Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
703/06.6JAPRT-N.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DOS PRAZERES SILVA
Descritores: DESCONTO
DETENÇÃO
CORRESPONDÊNCIA
Nº do Documento: RP20210407703/06.6JAPRT-N.P1
Data do Acordão: 04/07/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A detenção por duração inferior a 48 horas, ainda que decorra em três dias seguidos, deve ser havida por dois dias para efeito de desconto no cumprimento da pena.
II – Tal solução é imposta pela regra do artigo 479.º, n.º 1, alínea c), do Código Processo Penal, que faz a correspondência de um dia de prisão por cada período de 24 horas, sendo o período de horas remanescente contabilizado em um dia por virtude de tal período ter sempre de ser descontado e não existir medida inferior de forma a concretizar o desconto.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 703/06.6JAPRT-N.P1
Referência: 14499639
Porto - Tribunal da Relação
4ª Secção
Recurso Penal
ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
I. RELATÓRIO:
No âmbito do processo comum, com intervenção do tribunal coletivo, do qual foi extraída a certidão que integra os presentes autos, por despacho judicial de 03-02-2021, no cômputo da pena a cumprir pelo arguido B…, determinou o desconto de 3 dias de prisão correspondente ao período de detenção sofrido pelo arguido.
Inconformado com o teor do mencionado despacho, o Ministério Público interpôs o presente recurso, que rematou da forma seguinte
Em conclusão
1– Visa o presente recurso a solução da questão de saber se a detenção de duração inferior a 48 horas, que decorre em três dias seguidos deve ser havida por dois ou três dias para efeito de desconto no cumprimento da pena.
2– Pois o arguido foi detido à ordem destes autos às 18h15m de 28 de Novembro de 2007, e libertado às 16h55m do dia 30 de Novembro de 2007, tendo cumprido 46 horas e 40 minutos de detenção, contínuas e ocorridas em dias sucessivos.
3– O desconto das medidas processuais no cumprimento da pena ordenado pelo artigo 80.º, do Código Penal, é um imperativo de justiça material, na medida em que aquelas medidas processuais representam também um sofrimento para o arguido análogo ao da pena em que é condenado.
4– A mesma razão de ser está presente na regra igualmente contida no n.º 1 daquele art. 80.º: esse desconto é feito por inteiro: todo o desconto, mas só esse.
5– Obedecendo o desconto a imperativos de justiça material, ele deve reflectir o sofrimento concreto resultante da medida processual em causa e não menos ou mais, consistindo então num benefício injusto.
6– Como reza a primeira parte do n.º 1, do art. 80.º, está-se aqui no domínio do cumprimento da pena de prisão, que obedece às regras de duração e contagem dos prazos da pena de prisão (art. 41.º, do C. Penal, que remete para os critérios estabelecidos na lei processual penal e, na sua falta, na lei civil) e de contagem do tempo de prisão (art. 479.º do CPP)
7– A alínea c), do n.º 1, do art. 479.º do CPP, prescreve que a prisão fixada em dias é contada considerando-se cada dia um período de vinte e quatro horas
8– Ora, tratando-se de um único período de detenção contínuo, que não chega a completar 24 horas (ou, como é o caso, 48), então não se pode deixar de atender ao critério da al. c), do n.º 1, do art. 479.º, do CPP (na contagem do cumprimento de prisão considera-se cada dia um período de vinte e quatro horas), sob pena de desrespeitar o critério legal e beneficiar injustamente o arguido.
9– Basta pensar que, de acordo com o critério seguido pelo despacho recorrido, se um arguido tivesse sido detido às 23h55m de um dia e libertado às 00h05m do dia imediato veria convertida uma detenção de 10 minutos no desconto de 2 dias na pena de prisão que lhe fosse aplicada, num clamorosamente injusto benefício que a lei não deseja nem consente.
10– Ora, tendo o arguido estado detido continuamente 46h40m em três dias sucessivos, dever-lhe-ão ser somente descontados dois dias no cumprimento da pena de prisão que lhe foi aplicada e não três, como foi decidido no despacho recorrido.
Termos em que, na procedência do presente recurso, deve ser revogado o despacho recorrido, na parte em que ordena o desconto de 3 dias no cumprimento da pena de prisão, e ordenada a sua substituição por outro que ordene o desconto de apenas dois de detenção, na mesma pena,
Assim decidindo, far-se-á JUSTIÇA
*
O arguido apresentou resposta, na qual se pronunciou no sentido da manutenção do despacho recorrido.
*
Nesta Relação o Ministério Público emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
*
Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO:
A. Despacho recorrido:
O arguido B… foi condenado nestes autos, por decisão transitada em julgado na pena única de 8 (oito) anos de prisão. Apresentou-se voluntariamente para cumprimento da pena no dia 13/01/2021.
Foi detido em 28/11/2007, pelas 18.15 horas, para sujeição a 1º interrogatório judicial, tendo sido libertado em 30/11/2017, pelas 17.00 horas.
