Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1567/24.3T8GDM-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PINTO DOS SANTOS
Descritores: SIGILO PROFISSIONAL
LEVANTAMENTO
Nº do Documento: RP202511261567/24.3T8GDM-A.P1
Data do Acordão: 11/26/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: INCIDENTE DE QUEBRA DE SIGILO
Decisão: DEFERIMENTO PARCIAL
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A decisão sobre o levantamento/quebra do sigilo profissional [no caso, sigilo bancário e sigilo fiscal] depende da ponderação entre dois interesses: de um lado, o interesse individual da parte que beneficia do dever de sigilo, decorrente da tutela da reserva da sua vida privada; e, do outro, o interesse do Estado de Direito na realização e boa administração da justiça e descoberta da verdade e o direito da parte que deduziu o incidente de levantamento do sigilo à prova dos fundamentos em que radicou a sua pretensão na ação.
II - Tal ponderação deve ser feita à luz dos princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade.
III - Apesar de os dois grupos de interessas atrás indicados terem ambos consagração constitucional [respetivamente, nos arts. 26º nºs 1 e 2 (também no art. 18º) e 20º nºs 1 e 5 da CRP], vem-se entendendo que quando se está perante elementos de prova indispensáveis à descoberta da verdade, o valor do sigilo, que tutela o interesse privado de uma das partes, deve, em princípio, ceder perante o dever de cooperação na descoberta da verdade material, no âmbito da administração da justiça, mesmo no domínio da jurisdição civil, embora o deferimento do levantamento/quebra do sigilo deva cingir-se ao estritamente necessário para a concretização dos fins visados.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 1567/24.3T8GDM-A.P1 – 2ª Sec.

Relator: Des. Pinto dos Santos
Adjuntos: Des. Raquel Lima
Des. Alberto Taveira


* * *




Acordam nesta secção cível do tribunal da Relação do Porto:



1. Relatório:

AA, residente em Gondomar e BB, residente no Porto, instauraram ação declarativa comum contra A... – UNIPESSOAL, LDA., com sede em Gondomar, representada por CC, com residência no lugar ..., peticionando a resolução do contrato de arrendamento para fim não habitacional que haviam celebrado com a ré [alegando utilização do prédio contrária à lei, uso do prédio para fim diverso daquele a que se destina, e cessão do mesmo de modo ineficaz perante o senhorio], bem como a entrega do locado livre de pessoas e bens, no prazo de um mês a contar da resolução e, ainda, a condenação da ré a pagar-lhe as rendas vincendas até efetiva entrega do locado.

A ré contestou, pugnando pela improcedência da ação e pela condenação dos autores como litigantes de má fé.

Na sequência da contestação, os autores, em 04.09.2024, requereram, fundamentando tais pretensões, que o tribunal [além do mais que aqui não releva] oficiasse:
- à Autoridade Tributária para que juntasse aos autos todas as faturas emitidas pela Ré, os modelos 22 (declarações de IRC), o IES e declarações trimestrais de IVA dos últimos dois anos da Ré e todas as faturas emitidas pela sua legal representante CC;
- ao Banco de Portugal para indicar em que bancos a Ré e a sua legal representante têm contas bancárias domiciliadas, devendo, posteriormente, serem as entidades bancárias indicadas notificadas para juntar os respetivos extratos bancários referente ao último ano, por forma a aferir das respetivas movimentações e atividade desenvolvida por ambas.

