Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1021/18.2T8AMT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: COMPRA E VENDA DE BEM DE CONSUMO
DESCONFORMIDADE DO BEM
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
MONTANTE DO PREÇO A RESTITUIR
VALOR DA UTILIZAÇÃO DO BEM
Nº do Documento: RP202103111021/18.2T8AMT.P1
Data do Acordão: 03/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A compra por um particular de uma mini piscina para instalar na sua casa de morada de família a uma sociedade comercial que desenvolve esse comércio é uma compra e venda de bem de consumo.
II - A noção de desconformidade associa ao incumprimento da obrigação o vício ou defeito, a falta de qualidade, a diferença de identidade e a diferença de quantidade do bem.
III - Tendo o consumidor resolvido o contrato, ao montante do preço a restituir apenas deve ser descontado o valor da utilização do bem se o vendedor fizer prova de um uso efectivo do bem de intensidade ou extensão que excedam a utilização a normal do produto em conformidade com a sua natureza e finalidade, um uso que seja causa específica de depreciação do produto ou, em qualquer caso, uso posterior à comunicação da resolução do contrato.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2021:1021.18.2T8AMT.P1
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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
B…, contribuinte fiscal n.º ………, residente em …, Penafiel, instaurou acção declarativa com processo comum contra C…, Lda., pessoa colectiva n.º ………, com sede em Vila Meã, formulando contra esta os seguintes pedidos:
1- Ser reconhecida a resolução do contrato e compra e venda da mini piscina e cobertura, com as legais consequências nomeadamente a devolução do preço pago pela autora de 12.300,00€, acrescido dos juros legais;
2- Ser a ré condenada a título de danos não patrimoniais em quantia não inferior a 3.000,00€.
Alegou para o efeito que comprou à ré uma mini piscina denominada spa, tendo a ré entregue e instalado em casa da autora o referido equipamento, a qual, todavia, nunca funcionou, apresentando desconformidades que a autora foi reportando à ré exigindo a sua reparação, a qual não foi feita apesar da sucessiva deslocação de técnicos da ré ou mandados por esta para fazer a reparação.
A ré contestou a acção, impugnando parte dos factos alegados pela autora e alegando que o negócio foi feito com dolo dos seus antigos sócios uma vez que a mini piscina entregue já havia sido adquirida para venda há vários anos e sido usada em diversos eventos, não sendo por isso nova, pelo que a responsabilidade é dos antigos sócios da ré que fizeram o negócio.
Após julgamento, foi proferida sentença, julgando a acção parcialmente procedente e declarando a resolução do contrato de compra e venda e a obrigação de a ré devolver à autora a quantia de 12.300€, acrescida de juros de mora a contar da citação.
Do assim decidido, a ré interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
I. A autora B…, no dia 16 de Julho de 2016, celebrou um contrato de compra e venda com a ré “C…, Lda.”, uma mini piscina, correntemente denominada de spa, que se encontrava em exposição pelo preço de € 11.500 euros, bem como de uma cobertura pelo preço €800, tudo no preço total de €12.300.
II. A gerência anterior da ré, que celebrou o negócio, afirmou em sede de produção da prova que a instalação seria para fazer pela marca J…, porque a ré não faz essa instalação, mas a autora quis fazê-lo por sua conta, tendo os problemas surgido pelo mau uso dado ao equipamento.
III. Em sentença, o tribunal a quo vem a decidir «… a acção parcialmente procedente, por provada e, em consequência, declarar a resolução do contrato de compra e venda da mini-piscina e cobertura, com as legais consequências, nomeadamente, a devolução pela ré, à autora, da quantia de € 12.300 euros (doze mil e trezentos euros), acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação e até efectivo pagamento».
IV. Deve ser revogada a decisão que declarou a resolução do contrato de compra e venda da mini-piscina e cobertura” e condenou a aqui recorrente a devolver, “à autora, da quantia de € 12.300 (doze mil e trezentos euros), acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação e até efectivo pagamento”.
V. Dos temas de prova o tribunal a quo deu como provado os temas 2, 3, 4, 5, 6, 8, 10, 11, 12, 13, 15, 16, 17, 18, 19, 20 e 23 e, como não provado os temas 1, 7, 9, 14, 21, 22 e 24.
VI. Ou seja, por um lado, a autora não comunicou à ré que pretendia um spa que pudesse ser utilizado por 5 adultos em lugares sentados, 2 lounges, com aromaterapia, cromoterapia (sistema de luz intra-color), 2 chaises longues, com 29 jactos de água fria e 14 de água quente, dois motores de 4 cavalos, blawer de aquecimento da água, sensores de nível de água, sistema de limpeza automático, painéis de madeira laterais, cobertura térmica e um degrau; nem os empregados da ré disseram à autora que teriam que fazer umas alterações eléctricas, sem os quais não seria possível colocar em funcionamento todos os jactos da piscina, tendo a ré enviado, posteriormente, um electricista para tratar disso, dando a instalação por concluída; nem sequer que os empregados da ré procederam às ligações eléctricas e da água referentes à instalação da piscina.
VII. Por outro lado, deu como provado que (i) a autora testou a piscina, logo após a instalação e, os jactos de água não funcionaram e (ii) após a reparação efectuada pelo técnico D…, com substituição de duas bombas queimadas, os jactos de água continuavam sem funcionar, pelo que (iii) a piscina manteve-se no estado em que foi entregue, sem funcionarem os jactos de água, fria ou quente, não funcionando a cromoterapia, não funcionando a aromaterapia, os sensores de nível de água e o sistema de limpeza automático.
