Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1751/11.0T2AVR-F.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: INSOLVÊNCIA CULPOSA
PRAZO DE INIBIÇÃO DO INSOLVENTE
Nº do Documento: RP201510081751/11.0T2AVR-F.P1
Data do Acordão: 10/08/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A insolvência deve ser qualificada como culposa quando o insolvente, numa altura em que a sua empresa já se encontrava em situação de insolvência, não se apresenta à insolvência e transmite para uma sociedade acabada de constituir pela mulher e pelo filho a totalidade dos bens da sua empresa, sem a sociedade pagar qualquer contrapartida financeira pela aquisição bens e assumindo apenas a obrigação contratual de pagar dívidas da empresa do insolvente.
II - A qualificação da insolvência estende-se à mulher do insolvente, também insolvente, por esta ter intervindo na referida transmissão dos bens, ainda que formalmente apenas consentindo na venda, quando esses bens eram afinal bens comuns que respondiam pelas dívidas de ambos os membros do casal.
III - A inibição do exercício do comércio não é uma sanção para os insolventes mas uma medida de prevenção de comportamentos similares aos dos insolventes, aplicando-se a estes mesmo que não se demonstre que à data dos factos eles exerciam o comércio.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
Processo n.º 1751/11.0T2AVR-F.P1 [Comarca de Aveiro/Inst. Central/Aveiro/Secção Comércio]

Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I.
B… e mulher C… apresentaram-se à insolvência mediante requerimento de 23.09.2011 e foram declarados em estado de insolvência por sentença proferida em 26.10.2011 e transitada em julgado.
Oportunamente a Administradora de Insolvência apresentou parecer sobre os factos que considerou relevantes para a qualificação da insolvência, parecer que concluiu no sentido da qualificação da insolvência como culposa com fundamento nas alíneas a) e i) do n.º 2 e na alínea a) do n.º 3, ambos do artigo 186º do CIRE.
Para o efeito, alegou que o insolvente B… se encontrava colectado como empresário em nome individual na actividade de agricultura e pecuária, possuindo uma vacaria com mais de 100 cabeças de gado, mas por contrato datado de 12.11.2010, que intitulou de compra e venda de bens móveis, transferiu todo o activo que a sua empresa possuía, incluindo as cabeças de gado para a sociedade D…, Lda. constituída pela sua mulher, aqui também insolvente, e o filho de ambos E…, a qual também já transferiu para terceiros a grande maioria das cabeças de gado. A Administradora resolveu o referido contrato de compra e venda do activo, não tendo recebido qualquer resposta ou esclarecimento, quer por parte dos insolventes, quer por parte da sociedade dita compradora e sua gerência. Apesar desse contrato, a Administradora encontrou nas instalações dos insolventes vários bens que compunham o activo da empresa do insolvente, mas os restantes bens, designadamente uma máquina de valor próximo dos €50.000,00, não mais foram encontrados. Apesar do pedido da Administradora para que essa máquina lhe fosse entregue, a insolvente C… afirmou que esta não lhes pertencia e só estava nas suas instalações por lhes ter sido emprestada. Os bens móveis apreendidos em benefício da Massa insolvente encontram-se na sua maioria em mau estado de conservação, o que se reflectiu no valor atribuído e na venda dos mesmos, havendo alguns deles que denotavam terem sido danificados intencionalmente. A Administradora não teve acesso à contabilidade; os elementos contabilísticos que possui foram-lhe entregues pelo mandatário dos insolventes. A situação de insolvência era do conhecimento dos insolventes, muito antes da sua apresentação.
O Ministério Público expressou a sua concordância com o parecer da Administradora da insolvência.
Os insolventes apresentaram oposição, pugnando pela qualificação da insolvência como fortuita, alegando, em síntese, que o contrato de compra e venda de bens móveis foi celebrado mediante a contrapartida da assunção e o efectivo pagamento por parte da compradora das dívidas da responsabilidade do vendedor; que aquando da apresentação à insolvência os apresentantes juntaram ao processo relação do activo que comportava a totalidade dos bens que, à data, detinham; que os bens que se encontravam nas instalações do insolvente foram relacionados aquando da apresentação à insolvência, com indicação da sua localização para poderem ser apreendidos; que a máquina referida pela Administradora efectivamente não lhes pertencia; que o estado de conservação dos bens resulta somente do seu uso durante vários anos nas actividades agrícola e pecuária que é sobremaneira desgastante e da falta de recursos financeiros para os insolventes procederem à sua manutenção e reparação; que, por intermédio do seu mandatário, entregaram os elementos contabilísticos que lhes foram solicitados e prestaram toda a colaboração que lhes foi solicitada.
Após julgamento, foi proferida sentença na qual se decidiu pela qualificação da insolvência como culposa, declarar afectados pela declaração os insolventes e declará-los inibidos para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação, fundação, empresa pública ou cooperativa durante um período de três anos.
