada, em regra, aquando da dedução da acusação, o mesmo irá proceder ao julgamento por crime(s) que, em face do máximo da pena abstracta aplicável, seria(m) da competência do Tribunal Colectivo.
Trata-se de uma medida adoptada pelo legislador para melhor racionalizar os recursos disponíveis na área da justiça, atribuindo-se, por esta via, a um só juiz a competência que pertenceria a três juízes, sem com isso beliscar os direitos dos sujeitos processuais, designadamente do arguido.
É verdade que tal opção poderá também ser manifestada por requerimento posterior, mas tal apenas poderá ocorrer, como refere a norma, quando “seja superveniente o conhecimento do concurso”, o que sucederá, designadamente, quando for determinada a conexão de processos já na fase de julgamento, com a respectiva apensação, em conformidade com o disposto nos artigos 24.º, 25.º, 28.º e 29.º do CPP.
Não pode, pois, considerar-se que a mera indicação, na acusação, de julgamento com intervenção de Tribunal Singular, implica a conclusão de que o Ministério Público fez uso do disposto no artigo 16.º, n.º 3, do CPP, como pretende o recorrente.
Isto parece-nos uma evidência, pois que não há requerimentos ou pretensões implícitas a tal respeito.
O próprio Ministério Público, quer na posição que manifestou relativamente ao requerimento de arguição de nulidade, quer na resposta ao recurso, não admite sequer que tenha pretendido fazer uso daquele normativo legal.
E se não recorreu a tal faculdade, como resulta manifesto, então errou na indicação de julgamento com intervenção de tribunal singular, competindo ao Juiz a quem o processo foi distribuído, no âmbito do despacho que alude o artigo 311.º, n.º 1, do CPP, conhecer da nulidade, insanável, a que alude o indicado artigo 119.º, alínea e), do mesmo Código.
Reconhece-se que a oportunidade e o critério seguido pelo Ministério Público para recorrer ao disposto no mencionado preceito legal (n.º 3 do art. 16.º) não é judicialmente sindicável, mas cabe ao Tribunal singular, recebidos os autos, verificar se é competente para o seu julgamento, designadamente quando, na falta de recurso ao aludido preceito legal, a moldura abstracta aplicável ao crime não cabe dentro do limite estabelecido na alínea b) do n.º 2 do referido artigo 16.º, julgando-se, se for o caso, incompetente para a realização do julgamento e atribuindo essa competência ao Tribunal Colectivo, determinando a remessa ao Juízo competente, no caso o respectivo Juízo Central Criminal (arts. 118.º, n.º 1, 133.º, n.º 1, e 134.º, n.º 1, da LOSJ).
Assim, a alegação do recorrente é totalmente destituída de fundamento, não podendo, por isso, a sua pretensão ser atendida.
Interpretar o que vem (apenas) escrito na acusação quanto ao tribunal de julgamento como faz o recorrente, sem atentar nas regras da competência legalmente fixadas, é que seria incorrer na nulidade prevista no artigo 119.º, alínea e), do CPP.
Não se mostram violados os preceitos e princípios invocados pelo recorrente, nem quaisquer outros.
Impõe-se, assim, a rejeição do recurso, por manifesta improcedência.
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São devidas custas pelo arguido no caso de “decaimento total” no recurso, com taxa de justiça a fixar entre 3 e 6 UC, não havendo lugar às mesmas apenas em caso de procedência, mesmo que somente parcial (arts. 513.º, n.º 1, do CPP e 8.º, n.º 9, do RCP e tabela III anexa).
Por sua vez, a rejeição do recurso, designadamente por manifesta improcedência, implica a condenação do recorrente ao pagamento de uma importância entre 3 e 10 UC (n.º 3 do art. 420.º do CPP).[5]
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Pelo exposto, decide-se:
a) Rejeitar, por manifesta improcedência, o recurso interposto pelo arguido AA.
b) Condenar o recorrente nas custas respectivas, com taxa de justiça de 3 (três) UC.
c) Condenar ainda o recorrente na quantia correspondente a 4 (quatro) UC, nos termos do n.º 3 do artigo 420.º do CPP.
Notifique.
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Porto, 09-11-2023.
Raúl Cordeiro
__________________
[1] Cfr. Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, pág. 94.
[2] Cfr. Código de Processo Penal comentado, 3.ª edição revista, 2021, Almedina, pág. 68.
[3] Cfr. Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo I, Almedina, pág. 283.
[4] Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., pág. 92.
[5] Este sancionamento é cumulativo com as custas, pois que têm diferentes finalidades (cfr. Pereira Madeira, Código de Processo Penal comentado, 3.ª edição revista, 2021, Almedina, pág. 1341; Paulo Pinto de Albuquerque, obra citada, pág. 1164, e Acs. da RL de 19-02-2002, Proc. 0003425, e de 16-06-2004, Proc. 4589/2004-3; da RC de 11-02-2015, Proc. 3/12.2PBCTB.C1, bem como do STJ de 15-10-2003, Proc. 03P1870, e de 04-05-2023, Proc. 130/12.6TELSB.P1.S1, e a Decisão Sumária da RL de 20-06-2023, Proc. 8/20.0GDMTJ.L1-9, in www.dgsi.pt).