Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
706/19.0T8AMT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: DOCUMENTO AUTÊNTICO
CONVENÇÃO CONTRÁRIA AO SEU CONTEÚDO
ADMISSIBILIDADE DA PROVA TESTEMUNHAL
PRINCÍPIO DE PROVA ESCRITO
Nº do Documento: RP20210225706/19.0T8AMT.P1
Data do Acordão: 02/25/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Se a análise das circunstâncias do caso concreto tornar verosímil a existência da convenção das partes, contrária ou adicional ao conteúdo de documento autêntico, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores, poderá ser admissível a prova testemunhal acerca desta;
II - Em tal hipótese, o recurso às testemunhas já não apresenta os perigos a que os artigos 394.º e 395.º Código Civil visam obstar, porquanto o juízo do tribunal se apoiará, nestas circunstâncias, não apenas nos depoimentos testemunhais, mas também nas circunstâncias objectivas que tornem verosímil a convenção: estas circunstâncias servem de base inicial à formação da convicção do tribunal, e a prova testemunhal limita-se a completar essa convicção, ou antes, a esclarecer o significado dessas circunstâncias.
III - Assim, se o facto a provar já está tornado verosímil por um começo de prova escrito, a prova por testemunhas é de admitir.
IV - Num contrato de compra e venda de imóvel, a simulação do preço é uma simulação relativa que, não determina a nulidade do negócio, apenas implica a determinação do preço real.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 706/19.0T8AMT.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este
Juízo Local Cível de Amarante

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.RELATÓRIO.
1. B… propôs acção declarativa comum contra C…, ambos devidamente identificados nos autos, pedindo que:
a) Se declare que o valor de venda do imóvel não é o indicado na escritura (€ 3.000,00 euros), mas sim de € 11.000,00 euros;
b) Se condene o réu a pagar-lhe o remanescente do preço em dívida de € 6.000,00 euros, acrescido dos juros de mora.
Em arrimo da sua pretensão, coligiu a autora a seguinte narrativa fáctica:
- Por escritura pública de compra e venda, de cópia a fls. 4 verso, outorgada em 23 de Junho de 2017, a mesma declarou vender ao réu C…, pelo preço já recebido de € 3.000 euros, o prédio rústico denominado “D…”, composto de terra de cultivo, com a área de 578 m2, sito no …, freguesia …, concelho de Amarante, inscrito na matriz sob o artigo 1079 e descrito na Conservatória sob o n.º 431- ….
- O réu entregou à autora a quantia de € 5.000 euros, repartida por duas prestações de € 3.000 euros e € 2.000 euros.
- Na realidade, autora e réu ajustaram que a contrapartida do prédio era de € 11.000 euros.
Citado o réu, o mesmo defendeu-se por impugnação, contrapondo que o preço ajustado foi outrossim de € 6.000 euros, tendo o réu entregue à autora €1.000 euros a título de sinal em 17 de Maio de 2017, tendo posteriormente entregue à mesma a quantia de € 5.000 euros, repartida por duas prestações de € 3.000 euros e € 2.000 euros.
Teve lugar a audiência prévia, na qual foi proferido despacho saneador, a declarar a regularidade e validade da instância, selecionados os factos assentes, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas de prova.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferida sentença que, julgando a acção improcedente, por não provada, absolveu o réu do pedido contra ele formulado.
2. Por não se conformar com a referida sentença, dela interpôs a Autora recurso de apelação para esta Relação, rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:
A. Desde logo, apraz aqui salientar o facto da douta sentença ora recorrida padecer de nulidade, porquanto, em sede de fundamentação da decisão tomada, encontram-se incongruências no que respeita aos fundamentos que terão sido decisivos para a convicção do julgador, tornando assim ininteligível a decisão proferida.
B. Com efeito, não obstante o n.º 4 do art.º 607.º do C.P.C., certo é que da douta sentença ora recorrida não resulta uma perfeita análise/exame crítico das provas (de todas) de que lhe cumpria conhecer.
C. Pois que, salvo o devido respeito, que é sempre muito, não resulta claro do teor da decisão em apreço – perante uma frase incompleta, cuja genesis se ignora – se o Tribunal ponderou, ou deixou de ponderar, a documentação junta aos presentes autos, e como tal, que documentos (ou não) conduziram à determinação da convicção do Tribunal.
D. O que, salvo o devido respeito, poderá ter conduzido a Meret.º Juiz “a quo” a olvidar de toda aquela produção de prova (precisamente a prova arrolada pela aqui Apelante) e a desatender, pois, a mesma para efeitos de decisão de facto.
E. Termos em que «É nula a sentença quando ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível», nos termos da alínea c) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC, e, ainda, quando «não especifique os fundamentos de facto e de direito que justifiquem a decisão», nos termos da alínea b) do mesmo preceito, o que aqui expressamente se invoca.
F. A fundamentação da decisão deve, pois, permitir o exercício esclarecido do direito ao recurso e assegurar a transparência e a reflexão decisória, convencendo e não apenas impondo.
G. A não observância das regras expostas, verificada “in casu” nos termos supra aludidos, constitui, assim, causa de nulidade da sentença - artigo 615.º, n.º 1, alíneas b) e c) do C.P.C. - o que aqui expressamente se invoca, com todas as devidas e legais consequências daí derivantes.
H. Pois que, salvo o devido respeito, deixar as frases incompletas numa sentença, sem ligação que se vislumbre sequer com as demais frases que, no seu conjunto, fundamentam a sentença proferida, não satisfaz as exigências de clareza e transparência necessárias.