Do assim decidido, os insolventes interpuseram recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1.ª Mal andou o Tribunal "a quo" ao decidir pela qualificação da insolvência dos Recorrentes/Insolventes como culposa, porquanto, nenhuma das disposições do art. 186.º do CIRE é passível de emprego ao caso concreto dos autos;
2.ª A Recorrente/Insolvente mulher, sendo uma pessoa singular, não titular de empresa (ut art. 5.º do CIRE), não estava obrigada a apresentar-se à insolvência (ut art. 18.º, n.º 2 do CIRE);
3.ª A actuação da Recorrente/Insolvente mulher não se enquadra na noção geral contida no n.º 1 no art. 186.º do CIRE, nem é susceptível de integrar os pressupostos enunciados em qualquer uma das alíneas do n.º 2 do art. 186.º do CIRE;
4.ª O Recorrente/Insolvente marido não dispôs de bens decorrentes da sua actividade em proveito pessoal ou de terceiros;
5.ª Não se logrou provar que a actuação dos Recorrentes/Insolventes foi flagrantemente reprovável ou altamente censurável, apta a causar ou a agravar a sua situação de insolvência;
6.ª A douta sentença recorrida enferma de erro de interpretação/aplicação da disposição do art. 186.º, n.ºs 1, 2, al. a) e 3 do CIRE;
7.ª Mal andou o Tribunal "a quo" ao inabilitar os Recorrentes/Insolventes para o exercício do comércio por um período de três anos;
8.ª A Recorrente/Insolvente mulher não tinha porque ser afectada pela qualificação da insolvência como culposa, pois a mesma é uma pessoa singular, não titular de empresa;
9.ª A admitir-se existir fundamento para a qualificação da insolvência dos Recorrentes/Insolventes como culposa, o que apenas de concede por mera hipótese de raciocínio, o período de inibição de três anos é excessivamente longo e desproporcionado, face à factualidade provada;
10.ª A admitir-se existir fundamento para a qualificação da insolvência dos Recorrentes/Insolventes como culposa, o que apenas de concede por mera hipótese de raciocínio, não faz sentido a imposição do mesmo período de inibição a ambos os Recorrentes/Insolventes, tendo em conta que apenas um se encontrava colectado para o exercício da actividade agrícola, ou seja, o Recorrente/Insolvente marido;
11.ª A douta sentença recorrida enferma de erro de interpretação/aplicação da disposição do art. 189.º, n.º 2, al.s b) e c) do CIRE.
O Ministério Público respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II.
As conclusões das alegações de recurso colocam este Tribunal perante o dever de resolver as seguintes questões:
i) Se existe fundamento para qualificar a insolvência como culposa.
ii) Se esse fundamento se aplica igualmente à insolvente mulher não titular de empresa.
iii) Se o prazo de três anos de inibição para o exercício do comércio é excessivo.

III.
Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
a) Por requerimento que apresentaram em juízo em 23.09.2011, foi declarada a situação de insolvência do casal B… e C… por sentença proferida em 26.10.2011 e transitada em julgado.
b) Com a petição inicial os insolventes apresentaram relação de bens contendo descritas as seguintes verbas: 1. distribuidor de 400 litros da marca Vicon em mau estado de conservação; 2. tanque de refrigeração de leite 5.000 litros e drenagem automática; 3. máquina de lavar com carrinho mangueira e pistola; 4. linha de leite inox 50; 5. linha de lavagem inox 40; 6. virador de ferros 2 estrelas MT2, 60 2G; 7. seis unidades de ordenha com medição electrónica; 8. um silo AV-724 com escada pneumático e válvula externa para cone; 9. corta milho MOD PZ90; 10. silo Roxell; 11. silo AV-722 com escada pneumático e válvula externa para cone; 12. placa Mielimeter 3; 13. três boxes para alimentação; 14. corta milho Mod. HCM90 SAH; 15 a 19. Tractores agrícolas matrículas ..-EA-.., ..-..-RM, ..-..-QE, ..-..-IE e ..-..-QR; 20 a 22. Veículos automóveis matrículas RQ-..-.., ..-..-ZP e ..-CJ-.. (estes dois últimos, objecto de reserva de propriedade em benefício do F… e que a este foram entregues); 23 a 30. Reboques agrícolas dos anos de 1998, 2001, 1990, 2005, 2006 e 1989; 31 a 33. Prédios rústicos descritos sob a ficha nº 6275, 6274 e 5213 da Conservatória do Registo Predial de Ovar.
c) Através de contrato de sociedade inscrito no registo em 08.11.2010 a insolvente e E…, filho dos insolventes, constituíram sociedade designada D…, Lda. tendo como capital social € 5.000,00 distribuído por duas quotas sociais de igual valor, e por objecto a produção e comercialização de produtos agrícolas, prestação de serviços agrícolas, criação de bovinos para produção de leite, com sede social na residência dos insolventes, Rua …, nº …, …, Ovar.
d) Através de contrato datado de 12.11.2010 epigrafado de Contrato de Compra e Venda (Bens Móveis) o insolvente, com o declarado consentimento da insolvente, declarou vender a D…, Lda., com sede na residência dos insolventes, todo o imobilizado respeitante à sua actividade comercial, conforme cópia da factura e mapa de amortização anexa ao contrato, pelo preço de €238.529,03, a pagar pela compradora mediante a assunção e o efectivo pagamento das dívidas da responsabilidade do vendedor ao G…, H…, I…, F…, J…, Lda., K….
e) Conforme venda a dinheiro nº 251 datada de 12.11.2010, o insolvente vendeu à sociedade “D…”, pelo valor de €54.700,00, 66 vacas de leite, 20 novilhos gestantes, 16 novilhas de 6 a 12 meses, 14 vitelas com 2 meses e 3 vitelos.