Após resposta da , em que pugnou pelo indeferimento do requerido pelos autores, o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho [transcrevem-se apenas os segmentos relativos aos meios probatórios que ora estão em equação]:
«Relativamente às diligências probatórias requeridas pelos AA:
Vieram os AA., na sequência da contestação apresentada pela R., requerer ao Tribunal que oficiasse à Autoridade Tributária e ao Banco de Portugal, para que façam juntar aos autos:
- todas as faturas emitidas pela Ré A... – UNIPESSOAL, LDA., com NIPC ...86;
- os modelos 22 (declarações de IRC), o IES e declarações trimestrais de IVA dos últimos dois anos da Ré;
- todas as faturas emitidas pela sua legal representante CC com o NIF ...22 (no que diz respeito à AT).
Ainda, para indicar em que bancos a Ré e a sua legal representante têm contas bancárias (no que concerne o Banco de Portugal) e, após, que sejam as entidades bancárias indicadas notificadas para juntar os respetivos extratos bancários referente ao último ano, por forma a aferir das respetivas movimentações e atividade desenvolvida por ambas.
(…)
Em resposta, a R. opôs-se à pretensão dos AA., invocando, para além do mais, o sigilo bancário e fiscal, pelo que a prova pretendida pelos AA. seria ilícita.
Apresentaram ainda os AA. o requerimento de 30/9/2024, no qual procuram justificar a pertinência dessas informações e documentos.
Sumariamente, pretendem os AA., através das aludidas diligências, demonstrar alguns dos factos nos quais fundamentam o pedido de despejo da R, concretamente, que esta teria cedido temporariamente o gozo do espaço a um terceiro, DD, sem que disso tenha dado conhecimento aos senhorios.
Por outras palavras, os AA. pretendem carrear para os autos prova de que a R. tem faturação e fluxos monetários que não se coadunam com o exercício da atividade de restauração no locado, para daí se inferir que se já não exerce atividade, é porque cedeu o gozo do locado a terceiros.
A extensão das diligências probatórias à legal representante da R. justifica-se pelo teor da fatura junta como doc. 14 com a contestação (emitida em nome da legal representante da R., com o NIF pessoal desta) e alegação da R. de que o programa de faturação está em seu nome, o que coloca em equação a possibilidade dos proventos da atividade da R. também serem auferidos pela mesma, a título pessoal e através das suas contas bancárias.
(…)
No mais, sendo certo que as diligências requeridas pelos AA. envolvem a prestação de informações pela AT e BP abarcadas pelo dever de sigilo, não é menos certo que esse sigilo não é absoluto e pode vir a ser derrogado em incidente próprio, em face da ponderação que venha a ser feita dos interesses em causa (artigo 135.º do CPP, ex vi artigo 417.º, n.º 4, do CPC).
Porém, para o efeito, essencial é que o obrigado ao sigilo o invoque, recusando-se a prestar as informações solicitadas com esse fundamento.
Por tudo o exposto, mesmo que a prova dos factos alegados na p.i., possa, a nosso ver, ser feita de outras formas, não se pode afirmar que as informações e documentos em questão não tenham pertinência para a factualidade alegada na p.i., pelo que se determina que se oficie à Autoridade Tributária, Banco de Portugal e ASAE, nos termos pretendidos pelos AA., com cópia do presente despacho.
Notifique e d.n.».

O Banco de Portugal, por ofício datado de 26.11.2024, que deu entrada em tribunal em 29.11.2024, respondeu nos seguintes termos [transcreve-se apenas a parte que aqui interessa]:




A Autoridade Tributária, por email de 27.02.2025, informou que:
«Em resposta ao solicitado, informa-se não ser possível satisfazer o solicitado, uma vez que o mesmo está abrangido pelo sigilo profissional fiscal estatuído no art.º 64º da Lei Geral Tributária (LGT), de harmonia com determinação superior da Senhora Diretora-Geral da AT – Autoridade Tributária e Aduaneira, sobre o "Dever de Confidencialidade”.
Informa-se ainda que está disponível no Portal das Finanças, a funcionalidade que permite o acesso aos oficiais de justiça da consulta de informação fiscal no âmbito dos processos judiciais a qual é efetuada da seguinte forma: Início» Entidades Públicas» Serviços: Consultar» Informação fiscal para Tribunais. Conforme instrução transmitida através do ofício – circular n.º 70/2009 de DGAJ/CFFJ de 04-11- 2009.
Contudo, esta Direção de Finanças fornecerá todos ou quaisquer elementos solicitados, desde que o pedido venha suportado por despacho fundamentado do Magistrado.».

Na sequência destas informações do BP e da AT, o tribunal ordenou a notificação da ré para, querendo, em 10 dias, prestar consentimento à prestação das informações necessárias pelo BP e pela AT, através da junção de declaração devidamente assinada. Mais acrescentou que, caso nada fosse dito ou não fosse prestado o consentimento, fossem os autores notificados para, querendo, em 10 dias, suscitarem o incidente apropriado de dispensa do sigilo.

