Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5386/17.5T8MAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDA ALMEIDA
Descritores: PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
DIREITO AO NOME
APELIDO
Nº do Documento: RP201902045386/17.5T8MAI.P1
Data do Acordão: 02/04/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: 5ªSECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º689, FLS.399-426)
Área Temática: .
Sumário: I - Ao procedimento judicial de privação do direito ao uso dos apelidos do ex-cônjuge, previsto no art. 9.º, n.º 2 do DL 272/01, de 13.10, aplicam-se as regras dos arts. 986.º a 988.º do CPC, relativas aos processos de jurisdição voluntária.
II - O julgamento de acordo com critérios de conveniência e de oportunidade, previstos para a jurisdição voluntária, não afasta as regras processuais e substantivas basilares, como as que respeitam, desde logo, à natureza do objeto, à legitimidade das partes e ao exercício do contraditório.
III - É, pois, nula por excesso de pronúncia a sentença que decide a privação do apelido que integra o nome de terceiros que não são parte na ação.
IV – É gravemente violador do interesse moral do ex-cônjuge, nos termos do art. 1677.º -, n.º 1, CC, a situação do cônjuge que se divorciou e que, volvida mais de uma década sobre o divórcio e autorização para que use o seu apelido do então consorte, vem a atribuir esse apelido ao filho que entretanto nasceu do novo casamento com outrem, permitindo ainda que o novo cônjuge adote de igual modo o apelido do cônjuge anterior.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 5.386/17.5T8MAI.P1
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Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:
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1. Relatório
AUTOR: B…, residente na R. …, nº .., …, Maia.
RÉ: C…, com domicílio profissional na Rua …, Maia.
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Aqui chegados, importa reelencar a factualidade provada:
1 - O requerente casou catolicamente com a requerida em 11.08.1990.
2 - Por via do casamento, a requerida alterou o seu nome acrescentando-lhe o apelido “ C1…”.
3 - Tal apelida era próprio do requerente.
4 - Ambos são pais de D…, nascido em 16.12.1993, e de E…, nascido em 07.02.1995.
5 - Em 30.05.2003, foi decretado o divórcio por mútuo consentimento entre as partes.
6 - À data, a requerida reclamou do requerente a manutenção do apelido “ C1…”, por razões comerciais, o que lhe foi autorizado pelo requerente, porque a requerida era tratada no exercício profissional como C… bem assim as clínicas que o então casal possuía.
7 - O requerente voltou a casar em 05.11.2016 com F…, procedendo o segundo C1… da adoção, aquando do casamento com o requerente.
8 - Desta nova união nasceu uma filha de nome G….
9 - Em 03.06.2004, a requerida casou civilmente com H….
10 - Cada um destes cônjuges manteve inalterados, durante 10 anos, os respetivos nomes.
11 - Decorridos 10 anos, em 16.01.2013, H…, junto dos serviços registrais, alterou o seu nome apondo os sobrenomes “C2…” os quais são apelido da requerida C….
12 - E fê-lo com a conivência e consentimento da requerida.
13 - Após, decorridos 22 dias, em 07.02.2013, requerida e seu atual marido registaram o seu filho comum, entretanto nascido a 07.02.2013, com o nome de I….
14 - Ao autorizar a manutenção do seu apelido C1… à requerida, o requerente não desejou ou sequer equacionou que o mesmo pudesse vir a ser transmitido ao seu atual marido e filho comum destes.
15 - A requerida, ao atribuir a todos os filhos o nome de E… e apelidos C2… ao seu filho mais novo, e ao permitir que o seu atual marido também o adotasse, pretendeu criar imagem social de pertencerem todos à mesma família, provindo do mesmo núcleo familiar.
16 - Requerida e atual marido dedicam-se a negócios relacionados com a área da saúde, nomeadamente Centro de Radiologia J…, Serviços Médicos, K…, Ld.ª, L…, Ld.ª, H…, Ld.ª e Farmácia N…, Ld.ª.
17 - Em todas elas enquanto sócios e gerentes, o nome do marido foi alterado apondo “C2…” salvo o Centro que mantém o nome do atual marido sem os referidos apelidos.
18 - Também o seu nome atual com a aposição dos referidos apelidos surge em vários concursos públicos.
19 - Na sequência do divórcio entre requerente e requerida, o relacionamento entre ambos tornou-se muito litigante e pouco dialogante, despoletando vários incidentes de incumprimento que correram termos no tribunal de família e menores do Porto.
20 - Em sede de convívios foi por diversas vezes relatado pelos Srs. técnicos sociais e constatado que a requerida dificultou os convívios estipulados, tendo sido diversas as vezes que o requerente não conseguiu estar com os filhos.