SEM PRESCINDIR,
I. Tendo por base a factualidade tida como provada e não provada, a que já supra se aludiu, e transcreveu nos seus precisos termos, pretende a aqui Apelante impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, o que faz nos termos do artigo 639.º do CPC, pois que, entende ter sido violado o disposto no artigo 394.º do CC, quando entendeu o Dign.o Tribunal “a quo” pela inadmissibilidade de valoração da prova testemunhal, e ainda, consequentemente, nos termos do art.º 640.º C.P.C., remetendo-se então para o registo/gravação realizado em audiência de julgamento, devidamente assinalado nos locais próprios.
J. Isto porque, e desde logo, entende o ora Apelante ter sido incorrectamente julgada a factualidade constante da matéria dada como não provada sob os números 1. supra, e, por isso, impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto, havendo que reapreciar a prova produzida nos autos.
K. Com efeito, e desde logo, o Dign.º Tribunal considerou não provada tal matéria fáctica, em que assentava na posição da Autora nos presentes autos, porquanto, considerou que a «autora não pode provar a simulação por testemunhas, a autora, recusada que foi a confissão do réu», «como deflui do art. 394 n.º 1 do CC»
L. Porém, com todo o devido respeito e salvo melhor opinião, fê-lo de forma desconsiderada, pois que, na verdade, da prova produzida nos autos, nomeadamente, documental – principio de prova escrito, que deveria, como veremos infra, afastar a norma do art.º 394.o do CC - não poderia o Tribunal assim ter considerado.
M. Resulta, pois, que o Dign.o Tribunal “a quo”, relativamente a esta matéria controvertida, descurou da correta interpretação da norma do n.º 2 do artigo 394.º do CC.
N. É que, se tal como defendido na douta sentença ora recorrida, de acordo com o n.º 2 do art.º 394.º do Cod. Civil, a prova testemunhal é inadmissível quando verse sobre o “acordo simulatório e ao negócio dissimulado, quando invocado pelos simuladores”, assentando a proibição na consideração de que a prova testemunhal é “extremamente insegura” frágil e falível, havendo que afastar o risco de os simuladores, apenas dela se prevalecendo, se poderem destruir a eficácia probatória de um documento, reconhecidamente um meio de prova mais seguro e fiável.
O. A verdade é que, contudo, tem-se vindo a interpretar restritivamente o disposto no n.º 2 do art.º 394.º do CC, sustentando-se, em resumo, que, existindo um princípio de prova documental da simulação, é admissível que o tribunal se socorra da prova testemunhal para complementar ou reforçar a convicção adquirida relativamente plausivelmente indiciados ou revelados por aqueloutro meio de prova (conforme Acórdão do STJ, de 07/02/2017, proferido pela 1.ª Secção nos autos de processo n.º 3071/13.6TJVNF.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt).
P. É, pois, nesta medida, com a devida vénia, que não podemos concordar com a Meritíssimo Juiz “a quo”, uma vez que pensamos que a prova documental existente no processo, bem como a matéria que foi dada como provada, ou seja a matéria assente, vai muito para além daquilo que o Tribunal “a quo” refere como sendo a existente, constituindo efectivamente um indício de prova directo da simulação do negócio jurídico concretizado entre a Autora e o Réu.
Q. De facto, tendo na escritura de compra e venda sido declarado o preço de €: 3.000,00 (facto provado n.º 1) e, bem assim, tendo sido juntos aos autos, quer pela Autora quer pelo Réu documentos bancários, idóneos e não impugnados sequer, que atestam o pagamento de €: 5.000,00, aqui temos o princípio de prova bastante da existência da alegada simulação de preço, sem descurar da própria confissão realizada pelo Réu.
R. Como se disse e se sublinha, constam do processo, a fls 6 e fls 6 verso, documentos que comprovam que o preço simulado – €: 3.000,00 - não foi na realidade o preço efectivamente acordado - €: 11.000,00 (na posição defendida pela Autora) e/ou pago – €: 5.000,00 (conforme defendido pela Autora).
S. Qualquer das provas supra é documental e deve por si só, constituir forte indício da simulação - o “fumus bonni juris” - podendo ser objecto de complemento por outras provas, nomeadamente a prova testemunhal.
T. Esta é a porta que devia ter permitido - e não permitiu – admitir a produção de outros meios de prova, inclusivamente a prova testemunhal para a descoberta da verdade material, facto a que o Tribunal está obrigado.
U. Assim, deve ser valorada a prova testemunhal que funcionará instrumentalmente à prova documental, à confessional, do Réu, permitindo identificar o acordo das partes, colocando-as em pé de igualdade ao permitir a construção e representação da verdade material que, em face do fica dito, está muito para além do meramente vertido na escritura pública de compra e venda.
V. A esta luz, não pode deixar de efectuar-se a valoração da prova acessória/testemunhal que em juízo foi produzida, e que, no caso dos autos determinaria a alteração da resposta ao tema de prova n.º 1, devendo, assim haver então uma reapreciação da prova gravada, indicando-se com exactidão, nos termos aliás do disposto no nº 2, do art.º 640º do C.P.C. as passagens dos depoimentos que se revelaram importantes para que a decisão sobre a matéria de facto apontada fosse apreciada e proferida de modo diferente, conforme supra se deixou transcrito e aqui por razões de economia processual se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos.
W. Termos em que, pelo supra exposto, se conclui descurou o Dign.º Tribunal “a quo” da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, mormente, da prova documental, conjugada com a prova testemunhal ouvida, sendo que, ao invés do decidido, deveria ter dado como provada a factualidade controvertida sob o tema de prova n.º 1.
X. Isto porque, estamos em crer, que com base na prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento, como coadjuvante da prova documental presente nos autos, se revelava adequado que o Dign.º Tribunal “a quo” desse como provados os factos supracitados naqueles precisos termos, já que resultou com absoluta veracidade a confirmação de tudo quanto havia sido alegado pela Autora, ora Apelante, nos autos para fundamentar a procedência do petitório deduzido.