Perante o silêncio da ré, os autores, por requerimento de 15.05.2025, deduziram incidente de quebra de sigilo com a seguinte fundamentação [transcrevem-se as passagem mais relevantes]:
«1.º Pelos Autores foi intentada a presente ação declarativa, pela qual imputam à Ré a violação das obrigações assumidas contratualmente, ou seja, violação dos deveres mais elementares do arrendatário, plasmados no artigo 1038.º, alíneas c), d), f) e g) do C.C.,
2.º Ou seja, in casu, pela Ré foi violado o dever de não aplicar ao locado fim diverso daquele a que se destina, não fazer daquele uma utilização imprudente, no caso subjudice pelo uso de espaços não autorizados, de não proporcionar a outrem o gozo total ou parcial da coisa e o dever de comunicar ao locador, dentro de 30 dias, a cedência do gozo a coisa por algum dos referidos títulos, quando permitidos ou autorizados (a alínea f) e g) do citado normativo conjugado com o disposto no artigo 1109, n.º 2 do mesmo diploma legal).
3.º Em particular, alegam os Autores que: “Em data que não conseguem precisar, mas em meados de Outubro de 2023, os Autores tomaram conhecimento que a parte do locado destinado à restauração, denominado ‘Restaurante ...’, está a ser explorado economicamente por um terceiro, o Exmo. Sr. DD, alheio à Ré;
O que faz com o consentimento da arrendatária, na sequência do contrato de sublocação ou cessão da exploração, e mediante o pagamento de contrapartida, cujo quantum se desconhece.
A cedência temporária do gozo do espaço locado/Restaurante, a favor de terceiro, ocorreu sem o conhecimento e, consequentemente, sem o consentimento, dos Autores, já que a Ré não lhes comunicou por qualquer via.” – cf. artigos 36.º, 37.º e 38.º da P.I.
4.º Por seu turno, a Ré no seu contestatório, defendendo-se por impugnação, afirma que é a própria que explora a atividade de restauração no locado, não tendo cedido a sua posição ou o direito de uso e fruição do locado a terceiros.
5.º Mais alegou a Ré ‘A...’ que é responsável por toda a faturação atinente ao restaurante (cf. artigo 21.º contestação).
6.º Todavia, não se compreende o porquê de a ‘fatura/recibo’, n.º 1 junta aos autos, ter sido emitida em nome pessoal de ‘CC – com o NIF ...22’,
7.º Não relevando para tal o facto de, alegadamente, o programa de faturação estar em nome desta, pois, ainda que assim fosse, o que não se concede, as faturas poderiam ser emitidas com o NIF da Ré e esta tem obrigações tributárias imperativas, às quais não se pode escamotear, sob pena de incorrer em infração ou, até mesmo, crime de natureza fiscal.
8.º Por outro lado, resulta do portal do Ministério da Justiça – Atos Públicos, a Ré não apresenta a prestação de contas desde o ano de 2020, sendo que o último se refere ao ano de 2019 (cf. doc., junto a fls. …),
9.º Na verdade, tais factos e prova documental oportunamente junta, faz indiciar a inexistência de qualquer atividade desenvolvida pela Ré no locado, objeto em discussão nos presentes autos.
10.º Ora, sendo legalmente imposto, aos Autores, o ónus da prova dos factos por si alegados (cf. artigo 342.º do C.C.) e não dispondo de meios próprios para o efeito, estes recorreram ao disposto no artigo 432.º do C.P.C., tendo por subjacente o princípio da colaboração/cooperação para a descoberta da verdade material.
11.º Nesse seguimento, por entenderem ser necessário e essencial para a descoberta da verdade material e para a boa decisão da causa, os Autores requereram a este Douto Tribunal que fosse oficiada a Autoridade Tributária para juntar faturas/recibo emitidas, no âmbito da atividade de restauração, pela Ré A... – UNIPESSOAL, LDA., com o NIPC ...86, e pela sua legal representante CC com o NIF ...22, e as suas declarações tributárias (os modelos 22 (declarações de IRC), o IES e declarações trimestrais de IVA dos últimos dois anos – a contar da data de interposição da presente ação – da Ré).
12.º Bem assim, requereram que fosse oficiado o Banco de Portugal para indicar em que bancos a Ré e a sua legal representante têm contas bancárias domiciliadas, para, posteriormente, serem as entidades bancárias notificadas para juntar os respetivos extratos bancários referente ao último ano (a contar da data de interposição da presente ação), por forma a aferir das respetivas movimentações, operações bancárias e atividade desenvolvida por ambas.
13.º As aludidas entidades foram oficiadas para juntarem, aos autos, a informação requerida, no entanto, ao abrigo do dever legal de sigilo, recusaram (cf. ofício a fls. …).
14.º Por seu turno, a Ré foi notificada para prestar consentimento à prestação de informações necessárias pelo Banco de Portugal (BP) e pela Autoridade Tributária (AT), através da junção de declaração devidamente assinada, no prazo de dez dias, (cf. Despacho a fls. …), porém, a mesma absteve-se de o fazer.
15.º Desta feita, não resta outra alternativa aos Autores, além de deduzirem o presente incidente de levantamento ou dispensa do sigilo pela AT e BP, por forma a cumprir o ónus da prova que legalmente lhe é imposto, satisfazendo os ensejos de Justiça material do caso concreto.
(…)
19.º Ora, in casu, as informações bancárias e tributárias requeridas revelam-se imprescindíveis para provar a factualidade controvertida nos presentes autos, designadamente se a Ré está a exercer a atividade de restauração (ou qualquer outra) no locado.
20.º Tendo em conta a impossibilidade dos Autores obterem, por si, a informação pretendida (coberta pelo sigilo bancário e segredo profissional da AT) e a imprescindibilidade da mesma para a descoberta da verdade, o seu conhecimento sobrepõe-se à tutela da reserva da vida privada protegida pelo segredo profissional.
(…)
Nestes termos e nos melhores de direito aplicável, requerem a V. Exa. se digne suscitar a intervenção do Venerando Tribunal da Relação do Porto e pelo mesmo seja decidida a dispensa ou levantamento do segredo profissional da AT e sigilo bancário, com a consequente junção da supra referida informação e/ou documentação, referente aos últimos dois anos a contar da interposição da presente ação e até à presente data, quer por parte da Autoridade Tributária, quer por parte das instituições bancárias, com custas do incidente a cargo da Ré que ao mesmo deram causa pela recusa ilegítima e injustificada em darem a sua autorização.».