21 - O requerente sente-se usado, afetado emocionalmente revoltado e vexado pela transmissão do seu apelido ao filho e ao marido da requerente, nunca tendo imaginado que tal viesse a acontecer.
22 - A requerida licenciou-se em psicologia e em fase posterior ao divórcio apresentou tese de mestrado, em junho de 2012, sendo que no repositório de teses de mestrado da instituição universitária a mesma aparece como o seu nome completo, incluindo o apelido “C1…”.
23 - A requerida não tem, nem nunca teve, atividade como psicóloga.
24 - Salvo o tema da tese de mestrado elaborada em 2012, esteve representado no 1º Congresso Internacional de Parentalidade do Instituto de Psicologia e Neuropsicologia do Porto.
25 - A requerida não exerce na referida área.
26 - Requerida e atual marido chegaram a dizer e fazer sentir, nos momentos em que se tentava o convívio dos filhos com o requerente, que aquele é que era o pai das crianças.
Não provados serão todos os demais já constantes da sentença e que resultam após conhecimento do recurso da decisão de facto, os quais se dão aqui por reproduzidos.
2. Fundamentação de Direito
Do excesso de pronúncia:
Entende a requerente que a sentença é nula quando retira o apelido ao seu filho menos e ao atual cônjuge, posto que nem isso foi pedido requerente nem é objeto da ação.
Entende o requerente, por sua vez, que, aplicando-se as regras processuais relativas aos processos de jurisdição voluntária, não estava o tribunal limitado pelas providências requeridas, sendo que, por outro lado, visando este segmento da sentença terceiras pessoas, não assiste legitimidade à requerida para suscitar o repontado vício.
Verifica-se, sem dúvida, ter o tribunal a quo exorbitado do pedido, quer em termos objectivos – privação do uso de apelido pela requerida, como pedido, e por mais duas pessoas, não pedido pelo requerente – quer em termos subjectivos – os efeitos da sentença reportam-se à limitação do direito ao nome por banda de quem não é parte na ação.
Assim sendo, é manifesto ter a sentença incorrido no vício previsto no art. 615.º, nº 1 al. e) CPC.
Ao procedimento de privação do direito ao uso dos apelidos do outro cônjuge[1] que se inicia na Conservatória do Registo Civil, manda o legislador aplicar, em fase judicial e com as necessárias adaptações, o disposto nos arts. 986.º a 988.º CPC (cfr. art. 9.º, n.º 2 do DL 272/01, de 13.10).
A denominada jurisdição voluntária, por oposição à jurisdição contenciosa, é sempre exercitada em relação aos interesses dos sujeitos envolvidos ou a situações jurídicas subjetivas cuja tutela é assumida pelo ordenamento jurídico por razões de interesse geral da comunidade.
A atividade do tribunal na resolução do concreto conflito de interesses visa prover apenas:
1) Um certo interesse ou feixe de interesses previstos na lei (interesses do interditando, do inabilitado, do menor, do cônjuge separado de facto que pede alimentos etc.);
2) Um certo interesse ou feixe de interesses deixados à livre apreciação do juiz (nos suprimentos do consentimento);
3) Permitir que o juiz se limite a controlar uma autocomposição processual das próprias partes (homologação de acordo obtido pelas próprias partes).
Dado que nestes processos há, normalmente, apenas um interesse a regular (v.g., o do menor, o do cônjuge que pretenda alienar bens imóveis ou que pretenda obter do outro cônjuge o custeamento de certas despesas domésticas, o da pessoa ameaçada ou ofendida nos seus direitos de personalidade ou no seu direito geral de personalidade, etc.), é natural que haja uma diferente modelação prática de certos princípios e regras processuais.
Assim, nestes processos (de jurisdição voluntária) é mais forte a presença do princípio do inquisitório, e muito menos a actuação do princípio do dispositivo, na medida em que o julgador pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes, tendo o poder de só admitir as provas que julgue necessárias (art. 986.º CPC).
O juiz, por outro lado, não está sujeito a critérios de decisão fundados na legalidade estrita, podendo pautar-se pela equidade, adotando em cada caso a solução que lhe pareça mais conveniente e oportuna, em suma, mais justa (art.987.º).
Depois, as decisões adotadas pelo julgador são livremente modificáveis com fundamento em circunstâncias supervenientes (rebus sic stantibus), ao invés da imodificabilidade que caracteriza as sentenças e os acórdãos no âmbito da jurisdição contenciosa, seja pelo próprio juiz, após terem sido proferidas (art.613.º CPC), seja após terem transitado em julgado (art.619.º e art.621.º CPC).