VIII. Tendo sido dito, em audiência de julgamento, que foi verificado que o SPA esteve a trabalhar sem água, o que terá sobreaquecido das bombas, queimando-as, e que porventura terá dado origem à bolha no acrílico, bem como as alegadas fissuras, deveria ter sido dado como provado o mau uso do identificado SPA dado pela autora.
IX. D… (gravação áudio de 17-06-2019 14:36:48), detentor de uma empresa que faz a assistência técnica da “J…” afirmou que, antes da entrega do equipamento, foi feita uma revisão onde relatou que estava a funcionar normalmente, sem qualquer problema nem qualquer defeito visível; após ida ao local em 2017 onde foi instalado o SPA, verificou que este esteve a trabalhar sem água, o que terá sobreaquecido das bombas, queimando-as, e que porventura terá dado origem à bolha no acrílico. Se as bombas funcionaram em seco, aquecem o acrílico e ele cria bolha, desmoldando e por aí abriu. Explicou que esta é uma das teorias que podem dar origem à bolha; referiu que procedeu à reparação, ficando o SPA a ser utilizado em todas as suas funções (passagem 20:26), somente a estética ficou alterada devido aos painéis laterais estarem deteriorados e não terem sido substituídos.
X. E… (gravação áudio de 17-06-2019, 15:02:44), amiga da autora disse que foi esta quem fez as obras e instalou o spa em Julho de 2016.
XI. F… (gravação áudio de 17-06-2019, 15:29:22), ex-gerente da ré, disse que a instalação seria para fazer pela marca J…, a pedido da ré, tendo dado um orçamento do seu projecto de arquitectura a 3D, mas a autora não quis e fez a instalação por sua conta e risco.
XII. Da audiência de julgamento devem ser dados como não provados os temas de prova 10, 11, 12 e 14 (correspondentes aos factos provados provenientes da audiência de julgamento), nomeadamente (7) A autora testou a piscina, logo após a instalação e, os jactos de água não funcionaram; (8) De imediato a Autora participou essa falha à ré que enviou um técnico que, diagnosticou que problema estava em dois motores, tendo-os substituído; (9) Contudo, os jactos de água continuavam sem funcionar, o que a autora comunicou à ré e exigindo a imediata reparação; (14) Mantendo-se a piscina no estado em que foi entregue, sem funcionarem os jactos de água, fria ou quente, não funcionando a cromoterapia, não funcionando a aromaterapia, os sensores de nível de água e o sistema de limpeza automático.
XIII. A sentença proferida pelo Tribunal “a quo” fez uma apreciação incorrecta dos elementos de prova existentes nos autos, e, em consequência, uma errada subsunção dos factos ao direito, pelo que deve a mesma ser revogada nos pontos ora em crise.
XIV. A autora recebeu o SPA em bom estado, procedeu à sua instalação e ainda lhe deu o destino que se conheceu durante o tempo que o usou (as bombas trabalharam sem água), pelo que desvalorizou o mesmo em quantia superior a dois terços face ao valor de aquisição.
XV. O art.º 289º, n.º 1, do C. Civil, estipula que tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.
XVI. A autora acabou por beneficiar do uso do referido SPA, instalando e utilizando o mesmo, e essa utilidade decorreu e foi proporcionada pela compra e venda em causa, pelo que deveria devolver o SPA no estado da aquisição (art.º 289º, n.º 1, do C. Civil), designadamente com o mesmo estado e sem qualquer desgaste adicional, o que não se pode verificar, como é óbvio.
XVII. Entende a apelante que, por um lado, a decisão entra em contradição com os factos dados como assentes e, por outro, a resposta dada aos temas de prova deve ser alterada nos termos supra expostos, absolvendo-se a Ré do pedido formulado pela Autora, ou
XVIII. Mantendo-se a resolução do contrato, deve a quantia a devolver à autora ser fixada em menos de um terço dos €12.300 euros, face ao valor que o identificado SPA possuía em Julho de 2016, a liquidar, nos termos do disposto no art.º 609º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
XIX. A douta decisão recorrida violou, assim, as regras da livre apreciação da prova (artigos 607.º, n.º 5, do CPC, e 396.º do CC), bem como a articulação dos princípios do dispositivo e do inquisitório (410.º e 411.º, 413º do CPC).
Em conformidade, V. Exs. Venerandos Desembargadores, decidindo revogar a decisão proferida pelo tribunal “a quo” nos termos supra expostos, absolvendo-se a ré do pedido formulado pela autora, farão a costumada Justiça.
O recorrido respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i) Se a decisão sobre a matéria de facto deve ser alterada.
ii) Qual o regime jurídico a que está subordinada a relação contratual entre as partes.
iii) Se estavam reunidos os pressupostos da resolução do contrato por parte da compradora.
iv) Se ao valor do preço a restituir pela vendedora inadimplente em consequência da resolução do contrato pela compradora deve ser abatido algum valor a título de equivalente à utilização do bem pela compradora.

III. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
A ré impugnou a decisão sobre a matéria de facto reclamando da Relação que julgue não provados os factos que a 1.ª instância julgou provados nos pontos 7, 8, 9 e 14.
Mostram-se cumpridos os requisitos específicos da impugnação dessa decisão pelo que dela se passa a conhecer.
Os factos em causa têm a seguinte redacção:
7- A autora testou a piscina logo após a instalação e os jactos de água não funcionaram.
8- De imediato a Autora participou essa falha à ré que enviou um técnico que diagnosticou que o problema estava em dois motores, tendo-os substituído.
9- Contudo, os jactos de água continuavam sem funcionar, o que a autora comunicou à ré e exigindo a imediata reparação.