Y. Assim, não podemos senão concluir: no modesto entender da aqui Apelante, e salvo melhor opinião, conclui-se que o Digníssimo Tribunal “a quo” não ponderou devidamente a matéria de facto que lhe foi apresentada, tendo, por isso, feito uma incorrecta valoração dos meios de prova que lhe foram apresentados, violando, pois, o espírito subjacente ao disposto nos artigos 394.º do C.C., bem assim, nos artigos 410.º, 413.º, 414.º e 444.º do CPC.
Z. De modo que, atento tudo o exposto, e após correcta valoração de toda a prova produzida nos autos, deverá a matéria factual supra referida, designadamente, os pontos supra identificados como tendo sido incorrectamente julgados, ser alterada por forma a constar a factualidade ali vertida na matéria de facto provada.
AA. Termos em que, enfermando a douta decisão sob recurso de erro de julgamento nos termos do art.º 712.º do C.P.C., impõe-se a modificação da decisão de facto nos termos supra expostos, ou seja, a alteração da resposta a tal quesito, supra elencado, de forma a que seja incluído na fundamentação de facto como facto provado.
BB. E, consequentemente, aplicando as normas jurídicas correspondentes, deve ser revogada a douta sentença e substituída por outra que julgue procedente, por não provada, a presenta acção, com as devidas e legais consequências.
EM SUMA,
CC. Por tudo quanto ficou exposto, entende a aqui Apelante que a douta sentença recorrida padece de nulidade, nos termos das alíneas b) e c) do n.º 1 do art.º 615.º do NCPC, por inobservância do n.º 4 do art.º 607.º do NCPC, em clara violação de preceito constitucional do art.º 205.º da CRP;
DD. Bem assim, incorreu em erro de julgamento, não tendo procedido a uma correcta apreciação do aspecto factual e jurídico da causa, infringindo e violando, pois, o espírito subjacente ao disposto nos artigos 394.º do C.C. e, bem assim, nos artigos 410.º, 413.º, 414.º e 444.º do CPC.
Termos em que, decidindo V.ªs Exas. dar provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença nos termos expostos, substituindo-a por outra que julgue procedente a acção interposta, condenando o Réu nos pedidos, com todas as consequências legais daí advenientes, será feita, assim e como sempre, inteira e sã JUSTIÇA!
O apelado não apresentou contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO.
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar:
- Se a sentença padece de nulidade;
- Se ocorreu erro na apreciação da prova.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
III.1. Foram os seguintes os factos julgados provados em primeira instância:
A. Por escritura pública de compra e venda, de cópia a fls. 4 verso, outorgada em 23 de Junho de 2017, a autora B… declarou vender ao réu C…, pelo preço já recebido de € 3.000 euros, o prédio rústico denominado “D…”, composto de terra de cultivo, com a área de 578 m2, sito no …, freguesia …, concelho de Amarante, inscrito na matriz sob o artigo 1079 e descrito na Conservatória sob o n.º 431- ….
B. O réu entregou à autora a quantia de € 5.000 euros, repartida por duas prestações de € 3.000 euros e € 2.000 euros.
III.2 A mesma instância considerou não provados os seguintes factos:
1- [...] autora e réu ajustaram que a contrapartida do prédio era de € 11.000 euros;
2- O réu entregou € 1.000 euros à autora, a título de vinculação, no dia 17 de Maio de 2017.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
1. Da nulidade da sentença.
Dispõe hoje o n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil:
É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.
Tal como o n.º 1 do artigo 668.º do anterior diploma, também o n.º 1 do artigo 615.º do actual Código de Processo Civil contém uma enumeração taxativa das causas de nulidade da sentença[1], nelas não se inserindo o designado erro de julgamento, que apenas pode ser atacado por via de recurso, quando o mesmo for legalmente admissível[2].
A recorrente aponta à sentença que recursivamente impugna vícios de nulidade que integra na previsão das alíneas b) e c), última parte, do n.º 1 do citado normativo.
Respeita o vício elencado na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º da lei processual civil à omissão de fundamentação, quer de facto, quer de direito, da sentença. Como esclarecem, a propósito, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora[3]: “para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta embora esta se possa referir aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito.
(…) Para que haja falta de fundamentação, como causa de nulidade da sentença, torna-se necessário que o juiz não concretize os factos que considera provados e coloca na base da decisão.
Relativamente aos fundamentos de direito, dois pontos importa salientar.
Por um lado, o julgador não tem que analisar todas as razões jurídicas que cada uma das partes invoque em abono das suas posições, embora lhe incumba resolver todas as questões suscitadas pelas partes: a fundamentação da sentença contenta-se com a indicação das razões jurídicas que servem de apoio a solução adoptada pelo julgador.
Por outro lado, não é indispensável, conquanto seja de toda a conveniência, que na sentença se especifiquem as disposições legais que fundamentam a decisão; essencial é que se mencionem os princípios, as regras, as normas em que a sentença se apoia”[4].
Importa ainda reter que “da falta absoluta de motivação jurídica ou factual - única que a lei considera como causa de nulidade —há que distinguir a fundamentação errada, pois esta, contendendo apenas com o valor lógico da sentença, sujeita-a a alteração ou revogação em recurso, mas não produz nulidade”[5].
O entendimento de que só a falta absoluta de fundamentação gera a nulidade tipificada na citada alínea b) do n.º 1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil emerge, em última análise, dos ensinamentos do Prof. Alberto dos Reis[6], tendo sido posteriormente defendida por outros processualistas.