Da circunstância de alguns dos processos integrados na denominada jurisdição voluntária evidenciarem um verdadeiro conflito de interesses entre as partes (p. ex., na acção de alimentos devidos a filhos maiores ou emancipados, nos casos em que não se formou acordo na Conservatória competente ou nas hipóteses em que a acção deve ser deduzida por apenso a acção pendente), a distinção entre esta atividade jurisdicional e a denominada jurisdição contenciosa tende a esbater-se.
Ora, julgar de acordo com critérios de conveniência e oportunidade não significa postergar regras processuais e substantivas basilares, como as que respeitam, desde logo, à natureza do objeto, à legitimidade das partes e ao exercício do contraditório[2].
O objeto da presente ação é a privação do uso do apelido pelo ex cônjuge. O ex cônjuge é a requerida e não terceira pessoa.
Poderá pensar-se que o efeito útil integral da procedência desta ação não ficará preenchido se não se estender a perda do apelido às demais pessoas que, por força da requerida, usam agora o apelido do requerente, mas na verdade não é isso que se visa com a presente ação. O objectivo desta ação é, tão-só, eliminar no nome da requerida o apelido autorizado aquando do divórcio e esse desiderato fica integralmente satisfeito com a privação do apelido por parte desta, sendo na decisão ou julgamento sobre essa privação relativamente a quem é sujeito processual que se fazem intervir critérios de bom senso e de razoabilidade[3].
Pretendendo-se mais do que isso, dever-se-ia equacionar a introdução de um qualquer incidente de intervenção de terceiros que permitisse aos visados o exercício do contraditório. Porém, tal procedimento não foi requerido e nem oficiosamente ordenado. De modo que, para satisfação dos interesses visados pelas partes nesta ação particular basta a decisão sobre o apelido usado pela requerida.
Eventualmente, em ação comum ou em processo especial de tutela da personalidade (arts. 70.º, 72.º, n.º 2 CC e 878.º CPC), poderá o requerente vir a ver apreciada a situação dos nomes filho menor e do atual cônjuge da requerida.
Não se diga, por outro lado, que à requerida não assiste legitimidade para arguir tal nulidade porque a sentença nessa parte a não afeta. Se assim fosse, também não assistiria legitimidade ao requerente para se pronunciar sobre a nulidade, uma vez que a sentença nesse segmento dirime uma questão que não foi por si trazida à apreciação judicial.
É apodítico poderem as partes, nos momentos processuais próprios, pronunciar-se sobre o objeto da lide, mormente arguindo a nulidade da sentença quando a mesma viola manifestamente esse objeto, como aqui sucede.
Termos em que se julga procedente o recurso nesta parte, julgando a sentença nula no segmento em que ordena o cancelamento do registo e averbamentos do apelido “C1…” nos nomes de I… e de H….
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Da privação do apelido pela requerida:
O direito que assiste a cada cônjuge de usar o apelido do outro (art. 1677.º, n.º1 CC)[4] é um dos efeitos pessoais do casamento[5] e reflete o que pode denominar-se a ideia de uma plena comunhão de vida ou, se se preferir, corresponde “à expressão do afeto do cônjuge”, mais do que à criação de um apelido comum[6].
Esta faculdade só pode ser exercida pelo cônjuge que não conserve apelidos do anterior casamento (n.º 2), residindo o fundamento desta limitação na necessidade de evitar se gere “indesejável confusão de nomes relativos a famílias diferentes”[7].
Com o divórcio, em princípio, cada cônjuge perde o apelido que passou a usar por efeito do casamento (n.º 1 do art. 1677.º-B CC), salvo se o cônjuge cujo apelido foi adoptado pelo outro der o seu consentimento por qualquer dos meios indicados no n.º2 do art. 1677.º-B CC, ou, na falta desse consentimento, se o tribunal o autorizar em processo próprio.
O consentimento prestado pelo ex-cônjuge traduz-se numa alienação ou transmissão da sua própria identidade, que apenas se justifica porque da história pessoal do ex-cônjuge que deseja manter o apelido do outro fez parte, num dado momento, o outro, a família do outro e a família que ambos construíram.
O cônjuge que pretende manter o apelido do outro pode nisso ter interesse pessoal, social, profissional, etc…, desde que tal interesse seja ponderoso[8].
Relativamente ao interesse comercial, A. Varela destaca o do divorciada (ou divorciado), “tendo usado os apelidos do seu consorte na formação de qualquer firma (ou denominação) de estabelecimento ou sociedade comercial, manifestar na altura do divórcio compreensível interesse económico ou social em não mudar o apelido”, uma vez que “o retorno ao nome de solteira (ou de solteiro), distanciando aparentemente o cônjuge da firma ou do estabelecimento mercantil ou industrial que fundara, pode levantar junto do público, dos fornecedores ou da clientela dúvidas e incertezas capazes de prejudicarem o desenvolvimento da sua actividade comercial. A conservação do nome pode, quando assim seja, proteger um relevante interesse económico do cônjuge cujo casamento foi dissolvido[9]”.