f) Através de carta datada de 24.05.2012 que dirigiu aos insolventes e ao filho destes, a Sr.ª administradora da insolvência declarou resolver a venda supra aludida e solicitou a devolução dos bens dela objecto ou, tendo sido objecto de venda a terceiros, a quantia recebida a título de preço.
g) Através de carta datada de 21.11.2011 os insolventes comunicaram à Sr.ª administradora da insolvência que os bens cuja falta é acusada pelo credor L… – bens que os insolventes descreveram em sede de inventário para partilha de bens em casos especiais, a saber, motobomba, charrua, sachador, escarificador, lenha, pulverizador, semeador, grade discos, tanque para gasóleo, maquina de rega, bomba landini, maquina lavrador, atrelado e máquina telescópica manitol, estes três últimos penhorados em execução instaurada pelo credor L… e dos quais o insolvente foi nomeado depositário – desapareceram das respectivas instalações aquando da realização da penhora no âmbito do processo nº 2681/11.0T2OVR que lhes foi instaurado por M… …, Lda. sem que os insolventes se encontrassem presentes, que a máquina ‘lavrador’ pertence ao Banco H… e foi removida no âmbito de penhora com remoção na execução nº 2681/11.0T2AVR, e que a máquina telescópica não lhes pertence. Mais declararam que por lapso decorrente de os bens constarem inscritos na matriz em benefício do usufrutuário, N…, não relacionaram dois imóveis dos quais detêm apenas a nua propriedade, a saber, prédio rústico descrito na Conservatória de Ovar sob a ficha nº 5213 e prédio misto descrito na mesma Conservatória sob a ficha nº 2927.
h) A Sr.ª administradora da insolvência deslocou-se às instalações da actividade dos insolventes e aí procedeu à apreensão dos bens móveis descritos em b), com excepção do distribuidor descrito em 1 e de um corta milho (verba nº 9 ou 14).
i) A Sr.ª administradora da insolvência procedeu à entrega dos veículos ..-..-ZP e ..-CJ-.. que lhe foi solicitada pela F… com fundamente em direito reserva de propriedade inscrito em benefício.
j) A Sr.ª administradora da insolvência mais apreendeu os imóveis supra descritos em b) e a nua propriedade do prédio misto descrito sob a ficha predial nº 2927, e a quota social da insolvente na sociedade D… …, Lda.
l) Na sequência das interpelações feitas pelos credores O… …, Lda. a Sr.ª administradora da insolvência informou nos autos que não procedeu à apreensão do tractor ..-BJ-.. por se encontrar registado em nome de P…, e antes deste em nome de Q… e antes desta em nome de S…, Lda.
m) No exercício de 2008 a actividade exercida pelos insolventes gerou resultado líquido no valor de € 1.808,60; no exercício de 2009 resultado líquido negativo de € 31.143,47 e no exercício de 2010 resultado líquido negativo de € 81.823,37.
n) O passivo reclamado/relacionado nos autos com fundamento em fornecimentos ascende a cerca de € 600.000,00, sendo € 450.000,00 a título de capital e o restante a título de juros e despesas.
o) Através de carta datada de 09.01.2012 a Sr.ª administradora da insolvência solicitou ao ilustre mandatário dos insolventes o envio dos IES referentes aos anos de 2008, 2009 e 2010 e informação a respeito da existência de acções instauradas pelos devedores, ao que aquele respondeu por missiva de 17.

IV.
i) da qualificação da insolvência como culposa:
Nos termos do artigo 185.º do CIRE a insolvência pode ser qualificada como fortuita ou como culposa. Por exclusão de partes, uma vez que a lei apenas define os pressupostos da insolvência culposa, fortuita é a insolvência que não é culposa.
De acordo com o artigo 186.º, n.º 1, a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. São assim pressupostos desta qualificação da insolvência uma conduta do devedor (ou dos seus administradores, de facto ou de direito), ocorrida nos três anos anteriores ao início do processo, que seja dolosa ou com culpa grave e tenha criado ou agravado a situação de insolvência.
A este propósito assinalou-se, com total acerto, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12.10.2010, relatado por Cecília Agante, no processo n.º 243/09.1TJPRT-G.P1, in www.dgsi.pt, que “o que se qualifica é o comportamento do devedor na produção ou agravamento do estado de insolvência, de modo a que se averigúe se existe, à luz da teoria da causalidade adequada, um nexo de causalidade entre os factos por si cometidos ou omitidos e a situação de insolvência ou o seu agravamento, e o nexo de imputação dessa situação à conduta do devedor, estabelecido a título de dolo ou culpa grave. Dolo que, enquanto conhecimento e vontade de realização do facto em causa, pode revestir-se das modalidades de directo, necessário e eventual. Culpa, (stricto sensu) quando o autor prevê como possível a produção do resultado, mas por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria crê na sua não verificação e não toma as providências necessárias para o evitar. Este é o recorte da culpa consciente, já que na culpa inconsciente se enquadram as situações em que o agente, por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, não chega sequer a conceber a possibilidade do facto se verificar, podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua verificação, se usasse da diligência devida. Estes os termos em que devem ser entendidas estas noções usadas pelo CIRE (artigo 186º, 1). Nada dispondo em particular sobre essa matéria, tais conceitos devem ser entendidos nos termos gerais do Direito. E, por isso, também repescada a tese da culpa em abstracto consagrada no Código Civil, apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (artigo 487º, 2). A norma exige, no entanto, a culpa grave, traduzida em não fazer o que faz a generalidade das pessoas, em não observar os cuidados que todos, em princípio, observam, contraposta à culpa leve, vertida na omissão da diligência normal, e à culpa levíssima, correspondente à omissão de cuidados especiais que só as pessoas mais prudentes e escrupulosas observam.