14- Mantendo-se a piscina no estado em que foi entregue, sem funcionarem os jactos de água, fria ou quente, não funcionando a cromoterapia, não funcionando a aromaterapia, os sensores de nível de água e o sistema de limpeza automático.
Ouvida a gravação da audiência, mostram-se preponderantes os depoimentos de K…, o companheiro da autora, D…, dona da empresa que faz a assistência técnica dos produtos da marca J… em Portugal, e G…, ex-funcionário da ré comercial e filhos dos sócios da ré à data, que são as testemunhas que tiveram maior ligação ao negócio e às respectivas vicissitudes.
A prova produzida é escassa não tendo havido o cuidado de fazer produzir o depoimento do electricista H… que terá participado na colocação do equipamento em funcionamento, nem de juntar aos autos o relatório técnico – em poder da ré – a que a testemunha D… fez referência e no qual supostamente haveria um levantamento dos problemas do equipamento, sua possíveis causas e respectivas soluções.
Apurou-se sem controvérsia que a dado momento dois motores do equipamento estavam queimados e tiveram de ser substituídos, o que foi feito pela assistência técnica da J… e suportado pela ré. Por conseguinte, se havia motores que não funcionavam é de aceitar como perfeitamente natural e razoável que o equipamento não funcionava, designadamente ao nível dos jactos de água accionados por esses motores.
Nesse sentido o facto do ponto 7 está correctamente decidido, sem prejuízo de se dever expurgar da sua redacção a palavra “logo” uma vez que se ignora se essa situação ocorreu imediatamente após a instalação, sendo apenas possível saber que o foi depois da instalação do equipamento.
Está igualmente correcta a decisão de julgar provado o facto do ponto 8, não se alcançando mesmo o sentido da impugnação deste facto quando as pessoas envolvidas afirmaram de modo unanime que os dois motores estavam avariados (queimados) e tiveram de ser substituídos.
Quanto ao facto do ponto 9, efectivamente a prova produzida não permite julgá-lo provado, tal como se encontra redigido. D… afirmou que depois da intervenção nos motores o equipamento ficou a funcionar. Aliás, não seria razoável que assim não fosse uma vez que se tratava da empresa que fazia a assistência da marca, que ela tinha localizado o problema e que a ré suportou o custo dessa intervenção. O companheiro da autora afirmou mesmo que os jactos funcionam mas que havia lá qualquer coisa que não estava bem porque por vezes quando o ligavam a luz ia abaixo.
Por isso não pode ser julgado provado que os jactos de água continuaram sem funcionar depois da substituição dos motores, o que se deve julgar provado é somente que o equipamento continuou sem poder ser usado na sua plenitude por questões relacionadas com o seu funcionamento e que a autora se queixou disso à ré.
Por conseguinte, o facto do ponto 9 passará a ter a seguinte redacção: «9- Apesar dessa intervenção, continuaram a surgir falhas no funcionamento do equipamento que condicionavam a sua utilização, o que a autora comunicou à ré, exigindo a sua resolução».
No que concerne ao facto 14, a situação é a mesma. A piscina não continuava no estado em que foi entregue porque entretanto foram-lhe colocadas dois motores novos, sendo certo que, como referido, não existe prova de que após isso os jactos de água continuassem sem funcionar. Quanto à aromoterapia o companheiro da autora afirmou que deitavam no equipamento qualquer coisa para dar cheiro mas não sabe se funcionava ou não.
O facto 14 passa assim a ter a seguinte redacção: «14- Mantendo-se a piscina no estado em que se encontrava, com falhas no funcionamento e as patologias antes enunciadas
Na conclusão VIII a recorrente refere que «tendo sido dito, em audiência de julgamento, que foi verificado que o SPA esteve a trabalhar sem água, o que terá sobreaquecido das bombas, queimando-as, e que porventura terá dado origem à bolha no acrílico, bem como as alegadas fissuras, deveria ter sido dado como provado o mau uso do identificado SPA dado pela autora».
Pode entender-se que desta forma a recorrente reclama o aditamento de um novo facto provado à matéria de facto. O modo como a recorrente se expressa não é a mais feliz porque dá a entender que o facto que ela pretende que seja aditado é que a autora dava mau uso ao equipamento, o que é uma expressão conclusiva. Lendo nas entrelinhas, a recorrente pretende sim que se julgue provado que a autora teve o equipamento a trabalhar sem água, o que terá sobreaquecido as bombas, queimando-as, e que porventura terá dado origem à bolha no acrílico, bem como as alegadas fissuras.
Se bem vimos a prova produzida não permite criar a convicção deste facto.
É certo que o dono da empresa responsável pelo equipamento afirmou que a avaria que as bombas apresentavam (estavam queimadas) pode ter sido derivada de terem estado a funcionar a seco e mencionou que essa avaria das bombas pode ter provocado um sobreaquecimento sob o acrílico e provocado a deterioração deste. Todavia, este é o único meio de prova produzido sobre essa matéria, não tendo sido junto aos autos o relatório técnico que ele disse ter sido feito na altura ou realizada qualquer prova pericial para avaliar as causas da avaria e da deterioração da estrutura equipamento.
Ora não se pode esquecer que estamos perante um equipamento que a ré tinha nas suas instalações há 12 anos (!), desde 2044, tendo-o exposto em exibição ao público com, pelo menos, algumas das suas funções ligadas para demonstração (a prova produzida não é totalmente segura a esse respeito porque enquanto algumas testemunhas – o ex-sócio da ré e o filho – afirmam que o equipamento não estava totalmente ligado, outras houve – o vendedor I… – que afirmaram que estava sempre ligado e com água). Esta circunstância obrigava a determinar se e quando podem ter estado as bombas a funcionar a seco e porquê e/ou se durante os 12 anos que esteve em exposição ao público foi feita a manutenção do equipamento, averiguação que não foi feita nos autos.