Outros motivos, mormente de ordem profissional, resultam, por exemplo, da existência de uma carreira académica, ou outra, no âmbito da qual tenha sido publicada vasta obra que foi reconhecida e identificada pelo apelido do anterior consorte.
Também assim no caso de pessoas com notoriedade pública, de tal modo que, retirado o apelido, a pessoa perderia a sua identificação social, política ou profissional, como sucederia com uma escritora renomeada, por exemplo.
Já a privação do direito ao uso dos apelidos do outro cônjuge requerida pelo cônjuge cujo apelido foi adotado pelo outro ocorre quando esse uso lese gravemente os interesses morais do outro cônjuge ou da sua família (art. 1677.º-C, n.º1, CC).
Esta norma reflete duas características da natureza do direito ao nome: a tendencial imutabilidade (resultante do disposto no art. 104.º, n.º1, do Código de Registo Civil) e a relação estreita com os direitos subjetivos de personalidade (art. 70.ºCC). O nome é mesmo considerado direito de personalidade por excelência[10].
A identidade pessoal e o nome estão, pois, intrinsecamente ligados.
O indivíduo, como unidade da vida social e jurídica, tem direito a afirmar a própria individualidade, de modo a distinguir-se dos demais indivíduos. Quer isto dizer que, além de afirmar como pessoa, cada um de nós se afirma como certa pessoa. É neste último segmento que o direito ao nome surge como um direito de identificação pessoal, como “meio de realização do bem da identidade”[11].
Entrelaçado com o direito à identidade, mas sem com ele se confundir, tem-se o direito à intimidade. A tutela da intimidade da vida privada e familiar, especialmente do núcleo convivente, ganhou relevância à medida que passou a entender-se que o ser humano faz parte de uma família e é detentor de um status familiae. Nesta conformidade, a tutela da intimidade relaciona-se à pessoa como elemento integrante de um dado núcleo familiar.
De tal forma que o TEDH tem integrado a defesa do nome na tutela do direito à intimidade (art. 8° da CEDU)[12]. O direito ao nome surge, pois, como um dos elementos de identificação pessoal e como um elo da pessoa com a família e com a vida privada.
O nome surge, então, como um instrumento de realização da dignidade e da personalidade, sendo um bem jurídico constitucionalmente protegido (art. 26.º CRPort.)[13].
Introduzindo aqui uma referência à situação dos autos, vemos que o que reclamam requerente e requerida neste tocante, aludindo à proteção genérica dos respetivos direitos de personalidade, passa a revestir interesse de sinal oposto. Quando a requerida pretende ver-se protegida neste seu reduto constitucionalmente protegido e aduz argumentos relativos à importância do apelido do ex-cônjuge nesta perspectiva, também o requerido considera ver este seu património jurídico lesado. De modo que a apreciação de o direito de um não pode nunca desprender-se da consideração do que seja o direito do outro. E um terceiro critério de ponderação não é despiciendo: o interesse de ordem pública que o nome também desempenha.
Mas mais do que isto.
Tratando-se de apelido que as duas partes atribuíram aos filhos que têm em comum, tendo-a, ainda, a requerida atribuído ao filho que nasceu do matrimónio ocorrido depois do divórcio, não é apenas o interesse pessoal de cada um que está em causa, mas também o sue interesse relacional, enquanto elementos que foram de uma família que constituíram anteriormente, mas também de membros de novas famílias que depois daquela primeira vieram a constituir-se. Neste último caso, cumpre salvaguardar o respeito pela projeção pessoal e social do que é a verdadeira ascendência biológica dos três filhos da requerida e da terceira filha do requerente, bem como a identidade de cada uma das três famílias (as que resultam dos três casamentos a que aludem os factos provados) que se formaram.
Dito de outro modo: a decisão sobre se a requerida tem ou não direito a conservar o apelido não se basta com a consideração singular dos interesses desta ou dos interesses do requerido ou mesmo do equilíbrio entre ambas as posições. Conhecer a pertinência da privação do uso do apelido não dispensa se considere o interesse da família que anteriormente constituíram e das que existem atualmente, bem como a posição de cada um perante a projeção pessoal e social dos vínculos que resultaram da multiplicidade familiar[14], a par do interesse que a sociedade tem de que os nomes exprimam a realidade da pertença.