Hoje, porém, face ao dever geral de fundamentação das decisões judiciais imposto pelo artigo 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, de modo que os seus destinatários as possam analisar criticamente, nomeadamente para efeitos de impugnação, quando seja admissível o recurso, começa-se a consolidar entendimento que confere àquele dever de fundamentação maior rigor e uma mais apertada exigência, equiparando à falta absoluta uma fundamentação insuficiente, quando esta se revele imperceptível aos seus destinatários judiciários[7].
Claramente não padece dessa patologia a sentença aqui escrutinada que, especificando os factos provados e os não provados, explicando detalhadamente as razões por que se norteou a Sr.ª Juiz para formar, do modo como o fez, a sua convicção probatória e os meios de prova que ponderou para esse efeito, satisfez, ao contrário do que sustenta a recorrente, a exigência legal imposta pelo n.º 4 do artigo 607.º do Código de Processo Civil.
Invoca ainda a apelante sofrer a sentença do vício previsto na segunda parte da alínea c) do citado artigo 615.º, o que a torna ininteligível.
Argumenta, para tanto, a apelante “...não resulta claro do teor da decisão em apreço – perante uma frase incompleta, cuja genesis se ignora – se o Tribunal ponderou, ou deixou de ponderar, a documentação junta aos presentes autos, e como tal, que documentos (ou não) conduziram à determinação da convicção do Tribunal”, adiantando, mais à frente, que “...deixar as frases incompletas numa sentença, sem ligação que se vislumbre sequer com as demais frases que, no seu conjunto, fundamentam a sentença proferida, não satisfaz as exigências de clareza e transparência necessárias”.
A frase incompleta a que se refere a recorrente consta de fls. 9 da sentença sob recurso, onde, na exposição da fundamentação de direito, consta a seguinte frase: “- Declaração dos irmãos da ré, a fls. 21 verso, onde os mesmos declaram te
Não se exige qualquer esforço intelectual para facilmente se poder concluir que a frase em causa, dita incompleta, sendo, ao que tudo indica, resultado de erro de processamento informático, nada tem a ver com os presentes autos – em que não há ré, mas réu, e em que a declaração em causa não existe sequer.
Quanto à “ambiguidade ou obscuridade que torne a sentença ininteligível”, vício a que se refere o segundo segmento do mencionado normativo, ele ocorre “quando não seja percetível qualquer sentido da parte decisória (obscuridade) ou ela encerre um duplo sentido (ambiguidade), sendo ininteligível para um declaratário normal”[8].
Ou seja: ocorre obscuridade quando não seja perceptível o pensamento do julgador traduzido na parte decisória, verificando-se ambiguidade quando ela comportar mais do que uma interpretação.
Segundo o acórdão do S.T.J. de 11.4.2002,[9] ”só existe obscuridade quando o tribunal proferiu decisão cujo sentido exacto não pode alcançar-se. A ambiguidade só releva se vier a redundar em obscuridade, ou seja, se for tal que não seja possível alcançar o sentido a atribuir ao passo da decisão que se diz ambíguo [...].
Mas deve ter-se em conta que o haver-se decidido bem ou mal, de forma correcta ou incorrecta, em sentido contrário ao preconizado pela requerente, é coisa totalmente diversa da existência de obscuridade ou ambiguidade do acórdão [...]”.
A decisão sindicada não é dúbia, nem imprecisa, expondo de forma suficientemente clara os fundamentos que suportam a sua parte decisória, esta também de sentido inequívoco.
A inteligibilidade da mesma mostra-se plenamente assegurada, tanto assim que as veementes críticas que quanto a ela o reclamante manifesta são bem elucidativas de que apreendeu por completo o seu sentido.
E não se confundindo o vício em causa com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou com o erro na interpretação desta, a circunstância de a apelante discordar do decidido não afecta a inteligibilidade da decisão com a qual revela não se conformar, estando, em qualquer caso, indicados, de forma inequívoca os documentos a que o tribunal recorrido atendeu.
Em suma: nenhuma dos vícios denunciados afectam a sentença de que recorre a apelante, mostrando-se a mesma válida.
2. Reapreciação da matéria de facto.
Não se conformando a recorrente com a decisão proferida em primeira instância que considerou não provado que “autora e réu ajustaram que a contrapartida do prédio era de € 11.000 euros”, reclama desta instância o seu reexame.
Discordando do entendimento que conduziu àquele resultado probatório – não ser o mesmo passível de comprovação através de prova testemunhal, pugna a recorrente para que considere provado aquele segmento factual, sustentando opinião contrária à do tribunal recorrido, ou seja, ser admissível prova por testemunhas para a demonstração daquela controvertida realidade.
Tendo a Autora celebrado com o Réu um contrato de compra e venda do imóvel identificado no ponto 1) dos factos dados como provados, formalizado por escritura pública, na qual vendedora e comprador, respectivamente a Autora e o Réu, declaram ser de € 3.000,00 o preço do imóvel, já recebido, alegando a Autora que o preço ajustado não foi o declarado na escritura, mas sim de € 11.000,00, pretende a mesma com a demanda instaurada contra o Réu que se declare que o valor de venda do imóvel não é o indicado na escritura (€ 3.000,00 euros), mas sim de € 11.000,00 euros e se condene este a pagar-lhe o remanescente do preço em dívida, ou seja € 6.000,00, facto contestado pelo demandado que alega ter sido de € 6.000,00 o preço acordado pela compra e venda do imóvel, o qual já se acha pago.
O tribunal não atendeu à prova testemunhal produzida, entendendo ser a mesma legalmente inadmissível, convocando, para tanto, o disposto no artigo 394.º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil, concluindo não estarem preenchidos “os pressupostos exigíveis para um começo de prova que legitime a admissibilidade de prova testemunhal”.
O contrato de compra e venda que tenha por objecto um imóvel é um negócio formal, sendo condição para a sua validade que seja celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado[10].