Após observância do contraditório, em que a ré sustentou o indeferimento do pedido de levantamento/dispensa de sigilo, o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho [transcrição da fundamentação]:
«(…)
De acordo com o art. 417.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, o processo civil pauta-se pelo dever de colaboração processual, quer sejam ou não partes no processo, o qual se manifesta em várias vertentes: seja para responder ao que for perguntado; seja para facultar o que for requisitado.
Nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, a inobservância do citado dever pode gerar cominações.
Sucede, porém, que, ao abrigo do n.º 3 do mencionado artigo 417.º, circunstâncias há em que a recusa é legítima, como é o caso do sigilo fiscal e bancário – art. 417.º, n.º 3, al. c), do Código de Processo Civil.
De facto, o art. 64.º do Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de dezembro (Lei Geral Tributária) prevê que «Os dirigentes, funcionários e agentes da administração tributária estão obrigados a guardar sigilo sobre os dados recolhidos sobre a situação tributária dos contribuintes e os elementos de natureza pessoal que obtenham no procedimento, nomeadamente os decorrentes do sigilo profissional ou qualquer outro dever de segredo legalmente regulado». Tal informação fiscal apenas pode ser fornecida, nos termos do n.º 2, al. d), do mesmo artigo, em cumprimento do dever de cooperação já mencionado, relevando para o efeito que tal informação se cinja ao que for absolutamente imprescindível para a descoberta da verdade material e para a boa realização da justiça.
Já quanto ao segredo bancário, este está previsto nos artigos 78.º e 79.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei nº 298/92, de 31 de Dezembro. O primeiro dos preceitos estabelece no seu n.º 2 que se encontram, designadamente, sujeitos a segredo “os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias”.
Por sua vez, o artigo 79.º prevê as exceções ao dever de segredo, fora do caso de autorização do cliente, sendo que a alínea e) do nº 2 refere que “quando exista outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo”.
Ao Banco de Portugal são igualmente aplicáveis tais considerandos, por força do art. 980.º do mesmo diploma.
Assim, e com relevo para o caso, o conceito de “outra disposição legal” que constitui exceção ao dever de segredo tange o disposto no artigo 417.º, n.º 4, segundo o qual, deduzida escusa com fundamento na al. c) do número anterior (que diz respeito, nomeadamente, ao sigilo profissional que engloba o segredo bancário, enquanto dever que se impõe aos órgãos de administração, de fiscalização ou aos empregados de uma determinada instituição bancária), “é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado”.
Este preceito remete, portanto, para o artigo 135º do Código de Processo Penal, do qual resulta que o sigilo bancário não é um direito absoluto podendo ceder perante outros direitos assegurados pelo Estado, designadamente o de acesso à justiça (neste sentido, vide os acórdãos do STJ de 14.01.1997 – C.J., Ano V, Tomo I-1997, pág. 44, da Relação de Lisboa de 04.10.2001 – C.J., Ano XXVI-2001, Tomo IV, pág. 116, da Relação do Porto de 23.05.2002, p. 0230626 e de 7.07.2009, p. 15/08.0TBMUR-A.P1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt), cumprindo ao Tribunal aferir da legitimidade da escusa invocada pela instituição bancária.
Volvendo ao caso dos autos, em face dos normativos aludidos, afigura-se que à Autoridade Tributária e ao Banco de Portugal assiste o direito de se recusarem a prestar as informações aludidas. Assim, julgam-se tais recusas legítimas, nos termos dos artigos 417.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Civil, art. 64.º do Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de dezembro (Lei Geral Tributária) e art. 80.º do Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro.
Aqui chegados, prevê o art. 135.º do Código de Processo Penal ex vi 417.º, n.º 3, do Código de Processo Civil que o Tribunal, oficiosamente ou a requerimento, suscite a dispensa do dever de sigilo.
Tendo tal dispensa sido requerida pelos Autores, e ao abrigo do art. 135.º, n.º 3, do Código de Processo Penal ex vi 417.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, diligencie pela autuação do correspondente como incidente de dispensa de sigilo, mais instruindo tal apenso com cópia do presente despacho e das seguintes peças dos autos principais:
(…)».

É na sequência deste requerimento e do despacho que se lhe seguiu que surge a intervenção deste Tribunal da Relação.
Foram colhidos os vistos legais
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2. Apreciação fáctico-jurídica:

2.1. A factualidade a considerar é a que ficou descrita no ponto anterior.
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2.2. A questão a solucionar traduz-se em saber se deve ou não ser determinada a quebra do sigilo bancário e do sigilo fiscal requerida pelos autores para que possam fazer prova de factualidade constitutiva do direito de resolução do contrato de arrendamento que invocam na petição inicial da ação de que este incidente é dependência.
O Banco de Portugal estribou a sua recusa no disposto no art. 80º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras [RGICSF], aprovado pelo DL 298/92, de 31/12, e que só poderá facultar as informações solicitadas pela 1ª instância nos termos previstos no art. 81º-A ou nos casos excecionais previstos no nº 2 do art. 80º do mesmo RGICSF, ou seja, mediante autorização expressa do interessado [que no caso não se verificou, na medida em que a ré recusou a prestação de tal autorização] ou mediante notificação do levantamento judicial do dever de segredo, nos termos do art. 135º do Código de Processo Penal [CPP].
Aquele art. 80º [com a epígrafe «Dever de segredo do Banco de Portugal»] dispõe [na sua redação atual, dada pelo DL 157/2014, de 24.10], nos nºs 1 e 2, que:
«1 - As pessoas que exerçam ou tenham exercido funções no Banco de Portugal, bem como as que lhe prestem ou tenham prestado serviços a título permanente ou ocasional, ficam sujeitas a dever de segredo sobre factos cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício dessas funções ou da prestação desses serviços e não poderão divulgar nem utilizar as informações obtidas.
2 - Os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados mediante autorização do interessado, transmitida ao Banco de Portugal, ou nos termos previstos na lei penal e de processo penal.
3 – (…).
4 – (…).
5 – (…).».
Relevam também os arts. 78º e 79º do mesmo RGICSF, na medida em que a eventual quebra do sigilo relativamente ao Banco de Portugal [banco supervisor] implicará também a quebra do sigilo que incide diretamente sobre as instituições de crédito em que a ré possua contas bancárias. Do primeiro destes preceitos interessa o dever de sigilo que consta do nº 1 e o âmbito ou objeto de tal dever que está contemplado no nº 2 e que abarca «os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias». No segundo normativo prevêem-se, nos nºs 1 e 2, exceções ao dever de segredo, referindo-se o nº 1 aos casos em que existe autorização do cliente transmitida à instituição bancária, ao passo que no nº 2 se alude à revelação dos factos e elementos cobertos pelo dever de segredo, designadamente, quando exista outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo [al. i)].
Já a Autoridade Tributária sustentou a sua recursa no que dispõe o art. 64º da Lei Geral Tributária [LGT], acrescentando que fornecerá os elementos solicitados se o pedido for suportado por despacho fundado do Magistrado.
A redação deste art. 64º da LGT [que tem por epígrafe «Confidencialidade»] é a seguinte [redação atual, dada pela Lei nº 47/2020, de 24.08], no segmento que aqui interessa ponderar:
«1 - Os dirigentes, funcionários e agentes da administração tributária estão obrigados a guardar sigilo sobre os dados recolhidos sobre a situação tributária dos contribuintes e os elementos de natureza pessoal que obtenham no procedimento, nomeadamente os decorrentes do sigilo profissional ou qualquer outro dever de segredo legalmente regulado.
2 - O dever de sigilo cessa em caso de:
a) Autorização do contribuinte para a revelação da sua situação tributária;
b) Cooperação legal da administração tributária com outras entidades públicas, na medida dos seus poderes;
c) Assistência mútua e cooperação da administração tributária com as administrações tributárias de outros países resultante de convenções internacionais a que o Estado Português esteja vinculado, sempre que estiver prevista reciprocidade;
d) Colaboração com a justiça nos termos do Código de Processo Civil e mediante despacho de uma autoridade judiciária, no âmbito do Código de Processo Penal;
e) Confirmação do número de identificação fiscal e domicílio fiscal às entidades legalmente competentes para a realização do registo comercial, predial ou automóvel.
3 – (…).
4 – (…).
5 – (…).
6 – (…).
7 - Para efeitos do disposto na alínea d) do n.º 2, e com vista à realização das finalidades dos processos judiciais, incluindo as dos inquéritos em processo penal, as autoridades judiciárias acedem diretamente às bases de dados da Autoridade Tributária e Aduaneira.
8 - A concretização do acesso referido no número anterior é disciplinada por protocolo a celebrar entre o Conselho Superior da Magistratura, a Procuradoria-Geral da República e a Autoridade Tributária e Aduaneira.».