O nome – incluindo o apelido – que cada um de nós tem expressa, na verdade, a pertença a uma família, a um dado recorte da esfera social protagonizado pelas pessoas que constituíram - ou deveriam ter constituído - o reduto básico de identificação com o mundo a partir da perspetiva pessoa daquele núcleo[15].
De modo que desvirtuar ou alterar o nome pode bem ser considerado, pelo menos de um ponto de vista simbólico, abolir um sentimento de pertença e de acolhimento inicial (e subsequente) na comunidade.
De tal modo assim é que que as noções de paternidade responsável e de abandono afetivo (ou o não compromisso com a paternidade e a maternidade responsáveis[16]) têm sido consideradas critério relevantes a ponderar na supressão do apelido do progenitor que incumpriu os poderes funcionais de proteção física, intelectual e moral dos seus filhos[17].
Ora, o critério legal para aferir da legitimidade da privação do uso do apelido pelo ex-cônjuge – lesão grave dos interesses morais do outro cônjuge ou da sua família[18] - revela-se amplo e carece de densificação casuística.
A lei não identifica o que deverá entender-se por interesses morais[19], embora saliente que a lesão dos interesses da pessoa ou pessoas afectadas tem de ser grave.
Podem citar-se como exemplos de lesão grave de interesses morais a adoção de um modo de vida escandaloso; tornar-se alcoólico ou drogado; comissão de crime grave[20].
Perante o caráter vago dos conceitos, é natural que se apele aqui a conceitos que noutros lugares do sistema legal importem considerações idênticas. Talvez por isso tenha sido invocada nestes autos a figura do abuso direito enquanto instituto paralisador de direitos aparentemente legítimos quando sejam manifestamente excedidos os limites, dos bons costumes ou do fim social ou económico do direito (art. 334.º CC).
A interpretação destes comandos genéricos e a subsunção do caso à sua teleologia terá, por isso, de fazer-se derivar de um princípio geral que seja válido para todas as situações semelhantes, desvinculado de qualquer consideração ou apreciação ética e/ou moral da atuação dos intervenientes, mas que considere os dados de que a lei faz depender o que pode entender-se como uma revogação (fortemente) motivada da autorização de uso do apelido que inicialmente foi concedida.
Recorde-se, porém, que estamos perante um processo de jurisdição voluntária e que, portanto, a solução final não tem de ser estritamente colmada à legalidade, valendo aqui espaços de oportunidade que espelhem a defesa da situação concreta das pessoas em causa.
Desta constatação, e do caráter fluído do que, em si, é já um conceito de valor densificável em função das especificidades de tempo, espaço e destinatários (interesse moral), extrai-se a conclusão pela fluidez da subsunção.
Na verdade, quando a lei alude a ofensa grave dos interesses morais do requerente ou da sua família há-de albergar no seu objeto de previsão os casos em que, por força do uso do apelido, o ex-cônjuge crie no outro uma situação de desconforto afetivo e emocional que se revele insuportável à luz de critérios objectivos. Não está, por isso, em causa a sensibilidade particularmente embotada de cada um. Mas o certo é que, como referido, quer da natureza intrinsecamente dúctil dos conceitos (interesse moral), quer do objetivo da tutela de jurisdição voluntária resulta da impossibilidade de uma interpretação legalista das normas convocáveis que obnubile os contornos destas pessoas em concreto. O interesse moral de um indivíduo pode não ser o mesmo em todos os momentos e ser, ainda, diferente do que é pertinente para outro.
Ora, é digna de tutela a situação do ex-cônjuge que, volvida mais de uma década sobre o divórcio e autorização para que o consorte use o seu apelido, vê este último, mercê daquele uso, atribuir o seu apelido ao filho que entretanto resulta do novo casamento deste. Também é digna dessa tutela a situação do ex cônjuge que vê o novo marido da ex consorte adotar o seu apelido.
É que a situação assim criada pode ter dois efeitos adversos: a criação de uma situação de equívoco social sobre a paternidade da criança – antigo ou novo marido -, e sobre qual a posição/relação do novo cônjuge relativamente ao anterior.
Essa mistura desordenada será mais ofensiva do interesse moral do requerente e de sua família quando se verifica criar-se assim a aparência de uma família única, com seis membros, em prejuízo da realidade existente de várias famílias: a que anteriormente foi constituída pelo requerente, requerida e filhos do casal, as famílias que existiram após a dissolução do casamento e as que resultam da renovação de laços formais com terceiras pessoas.