Trata-se de exigência formal ad substantiam, pois dela depende a própria validade do negócio e não apenas a sua prova[11].
Segundo o artigo 393.º, n.º 1 do Código Civil, se a declaração negocial, por disposição da lei ou estipulação das partes, houver de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provada por escrito, não é admitida prova testemunhal[12], não sendo igualmente admissível a prova por confissão, como decorre da alínea a) do artigo 354.º do Código Civil.
Também o n.º 2 do artigo 393.º veda a prova por testemunhas, quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena.
Dispõe, por seu turno, o n.º 1 do artigo 394.º do Código Civil: “É inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo do documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373.º a 379.º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores”.
Esta proibição de produção de prova testemunhal aplica-se ao acordo simulatório e ao negócio dissimulado, quando invocado pelos simuladores, não sendo aplicável a terceiros[13].
Pires de Lima e Antunes Varela[14] sustentam que o normativo em causa se aplica, apenas, às convenções contrárias aos documentos na parte em que estes não têm força probatória plena e às convenções adicionais ou acessórias, a que alude o artigo 221º do Código Civil, já que a inadmissibilidade da prova testemunhal contra o conteúdo de documentos autênticos, na parte em que estes têm força probatória plena, resulta dos artigos 371.º e 372.º do mesmo diploma legal.
Tem o mesmo por objectivo, ao estabelecer a inadmissibilidade da prova testemunhal, afastar os riscos que este meio probatório poderia introduzir no domínio dos negócios formais: permitir que uma ou ambas as partes infirmassem ou frustrassem a eficácia do documento, socorrendo-se de um meio probatório - testemunhal - falível e inseguro. Como afirmou Mota Pinto[15], desta forma “se defende o conteúdo dos documentos (o seu carácter verdadeiro e integral) contra os perigos da precária prova testemunhal, em conformidade com a máxima “lettres passent témoins””. Ou seja: “a finalidade daquele dispositivo é evitar que a eficácia do contido num documento escrito possa ser posto em causa através de um meio de prova mais aleatório e inseguro, como é a prova testemunhal”[16].
O artigo 394.º do Código Civil fundamentou-se na doutrina do Prof. Vaz Serra, designadamente nos seus estudos sobre as provas, publicados no BMJ n.ºs 110º a 112º. Defendeu este autor a não consagração absoluta do princípio da não admissibilidade da prova testemunhal para as convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo dos documentos referenciados no citado dispositivo legal.
E assim, na linha do direito italiano, sustenta a admissibilidade da prova testemunhal quando esta “seja acompanhada de circunstâncias que tornem verosímil a convenção que com ela se quer demonstrar”[17], apontando as hipóteses da prova da simulação pelos simuladores, ou “quando tenha em vista fazer valer a ilicitude do contrato dissimulado”, isto é, “quando está em jogo um interesse público que deve prevalecer sobre o das partes”[18].
Já na vigência do Código Civil de 1966, defende uma interpretação restritiva da norma em causa, indicando aquelas excepções à regra da não admissibilidade da prova testemunhal nela consagrada, afirmando: “parece razoável que a prova testemunhal seja admitida quando, em consequência das circunstâncias do caso concreto, for verosímil que a convenção tenha sido feita”[19]. E esclarece: “a convicção do tribunal está já parcialmente formada com base nessas circunstâncias e a prova testemunhal limitou-se a completar essa convicção, ou antes, a esclarecer o significado de tais circunstâncias”.
Segundo ainda o mesmo autor, referindo-se às restrições à admissibilidade da prova testemunhal, “esta doutrina não foi formulada expressis verbis no código por isso se ter considerado desnecessário”[20], precisando que “as excepções que estes códigos fazem à regra da inadmissibilidade da prova testemunhal contra ou além do conteúdo de documentos parecem igualmente verdadeiras no nosso direito, apesar do silêncio do código acerca delas”.
Sempre a propósito da questão aqui em debate, elucida ainda o mesmo Professor que se a análise das circunstâncias do caso concreto tornar verosímil a existência da convenção das partes, poderá ser admissível a prova testemunhal acerca desta; em tal hipótese, o recurso às testemunhas já não apresenta os perigos a que os artigos 394.º e 395.º Código Civil visam obstar, porquanto o juízo do tribunal se apoiará, nestas circunstâncias, não apenas nos depoimentos testemunhais, mas também nas circunstâncias objectivas que tornem verosímil a convenção: estas circunstâncias servem de base inicial à formação da convicção do tribunal, e a prova testemunhal limita-se a completar essa convicção, ou antes, a esclarecer o significado dessas circunstâncias[21].
O acórdão da Relação de Lisboa de 02.11.2006[22], apoiando-se nos ensinamentos do Prof. Vaz Serra, e citando algumas ideias por ele expressas, aponta as seguintes situações que podem constituir desvio à regra contida no artigo 394.º do Código Civil: “quando há «um começo de prova por escrito que torne verosímil o facto alegado, a prova testemunhal não é já o único meio de prova do facto, justificando-se a excepção por, então, o perigo da prova testemunhal ser eliminado em grande parte, visto a convicção do tribunal se achar já formada parcialmente com base num documento.
Também no nosso direito, se o facto a provar já está tornado verosímil por um começo de prova escrito, a prova por testemunhas é de admitir, pois não oferece os perigos que teria quando desacompanhada de tal começo de prova».
Outra excepção apontada é a de ter sido impossível, moral ou materialmente ao contraente obter uma prova escrita. «Esta excepção é de admitir mesmo sem texto legal que expressamente a estabeleça, pois é uma simples consequência de uma das razões por que não se admite a prova de testemunhas contra ou além do conteúdo de documentos: essa razão é a de que os contraentes poderiam ter reduzido a escrito as cláusulas ou convenções cuja prova pretendem fazer por testemunhas; portanto, se no caso concreto não houve essa possibilidade, cessa a razão de ser da prova testemunhal e esta é admissível».