O n.º 2 do artigo 186.º acrescenta que se considera sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.º
Por sua vez o n.º 3 do preceito estatui que se presume a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido: a) o dever de requerer a declaração de insolvência; b) a obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
Convém referir que pese embora a fórmula inicial destes números do artigo 186.º, o n.º 4 do mesmo prescreve que “o disposto nos n.os 2 e 3 é aplicável, com as necessárias adaptações, à actuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações”, assim estendendo a doutrina daqueles às pessoas singulares, como os aqui insolventes.
No Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15.07.2009, relatado por Henrique Araújo, no processo n.º 725/06.7TYVNG-C.P1, in www.dgsi.pt, afirma-se a este respeito o seguinte:
“A generalidade da doutrina [o relator refere-se a Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado”, Vol. II, pág. 14; Menezes Leitão, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado”, pág. 175, 2ª edição; e Carneiro da Frada, “A Responsabilidade dos Administradores na Insolvência”, in Estudos Jurídicos e Económicos em Homenagem ao Prof. Doutor António Sousa Franco, Vol. II, pág. 963] considera que as várias alíneas do n.º 2 constituem presunções legais jure et jure, isto é, inilídiveis, conducentes à qualificação da insolvência como culposa. Apesar disso, e partindo do conceito de presunção legal desenhado no artigo 349º do Código Civil, inclinamo-nos mais para o entendimento de que essas alíneas integram factos-índice ou tipos secundários de insolvência culposa. No acórdão do Tribunal Constitucional de 26.11.2008 [in DR, 2ª Série, n.º 9, de 14.01.2009], escreveu-se a este propósito: «… é duvidoso que na previsão do artigo 186º do CIRE se instituam verdadeiras presunções. Na verdade, o que o legislador faz corresponder à prova da ocorrência de determinados factos não é a ilação de que um outro facto (fenómeno ou acontecimento da realidade empírico-sensível) ocorreu, mas a valoração normativa da conduta que esses factos integram. Neste sentido, mais do que perante presunções inilidíveis, estaríamos perante a enunciação legal … de situações típicas de insolvência culposa». De todo o modo, sejam presunções ou factos-índice, o legislador prescinde de uma autónoma apreciação judicial acerca da existência de culpa. Provada qualquer uma das situações enunciadas nas citadas alíneas, estabelece-se de forma automática o juízo normativo de culpa do administrador, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas do n.º 2 e a situação de insolvência ou o seu agravamento. O n.º 3 do mesmo artigo apresenta, por seu turno, um conjunto de situações de presunção de culpa grave. Trata-se, contudo, de presunções juris tantum, ilidíveis por prova contrária. A culpa grave, assim presumida, não implica, sem mais, a qualificação da insolvência como culposa, mas apenas que, ao omitir-se o cumprimento desses deveres, se actuou com culpa grave. Com efeito, como nas hipóteses do n.º 3 já se não presume o nexo de causalidade de que a omissão dos deveres aí descritos determinou a situação de insolvência da empresa, ou que para ela contribuiu, agravando-a, além da prova desses comportamentos omissivos, deve provar-se o nexo de causalidade, ou seja, que foram essas omissões que provocaram a insolvência ou a agravaram.
Maria do Rosário Epifânio, in Manual do Direito da Insolvência, 5.ª edição, pág. 131, escreve que “para auxiliar o intérprete, o art. 186.º … prevê dois conjuntos de presunções: o n.º 2 contém um elenco de presunções iuris et de iure de insolvência culposa de administradores de direito ou de facto do insolvente e do próprio insolvente pessoa singular; por seu turno, o n.º 3 prevê um elenco de presunções iuris tantum de culpa grave dos administradores de direito ou de facto do insolvente e do próprio insolvente pessoa singular. A opção por esta técnica jurídica justifica-se pela necessidade de garantir uma maior «eficiência da ordem jurídica na responsabilização dos administradores por condutas censuráveis que originaram ou agravaram insolvências», para além disso favorece a previsibilidade e a rapidez da apreciação judicial dos comportamento.”
Também Menezes Leitão, in Direito da Insolvência, 2009, pág. 271, acentua que o que resulta do art. 186º nº 3, é apenas uma presunção de culpa grave, em resultado da actuação dos administradores, mas não uma presunção da causalidade da sua conduta em relação à situação de insolvência, exigindo-se a demonstração nos termos do art. 186º nº 1 que a insolvência foi causada ou agravada em consequência dessa mesma conduta.
Podemos pois assentar no seguinte: para que a insolvência possa ser qualificada como culposa é necessário que a actuação do devedor tenha sido causa da situação de insolvência ou do seu agravamento, uma vez que o devedor pode ter actuado dolosamente mas em nada ter contribuído para a criação ou agravamento da insolvência. Todavia, verificada uma das situações do n.º 2 do artigo 186.º presume-se iuris et de iure a verificação desses requisitos e a insolvência não pode deixar de ser qualificada como culposa. Já se apenas estiver verificada uma das situações previstas no nº 3, para a insolvência ser declarada culposa é necessário que se demonstre que a actuação com culpa grave criou ou agravou a situação de insolvência, presumindo-se a culpa grave mas facultando-se ao insolvente a faculdade de ilidir essa presunção iuris tantum.