O alegado interesse da requerida em pretender criar uma linhagem ou um nome não merece tutela porque não corresponde à realidade em presença: os seus três filhos são irmãos uterinos e não germanos. Atribuir apelidos comuns aos três é, na essência, prejudicar a perpeção pessoal (de cada pessoa aqui em causa) e social de cada um deles, em si mesmo, e das famílias a que pertencem. Tal situação, gerando para o ex-cônjuge vexame e revolta, constitui prejuízo para o interesse deste em ver esclarecida a sua situação social relativamente aos filhos que teve com a requerida e ao que, entretanto, foi gerado na constância do novo matrimónio que a mesma veio a contrair após o divórcio.
Isso, e permitir que o atual cônjuge adote o apelido que manteve do cônjuge anterior, constitui uma forma de a requerida apagar um pedaço da sua própria história (simbólica e afetiva), bem como da do requerente que assim vê alienada parte da sua identidade – aquela que expressou aquando da vivência em comunhão com a requerida.
Eis, por isso, perfetibilizada a violação grave do interesse moral do requerente.
Do mesmo modo seria – cremos – acaso o requerente tivesse adotado o apelido C1… e a sua atual mulher passasse a chamar-se F… e a filha deste casal G….
E nem se diga que o legislador estava ciente da possibilidade de a situação poder ocorrer quando permitiu a conservação do apelido após o divórcio.
Ao proibir que o cônjuge que manteve o apelido anterior não adquira o apelido do novo cônjuge (art. 1677.º, n.º 2 CC) quis o legislador evitar a ambiguidade que daí resulta para a identificação das pessoas que integram determinado grupo familiar bem como a específica identidade de cada uma das famílias.
Caso resulte do uso do apelido que permaneceu de matrimónio anterior a possibilidade de imprecisão e obscuridade quanto à pertença dos indivíduos a determinada ou determinadas famílias ou de exactidão quanto à existência ou inexistência de parentesco entre elas, como aqui sucede de forma objetiva, é também o interesse público que subjaz à regulamentação do nome que fica colocado em crise.
A pretensão do requerente é, por isso, legítima.
Sobre a colisão de direitos.
À requerida foi concedida autorização para uso do apelido do ex-marido por razões comerciais.
A verdade, porém, é que a actividade empresarial que a requerida desenvolve, mormente em função da firma das empresas que detém, não se encontra umbilicalmente ligada àquele apelido ou, pelo menos, o mesmo não foi por si demonstrado para salvaguarda deste seu interesse em sobreposição ao interesse já declarado por banda do requerente. Não resulta que as empresas que detém, ou qualquer estabelecimento comercial, se encontrem umbilicalmente ligados ao sobrenome C1…, sendo ainda verdade que o objeto destas empresas é independente de qualquer profissão ou carreira desenvolvida pela requerida (será licenciada em psicologia, licenciatura que conclui anos depois do nascimento dos centros de radiologia). Sequer é suficiente a circunstância de nos concursos públicos em que intervêm as empresas surgir no nome da requerida o apelido do ex-marido, por não estar em causa a possibilidade de desorientação da clientela ou do público quanto às empresas em presença.
Por outro lado, nenhuma outra actividade profissional e/ou académica de relevo se revela digna de se sobrepor à alienação simbólica de identidade que resulta da situação criada com a adoção do apelido C1… pelo atual marido e integrante do nome do filho deste com a requerida.
Finalmente, com o deferimento da pretensão do requerente é evidente que não fica minimamente afetada a posição subjetiva da requerida – constitucionalmente tutelada (arts. 26.º, 36.º e 67.º CRPort.) - no que respeita ao direito a contrair casamento ou a constituir família, nem sequer a proteção que merece a instituição Família, como alega a recorrente. Ao invés, como vimos, o que menorizaria o património pessoal, afetivo e relacional que se entretece na constelação familiar seria permitir que se perpetuasse uma situação de incerteza quanto a quem a integra, por que via e em que momento, o que sucede em consequência do uso pela requerida de um apelido no contexto particular que se descreveu.
Sendo assim, acompanhamos integralmente a sentença recorrida quando considera violador dos interesses morais do requerido o uso que a requerida fez do seu apelido ao atribui-lo a filho que não é daquele, situação que fez acompanhar da aquiescência do seu uso também pelo atual marido.
III – Dispositivo
Pelo exposto, acordam os juízes que compõem o presente tribunal em julgar parcialmente procedente o recurso, julgando a sentença nula no segmento em que ordena o cancelamento do registo e averbamentos do apelido “C1…” nos nomes de I… e de H….
No mais, julga-se improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas por recorrente e recorrido, na proporção de 80% para a primeira e 20% para o segundo.