O facto de antes da entrega o equipamento ter sido revisto pela assistência da J… não é determinante porque se o equipamento necessitava de ser colocado em funcionamento no local a revisão com ele parado no local de exposição onde se encontrava podia não revelar todas as patologias que o equipamento já apresentava.
Note-se que está dado como provado que «a ré entregou a piscina em casa da autora no dia 29 de Julho de 2016, instalando-a por intermédio dos seus técnicos» e que a recorrente não impugnou a decisão quanto a este facto. A instalação de um equipamento desta natureza não é, seguramente, apenas a colocação do equipamento no local e compreenderá certamente o estabelecimento das ligações de água e electricidade necessárias ao seu funcionamento, conforme aliás resulta do documento n.º 2 junto pela autora com a petição inicial, pelo que não se alcança como poderão as bombas ter trabalhado a seco depois dessa instalação.
Como quer que seja, os técnicos da J… que foram ao local e verificaram a existência de bombas queimadas não tinham como saber se e quando a autora (e, antes dela, a ré) teve o equipamento a funcionar e em que condições, pelo que em rigor só podem afirmar em que estado as bombas se encontravam e qual a causa provável ou possível de uma avaria dessa natureza, não causa concreta da avaria deste equipamento nem a quem a mesma é imputável.
Pelo exposto, entendemos que não foi produzida prova suficiente de que as bombas se queimaram por a autora as ter colocado a trabalhar a seco, sabendo que não o podia fazer, causando desse modo um sobreaquecimento por baixo do acrílico que levou à deterioração e ruptura deste. Em consequência, não se adita à matéria de facto provada o pretendido pela recorrente.

IV. Os factos:
Ficam agora definitivamente julgados provados os seguintes factos[1]:
A- No dia 16 de Julho de 2016, a ré C…, Lda. forneceu à autora B…, a seu pedido, uma mini piscina, correntemente denominada de spa, pela contrapartida de €11.500 euros.
B- A ré entregou a piscina em casa da autora no dia 29 de Julho de 2016, instalando-a por intermédio dos seus técnicos.
C- Os novos gerentes da ré, depois de verificarem a situação, referiram à autora que a única piscina com as características da fornecida à autora, constava como tendo dado entrada em stock no ano de 2006, já havia sido usada muitas vezes em eventos sociais, sendo que que tal tipo de piscinas tem sempre a cobertura incluída.
1- A ré informou que tinha uma piscina, em exposição na loja, exactamente como a autora pretendia.
2- Dizendo-lhe, que tal piscina era nova estava em bom funcionamento, estando apenas em exposição na loja mas que usufruía da mesma garantia de uma embalada.
3- E que, por serem conhecidos, lhe venderia a piscina que estava em exposição, por um valor inferior ao seu preço normal.
4- Aquando da instalação, a piscina não vinha acompanhada de cobertura.
5- Tendo a ré comunicado que a cobertura não estava incluída e que custava cerca de €2.000 euros, mas que lhe arranjava uma por €800 euros, que a autora aceitou adquirir e que liquidou.
6- A autora pagou a piscina e a cobertura em duas prestações, por cartão de crédito, no valor total de €12.300.
7- A autora testou a piscina após a instalação e os jactos de água não funcionaram.
8- De imediato a Autora participou essa falha à ré que enviou um técnico que diagnosticou que o problema estava em dois motores, tendo-os substituído.
9- Apesar dessa intervenção, continuaram a surgir falhas no funcionamento do equipamento que condicionavam a sua utilização, o que a autora comunicou à ré, exigindo a sua resolução.
10- Só em 2 de Janeiro de 2017 é que a ré enviou um técnico do produtor deste tipo de piscinas (a J…), que constatou que os jactos de água não funcionavam, que a piscina tinha fugas de água evidenciando fissuras e bolhas de ar, estando as madeiras que a revestiam a descolar e a partir.
11- Em 4 de Maio de 2017, foi um técnico da ré à casa da autora que efectuou algumas tarefas de reparação, dizendo-lhe que, depois, outro técnico iria lá para reparar as madeiras.
12- Em Julho de 2017, foi a casa da autora um técnico da ré com o fim de reparar as madeiras, contudo referiu que o material que possuía não estava a servir para consertar a piscina e que tinha de arranjar outra madeira.
13- E, apesar das insistências da autora, desde dessa ocasião, nunca mais a ré enviou técnicos para proceder a qualquer reparação.
14- Mantendo-se a piscina no estado em que se encontrava, com falhas no funcionamento e as patologias antes enunciadas.
15- Estando os painéis laterais de madeira soltos e partidos.
16- A cobertura não exercia a função térmica, dado estar velha, rasgada e com manchas, começando o interior da piscina a apresentar fissuras e bolhas de ar.
17- O facto de ter adquirido uma piscina sem qualquer préstimo e de se sentir enganada, causou à autora arrelias, perdas de tempo, e abalo psicológico.

V. Matéria de direito:
A recorrente sustenta que a sentença efectuou uma errada subsunção dos factos ao direito, pelo que deve a mesma ser revogada.
Não resulta claro quais os aspectos da subsunção jurídica efectuada que a recorrente considera estarem errados, mais parecendo que esse seu entendimento se filia somente na modificação da matéria de facto nos moldes que reclama, isto é, que os diferentes factos a atender deverão levar à improcedência da acção.