Fazendo aplicação destes normativos à matéria de facto assente, na decisão recorrida entendeu-se “que no caso, e no âmbito das presunções iniludíveis, a insolvência apenas é susceptível de qualificar-se culposa com fundamento na al. d) … pois que não se verifica qualquer uma das actuações previstas pela al. a), desde logo porque é conhecido o destino dos bens que integravam o activo dos insolventes”. E quanto ao preenchimento da previsão da referida alínea d) assinalou-se o seguinte: “… resultou assente que os insolventes procederam à transferência dos animais e equipamentos que detinham afecto à respectiva actividade em benefício de uma sociedade para o efeito constituída pela insolvente e pelo filho de ambos, transacção que foi desacompanhada de qualquer fluxo financeiro. É de admitir que com a transferência dos bens para sociedade para o efeito constituída os insolventes tenham tentado ‘resgatar’/salvar a actividade a que se dedicavam na precisa medida em que, aquando da apresentação à insolvência, os devedores apresentaram relação de bens que, no essencial, continha os bens objecto da sobredita transferência, com excepção dos animais (vacas e vitelos); porém, fizeram-no com prejuízo para os seus credores pois, pelo menos os animais, foram vendidos na esfera patrimonial da sociedade adquirente sem qualquer prova de que esta tenha afecto o respectivo produto ao pagamento de dívidas da insolvente. Tal facto, na ausência de comprovativo do recebimento e ingresso dos correspectivos preços na contabilidade e na tesouraria dos insolventes, corresponde a disposição de bens da insolvente em proveito pessoal dos próprios (indirectamente, dada a qualidade de sócio e gerente que a insolvente e o respectivo filho detinha na sociedade beneficiária da transferência dos bens), preenche os pressupostos da al. d) do nº 2 do art. 186º do CIRE. Efectivamente, defrontaram-se os credores da insolvente com uma efectiva situação de desaparecimento, não só da actividade, mas também de todo o activo da insolvente. Impõe-se então concluir pela verificação de circunstância que nos termos do art. 186º, nº 1 e 2, al. d) impõe presumir a culpa na criação ou agravamento da insolvência.”
O recorrente marido defende no seu recurso que “celebrou os referidos negócios com vista a evitar a apresentação, no imediato, à insolvência da sua empresa, crendo que a sociedade … "D…, Lda.", iria saldar o respectivo passivo”, razão pela qual “não se pode imputar à responsabilidade do … insolvente marido o facto daquela sociedade não ter logrado saldar a totalidade do passivo nos termos contratualizados”, sendo certo que os “insolventes tudo fizeram para evitar a sua situação de insolvência”, tendo relacionado “aquando da sua apresentação à insolvência”, “todos os bens que, à data, detinham”, pelo que “o … insolvente marido não dispôs de bens decorrentes da sua actividade em proveito pessoal ou de terceiros”.
É manifesta a improcedência destas objecções ao raciocínio da Mma. Juíza a quo. Ao ter celebrado com a sociedade constituída pela sua mulher e pelo seu filho (apenas quatro dias antes do negócio, o que constitui um indicio óbvio da intencionalidade subjacente à sua constituição e aos negócios celebrados com o insolvente) contratos de venda da totalidade do activo da sua empresa o insolvente dispôs evidentemente dos bens em proveito pessoal de pessoas com as quais tinha relações especiais de natureza familiar, criando, dessa forma, objectivamente, uma situação de tentativa de subtracção desse património à acção dos seus credores, sendo certo que ao não receber o preço desses bens ou ver diminuído o seu passivo em igual medida esse acto era absolutamente prejudicial para a massa insolvente.
A isso não obsta a circunstância de a sociedade compradora ter assumido a obrigação de pagar o preço mediante satisfação de dívidas do insolvente para com determinados credores deste, porquanto o contrato de compra e venda tem efeitos translativos da propriedade dos bens vendidos mas conserva a sua eficácia relativa inter partes, pelo que embora o vendedor ficasse privado de imediato da propriedade dos bens, esses credores não poderiam exigir directamente da compradora que lhes pagasse as dívidas do insolvente mencionadas no contrato e continuavam a poder exigi-lo do insolvente que daquela forma ficou sem bens que lhe permitissem satisfazer as suas obrigações e por conta de quem corria o risco de a sociedade compradora não cumprir as suas obrigações contratuais emergentes da compra e venda.
Acresce que a objecção referida pelo insolvente apenas poderia ser suscitada em relação a uma das vendas, já que em relação à outra (a venda dos animais) nem sequer se imputou à compradora a obrigação de pagar qualquer dívida do insolvente ou a afectação do preço da venda à satisfação de dívidas do insolvente. Aliás, com a venda destes, o insolvente operou a venda da totalidade dos bens da sua empresa, pelo que não se vislumbra como poderia esta, uma vez sem quaisquer bens para prosseguir a sua actividade, ter viabilidade, impedir a declaração de insolvência ou sequer ter como satisfazer as suas obrigações perante os credores.