Nos termos do art. 80º, n.º 1 do Código Penal o tempo de detenção do arguido é descontado por inteiro no cumprimento da pena de prisão.
Concomitantemente, o art. 479º do C. P. Penal apenas prevê a contagem do tempo de prisão em anos, meses e dias. Cada dia corresponde a um período de 24 horas. Por isso, se uma pessoa passar detida parte de um determinado dia, deve ser descontado por inteiro um dia na pena de prisão.[1]
Nesta sequência, tendo uma pessoa estado sob detenção em três diferentes dias do calendário gregoriano, três devem ser os dias a descontar na pena de prisão.
Ainda que o tempo contínuo de detenção seja inferior a 48 horas.
Perfilhando este entendimento, decidiu, com as devidas adaptações, o TRL em acórdão de 11/09/2018, proferido no proc. n.º 114/15.2PATVD-A.L1-5, disponível em dgsi.pt, onde se afirma:
“Qualquer privação de liberdade, ainda que por algumas horas, trata-se, inquestionavelmente, de uma privação da liberdade, havendo que observar na contagem da pena a regra do Art.º 80º, n.º 1, do C. Penal, a qual impõe o desconto por inteiro da detenção sofrida no cumprimento de pena de prisão.
Como a unidade de tempo mais pequena prevista para a contagem da prisão é o dia, correspondente a um período de 24 horas (das 00 horas às 24 horas), tendo a supra mencionada arguida sido detida e libertada em dias diversos (dois), há que proceder ao desconto de dois dias, pois só assim se interpretará devidamente a sobredita norma e o direito constitucional à liberdade decorrente do Art.º 27º da C.R.P.”
“Desta forma e mesmo se o arguido foi detido por dois períodos inferiores a 24 horas em dois dias diversos, seguidos ou não, deverão ser, em nossa opinião, descontados dois dias de detenção”.
Por conseguinte, no caso em apreço, ao período de detenção passado pelo arguido corresponderá o desconto de três dias de prisão.
Assim, o referido arguido atingirá:
- o meio da pena em 10/01/2025;
- dois terços da pena em 10/05/2026;
- cinco sextos da pena em 10/09/2027;
- o termo da pena em 10/01/2029.
(…)
*
B. Elementos processuais relevantes:
1. O arguido B… foi detido pelas 18h.15m do dia 28-11-2007, para ser submetido primeiro interrogatório judicial, e foi libertado pelas 17.00h. do dia 30-11-2007 (no âmbito do proferido no proc. 703/06.6JAPRT).
2. No dia 13-01-2021 iniciou o cumprimento da pena de 8 anos de prisão (imposta por acórdão proferido no proc. 703/06.6JAPRT).
3. Por requerimento de 26-01-2021 o arguido pronunciou-se no sentido de o desconto do período de detenção no tempo de cumprimento da pena corresponder a 3 dias.
4. O Ministério Público, na promoção de 02-02-2021, sustentou que o desconto do período de detenção no tempo de cumprimento da pena corresponde a 2 dias,
tendo procedido ao cômputo da pena em conformidade com tal entendimento.
5. Em 03-02-2021 foi proferido o despacho recorrido.
**
C. APRECIAÇÃO DO RECURSO:
Conforme jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da apreciação de todas as matérias que sejam de conhecimento oficioso.
No presente recurso a única questão colocada consiste em saber se a detenção do arguido ocorrida nos dias 28, 29 e 30 de novembro de 2007, com duração global de 46 horas e 15 minutos, deve ser computada como 2 ou 3 dias para efeito de desconto no cumprimento da pena.
Vejamos.
O conhecimento do recurso convoca as normas legais do artigo 80.º, n.º 1, do Código Penal que determina, entre o mais, que a detenção sofrida pelo arguido é descontada por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenha sido aplicada em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual a medida foi aplicada; e do artigo 479.º, n.º 1, do Código Processo Penal, que estatui os critérios a observar na contagem do tempo de prisão, e estabelece, na sua alínea c), quanto à prisão fixada em dias que se considera cada dia um período de vinte e quatro horas. Por outro lado, o artigo 254.º, n.º 1, do Código Processo Penal define o período máximo de duração da detenção em vinte e quatro horas e quarenta e oito horas até à apresentação do detido perante a autoridade competente conforme a finalidade a que preside estritamente prevista na lei.
No caso concreto, o período de detenção sofrido pelo arguido para interrogatório judicial no âmbito do processo em que foi condenado (artigos 254.º, n.º 1, alínea a); e 141.º, do Código Processo Penal) deve ser descontado no cumprimento da pena imposta no mesmo processo, nos termos do artigo 80.º, n.º 1, do Código Penal, o que é consensual para todos os sujeitos processuais.