Porto, 4.2.2019
Fernanda Almeida
António Eleutério
Isabel São Pedro Soeiro
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[1] Mas também aos demais temas previstos no art. 5.º do diploma em apreço
a) Alimentos a filhos maiores ou emancipados;
b) Atribuição da casa de morada da família;
c) (a privação do apelido)
d) Autorização de uso dos apelidos do ex-cônjuge;
e) Conversão de separação judicial de pessoas e bens em divórcio.
[2] Cfr. Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, O processo especial de tutela da personalidade no Código de Processo Civil de 2013, p. 68: No âmbito da jurisdição voluntária, o tribunal decide segundo critérios de conveniência e oportunidade (não de equidade, nem de direito estrito). Naturalmente que esta regra, que mais uma vez se explica pela intenção de dotar o tribunal das ferramentas adequadas à melhor prossecução do interesse único ou dominante no concreto processo que estiver em causa, não vale para os pressupostos (processuais ou substantivos) da decisão, mas apenas para esta última. Os pressupostos são estritamente vinculados (sublinhado nosso). Também A. Varela explica de forma clara que o ponto central da jurisdição voluntária está na forma como se decide e não na violação arbitrária de regras processuais. Diz o Professor que os processos de jurisdição voluntária ”necessitam de julgamento, mas de julgamento que não pode subordinar-se, por esta ou aquela razão, aos critérios rígidos de normas gerais e abstractas, com as do direito continental. São temas cujo julgamento não pede a decisão da lei, porque apela antes para o bom senso do julgador, para os critérios de razoabilidade das pessoas” (Os tribunais judiciais, a jurisdição voluntária e as conservatórias do registo civil, RLJ, 128, p.131/132).
[3] A. Varela fala, ainda, de “capacidade inventiva” e de “talento improvisador do homem”, cit., p. 132.
[4] Em declaração unilateral, sem necessidade de consentimento do outro cônjuge. Diferente é, por exemplo, o direito alemão. A secção 1355 do CC alemão alude expressamente a um nome da família que é criado a partir da declaração conjunta dos dois cônjuges.
[5] O direito romano conhecia esta faculdade para a mulher, como se expressa na fórmula matrimonial latina Ubi tu Gaius, ibi ergo Gaia.
[6] Do facto de a lei não impedir que cada um dos cônjuges adote reciprocamente o sobrenome do outro, com a consequente não criação de um apelido de família, extrai Luís Silveira a conclusão exposta no texto segundo a qual não visou o legislador a criação de um apelido comum mas dar corpo àquela expressão de afeto, in Código Civil anotado, coord. de Ana Prata, 2017, Vol. II, p. 552. A nota da reciprocidade é também referida por Diana Afonso, Estudo do Direito ao Nome – Doutrina e Regime Jurídico, FDUC, Dissertação de Mestrado em Direito Civil, 2010, p. 96. Em sentido contrário, G. de Oliveira e P. Coelho, Curso de Direito da Família, Vol. I, 2016, p. 427.
[7] Luís Silveira, cit., p. 553.
[8] A. STJ, de 10.12.1998, Proc. 98B920: I - O divórcio implica a eliminação das relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges, salvo, é claro a relação de liquidação do património comum e daquelas que, não sendo já relações matrimoniais, constituem um tributo a um estado tão profundamente marcante na vida das pessoas (alimentos pós-divórcio, poder paternal conjunto, direito ao uso dos apelidos).
II - Só ponderosos motivos, a avaliar caso a caso, relevando tanto interesses materiais como morais, poderão justificar manter-se o direito ao uso dos apelidos do ex-côjuge.
III - A integridade do nome é valor prevalente perante uma obra de autor, científica, literária, artística, de renome, consolidada e autónoma, mas não o será quando a obra constitui o resultado, directo ou indirecto, do exercício de funções de serviço público, para que, mais que o nome da pessoa que as realiza ou ocupa, conta o título, o cargo, a função em que está investida.
[9] RLJ, Alterações legislativas do direito ao nome, n.º 3692, p. 323
[10] Karl Larenz/Wolf, apud Diana Afonso, cit., p. 24.
[11] Paulo Mota Pinto, Direitos de personalidade no Código Civil Português e Brasileiro. Revista Jurídica 314, dez, 2003, p. 7- 34.