Da mesma forma que não obsta à interpretação da Mma. Juíza a quo a circunstância de o insolvente, aquando da apresentação à insolvência, ter relacionado os bens que antes tinha vendido à sociedade. Com efeito, o efeito real da transmissão da propriedade da coisa produz-se por mero efeito do mútuo consenso em que se traduz o contrato (artigo 879.º do Código Civil) e uma vez transmitida a propriedade da coisa e feita a sua entrega, o vendedor não pode resolver o contrato por falta de pagamento do preço, salvo convenção em contrário (artigo 886.º do Código Civil) que não foi referida pelo insolvente. Por conseguinte, o que permitiu que os bens passassem a integrar a massa insolvente não foi o facto de o insolvente os ter relacionado, foi a circunstância de a Administradora da Insolvência ter procedido à resolução dos negócios em benefício da massa insolvente.
Concorda-se pois com a Mma. Juíza a quo quando esta conclui pelo preenchimento pelo insolvente marido da previsão da alínea d) do n.º 2 do artigo 816.º do CIRE. Esta conclusão dispensava de imediato a análise da verificação da previsão de qualquer das demais alíneas do n.º 2 ou do n.º 3 do preceito, uma vez que para a qualificação da insolvência como culposa basta naturalmente o preenchimento da previsão de qualquer uma delas.
De todo o modo, a Mma. Juíza considerou ainda que “da factualidade assente nos autos resulta que ao invés de cumprirem com o dever de apresentação à insolvência quando tomaram conhecimento de tal situação, os insolventes transferiram para sociedade todos os bens que afectavam à respectiva actividade, incluindo os animais que facturaram pelo valor de € 54.700,00 e que não foram ‘recuperados’ para a massa insolvente porquanto foram por aquela vendidos, o que impõe extrair a conclusão de que a situação de insolvência foi agravada pela dita omissão de cumprimento do dever de apresentação à insolvência”.
O insolvente sustenta no seu recurso que “os factores que conduziram os … insolventes à insolvência foram os seguintes: 1) O excessivo endividamento bancário (diversas responsabilidades, mormente, créditos ao consumo e contratos de locação financeira para aquisição de equipamentos e máquinas agrícolas); 2) A impossibilidade de cumprir com todas as obrigações assumidas; 3) A prolongada e profunda recessão económica do país; 4) A actividade deficitária; 5) A não obtenção de empréstimo que consolidasse todas as obrigações assumidas e por via disso possibilitasse estabilizar económica e financeiramente os …insolventes. Da prova produzida nos autos, não se logrou provar que a actuação dos …insolventes foi flagrantemente reprovável ou altamente censurável, apta a causar ou a agravar a sua situação de insolvência. Não se lograram provar, também, quaisquer condutas, que, por acção ou omissão dos … insolventes tenham sido determinantes na declaração da insolvência, nomeadamente, que a transmissão dos bens pelo …insolvente marido, bem como, dos animais, tenha sido realizada com a intenção de delapidar/ ocultar activos da empresa em benefício próprio e/ou de terceiros”.
Esta argumentação está em flagrante oposição com a matéria de facto. A transferência da totalidade dos bens da empresa do insolvente para outra sociedade cerca de um ano antes da apresentação à insolvência importou obrigatoriamente a insolvência da empresa já que sem quaisquer bens para funcionar não se vê como poderia ela, sem bens e com o volume de passivo insatisfeito que possuía, funcionar e angariar receitas para poder satisfazer o seu passivo, que repete-se, não se extinguiu com a venda, nem importou a desoneração do devedor desse passivo.
Acresce que no exercício de 2008 a empresa gerou resultados líquidos no valor de €1.808,60, no exercício de 2009 resultados líquidos negativos de €31.143,47 e no exercício de 2010 resultados líquidos negativos de €81.823,37 e que o passivo relacionado no processo de insolvência ascende a cerca de €600.000,00, sendo €450.000,00 a título de capital e o restante a título de juros e despesas. Perante esta realidade, era óbvia a situação de insolvência logo em 2010, pelo que ao fazer a venda do activo da empresa o devedor não podia deixar de saber que dessa forma estava a agravar de forma definitiva a situação de insolvência, tornando-a mesmo irreversível, e, outrossim, de representar claramente que ao não se apresentar de imediato à insolvência (o que só fez um ano depois) violava a obrigação de apresentação à insolvência.
Nessa medida, não podemos deixar de acompanhar a interpretação da decisão recorrida, segundo a qual se encontra igualmente preenchida a previsão da alínea a) do n.º 3 do artigo 816.º do CIRE e, concomitantemente, que a não apresentação à insolvência em 2010 foi causa adequada e necessária do agravamento da situação de insolvência.

ii) da extensão dos pressupostos da qualificação à insolvente mulher:
A insolvente mulher defende nas suas alegações que “conforme se pode aferir do parecer emitido pela Sr.ª Administradora de Insolvência, à data da apresentação à insolvência, apenas o …insolvente marido se encontrava colectado, como empresário em nome individual, para o exercício da actividade de agricultor, correspondente ao CAE 1410. A …insolvente mulher não era, pois, empresária em nome individual, não se encontrava colectada para o exercício da actividade de agricultora, nem nunca dispôs de bens do activo da empresa do …insolvente marido, apenas tendo actuado na qualidade de esposa do …insolvente, dando o seu consentimento e/ou aval, junto de fornecedores, bancos e instituições de crédito com quem aquele contratualizava no âmbito da exploração agrícola que detinha. Quanto à insolvência de pessoas singulares (não titulares de empresa), conforme doutamente decidido, "Tratando-se de pessoa singular, a qualificação da insolvência como culposa ou fortuita apenas depende da verificação de um comportamento enquadrável na noção geral contida no n.º 1, do art. 186.º, do CIRE e/ou das presunções do n.º 2, susceptíveis de aplicação a devedores que sejam pessoas singulares, atendendo às circunstâncias do caso." (Ac. do TRL de 08-11-2011, proc. n.º 465/10.2TBLNH-C.L1-7, disponível in www.dgsi.pt). Por outro, como preceitua o n.º 5 do art. 186.º do CIRE, "Se a pessoa singular insolvente não estiver obrigada a apresentar-se à insolvência, esta não será considerada culposa em virtude da mera omissão ou retardamento na apresentação, ainda que determinante de um agravamento da situação económica do insolvente.". É precisamente esta a situação do caso em apreço nos autos, dado que a Recorrente/Insolvente mulher, sendo uma pessoa singular, não é titular de empresa (ut art. 5.º do CIRE), logo, não estava obrigada a apresentar-se à insolvência (ut art. 18.º, n.º 2 do CIRE)”.