A terceira excepção é a de perda sem culpa do documento que fornecia a prova”[23].
A doutrina e a jurisprudência[24] têm flexibilizado a previsão do nº 1, do artigo 394º, do Código Civil, admitindo a produção de prova testemunhal nos casos aí previstos, pelo menos sempre que exista um começo de prova por escrito.
Assim, segundo Mota Pinto[25], “Por razões de justiça, entendemos que a existência dum princípio de prova por escrito, tal como é definido e aplicado nos sistemas jurídicos francês e italiano, poderá permitir o recurso à prova testemunhal.
Com menos hesitação afirmamos ainda que, existindo já prova documental, susceptível de formar a convicção de verificação do facto alegado, é de admitir a prova de testemunhas, a fim de:
1º) Interpretar o contexto dos documentos, conforme expressamente prescreve o nº3 do artigo 393º do Código Civil (…);
2º) Completar a prova documental, desde que esta, a existir (...), constitua, por si só, um indício que torne verosímil a existência de simulação, a qual poderá ser plenamente comprovada não só com a audição de testemunhas juxta scripturam - pelos esclarecimentos e precisões que venha a fornecer à interpretação dos documentos - mas também como modo de integração, complementar da prova documental”.
O regime do n.º 1 do artigo 394.º citado “aplica-se ao acordo simulatório e ao negócio dissimulado, quando invocados pelos simuladores”.
Como destaca o acórdão do STJ de 7.02.2017[26], “...o tal “princípio de prova” só poderia ser constituído por qualquer dos documentos a que se refere o n.º 1 do artigo 394.º que, se não unívocos, só poderão tornar-se completos se conjugados com a prova secundária (que ,então, se concede ser testemunhal), complementar ou, com rigor, meramente residual, e só por si sem valor autónomo, por não lho permiti o n.º 2 do artigo 394.º.
De todo o modo, não repugna aderir à interpretação menos restritiva, desde que o “princípio de prova” seja um documento que não integre facto – base de presunção judicial pois sendo-o o n.º 2 do artigo 394.º poderia entrar em colisão com o citado artigo 351.º CC.
Daí que, adicionando esse documento a existência de acordo simulatório ou um negócio dissimulado se possa lançar mão da prova testemunhal para confirmar ou infirmar, tornando-se, então, o primeiro elemento de prova e sem que colida com o citado n.º 2 do artigo 394.º (v.g. os Acórdãos do STJ de17.6.2003 -03A1565; de 5.6.2007 –Pº 7A1364; Pº 758/06.3TBCBR-BP1.S1; e de 9.7.2014 -5944/07.6TBVNG.P1:S1)”.
Volvendo aos autos: alega a Autora que o preço declarado na escritura de compra e venda não corresponde ao preço real convencionado entre ela e o comprador, adiantando que o preço ajustado foi de € 11.000,00, faltando-lhe receber do Réu € 6.000,00, correspondente ao remanescente do preço em dívida.
Pretende, com a acção proposta, que se declare que o valor de venda do imóvel não é o indicado na escritura (€ 3.000,00 euros), mas sim de € 11.000,00 euros e se condene o Réu a pagar-lhe o remanescente do preço em dívida, ou seja € 6.000,00.
Confessa o Réu na contestação que apresentou que o preço declarado na escritura não corresponde ao preço convencionado entre as partes, tendo estas acordado o preço de € 6.000,00 para a compra e venda do imóvel, valor que, refere, já se acha pago, nada mais tendo a pagar à Autora.
E com o referido articulado junta o Réu comprovativos de transferência bancária a favor da Autora, com data de 19.06.2017, da quantia de € 3.000,00, e de € 2.000,00, realizada esta a 23 do mesmo mês e ano.
Num ponto específico estão, pois, de acordo as partes: o preço ajustado para o negócio do prédio não é o declarado na escritura de compra e venda, sendo o valor que nela fizeram constar inferior ao valor real, não havendo grandes dúvidas quanto às razões que determinaram tal divergência, que se traduz na simulação do preço.
E os documentos bancários juntos pelo Réu atestam também aquela realidade, ou seja, que em data próxima (19.06.2017) e em data contemporânea da escritura (23.06.2017) o Réu fez entrega à Autora das quantias mencionadas no ponto B) dos factos provados, que somam o valor de € 5.000,00, superior ao valor do preço declarado na escritura de compra e venda do terreno.
Escreveu-se na sentença sob recurso: “...entre o facto indicado pelos documentos, pagamento de € 5.000 euros que o réu confessadamente chamou a si e assimilou e, aquele que deveria ser objecto de prova testemunhal, pagamento de € 5.000 euros ao invés do preço de € 11.000 euros, não se descortina um nexo lógico tal que confira ao último um relevante “fumus” de credibilidade. Esse nexo lógico terá de implicar sempre uma qualquer correlação lógica entre o conteúdo do escrito e o facto controverso o que, no caso, não se vislumbra (vide Vaz Serra, op. cit., pg.223).
Importa recordar que os simuladores sempre se podem precaver, em tese geral, por meio de contradeclarações escritas e aos mesmos continua a ser permitida a prova da simulação por qualquer outro meio de prova, v.g. documental (art.366.º) ou por confissão, mesmo que o negócio tenha sido celebrado por documento autêntico.
De todo o modo, no que ao caso concerne, não nos parece, em síntese, estarem preenchidos nos documentos referenciados, os pressupostos exigíveis para um começo de prova que legitime a admissibilidade de prova testemunhal.
E, salvo melhor opinião, a ausência do escrito provindo da contraparte que despolete a possibilidade excepcional de contrariar o referido art. 394.º, n.º 2 do Código Civil, condenou esta acção ao fracasso, por insuperável proibição de prova”.