[12] Vejam-se as decisões: Caso Guillot c. França (Pedido n. 22500/93), Caso Burghartz c. Suíça, (Pedido n. 16213/90), Caso Stjerna c. Finlândia (Pedido n. 18131/91), Caso Gianettoni e Fornaciarini c. Suíça (Pedido n. 22940/93), Caso Salonen c. Finlândia (Requerimento n. 27868/95), Caso Sijka c. Polonia (Pedido n. 26272/95), Caso Szokoloczy-Syllaba c. Suíça (Pedido n. 41843/98), Caso Bijleveld c. Países Baixos (Pedido n. 42973/98), Caso G.M.B. e K. M. c. Suíça. (Pedido n. 36797/97), Caso Üna Tekeli c. Turquia (Requerimento n. 29865/96), Caso Johansson c. Finlândia (Pedido n.10163/02), Caso Daróczy c. Hungria (Pedido n. 44378/05), Caso Gözel Erdogoz c. Turquia (Pedido n. 37483/02) e Caso Kismoun c. França (Pedido n. 32265/10).
[13] G. Canotilho e V. Moreira entendem que a delimitação do direito à identidade pessoa sirge como um elmento do que consideram (na expressão feliz) historicidade pessoal, aí se incluindo, desde logo, o património, identidade genética, Constituição da República Portuguesa Anotada, p. 462 e ss.,
[14] A importância sócio-afetiva dos apelidos que damos aos nossos filhos é destacada por Alice T. Centinari e Claúdio Jose Bahia, NOME E PATERNIDADE: UM DESAFIO DE AMOR E CIDADANIA, Revista Jurídica Cesumar - Mestrado, v. 14, n. 2, p. 491-508, jul./dez. 2014. O princípio da afectividade não merece acolhimento constitucional qua tale mas pode ser visto como emergindo da dignidade da pessoal humana e da solidariedade que lhe é inerente – assim Thiago Azevedo, A APLICAÇÃO DO INSTITUTO DA MULTIPARENTALIDADE E SEUS ASPECTOS PROBLEMÁTICOS: FILIAÇÃO SÓCIO-AFETIVA E DIVÓRCIO, Revista de Direito de Família e Sucessão, vol. 3, n.º 2, p. 17 - 35 | Jul/Dez. 2017.
[15] Assim, ac. RL, de 16.10.2012, Proc. 1759/09.5YXLSB.L1-7: A Lei impõe um conjunto de limitações aquando da escolha do nome do filho, limitações essas que, no que toca aos respectivos apelidos, visam identificar a família a que o mesmo pertence, nela promovendo a sua integração.
[16] Neste segmento são de aplaudir as alterações que a Lei 61/2008, de 31.10, introduziu à secção II do capítulo II do CC, até então sob a epígrafe Poder paternal, hoje Responsabilidades parentais.
[17] O caso tem sido tratado de forma exaustiva na jurisprudência brasileira, como pode ver-se em Débora de Souza Pereira, A SUPRESSÃO DE SOBRENOME LEGITIMADA PELA CONSTATAÇÃO DE ABANDONO AFETIVO PELO GENITOR, 2013.
[18]
Artigo 1677.º-C
(Privação judicial do uso do nome)
1.Falecido um dos cônjuges ou decretada a separação judicial de pessoas e bens ou o divórcio, o cônjuge que conserve apelidos do outro pode ser privado pelo tribunal do direito de os usar quando esse uso lese gravemente os interesses morais do outro cônjuge ou da sua família.
2. Têm legitimidade para o pedido de privação do uso do nome, no caso de separação judicial de pessoas e bens ou divórcio, o outro cônjuge ou ex-cônjuge, e, no caso de viuvez, os descendentes, ascendentes e irmãos do cônjuge falecido
[19] De facto, “não precisamos de direito da família total, esboçado no atelier de um engenheiro social iluminista”, como observa G. de Oliveira, Precisamos assim tanto do direito da família? (Do panjurismo iluminista ao ‘fragmentarische charakter’), in Lex Familiae, Ano 10 (n.º 19), 2013, p. 20.
[20] Luís Silveira, cit., p. 555. A jurisprudência tem mostrado um esforço de concretização. Vejam-se, por ex., Ac. RL de 19.02.02, Proc. 0051797: I - O cônjuge divorciado que conserve os apelidos do outro, poderá ser privado do seu uso quando o mesmo lese gravemente os interesses morais deste, ou da respectiva família.
II - A "lesão de interesses morais" será toda e qualquer violação, directa ou indirecta, por palavras ou actos exigindo-se, contudo, que a mesma assuma determinada gravidade, não definindo a Lei, todavia, a sua conceptualização. III - O conceito de "gravidade", para a privação do uso de apelidos - "mínimo de gravidade objectiva" imposto pela Lei - deverá ser apreciado tendo em atenção o espírito do sistema, maxime, o conjunto de exigências de proporcionalidade e boa fé que lhe são inerentes para a apreciação da gravidade dos factos das causas do divórcio litigioso, de onde uma ofensa diminuta não merecer a tutela do direito (artigo 1779º, nº 1 e 2 do C.Civil).