Não obstante isso, vejamos se os factos provados se encontram correctamente qualificados do ponto de vista jurídico.
A sentença recorrida assumiu que o contrato celebrado entre as partes é um contrato de compra e venda. Não há dúvidas sobre o acerto dessa qualificação.
O artigo 874º do Código Civil define a compra e venda como o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa ou direito, mediante um preço. O artigo 879.º do mesmo diploma estabelece que a compra e venda tem como efeitos essenciais a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito, a obrigação de entregar a coisa e a obrigação de pagar o preço.
Trata-se, pois, de um contrato com efeitos reais (determina a transferência da propriedade de uma coisa ou direito), bilateral ou sinalagmático (pressupõe a existência de, pelo menos, dois contraentes, que reciprocamente se vinculam, sendo ambos sujeitos de direitos e obrigações), oneroso (pressupõe atribuições patrimoniais de ambos os contraentes), em regra comutativo (as duas prestações patrimoniais são certas e tendencialmente equivalentes).
Depois a sentença recorrida assumiu que estamos perante uma venda de um bem de consumo a que se aplica o regime jurídico aprovado pelo Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08-04, que transpôs para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio, sobre certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas.
Nos termos do respectivo artigo 1.º-A, este regime jurídico é aplicável aos contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores, sendo que nos termos do artigo 1.º-B, para esse efeito se entende por consumidor, «aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios». Neste conceito de consumidor figura, entre outros, o chamado elemento teleológico: é necessário que o bem adquirido se destine a um uso não profissional.
Tendo isso presente afigura-se-nos igualmente acertado o mencionado enquadramento jurídico na medida em que estamos perante a compra de um bem destinado a ser instalado na casa de morada de família da adquirente para ser usado nos momentos de lazer do agregado familiar e dos seus convidados, destinando-se por isso a uso não profissional, sendo que a venda foi realizada por uma sociedade comercial que exerce com carácter profissional uma actividade comercial onde se inclui a venda de produtos da natureza deste.
Entendeu de seguida a sentença que o bem vendido apresenta desconformidades com o contrato e que essa circunstância permite à autora resolver o contrato.
Vejamos.
Nos termos do artigo 406º do Código Civil, «o contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contratantes ou nos casos admitidos na lei» - pacta sunt servanda. Por sua vez o artigo 762º do Código Civil, estabelece que «o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado».
A obrigação do vendedor de entregar a coisa vendida, não é uma obrigação simples, cujo cumprimento se baste com a entrega de uma coisa qualquer. O vendedor está obrigado, juridicamente, a entregar ao comprador uma coisa isenta de defeitos, em conformidade com o contratado, com as características e qualidades acordadas, já que só dessa forma opera o cumprimento exacto e pontual da prestação, satisfazendo, como é sua obrigação, o direito do comprador.
Em termos gerais, o dever de entrega de coisa sem defeitos, cumpre-se quando a coisa entregue não sofre de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada e tem as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim. É o que resulta do artigo 913.º do Código Civil que se refere às coisas defeituosas, às coisas com defeitos, e de entre estas apenas às coisas com defeitos essenciais. Na previsão do preceito compreendem-se mais concretamente os seguintes vícios: a) vício que desvalorize a coisa; b) vício que impeça a realização do fim a que a coisa é destinada; c) falta das qualidades asseguradas pelo vendedor; d) falta das qualidades necessárias para a realização do fim a que a coisa se destina.
Conforme referem Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. II, 3ª edição revista e actualizada, pág. 211, a propósito do artigo 913.º do Código Civil, “não se tratando de um dos vícios compreendidos na enumeração deste preceito, a anulação não é possível, nem serão aplicáveis as disposições desta secção ou da secção anterior, que concedem outros direitos ao comprador; tais vícios serão irrelevantes”.
Cabe referir que nos termos do nº 2 do preceito, na dúvida quanto ao fim a que a coisa se destina, deve recorrer-se ao critério da normalidade: o fim da coisa é o fim a que normalmente são destinadas as coisas da mesma categoria. Tal como deve considerar-se que as qualidades asseguradas pelo vendedor são apenas aquelas cuja existência ele garantiu, por cuja existência ele se responsabilizou perante o comprador independentemente das qualidades que sejam ou possam ser usuais ou normalmente supostas – cf. Pires de Lima e Antunes Varela, loc. cit., pág. 214 –.
Este preceito não contém uma definição de coisas defeituosas, contém apenas a delimitação das situações em que os defeitos apresentados pela coisa são juridicamente relevantes, em que a existência do defeito se torna intolerável para o sistema jurídico legitimando a reacção do comprador.
Os defeitos são assim aquelas manifestações ou exteriorizações na coisa que resultam de violações das boas práticas e técnicas de execução da mesma e que consistem na exteriorização na coisa de algo que lá não deveria estar ou da falta de algo que lá deveria estar, num caso ou no outro em prejuízo da funcionalidade, da durabilidade e da qualidade da coisa contratada.
Há situações em que não basta afirmar a existência na coisa de alguma imperfeição, irregularidade ou anomalia para sem mais podermos concluir pela existência de um defeito, quanto mais de um defeito relevante. Nenhum objecto da produção humana, levado a cabo com recurso às técnicas e aos materiais que no momento se conhecem e se usam normalmente, é uma realização eterna, um produto imutável e perene. Por isso, ao adquirente da coisa cabe fazer a prova da existência de defeitos na coisa e a prova de que tais defeitos assumem características ou um grau de gravidade tais que os integram na previsão do artigo 913º do Código Civil. Não basta, portanto, alegar que se verifica determinada anomalia ou imperfeição.
