Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2028/14.4TAVNG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: ASSISTENTE
TAXA DE JUSTIÇA
DESISTÊNCIA DA QUEIXA
CRIME COM NATUREZA PARTICULAR
Nº do Documento: RP201505202028/14.4tavng-A.P1
Data do Acordão: 05/20/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – No caso de abstenção infundada de acusar, a responsabilidade do assistente por taxa de justiça verifica-se para evitar que o seu comportamento omissivo (quando nos autos se tenham recolhido indícios suficientes da prática do crime) constitua uma forma encapotada de desistência da queixa.
II - Se o procedimento criminal apenas se iniciou por simples manifestação de vontade do ofendido, entretanto constituído assistente, a sua atividade contraditória consubstanciada por idêntica manifestação de vontade mas de sinal negativo, justifica, de acordo com o princípio da causalidade, na sua formulação negativa, que o mesmo seja onerado com os encargos ou custos processuais a que a sua atividade deu origem.
III – A “satisfação moral prestada pelo arguido” (reparação por parte do arguido) que motivou a desistência da queixa não constitui justificação que permita dispensar o assistente da condenação em taxa de justiça.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 2028/14.4TAVNG.P1
1ª secção

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
No âmbito dos autos de Inquérito que correm termos na 1ª secção do DIAP de Vila Nova de Gaia com o nº 2028/14.4TAVNG, que tiveram origem em queixa-crime apresentada por B… contra C…, o denunciante, já constituído como assistente, veio a desistir da queixa apresentada, tendo o arguido declarado aceitar a referida desistência.
A Sª. Procuradora da República homologou a desistência de queixa e ordenou a remessa dos autos ao Sr. Juiz de Instrução para efeitos do disposto no artº 515º nº 1 al. d) do C.P.P.
Por despacho proferido em 01.12.2014, o Sr. Juiz de Instrução indeferiu aquela promoção, por entender não haver lugar ao pagamento de taxa de justiça.
Inconformado com tal decisão, dela veio o Ministério Público interpor o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
1. No d. despacho recorrido, ao não se condenar o assistente em taxa de justiça devida pela desistência de queixa, foi efetuada uma ilegítima interpretação extensiva do disposto no artigo 515º nº 1 d) do CPP, normativo esse que não foi revogado aquando da entrada em vigor do RCP, considerando ser aplicável também à desistência de queixa o conceito de justificação prevista para a abstenção de deduzir acusação particular;
2. Ora, conforme se verifica de tal previsão legal, no mesmo se refere de um modo, em nosso entender, muito claro, à desistência de queixa, como causa de condenação em taxa de justiça, sem qualquer condicionante à sua eventual motivação;
3. O termo injustificado constante da alínea d) do nº 1 do artº 515º do CPP, apenas se refere à abstenção de deduzir acusação particular, dado que seria absurdo exigir ao assistente que avançasse com o processo para julgamento, sem qualquer sustentabilidade probatória;
4. Assim como se responsabiliza o ofendido em primeira linha no accionar do procedimento criminal contra o autor do crime particular, também se responsabiliza o assistente se o mesmo fizer extinguir o procedimento criminal antes que o processo penal finalize as fases processuais que deveria percorrer;
5. Violou, pelo exposto, o Mº Juiz a quo com o d. despacho recorrido e respetiva fundamentação o disposto no artigo 515º nº 1 d) do CPP.
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Na 1ª instância não foi apresentada resposta às motivações de recurso.
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Neste Tribunal da Relação do Porto a Srª. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer em sentido concordante com as motivações de recurso, concluindo que o mesmo merece provimento.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.P., não foi apresentada qualquer resposta.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
A decisão recorrida é do seguinte teor: (transcrição)
«Nos termos do artº 515º nº 1 d) CPP, o assistente é condenado em taxa de justiça quando desiste da queixa apresentada ou quando, de forma “injustificada”, não deduz acusação.
No caso em apreço, em que o assistente B… denunciou contra o arguido C… factos suscetíveis de consubstanciar um crime de difamação, referentes ao teor da participação que o segundo, enquanto agente de autoridade, redigiu a propósito do primeiro, realizou-se uma diligência de acareação entre ambos (fls. 113-114), durante a qual o arguido declarou que “caso tenha provocado algum tipo de sofrimento ao ofendido em virtude da forma como redigiu a participação, pede desculpa de tal consequência, nunca tendo tido intenção de provocar esse resultado”.
Em face de tal retratação, o assistente declarou então aceitar o pedido de desculpas e desistir do procedimento criminal.
Ora, tendo em conta que a desistência de queixa ocorreu na sequência de uma satisfação moral prestada pelo arguido, entendemos que a mesma não deve ser considerada injustificada e, bem assim, não deverá haver lugar a condenação do assistente no pagamento de taxa de justiça (cfr., a este respeito, P. Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, 3ª Ed., pág. 1266, no sentido de que “o assistente que desiste da queixa não suporta taxa de justiça, se depois da acusação o arguido reparou o dano que lhe causou”).