Começando pelo segredo bancário, ensina Paulo Mota Pinto [in “A Protecção da Vida Privada e a Constituição”, BFDUC ano 2000, vol. LXXVI, pgs. 174 e 175] que o mesmo “está ligado à reserva da vida privada” e corresponde “a um interesse geral do sistema bancário, para preservação das condições de captação de poupanças” e também “a um interesse privado dos clientes da instituição de crédito, tendo em vista a protecção da sua vida privada” [idem, Capelo de Sousa, in «O Segredo Bancário – em especial face às alterações fiscais da Lei nº 30-G/2000, de 29/12», em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, II volume, 2002, pgs. 176 e segs.].
Por sua vez, o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.° 2/2008 [publicado no DR lª série, de 31.03.2008], declarou que o segredo bancário pretende salvaguardar uma dupla ordem de interesses: por um lado, “de ordem pública: o regular funcionamento da atividade bancária, baseada num clima generalizado de confiança, sendo o segredo um elemento decisivo para a criação desse clima de confiança, e indiretamente para o bom funcionamento da economia, já que o sistema de crédito, na dupla função de captação de aforro e financiamento do investimento, constitui, segundo o modelo económico adotado, um pilar do desenvolvimento e do crescimento dos recursos”, por outro, “visa também a proteção dos interesses dos clientes da banca, para quem o segredo constitui a defesa da discrição da sua vida privada, tendo em conta a relevância que a utilização de contas bancárias assume na vida moderna, em termos de refletir aproximadamente a ‘biografia’ de cada sujeito, de forma que o direito ao sigilo bancário se pode ancorar no direito à reserva da intimidade da vida privada, previsto no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa”. E acrescenta: “[p]orém, esse direito ao sigilo, embora com cobertura constitucional, não é um direito absoluto, até porque, pela sua referência à esfera patrimonial, não se inclui no círculo mais íntimo da vida privada das pessoas, embora com ele possa manter relação estreita”, pelo que [p]ode, (…), ter de ceder perante outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, cuja tutela imponha o acesso a informações cobertas pelo segredo bancário”.
Devido a esta ligação do segredo bancário à reserva da vida privada, constitucionalmente garantida no art. 26º nº 1 da CRP, é que o mesmo só pode deixar de ser observado, «grosso modo», em duas situações: por consentimento do próprio sujeito beneficiário ou por determinação judicial. Estas duas exceções estão contempladas nos arts. 79º nºs 1 e 2 al. i) e 80º nº 2 do RGICSF.
Da conjugação destes normativos resulta que as informações bancárias que forem prestadas/obtidas fora [em contravenção] dos casos [excecionais] previstos nos referidos arts. 79º e 80º traduzirão provas ilícitas, seja por aplicação analógica do que o art. 32º nº 8 da CRP estatui para o processo penal, seja por aplicação indireta do que prevê o art. 417º nº 3 do CPC, seja, ainda, com recurso direto ao que estabelecem os outros artigos da CRP, designadamente os arts. 18º e 26º [a maioria da jurisprudência e da doutrina defende a aplicação analógica do art. 32º nº 8 da CRP às provas em processo civil – cfr., na doutrina, Teixeira de Sousa, in «A Livre Apreciação da Prova em Processo Civil», Scientia Iuridica, Revista de Direito Comparado Português e Brasileiro, 1984, pg. 140 e Isabel Alexandre, in «Provas Ilícitas em Processo Civil», 1998, pgs. 233 a 242; na jurisprudência, i. a., acórdãos da Relação do Porto de 15.04.2010 e de 06.01.2009, procs. 10795/08.8TBVNG-A.P1 e 0825375 (este relatado pelo aqui relator), disponíveis in www.dgsi.pt/jtrp, da Relação de Lisboa de 28.11.2013 e de 07.05.2009, procs. 618/11.6TMLSB-A.L1-6 e 2465/08.2, disponíveis in www.dgsi.pt/jtrl, da Relação de Guimarães de 07.05.2015, proc. 329/13.8TBAMR.G1, disponível in www.dgsi.pt/jtrg e da Relação de Évora de 11.05.2017, proc. 8346/16.0T8STB.E1, disponível in www.dgsi.pt/jtre; em sentido divergente, não aceitando a aplicação analógica do art. 32º nº 8 da CRP ao processo civil, mas defendendo, ainda assim, a ilicitude das provas obtidas nos termos atrás indicados, por ex., Salazar Casanova, in «Provas ilícitas em processo civil - Sobre a admissibilidade e valoração de meios de prova obtidos pelos particulares», Revista Direito e Justiça, vol. XVIII, Tomo I, 2004, pg. 118 e Carlos Castelo Branco, in «A Prova Ilícita – Verdade ou Lealdade?», Almedina, 2019, reimpressão, pgs. 214-217 e, ainda, o acórdão da Relação de Lisboa de 15.04.2021, proc. 705/18.0T8CSC-A.L1-2, disponível in www.dgsi.pt/jtrl]. Mas dos mesmos resulta também que não se trata de prova absolutamente ilícita [ou absolutamente nula], já que admitem a derrogação do dever de sigilo nas duas apontadas situações, interessando-nos aqui a que decorre de determinação judicial [face à ausência de consentimento da ré].
Como se disse atrás, o tribunal a quo também solicitou diversos documentos e informações à Autoridade Tributária, tendo esta recusado a colaboração invocando escusa ao abrigo do art. 64º da LGT, acima transcrito. Também este preceito permite a quebra do dever de sigilo, nomeadamente, no que aqui nos interessa, nos termos da al. d) do seu nº 2, ou seja, em conformidade com o que consta do CPC. Do que decorre que neste âmbito estamos, igualmente, perante um sigilo [que é, ainda, um sigilo profissional] com uma natureza não absoluta [cfr. acórdão desta Relação do Porto de 16.12.2015, proc. 478/13.2TAAMT-A.P1, disponível in www.dgsi.pt/jtrp].