Se não for possível, de acordo com um critério puramente objectivo, extrair da própria configuração da anomalia ou imperfeição a conclusão de que a mesma é um defeito, o adquirente terá de alegar e demonstrar os factos necessários para suportar essa conclusão. A presunção de culpa que onera o contraente em sede de responsabilidade contratual é apenas uma presunção de culpa, ou seja, da imputação subjectiva ao autor do facto do resultado da sua actuação, não é, cremos, uma presunção do facto que constitui o ilícito contratual.
Na compra e venda comum, a lei dá especial enfoque à idoneidade e aptidão do bem para o fim a que se destina. Como esclarece Calvão da Silva, in Compra e Venda de Coisas Defeituosas, 5ª ed., págs. 44 e 49, a lei posterga a definição conceitual e privilegia a idoneidade do bem para a função a que se destina, ciente de que o importante é a aptidão da coisa, a utilidade que o adquirente dela espera.
Por isso diz-se defeituosa a coisa imprópria para o uso concreto a que é destinada contratualmente - função negocial concreta programada pelas partes - ou para a função normal das coisas da mesma categoria ou tipo se do contrato não resultar o fim a que se destina (art. 913º, nº 2)”, acrescentando ainda o mesmo Autor: «a “venda de coisa defeituosa” respeita à falta de conformidade ou qualidade do bem adquirido para o fim (específico e/ou normal) a que é destinado. E na premissa de que parte o Código Civil para considerar a coisa defeituosa, só é directamente contemplado o interesse do comprador/consumidor no préstimo ou qualidade da coisa, na sua aptidão ou idoneidade para o uso ou função a que é destinada, com vista à salvaguarda da equivalência entre a prestação e a contraprestação subjacente ao cumprimento perfeito ou conforme do contrato».
Perante os defeitos da coisa vendida o comprador tem os seguintes direitos: i) anulação do contrato por erro ou por dolo verificados os respectivos requisitos; ii) redução do preço se as circunstâncias do contrato mostrarem que, sem erro ou dolo, ele teria adquirido a coisa por preço inferior; iii) indemnização relativa ao prejuízo decorrente da celebração do contrato, cumulável com a referida anulação e com a redução do preço; iv) reparação da coisa ou, se for necessário e ela tiver natureza fungível, a sua substituição se o vendedor não desconhecia, sem culpa, o vício ou a sua falta de qualidade; v) reparação da coisa ou da sua substituição se necessária e a coisa for de natureza fungível se o vendedor estiver obrigado, designadamente por convenção das partes, a garantir o seu bom funcionamento, independentemente de culpa sua ou de erro do comprador (cf. artigos 247º, 251º, 254º, 905º, 908º, 909º, 911º, 913º, nº. 1, 914º, nº. 1 e 921º, nº. 1, do Código Civil).
As coisas passam-se de modo diferente no âmbito da venda de bens de consumo e do regime jurídico do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril. Neste, em lugar da noção de defeito, o legislador elegeu como conceito nuclear o conceito de desconformidade do bem com o contrato.
Para o efeito, são tidos como desconformes com o contrato os bens em relação aos quais se dê uma das seguintes situações: a) não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo; b) não serem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado; c) não serem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo; d) não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem (artigo 2.º, n.º 2).
Refere Jorge Morais Carvalho, in Manual de Direito do Consumo, 2019, págs. 277 e 278, que «A grande vantagem da adopção da noção de conformidade (ou de desconformidade) consiste em, através de uma fórmula simples.., conseguir reunir-se num mesmo grupo (o do incumprimento da obrigação) uma série de situações que tinham um tratamento distinto: o vício ou defeito, a falta de qualidade do bem, a diferença de identidade e a diferença de quantidade.. . A noção de desconformidade abrange quer os vícios na própria coisa objecto do contrato quer os vícios de direito.. . A lei não faz qualquer distinção, pelo que só é conforme com o contrato o objecto que seja entregue ao consumidor sem qualquer limitação, física ou jurídica.».
A propósito das desconformidades em relação às utilizações habituais, o mesmo autor, loc. cit., pág. 288 e seg., sublinha que «A análise da conformidade, para efeitos desta alínea, é feita objectivamente .., tendo em conta as utilizações habituais dadas ao bem. Não releva aqui que o consumidor tenha referido apenas uma utilização ou até que tenha indicado que não ia utilizar o bem num determinado sentido. Este deve ser apto para as utilizações habituais. Como resulta da letra do preceito, o bem tem de ser adequado a todas as utilizações habituais, não sendo suficiente a adequação à utilização mais habitual .. . O critério definido para aferir quais são as utilizações habituais deve ser objectivo, uma vez que não relevam utilizações específicas de um consumidor em concreto, mas não pode abstrair-se dos termos do contrato celebrado
Já quanto às desconformidades em relação às qualidades e o desempenho habituais, aquele autor, loc. cit., pág. 292 e seg., assinala que o critério são as qualidades e o desempenho dos bens do mesmo tipo, as próprias características do bem objecto do contrato. «Com efeito, o bem deve apresentar todas as particularidades – quer ao nível da sua essência quer no que respeita à sua performance – que o consumidor possa razoavelmente esperar, dentro dos limites da norma (a natureza do bem e as declarações públicas do vendedor, do produtor ou do seu representante). No conceito de desempenho do bem também deve ser incluída uma referência temporal .. . Com efeito, o bem tem de ter o desempenho habitual durante um período de tempo adaptado aos bens da mesma categoria. Assim, o vendedor responde perante uma falta de conformidade do bem com o contrato no momento da entrega, mas esta falta de conformidade pode surgir de um mau funcionamento posterior. Com efeito, se o bem deixa de funcionar normalmente por causa não imputável ao consumidor, tem de entender-se que existe desconformidade, uma vez que esse facto não corresponde ao seu desempenho habitual
Mais à frente, este autor afirma que «Para a determinação das qualidades e do desempenho que o consumidor pode razoavelmente esperar, deve ter-se em conta, em primeiro lugar, a natureza do bem. […] Está aqui em causa a natureza do bem e não o seu preço .., pelo que não deve relevar, neste âmbito, se aquilo que se pode esperar do bem é mais ou menos tendo em conta a contraprestação. A ideia de que, se o preço for baixo, o consumidor deve ter menos expectativas no que respeita às qualidades do bem, não pode ser acolhida, uma vez que este critério, para além de não ter base na letra da lei, contraria o espírito do diploma. Com efeito, pretende instituir-se um regime avançado na protecção dos consumidores, que afaste no essencial a ideia de que o comprador se deve acautelar e que imponha ao vendedor o cumprimento das promessas feitas (o caveat emptor deu lugar ao caveat venditor)».