Na esteira daquele entendimento, que sufragamos, também não haverá lugar ao pagamento de taxa de justiça se, ainda antes de deduzida acusação – e, consequentemente, com menor extensão do processado -, o arguido repara o mal causado, designadamente mediante satisfação moral adequada e formalizada em ato processual, como sucedeu in casu.
Pelo exposto, decide-se não condenar o assistente B… em taxa de justiça.
D.N.»
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III – O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente das respetivas motivações, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
De acordo com as conclusões do recurso, a única questão a decidir consiste em saber se deve ser tributado o assistente que desiste da queixa relativamente a crimes com natureza particular, como o presente.
Sobre a responsabilidade do assistente pelo pagamento de taxa de justiça e encargos, dispõe o artº 515º nº 1 do C.P.Penal que “É devida taxa de justiça pelo assistente nos seguintes casos: […] d) se fizer terminar o processo por desistência ou abstenção injustificada de acusar.
Por outro lado, nos termos do artº 518º do mesmo diploma “quando o procedimento depender de acusação particular, o assistente condenado em taxa paga também os encargos a que a sua atividade tiver dado lugar”.
O assistente só fica isento do pagamento de taxa de justiça quando, por razões supervenientes à acusação que houver deduzido ou com que se tiver conformado e que lhe não sejam imputáveis, o arguido não for pronunciado ou for absolvido” – artº 517º do C.P.Penal.
Como se sabe, as custas constituem encargos pagos pela utilização dos serviços de justiça e são suportadas pela parte que lhes deu causa ou, não havendo vencimento, de quem do processo tirou proveito, mesmo em ocorrência ligada às vicissitudes próprias do processo penal (extinção do procedimento criminal por desistência da queixa).
Constitucionalmente, não existe o dever de uma justiça administrada gratuitamente, antes decorre do artigo 20º da Constituição da República a garantia do exercício da tutela jurisdicional dos direitos dos cidadãos e de que por carência de meios económicos ninguém pode ser privado de defender judicialmente os seus interesses.
A exigência de custas judiciais não constitui, por isso, qualquer restrição ao direito de acesso aos tribunais pois que, se qualquer cidadão, ou entidade, não estiver em condições de poder suportar os respetivos encargos, existem mecanismos legais para suprir essa carência.
No caso em apreço, o assistente B… apresentara queixa contra C…, imputando-lhe factos suscetíveis de integrarem a prática de um crime de difamação p. e p. no artº 180º nº 1 do Cód. Penal.
No decurso do inquérito, antes portanto de ter oportunidade de deduzir acusação particular (atenta a natureza do referido ilícito), o assistente desistiu da queixa, a qual veio a ser homologada pelo Mº Público [cfr. fls. 17], assim fazendo terminar o processo, por se ter extinguido o procedimento criminal.
O arguido não chegou sequer a ser acusado, uma vez que o procedimento criminal se extinguiu em virtude de a desistência da queixa ter sido homologada.
Não ocorreu, assim, qualquer julgamento de mérito.
Ora, o citado artº. 517º in fine supõe, desde logo a não pronúncia ou a absolvição do arguido, entendidas estas últimas no seu sentido próprio.
Ou seja, a não pronúncia é a ausência de chamamento a juízo do arguido; e a sua absolvição, a prolação de uma decisão de mérito que julga improcedente a acusação ou pronúncia contra ele deduzidas.
No caso sub judice, como se disse, nem sequer chegou a ser deduzido acusação particular contra o arguido. Não ocorreu, pois, qualquer absolvição, pelo que é inaplicável o disposto no art. 517º do C. P. Penal.
Esta disposição legal tem em vista impedir que situações supervenientes, e não imputáveis ao assistente – no sentido de não dependentes da vontade do mesmo – conduzam à não pronúncia ou absolvição do arguido.
A expressão “razão que lhe não seja imputável” (ao assistente), deve ser interpretada no sentido de “razão cujos efeitos não são dominados, subtraída a qualquer possibilidade de conformação ou intervenção” do assistente.
Contrariamente, a desistência de queixa consiste num ato intrinsecamente ligado à pessoa do declarante e a ele imputável, muito embora na sua génese possa estar (como normalmente acontece) uma reparação do crime e cujo efeito é pretendido pelo declarante e por este dominável. É, por isso, inaplicável à desistência de queixa a isenção prevista no artº 517º do C.P.P.
Tanto a desistência de queixa como a abstenção de deduzir acusação nos crimes particulares são meios de que o assistente se pode servir para obstar ao prosseguimento do processo e, desse modo, tornar inútil toda a atividade processual desenvolvida. Por isso, entendeu o legislador penalizar, por via de condenação em taxa de justiça, o assistente que, por ato ou omissão próprios, ponha termo ao processo.