In casu, pela natureza e extensão das informações pretendidas pelos autores, não se suscita qualquer dúvida quanto à legitimidade da recusa quer do Banco de Portugal, quer da Autoridade Tributária. Além dos preceitos do RGICSF e da LGT citados, tais recusas mostram-se estribadas na al. c) do nº 3 do art. 417º do CPC. Daí a necessidade do incidente que ora está em análise.
Há, por isso, quanto a ambas as recusas, que ter em conta o que dispõe o nº 4 deste art. 417º, segundo o qual, deduzida escusa com fundamento na al. c) do número anterior [que, como se viu, abarca, designadamente, o sigilo bancário e o sigilo fiscal], «é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado». O que significa que a tem aqui aplicação o fixado no art. 135º nº 3 do CPP, de acordo com o qual «o tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, (…), pode decidir da (…) quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade (…) para a descoberta da verdade (…) e a necessidade de proteção de bens jurídicos».
Temos, assim, que a aferição da dispensa [ou não] do dever de sigilo bancário e fiscal, à luz destes arts. 417º nº 4 do CPC e 135º nº 3 do CPP, tem de ser feita por um tribunal hierarquicamente superior àquele em que o incidente foi suscitado [no caso, tal competência cabe a este tribunal da Relação] e assentar na ponderação dos interesses em confronto com enfoque nos princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade.
Refere Lopes do Rego [in «Comentários ao Código de Processo Civil», vol. I, Almedina, pgs. 457 e segs.] que o “juízo de ponderação deve ter, sempre e necessariamente, em conta a natureza dos interesses em causa: desde logo, trata-se de interesses privados (e não interesses públicos, como sucede necessariamente no âmbito do processo penal) que poderão, por sua vez, revestir natureza pessoal ou patrimonial – e, neste último caso, de valores muito variáveis”, acrescentando que o tribunal, ao proceder a esse juízo, deve “atuar segundo critérios prudenciais, realizando uma cautelosa e aprofundada ponderação dos delicados e relevantes interesses em conflito: por um lado, o interesse na realização da justiça e a tutela do direito à produção da prova pela parte onerada; por outro lado, o interesse tutelado com o estabelecimento do dever de sigilo, maxime o interesse da contraparte na reserva da vida privada, a tutela da relação de confiança que a levou a confiar dados pessoais ao vinculado pelo sigilo e a própria dignidade do exercício da profissão”. Também Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa [in «Código de Processo Civil Anotado», vol. I, 3ª ed., reimpr., 2025, Almedina, pg. 532, anotação 7] salientam que [c]asuisticamente há que determinar se prevalece o direito à prova ou as razões que justificam a invocação do sigilo, sendo que tal ponderação se rege necessariamente pelo princípio da proibição do excesso ou da proporcionalidade (art. 18º, nº 2, da CRP), o qual se desdobra nos subprincípios da adequação ou da idoneidade, da exigibilidade ou da necessidade e da justa medida ou da proporcionalidade em sentido estrito”, acrescentando que [f]ace à existência de um interesse probatório legítimo, deve fazer-se um reequilíbrio dos valores em conflito, rejeitando uma conceção intangível das normas sobre o sigilo”.
Surge, pois, inequívoco que, no âmbito do processo civil, a dispensa/quebra do sigilo profissional [bancário e fiscal] tem natureza excecional, devendo limitar-se ao estritamente necessário e imprescindível para a concretização dos valores que, com o respetivo incidente, se almejam alcançar, dependendo sempre de um juízo concreto, fundado na natureza da ação e na relevância e intensidade dos interesses da parte que pretende obter prova através da dispensa do dever de sigilo [cfr., i. a., acórdãos desta Relação do Porto de 12.05.2025, proc. 1748/21.1T8OAZ-D.P1, de 10.04.2025, proc. 6890/24.4T8MAI-A.P1, de 06.03.2025, proc. 4121/22.0T8MTS-B.P1 e de 24.02.2025, proc. 2423/22.5T8PRT-A.P1, disponíveis in www.dgsi.pt/jtrp].
Está aqui em causa o direito à prova e o interesse na realização da justiça atinente aos meios de prova de que os autores podem socorrer-se para demonstração de concretos fundamentos em que estribaram o seu petitório. Segundo alegam, os documentos e informações bancários e fiscais que pretendem destinam-se, no essencial, a fazer prova de que o imóvel arrendado à ré foi por esta cedido a um terceiro [DD], por contrato de sublocação ou por cessão de exploração, sem lhes ter sido dado conhecimento e sem o seu consentimento, tanto mais que, apesar da ré ter alegado na contestação que é ela própria que explora a atividade de restauração no locado, juntou aos autos, com tal articulado, uma fatura emitida em nome de CC e não em nome dela, além de resultar do portal do Ministério da Justiça – Atos Públicos que a demandada não apresenta a prestação de contas desde o ano 2020.
A decisão a proferir depende, assim, da ponderação entre os dois interesses aqui em litígio e da indagação de qual deles deve prevalecer à luz dos ditos princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade. De um lado, os interesses individuais da ré e da sua representante, decorrentes da tutela da reserva da vida privada de ambas [no caso da ré, da sua vida comercial; no caso da representante, quer da sua vida privada, quer da sua atividade comercial] a que se reconduzem os deveres de sigilo bancário e de sigilo fiscal; do outro, o interesse do Estado de Direito na realização e boa administração da justiça e descoberta da verdade e o direito dos autores à prova dos fundamentos em que radicaram a sua pretensão. Ambos têm consagração constitucional: o primeiro, como se disse, no art. 26º nºs 1 e 2 [indiretamente também no art. 18º] da CRP; o segundo, no art. 20º nºs 1 e 5 da mesma Lei Fundamental [que proclamam, respetivamente, que «[a] todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (…)» e que «[p]ara defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos].