No caso em apreço, as desconformidades do bem adquirido pela autora são manifestas: o bem apresenta problemas de funcionamento que condicionam a sua utilização não obstante já ter sido objecto de uma reparação com substituição de motores, apresenta defeitos ao nível da respectiva estrutura que naturalmente deve ser estanque mas ostenta fissuras e bolhas de ar, tem o revestimento de madeira a descolar e a partir, a respectiva cobertura não exerce a função térmica que lhe é própria e tem rasgos.
Ora o artigo 4.º, n.º 1, estabelece que, “em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato”. Além destes direitos, em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor também pode recusar a prestação, não recebendo o bem, invocar a excepção de não cumprimento do contrato e exigir uma indemnização em consequência da desconformidade, desde que se encontrem verificados os respectivos pressupostos.
No caso em apreço, a compradora começou por denunciar as desconformidades do bem e dar oportunidade à vendedora de proceder à respectiva reparação. A vendedora apenas realizou alguns trabalhos de reparação, mas não os bastantes para eliminar totalmente as desconformidades verificadas. Embora a matéria de facto julgada provada não o revele, encontra-se junta aos autos carta enviada pela autora à ré na qual torna a denunciar as desconformidades subsistentes e reclama a substituição do bem por outro sem essas desconformidades. Uma vez que essa substituição não foi feita, a autora instaurou a presente acção, através da qual opta pela resolução do contrato.
Independentemente da existência entre os direitos facultados ao comprador pelo artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08-04, de uma ordem sequencial não arbitrária (assim Gravato de Morais, in União de Contratos de Crédito e de Venda para o Consumo, 2004, pág. 117/118) ou mesmo de uma rigorosa hierarquia (que a maioria da doutrina e da jurisprudência recusam), parece certo que no caso a compradora deu ao comprador todas as possibilidades de sanar as desconformidades do bem (primeiro pedindo a reparação, depois pedindo a substituição), pelo que o exercício, por fim, do direito de resolver o contrato é absolutamente consentâneo com as regras legais aplicáveis e com as regras da boa fé.
A resolução corresponde a uma declaração negocial receptícia do comprador ao vendedor e por isso deve considerar-se efectuada através da presente acção e da citação da ré para a contestar.
De referir que nos termos do n.º 4 do artigo 4.º do mencionado Decreto-Lei, o direito de resolução do contrato pode ser exercido mesmo que a coisa tenha perecido ou se tenha deteriorado por motivo não imputável ao comprador. Daqui resulta que uma vez verificada a desconformidade do bem, o risco de deterioração do mesmo passa a correr por conta do vendedor, razão pela qual ela não pode opor-se à resolução com o fundamento de que parte das anomalias aparecidas no bem resultam da circunstância de o mesmo se encontrar instalado em casa da compradora e se deteriorar com o passar do tempo.
Esse fundamento válido de oposição à resolução apenas se constituiria caso se tivesse demonstrado que a deterioração é imputável à própria compradora, o que não se verifica, sendo certo que estamos perante um bem destinado a ser colocado num espaço exterior e cuja movimentação demanda meios especiais (v.g. grua) que o comprador não possui e por isso não lhe é exigível que retire o bem do espaço e onde se encontra de modo a coloca-lo num local mais resguardado e/ou protegido.
Podemos assim concluir que bem andou o tribunal a quo ao julgar válida a opção da autora pela resolução do contrato e ao julgar resolvido o contrato. Improcede assim, nessa parte, o recurso.
A recorrente defende, por último, que como a autora, apesar de tudo, usou o bem durante este tempo e não pode devolver o bem no estado que existiria sem o desgaste dessa utilização, a quantia a devolver à autora deve ser fixada em menos de 1/3 dos €12.300.
A questão colocada consiste em saber se a utilização do bem pelo comprador no período de tempo que mediou até à resolução do contrato deve ser atendida na fixação do valor a restituir pelo vendedor, calculando-se um valor para essa utilização e abatendo-se esse valor ao preço da coisa suportado pelo comprador (contra p. ex. Jorge Morais de carvalho, loc. cit., pág. 330; a favor p. ex. Calvão da Silva, in Venda de bens de consumo, 2010, pág. 109) [2].
A questão é, no caso em concreto, mais teórica que prática na medida em que não se provou que a autora tenha feito uso do bem nem, sobretudo, um uso susceptível de lhe causar qualquer desgaste ou depreciação.