Admitindo, no entanto, ambas as partes, de forma expressa e inequívoca, ser simulado o preço declarado na escritura de compra e venda, ambas aceitando que o preço convencionado é superior ao que fizeram constar naquele instrumento público, está irremediavelmente comprometida a fé pública que é reconhecida aos documentos autênticos e que a proibição de recurso a prova testemunhal para prova de convenções contrárias ou adicionais visa assegurar.
Deste modo, admitindo ambas as partes, por acordo expresso nos respectivos articulados, que o preço declarado na escritura não corresponde ao preço real entre elas acertado para o negócio, o facto a provar - simulação relativa quanto ao preço -, tornou-se verosímil por um começo de prova escrito.
E os documentos bancários juntos pelo próprio Réu indicam categoricamente que o preço que as partes fizeram constar da escritura é inferior ao convencionado por elas, tendo o Réu efectuado transferências bancárias a favor da Autora de valor superior ao preço declarado.
Nestas circunstâncias, independentemente da discussão quanto ao valor real do preço ajustado, a prova por testemunhas é admissível, não representando essa prova pessoal o perigo que a poderia acometer se desacompanhada daquele começo de prova.
Ouviu-se, por conseguinte, a gravação dos depoimentos prestados em audiência.
- E…, engenheiro civil, e a cujo gabinete a Autora acompanhou o Réu para este lhe encomendar um projecto de construção de uma habitação, precisa que o imóvel foi vendido como rústico, convertendo-o o Réu em urbano.
Mais tarde a Autora referiu-lhe ter sido enganada, mencionado ter vendido o terreno por € 11.000,00, tendo o Réu lhe pago apenas € 5.000,00 por conta do preço.
- F…, que esclareceu haver assistido a uma conversa entre Autora e Réu, por volta de Março/Abril de 2019, no decurso da qual aquela perguntou ao segundo se sabia que lhe devia dinheiro, facto por ele admitido.
Diz ter a Autora lhe revelado que havia vendido o terreno por € 11.000,00.
- G…, irmão da Autora, a quem esta mencionou que ia vender o terreno, tendo um interessado na sua aquisição pelo preço de € 11.000,00.
Adiantou que o comprador ficou a dever à irmã € 6.000,00.
- H…, companheira do Réu, referindo ter este adquirido o terreno à Autora por € 6.000,00, e que lhe pagou tal valor, por três vezes.
- I…, irmã da testemunha H…, que precisou que o negócio foi concretizado pelo preço de 6.000,00, facto que a própria Autora lhe confirmou.
Nenhuma das testemunhas em causa assistiu às negociações entre Autora e Réu e à determinação das condições contratuais, designadamente, o preço acordado.
As três primeiras testemunhas limitam-se, quanto ao preço, a reproduzir o que ouviram da Autora e as duas últimas testemunhas, pelas relações que as ligam ao Réu, prestaram um depoimento comprometido, sem o distanciamento necessário a uma relato desvinculado e objectivo.
Dos documentos constantes dos autos, designadamente os elementos bancários que atestam uma transferência para a conta da Autora no valor de € 3.000,00 e um depósito no valor de € 2.000,00, apenas se retira ter o Réu efectuado aquelas operações bancárias a favor da Autora, nada esclarecendo quanto ao preço convencionado.
Quanto ao preço ajustado pelas partes para a compra e venda do terreno, por ausência de outros elementos probatórios esclarecedores do mesmo, apenas poderá ser relevada a confissão do Réu, na primeira parte do artigo 4.º da sua contestação.
Deste modo, procedendo parcialmente a impugnação deduzida contra a decisão relativa à matéria de facto, determina-se a eliminação do ponto 1) dos factos não provados, aditando-se aos factos provados o seguinte:
C. Autora e réu ajustaram que a contrapartida do prédio era de € 6.000 euros.
3. Mérito do julgado.
Resulta, desta forma, comprovado que tendo Autora e Réu convencionado o preço de € 6.000,00 pela venda do prédio, na respectiva escritura que formalizou aquele negócio declararam ser de € 3.000,00 o preço, valor já recebido pela vendedora.
Em anotação ao acórdão de 4 de Dezembro de 1973 do STJ, a propósito deste tipo de simulação [relativa], esclarecia o Prof. Vaz Serra[27]: “a simples simulação do preço não torna nulo o contrato, ainda que feita para prejudicar o direito do Estado ao imposto”. E adiante: “o contrato não é nulo por motivos de natureza fiscal, sendo a sua validade ou nulidade determinada pelas regras do direito privado. A lei fiscal não impõe, consequentemente, a nulidade do contrato em que exista simulação do valor; e essa nulidade não resulta também da lei civil, pois, ainda que se trate de contrato sujeito legalmente a uma forma especial, como acontece com o contrato de compra e venda de coisa imóvel, a razão da exigência da forma não abrange o montante do preço, o qual não tem de ser determinado no contrato, bastando que seja determinável”.
E do sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.06.2007, processo 07A1364, pode retirar-se: “Tendo havido simulação do preço, na escritura definitiva de cessão da quota – onde as partes declararam, intencional e concertadamente, um preço inferior ao real com intenção de enganar o fisco – a nulidade emergente da simulação não se propaga ao negócio jurídico, apenas afectando o objecto imediato da simulação – o preço – que deve ser considerado não o declarado, mas o que realmente foi negocialmente querido”.
No mesmo sentido, também o acórdão do mesmo Tribunal de 20.01.1998 defende que “a simulação de preço não implica a nulidade do acto, que passará a valer pelo preço realmente convencionado”, entendimento que já era também acolhido no acórdão do mesmo Supremo Tribunal de Justiça de 15.05.1990, BMJ, 397, 478, ao sustentar que “É princípio assente na lei e na doutrina que a simulação do preço é uma simulação relativa que, não determinando a nulidade do negócio, apenas implica a determinação do preço real”.