Também em conformidade com o entendimento uniforme da jurisprudência, existe consenso nos autos quanto ao desconto na situação de a detenção ter duração inferior a 24 horas, por não ser possível efetuar o desconto de horas mas somente de dias, que se impõe o desconto de um dia no tempo de prisão a cumprir, uma vez que obrigatoriamente de ser cumprido o desconto da detenção [2].
Todavia, já existe divergência entre o despacho recorrido, que acolhe a posição assumida pelo arguido, e a promoção do Ministério Público relativamente ao cômputo do período de detenção a descontar quando a detenção se estende por mais de 2 dias mas no total não atinge 48 horas, como sucede no caso concreto, em que o arguido esteve ininterruptamente detido entre as 18h15m do dia 28-11-2007 e as 17.00h. do dia 30-11-2007. De acordo com o despacho recorrido importante é a consideração de que o arguido esteve detido em três dias diferentes do calendário (28, 29 e 30, de novembro de 2007), e já não interessa ponderar qual a duração que a detenção teve em cada dia, ou seja, é irrelevante que nos dias 28-11-2007 e 30-11-2007 a detenção tenha tido duração inferior a 24 horas, dado que não se opera o desconto de horas, por isso, contabilizam-se 3 dias para desconto na pena. Na tese do recurso interessa contabilizar o período total de detenção contínua, que no caso o recorrente calcula em 46h e 40m, e fazer a correspondência de 1 dia a cada período de 24 horas, que no caso presente deve corresponder a 2 dias, já que se contam 24 horas como 1 dia e as horas excedentes, inferiores a 24, contam-se também como 1 dia, por não existir outra forma de efetuar o desconto desse período de detenção.
Em situações semelhantes em que a detenção se estende por mais de um dia mas não atinge em cada dia 24 horas também existe controvérsia na jurisprudência sobre o modo de contagem do tempo a descontar, como 1 dia ou 2 dias [3].
Considerando a correspondência legal que decorre do artigo 479.º, n.º 1, alínea c), do Código Processo Penal, ou seja, a cada dia de prisão corresponde um período de vinte e quatro horas, julga-se que o desconto deve fazer-se como preconizado pelo recorrente, isto é, ao período global de detenção faz-se a correspondência de um dia de prisão por cada período de 24 horas, sendo o período de horas remanescente contabilizado em um dia, por virtude de tal período ter sempre de ser descontado e não existir medida inferior de forma a concretizar o desconto.
Tal é interpretação que, a nosso ver, melhor se ajusta aos fundamentos que presidem à imposição legal de desconto, e que permite alcançar solução equitativa e justa.
Por conseguinte, no caso concreto são em número de 2 os dias de prisão a descontar na pena que o arguido B… tem a cumprir.
Nestes termos, impõe-se revogar o despacho recorrido e determinar que a liquidação da pena do arguido se opere mediante o desconto de 2 dias de prisão.
*
III. DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, e, em consequência, revogam o despacho recorrido e determinam que a liquidação da pena do arguido B… opere mediante o desconto de 2 dias de prisão.
Sem custas.
*
07-04-2021
Nos termos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-lei 10-A/2020, de 13 março, aditado pelo artigo 3.º do Decreto-lei 20/2020, de 1 de maio, a relatora atesta o voto de conformidade ao presente Acórdão do Desembargador José Rodrigues da Cunha.
Maria dos Prazeres Silva
__________________
[1] Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, p. 659
[2] Vd. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 17-05-2006, proc. 0641798; Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19-02-2014, proc. 377/06.4GBTNV-B.C1 (em que se refere uniformidade de jurisprudência, citando acórdãos das Relações de Porto, Lisboa, Coimbra e Évora); Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-10-2007, proc. 6994/2007-5, disponíveis em www.dgsi.pt..
[3] Vd. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 20-12-2006, proc. 0645340, (Tendo o condenado sofrido duas detenções, ambas por período inferior a 24 horas, devem descontar-se no cumprimento da pena 2 dias); Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-09-2018, proc. 114/15.2PATVD-A.L1-5 (citado no despacho recorrido); em sentido contrário Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 21-09-2011, proc. 317/08.6PDBRR-A.L1-3 (citado no recurso); de 26-02-2013, proc. 710/12.0PBPDL.L1-5 (correspondendo cada dia de prisão a um período de 24 horas e tendo a detenção sofrida pelo arguido (…) sido inferior a este período, ainda que tenha decorrido em dois dias seguidos, só deverá ser-lhe descontado apenas um dia na prisão a cumprir, sendo indiferente para o caso que o início e o fim de esse período detentivo tenha coincido com dois dias diversos); de 09-09-2020, proc. 108/15.8T9PDL-B.L1-3 (citado no parecer; que interessará sempre é o tempo total em que a pessoa esteve detida (privada da liberdade), saber se esse tempo perfaz ou não períodos de 24 horas e fazer corresponder esses períodos a dias de prisão), disponíveis em www.dgsi.pt..