Como se realça no Acórdão desta Relação do Porto de 27.06.2007[3] «O assistente é assim responsabilizado por não manter, ao longo do procedimento, um comportamento processual intrinsecamente coerente, que passaria por não retirar eficácia à queixa, quer o faça por ação (dela desistindo) quer o faça por omissão (através da abstenção de deduzir acusação, nos crimes particulares). […] Seja qual for a situação, o que é certo é que a responsabilidade do assistente por taxa de justiça decorre sempre de, por sua iniciativa, inutilizar toda a atividade processual que foi desenvolvida até ao momento em que desiste da queixa ou até ao momento em que deveria deduzir acusação particular».
No caso em apreço, entendeu a decisão recorrida que a expressão “injustificada” também se aplica à desistência de queixa (e não apenas à abstenção de acusar), razão porque, tendo a mesma decorrido de uma satisfação moral prestada pelo arguido, não deveria ser considerada injustificada, não havendo por isso lugar a condenação no pagamento de taxa de justiça.
Salvo o devido respeito, não podemos concordar com tal asserção.
Com efeito, no que se refere à abstenção de acusar, bem se compreende que a omissão do assistente só dê lugar ao pagamento de taxa de justiça quando essa abstenção não se apresente fundada.
O legislador não podia razoavelmente exigir que o assistente deduzisse acusação só pelo simples facto de ter apresentado queixa quando no inquérito não se recolheram indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente. Ou, dito de outro modo, o legislador não poderia querer responsabilizar o assistente pelo pagamento de taxa de justiça por não deduzir acusação para depois o poder responsabilizar pelo pagamento de taxa de justiça pela rejeição da acusação ou pela absolvição do arguido (respetivamente, alíneas f) e a) do n.º 1 do artigo 515.º).
Por isso, a responsabilidade do assistente por taxa de justiça só se verifica no caso de abstenção infundada de acusar, assim se evitando que o comportamento omissivo do assistente (quando nos autos se tenham recolhidos indícios suficientes da prática do crime) constitua uma forma encapotada de desistência da queixa.
Já quanto à desistência de queixa, o legislador prescindiu de qualquer causa justificativa que pudesse estar na base do comportamento do assistente.
Antes de mais, há que ter em consideração que na previsão da al. d) do nº 1 do artº 515º do C.P.Penal só estão em causa crimes de natureza semi-pública ou particular, já que relativamente aos crimes públicos a eventual desistência de queixa por parte do assistente não tem a virtualidade de “fazer terminar o processo”, pressuposto para a condenação daquele em taxa de justiça.
Ora, se o procedimento criminal apenas se iniciou por simples manifestação de vontade do ofendido, entretanto constituído assistente, a sua atividade contraditória consubstanciada por idêntica manifestação de vontade mas de sinal negativo, justifica, de acordo com o princípio da causalidade, na sua formulação negativa, que o mesmo seja onerado com os encargos ou custos processuais a que a sua atividade deu origem.
Sustentar-se que a não condenação do assistente em taxa de justiça encontra a sua justificação, no caso sub judice, na “satisfação moral prestada pelo arguido” que motivou a desistência de queixa, traduzir-se-ia numa interpretação da lei que o próprio texto não comporta. Ou seja, o assistente que se declarar reparado (moral ou patrimonialmente) e desistir da queixa fica isento do pagamento de taxa de justiça e de encargos e aquele que nada disser, mesmo tendo havido reparação, desistindo pura e simplesmente, paga taxa de justiça e encargos.
Face à redação da al. d) do nº 1 do artº 515º, a posição sustentada no douto despacho recorrido carece de fundamento legal ao pretender excluir do âmbito de aplicação da norma os casos em que a atuação do assistente, ao desistir da queixa, encontra o seu fundamento na reparação por parte do arguido.
O texto legislativo é claro ao não estabelecer qualquer exceção, razão pela qual ao intérprete está vedado fazê-lo, pois que não pode «ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal», devendo ele, pelo contrário, presumir que «na fixação do sentido e do alcance da lei (…) o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (artº 9º, do Cód. Civil, nºs 2 e 3). Ou seja, deve o intérprete presumir que o legislador é inteligente e que previu todas as eventualidades no texto legal.
Em face do exposto, impõe-se conceder provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que condene o assistente B… em taxa de justiça e encargos (face à natureza particular do crime denunciado), em conformidade com o disposto nos artºs. 515º nº 1 al. d) e 518º do Cód. Processo Penal.
De realçar que, atenta a revogação da parte final do nº 1 do artº 519º do C.P.P., operada pela Lei nº 34/2008, na taxa de justiça a pagar pelo assistente não será levada em conta a já paga aquando da sua constituição.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogam o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que condene o assistente em taxa de justiça e encargos, nos termos dos artºs. 515º nº 1 al. d) e 518º do C.P.P.
Sem tributação.
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Porto, 20 de Maio de 2015
(Elaborado e revisto pela 1ª signatária)
Eduarda Lobo
Alves Duarte
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[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] Proferido no Proc. nº 0740894, Des. Isabel Pais Martins, disponível em www.dgsi.pt.