Sucede que não existem nos autos quaisquer elementos que nos permitam verificar se a insolvente mulher é ou não titular de empresa e, portanto, estava ou não obrigada a apresentar-se à insolvência nos termos do artigo 18.º, n.os 1 e 2, do CIRE.
Na sentença recorrida a Mma. Juíza a quo analisou a situação de ambos os insolventes sempre em conjunto sem atentar na particularidade de nos contratos de venda dos bens apenas o insolvente marido aparecer como vendedor e a insolvente mulher apenas a consentir na venda e atribuindo a ambos os insolventes a violação do dever de apresentação à insolvência sem previamente analisar que apenas o insolvente marido estava colectado como empresário em nome individual, conforme consta do parecer da Administradora da Insolvência, e apesar disso concluir que a insolvente também é titular de empresa.
Em consequência, não constam da decisão recorrida elementos de facto que nos permitam concluir pela verificação também em relação à insolvente mulher da obrigação de apresentação à insolvência, indispensável para qualificar a insolvência de culposa ao abrigo da alínea a) do n.º 3 do CIRE. Uma vez que o parecer da Administradora continha aspectos que permitiriam esclarecer este aspecto, a decisão recorrida padeceria assim de insuficiência da matéria de facto que motivaria a sua anulação para ampliação da matéria de facto.
Afigura-se-nos, no entanto, que é possível decidir já a questão da qualificação da insolvência em relação à insolvente mulher sem necessidade dessa anulação.
Conforme já foi referido, preenchida a previsão de qualquer das alíneas do n.º 2 do artigo 816.º do CIRE, que permitem presumir iuris et de iure que a insolvência é culposa, fica prejudicada a análise da verificação da previsão de qualquer das restantes alíneas do n.º 2 ou do n.º 3 do preceito, uma vez que para a qualificação da insolvência como culposa basta naturalmente o preenchimento da previsão de qualquer uma delas. Portanto, se a actuação da insolvente preencher a previsão de qualquer das alíneas do n.º 2 do artigo 816.º, fica prejudicado saber se ela também estava obrigada a apresentar-se à insolvência e a não apresentação tempestiva agravou a situação de insolvência.
Ora tanto quanto julgamos é possível concluir que a insolvente teve uma actuação que preenche a previsão da mesma alínea do n.º 2 que permitiu a qualificação como culposa da insolvência do seu marido.
Na verdade, a noção de empresa para efeitos do Código da Insolvência é essencialmente uma noção prática, é empresa toda a organização de capital e de trabalho destinada ao exercício de qualquer actividade económica. É assim necessário distinguir entre empresa e titular da empresa e entre bens que estão afectos à actividade empresarial e a natureza dos bens que para além de integrarem a empresa de um dos cônjuges pertencem ao casal, podendo ser bens comuns ou bens próprios de algum dos cônjuges. Por outras palavras, não é por constituírem o acervo material de uma realidade que o CIRE trata como empresa e, eventualmente, para efeitos fiscais possuírem mesmo um titular determinado, que os bens deixam de estar sujeitos ao regime de bens do casamento se se der a circunstância de o titular ou titulares da empresa serem casados.
Ora no contrato de venda dos bens à sociedade constituída escassos dias antes pela insolvente e pelo filho de ambos, só o insolvente aparece como vendedor, mas a insolvente surge a declarar que consente no negócio, numa manifestação expressa de que consideravam os bens afectos ao regime de bens e de administração do casamento. Por outro lado, na relação de bens que juntaram com o requerimento inicial de apresentação à insolvência, os insolventes apresentaram todos os bens como sendo comuns, sendo que essa relação coincide pelo menos parcialmente com os bens móveis afectos à empresa cuja actividade é desenvolvida apenas em nome do insolvente[1].
Sendo assim, não custa concluir que tendo a insolvente participado, ainda que formalmente apenas dando consentimento à venda, no contrato de venda do activo da empresa titulada pelo seu marido à sociedade constituída por si e pelo filho de ambos, pertencendo afinal esse activo ao casal constituído por si e pelo seu marido e, de qualquer modo, devendo esse activo integrar a massa insolvente resultante da declaração de insolvência de ambos, também ela actuou, em comunhão com o insolvente, para concretizar a disposição dos bens dos devedores em proveito pessoal (no caso dela através da participação social na sociedade adquirente) ou de terceiros, ou seja, actuou da forma prevista na alínea d) do n.º 2 do artigo 816.º do CIRE que permite presumir iuris et de iure a insolvência culposa.