No caso dos autos as partes admitem a simulação do preço, embora divergindo quanto ao preço real convencionado, em todo o caso superior ao que consta da escritura, facto por ambos aceite.
Alegando a Autora ter sido de € 11.000,00 o preço ajustado para o negócio, falhou na tarefa de demonstrar a factualidade invocada, resultando antes comprovado, por confissão do Réu, que o preço convencionado foi de € 6.000,00.
Pede a Autora que seja o Réu condenado no pagamento do remanescente do preço em dívida, que, segundo alega, corresponde a € 6.000,00.
O Réu, por sua vez, sustenta que o preço acordado foi € 6.000,00, tendo satisfeito integralmente o seu pagamento.
Tendo-se logrado apurar que o preço real foi fixado pelas partes em € 6.000,00, não resulta comprovado que o Réu haja pago integralmente esse preço[28], sendo que era sobre ele que recaía o ónus de prova desse pagamento – artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil -, estando em dívida a quantia de € 1.000,00.
Sobre tal importância vencem-se juros de mora, à taxa legal, nos termos dos artigos 804.º, 805.º, n.º 1 e 806.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código Civil.
Procede, assim, parcialmente a apelação, com a consequente revogação da sentença recorrida, condenando-se o Réu no pagamento do remanescente do preço, ainda em dívida, acrescido de juros de mora vencidos desde a citação[29], bem como juros vincendos até integral pagamento.
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Síntese conclusiva:
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Nestes termos, acordam os juízes desta Relação, na procedência parcial do recurso, em:
1. Alterar a decisão relativa à matéria de facto nos termos que antes se deixaram expostos;
2. Revogar a sentença recorrida;
3. Condenar o Réu a pagar à Autora o remanescente do preço ainda em dívida pela aquisição do imóvel, no valor de € 1.000,00 (mil euros), acrescido de juros de mora vencidos desde a citação, à taxa legal de 4% ou outra que entretanto venha a ser fixada, assim como juros vincendos, à mesma taxa, até integral pagamento.
Custas: por apelante e apelado, na proporção do respectivo decaimento.
[Acórdão elaborado pela primeira signatária com recurso a meios informáticos]


Porto, 25.02.2021
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
Francisca Mota Vieira
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[1] Cf. Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil anotado”, vol. V, pág. 137.
[2] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., pág. 686.
[3] “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., pág. 687 e segs.
[4] Cf. em idêntico sentido, Acórdão STJ de 19/03/02, “Rev. nº 537/02-2ª sec., Sumários, 03/02”; Acórdão Relação de Coimbra de 16/5/2000, www.dgsi.pt; Acórdão STJ de 13/01/00, “Sumários, 37-34”; Acórdão Relação Lisboa, de 01/07/99, BMJ 489-396.
[5] Anselmo de Castro, “Direito Processual Civil Declaratório”, vol. III, pág. 141.
[6] “Código de Processo Civil anotado”, Coimbra Editora, 1984, vol. V, pág. 140.
[7] Neste sentido, cfr. acórdão da Relação de Coimbra de 17.04.2012, processo nº 1483/09.9TBTMR.C1, www.dgsi.pt.
[8] Lebre de Freitas, “A Acção Declarativa Comum – À Luz do Código do Processo Civil de 2013”, 3ª ed., pág. 333.
[9] Processo n.º 01P3821, www.dgsi.pt.
[10] Artigo 875.º do Código Civil, na redação que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de Julho.
[11] Cfr. artigo 364.º do mesmo diploma.
[12] Tal limitação abrange igualmente as presunções judiciais, por força do disposto no artigo 351.º do Código Civil.
[13] N.ºs 2 e 3, do artigo 394.º do Código Civil.
[14] “Código Civil Anotado”, vol. I, pág. 341-342.
[15] “Teoria Geral do Direito Civil”, págs. 343-344.
[16] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 02.11.2010, processo nº 196/06.8TCFUN.L1.S1, www.dgsi.pt.
[17] BMJ n° 112, pág. 193.
[18] Ibid, págs. 197 e 198.
[19] Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 103°, pág. 13.
[20] Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 107°, págs. 311, 312. Reitera posteriormente a mesma posição na mesma Revista, ano 110º, pág. 383 e segs, ano 111º, pág. 3 e segs., e ano 115º, pág. 121 e segs.
[21] Revista Decana, 103º, págs. 10 e segs.
[22] Processo nº 5173/2006.2, www.dgsi.pt.
[23] No mesmo sentido, cfr. Acórdão do STJ, 23.10.2008, processo nº 08B2018.
[24] Cfr. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça: de 22.05.2012, processo nº 82/04-6TCFUN-A.L1.S2; de 09.07.2014, processo nº 28252/10.0T2SNT.L1.S1; de 15.04.2015, processo nº 28247/10.4T2SNT-A-L1.S1, todos em www.dgsi.pt.
[25] Parecer sobre a Arguição da Simulação pelos Simuladores, publicado na CJ, Tomo III/1985, Pág. 11 e segs., em colaboração com Pinto Monteiro.
[26] Processo n.º 3071/13.6TJVNF.G1.S1, www.dgsi.pt.
[27] RLJ, ano 107º, fls. 309-314.
[28] Cfr. ponto B) dos factos provados e ponto 2) dos factos não provados.
[29] A carta datada de 2 de Abril de 2019, que a Autora endereçou ao Réu e que o mesmo recebeu, não constitui interpelação, nela não sendo sequer indicado o valor da prestação em dívida que o destinatário deve satisfazer.