Neste confronto de normas fundamentais, os nossos Tribunais têm entendido, maioritariamente, que “quando se está perante elementos de prova indispensáveis à descoberta da verdade, o valor do segredo bancário, que tutela o interesse privado duma das partes, deve, em princípio, ceder perante o dever de cooperação na descoberta da verdade material, no âmbito da administração da justiça, mesmo no domínio da jurisdição civil”, embora o conhecimento dos elementos bancários deva “limitar-se ao estritamente necessário aos fins visados” e com “observância rigorosa do princípio da proibição do excesso, na tripla vertente da necessidade, adequação e proporcionalidade” [assim, acórdão da Relação de Lisboa de 28.02.2012, proc. 4433/09.9TBSXL-D.L1, disponível in www.dgsi.pt/jtrl; no mesmo sentido, a maioria do acórdãos desta Relação do Porto atrás citados].
No caso sub judice e ante o que já se deixou dito acerca do que está em questão e dos meios de prova pretendidos, não há dúvida de que os pressupostos da necessidade e da adequação se mostram verificados: por um lado, porque a prestação das informações e o acesso à documentação pretendidos são necessários para que os autores consigam, de modo mais cristalino e poderoso [no confronto com outros meios de prova mais frágeis e falíveis de que também poderão lançar mão, de que é exemplo a prova testemunhal], fazer prova da factualidade [relevante para procedência do pedido que formularam na ação] já referenciada; e, por outro, porque tais meios de prova se apresentam adequados à demonstração dessa mesma materialidade fáctica.
Questão é se o princípio [ou subprincípio] da proporcionalidade permite o deferimento de tudo o que os autores pretendem, ou seja, que a Autoridade Tributária junte aos autos todas as faturas emitidas pela Ré, os modelos 22 (declarações de IRC), o IES e declarações trimestrais de IVA dos últimos dois anos da Ré, bem como todas as faturas emitidas pela sua legal representante CC, e que o Banco de Portugal indique em que bancos a Ré e a sua legal representante têm contas bancárias domiciliadas e que, depois, perante esse informação, se notifiquem as entidades bancárias indicadas para juntarem os respetivos extratos bancários referente ao último ano, por forma a aferir das respetivas movimentações e atividade desenvolvida por ambas. Isto porque tal princípio impõe que o sacrifício do dever de sigilo seja feito com a menor intrusão possível na vida societária da ré e na atividade comercial da sua representante, devendo ser permitido apenas o que se mostrar necessário para o efeito probatório pretendido.
Assim sendo, e tendo em conta que os autores situam o conhecimento da alegada cedência do locado a terceira pessoa no mês de outubro de 2023 [sendo que a ação deu entrada em juízo a 02.05.2024], entendemos que o pedido dos autores, requerentes deste incidente, deve ser deferido apenas nos seguintes termos que passamos a especificar.
- Quanto à documentação a solicitar à Autoridade Tributária, entendemos que se deve cingir à junção:
. das faturas emitidas pela ré e pela sua legal representante, relativas ao estabelecimento comercial em questão nos autos e reportadas ao último ano, por referência à data da instauração da ação de que este incidente é dependência;
. da Informação Empresarial Simplificada [IES] relativa ao mesmo período;
. e das declarações trimestrais de IVA também do mesmo período.
[Não se revela necessária a declaração de IRC relativa a tal período, por nada acrescentar ao que poderá resultar da documentação acabada de mencionar].
- No que diz respeito ao Banco de Portugal:
. a indicação das entidades bancárias em que a ré e a sua legal representante têm contas domiciliadas;
- Relativamente às entidades bancárias que vierem a ser indicadas pelo BP:
. a junção aos autos dos respetivos extratos bancários referentes ao último ano, por referência à data da instauração da ação.
Julga-se, assim, o presente incidente parcialmente procedente.

As custas do mesmo ficam a cargo de requerentes [autores na ação] e requerida [ré na ação], na proporção de 1/5 para os primeiros e 4/5 para a segunda – arts. 527º nºs 1 e 2, 607º nº 6 e 663º nº 2 do CPC.
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Síntese conclusiva:
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3. Decisão:

Em conformidade com o exposto, os Juízes desta secção cível do tribunal da Relação do Porto acordam em deferir, em parte, o presente incidente, dispensando o Banco de Portugal, as entidades bancárias que este vier a indicar e a Autoridade Tributária do cumprimento do dever de sigilo que invocaram, determinando-se que prestem as informações e juntem aos autos a documentação referidas na parte final do ponto 2.2.

Custas deste incidente a cargo de requerentes e requerida, na proporção de 1/5 para os primeiros e de 4/5 para a segunda.









Porto, 26.11.2025

Pinto dos Santos

Raquel Lima

Alberto Taveira