Pelo exposto, entendemos que também em relação à insolvente mulher a insolvência deve ser qualificada como culposa, no caso pelo primeiro dos fundamentos desenvolvidos na sentença recorrida.

iii) do prazo da inibição:
O n.º 2 do artigo 189.º, relativo ao conteúdo da sentença de qualificação da insolvência, determina que na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve, designadamente, declarar as pessoas afectadas pela qualificação inibidas para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa.
A Mma. Juíza a quo cumprindo com essa determinação e levando em consideração “a gravidade da conduta dos requeridos, que actuaram com culpa grave no agravamento da insolvência da sociedade que geriam, com prejuízo para os seus credores decorrente da diminuição de garantias patrimoniais”, declarou os insolventes inibidos para o exercício do comércio, para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo período de 3 anos. Os recorrentes insurgem-se contra a amplitude deste prazo e contra a sua aplicação à insolvente mulher.
A norma legal não fornece pistas sobre os critérios a observar para graduar o tempo de inibição. No entanto a doutrina e a jurisprudência vêm sustentando que na fixação do período de inibição “o juiz deve atender à gravidade do comportamento das pessoas abrangidas e à sua relevância na verificação da situação de insolvência, ou no seu agravamento, segundo as circunstâncias do caso” (cf. Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Quid Iuris, Reimpressão, págs. 624 e 626, ou Catarina Serra, in O Novo Regime Português da Insolvência, Almedina, 4ª. edição, pág. 121).
O fundamento material da inibição do insolvente que incorreu em insolvência culposa parece ser a defesa geral da credibilidade do comércio, servindo para afastar do comércio os agentes que incorreram em comportamentos censuráveis e cuja actividade pode gerar a desconfiança nos demais agentes e perturbar a actividade comercial. O interesse público do normal funcionamento da economia e do mercado concorrencial justifica, com efeito, a rejeição de comportamentos que além de serem lesivos dos direitos particulares dos credores, são igualmente prejudiciais para a sã concorrência e para o normal funcionamento do mercado. Daí que o fim último da inibição não seja sancionar o insolvente, mas estabelecer um período de tempo que possa ser dissuasor de comportamentos idênticos, seja do insolvente seja dos demais agentes que ficam prevenidos para as consequências de uma actuação similar.
Ora, a constituição de uma sociedade pela insolvente mulher e pelo seu filho e a transferência de todo o património que poderia responder pelas dívidas para um novo ente colectivo dotado de personalidade jurídica própria mas na prática destinado a servir e acobertar os interesses dos próprios insolventes e seus familiares, representa uma actuação fortemente censurável e particularmente perigosa para os interesses dos credores e o interesse colectivo do normal funcionamento da economia, sendo certo que não apenas agravou como tornou irreversível a situação de insolvência. Acresce que se trata de um comportamento que se enquadra nas previsões do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, sendo por isso gravoso ao ponto de o próprio legislador o transformar em presunção iuris et de iure de insolvência culposa. Sendo assim não podemos deixar de concordar com o prazo fixado pela Mma. Juíza a quo, o qual, aliás, numa moldura legal entre 2 a 10 anos, só pode ser considerado magnânimo, justificando-se talvez maior desconfiança em relação ao futuro comportamento dos insolventes.
A circunstância de a insolvente mulher não ser titular de empresa não impede que se lhe aplique também a inibição. Esta consequência é, com efeito, automática, deve ser aplicada pelo juiz desde que conclua pela insolvência culposa, independentemente de qualquer outro requisito, e o seu âmbito subjectivo são as pessoas afectadas pela qualificação, isto é, as pessoas cuja actuação preencheu o fundamento legal da qualificação. Sendo o seu fim a prevenção da ocorrência de novos comportamentos similares na actividade comercial, a inibição justifica-se desde que a pessoa afectada esteja em condições de exercer o comércio, independentemente de o exercer ou não à data da sua actuação ou à data da qualificação. Estando a insolvente mulher nessas condições (não exerce – melhor, não está inscrita nas Finanças como tal - mas podia exercer o comércio) e tendo comparticipado na actuação que motivou a qualificação da insolvência, o prazo de inibição de três anos que na decisão recorrida lhe foi fixado, não é, seguramente, excessivo.
Improcede assim também esta questão suscitada no recurso.

V.
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente e, em consequência, negando provimento à apelação, confirmam a sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes.
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Porto, 8 de Outubro de 2015.
Aristides Rodrigues de Almeida (Relator; Rto226)
Teles de Menezes
Mário Fernandes
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[1] Refira-se que mediante consulta ao histórico da versão informática no programa citius do processo principal que solicitámos à 1.ª instância constatámos que na petição inicial os insolventes alegaram o seguinte: “(…) Os requerentes são agricultores. (…) Os requerentes exercem actividade em exploração agrícola familiar. (…) Os requerentes não auferem, para proveito próprio, há já alguns meses a esta data qualquer rendimento proveniente da sua actividade, porquanto, a globalidade dos proveitos obtidos na exploração destinam-se, única e exclusivamente, ao pagamento dos vários planos de pagamento e empréstimos contraídos pelos requerentes. (…) Os requerentes juntam, ainda, ao diante relação do seu património (activo), o qual é composto por vários bens móveis afectos à actividade a que os mesmos se dedicavam” (sublinhados nossos).