Não se pode, com efeito, partir do princípio de que por o bem se encontrar já em poder do comprador, este o utiliza necessariamente e esse uso é apto para causar no bem uma deterioração ou depreciação tais que quando ele depois, na sequência da resolução do contrato, devolver ao comprador o bem lhe estará afinal de contas a devolver um bem de menor valor que ele tinha quando foi entregue ao comprador.
Qualquer que seja a perspectiva em que nos coloquemos, correndo o risco por conta do vendedor, a deterioração ou desvalorização decorrente do negócio celebrado e de por força dele o bem ser entregue ao comprador e por isso deixar necessariamente de estar nas condições de intocabilidade anteriores ao negócio, não pode prejudicar a posição do comprador consumidor[3].
Afinal de contas este também vai receber somente o preço que pagou pelo bem, ainda que por força da desvalorização da moeda o que vai receber represente à data um valor inferior ao que despendeu na compra e inclusivamente possa já não ser suficiente para adquirir no mercado um bem de iguais características e qualidade ao que adquiriu e cujo preço pagou no pressuposto de que o bem não possuía desconformidades.
A regra constante do regime jurídico da venda de bens de consumo é a de que o vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda (artigo 2.º). Por conseguinte, em princípio devem correr por conta dele todos os ónus ou encargos advenientes da violação desse dever. Isso é assim sobretudo se tivermos presente que o contrato de compra e venda é um contrato que opera a transferência do direito real sobre a coisa e não apenas o direito ao uso ou fruição da mesma, razão pela qual a utilização do bem pelo adquirente, desde que se insira no âmbito de uma utilização normal, isto é, uma utilização conforme com a natureza e finalidade do bem, não proporciona ao consumidor comprador qualquer enriquecimento injustificado.
Acresce que segundo aquele regime jurídico o momento que releva para efeitos de aferição da das desconformidades é o momento da entrega do bem ao comprador. É nesse momento que o bem se deve mostrar isento de desconformidade e é por referência a esse momento que o vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade, razão pela qual as faltas de conformidade que se manifestem no prazo de garantia se presumem existentes já na data de entrega da coisa. Por conseguinte, se o bem apresentar desconformidades a utilização que o adquirente faz do bem é sempre uma utilização deficiente, condicionada, limitada, não fazendo sentido que o consumidor seja obrigado a suportar o custo de uma utilização que muito provavelmente não teria tido lugar se o consumidor soubesse da existência das desconformidades porque nesse caso escolheria não adquirir o produto, evitando assim os inconvenientes, os contratempos e as diligências que acaba sempre por ser obrigado a suportar para exercer os seus direitos decorrentes das desconformidades do bem.
Nesse contexto, afigura-se que para respeitar os princípios que regem o regime jurídico criado para defesa do consumidor e a necessidade de uma tutela eficaz da posição deste, o desconto do valor da utilização apenas deve ter lugar se e quando o vendedor demonstre não apenas um uso efectivo do produto, mas essencialmente um uso de intensidade ou extensão que excedam a utilização a normal do produto em conformidade com a sua natureza e finalidade, um uso que seja causa específica de depreciação do produto ou, em qualquer caso, o uso posterior à comunicação da resolução do contrato. Uma vez que no caso nada disso se encontra demonstrado, entendemos que o pedido de desconto do valor equivalente ao uso de bem pela autora deve improceder.

VI. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente e confirmar a sentença recorrida.
Custas do recurso pela recorrente.
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Porto, 11 de Março de 2021.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 605)
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva

[a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]
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[1] Mantém-se a numeração não sequencial e não ordenada cronologicamente proveniente da sentença recorrida apenas para compreensão do teor das alegações de recurso e da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
[2] O Anteprojecto de Código do Consumidor de 2006, consultável http://www.oa.pt/upl/%7B074a0e26-88f3-4958-b06b-a07ecb04a19d%7D.pdf, previa no artigo 193º, n.º 2, a seguinte disposição: “não pode ser exigida ao consumidor qualquer remuneração pelo uso normal e regular que haja dado ao bem antes do exercício do direito de resolução, nem qualquer indemnização pela eventual diminuição de valor que, em consequência disso, sobrevenha” – cfr. Pinto Monteiro, “Sobre o direito do Consumidor em Portugal e o Anteprojecto do Código do Consumidor”, in Estudos do Instituto de Direito do Consumo, Vol. III, Edições Almedina, Coimbra, 2006, pp. 46 e segs.
[3] No Acórdão do TJUE de 17-04-2008, proc. n.º C-404/06, decidiu-se que «O artigo 3.º da Directiva 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio de 1999, relativa a certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que permite que o vendedor, no caso de ter vendido um bem de consumo não conforme, exija ao consumidor uma indemnização pelo uso do bem não conforme até à sua substituição por um novo bem». Esta decisão, que, note-se, tem em mente o direito do consumidor à substituição do bem, não o seu direito à resolução do contrato, é justificada no texto do Acórdão, além do mais, com a seguinte afirmação: «Nos casos em que o vendedor entrega um bem não conforme, não executa correctamente a obrigação à qual se tinha comprometido através do contrato de venda e deve, assim, assumir as consequências dessa má execução do contrato. Ao receber um novo bem em substituição do bem não conforme, o consumidor, que, por sua vez, pagou o preço de venda e, portanto, executou correctamente a sua obrigação contratual, não beneficia de um enriquecimento sem causa. O consumidor recebe apenas, com atraso, um bem conforme às estipulações do contrato, tal como o deveria ter recebido desde o início