Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4122/16.8T8OAZ-D.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ABÍLIO COSTA
Descritores: CONTRATO DE FINANCIAMENTO
CLÁUSULA DE RESERVA DE PROPRIEDADE
VENDEDOR
Nº do Documento: RP201810084122/16.8T8OAZ-D.P1
Data do Acordão: 10/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 681, FLS.322-330)
Área Temática: .
Sumário: I – Num contrato de mútuo, denominado “Contrato de Financiamento para Aquisição a Crédito” de um veículo automóvel, foi convencionada a reserva de propriedade como garantia do cumprimento do contrato.
II – A cláusula de reserva de propriedade apenas pode ser estabelecida em contratos de alienação.
III - Não sendo o financiador o vendedor do veículo, nem o estabelecimento da supra referida cláusula de reserva de propriedade, tenha tido como pressuposto a transmissão da propriedade do vendedor para o mutuante, tal cláusula é nula, com as legais consequências.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 4122/16.8T8OAZ-D.P1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
A Massa Insolvente de B… e C… intentou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra o Banco D…, S.A..
Pede que seja declarada nula a cláusula que atribui a reserva de propriedade à R., averbada no registo do veículo de marca Ford, modelo …, com a matrícula .. – FR - ...
Alega ser a R. uma sociedade que se dedica à actividade de venda de produtos financeiros; no exercício da sua actividade celebrou com os insolventes um contrato de financiamento para aquisição daquela viatura; por força daquele contrato impôs aos insolventes e ao vendedor a estipulação de uma cláusula de reserva de propriedade, averbada no respectivo registo a seu favor; tal cláusula, todavia, é nula, pois apenas pode ser estipulada pelo vendedor.
Na contestação o R. defende a validade da referida cláusula, impondo-se uma interpretação actualista do disposto no art.409º do C.Civil; até por, no caso, o contrato de compra e venda da viatura estar conexionado com o contrato de financiamento, verificando-se uma verdadeira união de contratos, com a produção de efeitos jurídicos muito próprios e peculiares.
No despacho saneador, e conhecendo-se imediatamente do mérito da causa, foi proferida sentença na qual se decidiu, julgando a acção procedente, declarar nula a cláusula de reserva de propriedade registada a favor do R. sobre o veículo de marca Ford, modelo …, matrícula .. – FR - ..; determinando-se, ainda, o cancelamento do registo da reserva de propriedade sobre tal veículo em benefício do R..
Inconformado, o R. interpôs recurso.
Conclui:
- Fundamenta-se o douto despacho recorrido no entendimento de que não coincidindo no financiador também a qualidade de proprietário da coisa alienada – alienante no contrato de compra e venda assumido com o comprador/mutuário – a cláusula de reserva de propriedade, estatuída no contrato celebrado entre eles, é legalmente inadmissível por violar o disposto no artigo 409º do Código Civil (doravante apenas CC), determinando a subsequente nulidade, por força do disposto no artigo 280º do mesmo diploma;
- Ficando a aqui Apelante prejudicada pela nulidade e cancelamento do registo de reserva da propriedade sobre o veículo de marca Ford, modelo …, matrícula .. – FR - ..;
- Solução que perfilha uma posição conservadora e simplista da interpretação da lei, quando esta matéria tem merecido amplo debate jurisprudencial e doutrinário;
- A Apelante é uma instituição de crédito que tem por objecto social todo o tipo de operações bancárias, financeiras e de crédito legalmente permitidas, no desenvolvimento da qual celebrou com os insolventes nos autos um “Contrato de Financiamento para Aquisição a Crédito”, ao qual foi atribuído o n.º ……………..;
- Foi financiado pela Apelante o valor de €12.788,54 (doze mil, setecentos e oitenta e oito euros e cinquenta e quatro cêntimos), a reembolsar em 84 (oitenta e quatro) prestações mensais, o qual vencia juros à TAEG de 17,1%, destinando-se tal financiamento à aquisição de uma viatura ligeira de passageiros, marca FORD modelo …, com a matrícula .. – FR - ..;
- Para tanto, as partes no exercício da sua liberdade contratual como garantia do cumprimento do contrato – condição sine qua non para a sua celebração - convencionaram a constituição de uma reserva a favor da recorrente sobre o veículo automóvel acima mencionado;
- Sendo que a transmissão da propriedade plena do automóvel apenas operaria com o cumprimento integral do contrato celebrado entre os insolventes e a Apelante, o que não ocorreu, uma vez que aqueles não pagaram várias prestações do contrato que assim se venceu, dando lugar a uma dívida no valor de €.7.295,37 (sete mil duzentos e noventa e cinco euros e trinta e sete cêntimos), reclamado no âmbito da insolvência;
- Incumprimento do contrato que sempre impediria que a propriedade se transmitisse para os insolventes e, assim, integrasse a massa insolvente, conforme é pretensão do administrador de insolvência do que os presentes autos são mero instrumento;
- Para tanto o veio aquele alegar que não sendo a apelante vendedora do automóvel não podia constituir a reserva de propriedade a seu favor, socorrendo-se de uma parcela da doutrina e jurisprudência que defende tal posição;
- Contudo, é apenas uma versão da complexa divergência doutrinária e jurisprudencial que se verifica sobre esta matéria, dividindo-se entre o entendimento de inadmissibilidade da constituição de reserva de propriedade a favor do financiador e, por outro lado, uma solução de interpretação actualista da lei aplicando-a em termos consentâneos com a contemporânea realidade comercial;
- De acordo com a qual, a interpretação consonante com a realidade comercial, conforme dispõe a final o nº 1 do artigo 9º do CC, a nossa jurisprudência tem vindo a interpretar o direito em apreço de harmonia com a consciência geral, de acordo com a correcta metodonomologia, num processo de interpretação prático-normativa do Direito;
- Solução capaz de integrar prática comum de financiamento para a aquisição de bens, em que a realidade se configura como tripartida em vez dos meros contratos bilaterais de compra e venda de outrora;
- Modelo bilateral de contrato simples de compra e venda a que se terá que retomar caso não vigore a interpretação actualista da lei, em especial do artigo 409º do CC, forçando-se ou à retoma daquela relação comercial simplificada ou a adopção de soluções jurídicas complexas que constituirão um acréscimo de encargos, inevitavelmente imputados ao cliente final;
- Atendendo, precisamente à realidade de tráfico negocial existente, bem assim às regras de intepretação actualista da lei ao momento da sua aplicação, têm vindo a ser configuradas pela jurisprudência e doutrina soluções que admitem a constituição de reserva de propriedade privada a favor do financiador, conforme Acórdão proferido pelo STJ em 30/09/2014 no âmbito do processo 844/09.8TVLSB.L1.S1;
- Do qual decorre, nomeadamente, a compreensão desta realidade tripartida entre comprador, vendedor e financiador típica dos actuais negócios jurídicos de compra e venda, inevitavel e maioritariamente, associados a financiamento, em interdependência;
- Tratando-se de uma união de contratos que apesar de juridicamente autónomos se encontram ligados por um vínculo de natureza económica, sendo constituídos no exercício pleno da liberdade contratual das partes, de acordo com o disposto no artigo 405º do CC;
- Nos termos da qual, convencionaram uma cláusula de reserva de propriedade no contrato de alienação com financiamento, contrato atípico, inonimado, fora do catálogo dos contratos previstos na lei civil;
- Sendo a actuação das partes no exercício da liberdade contratual, aquela cláusula sempre será admissível, conforme veio esclarecer o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 24/2/2011 e, também, no Tribunal da Relação de Coimbra em acórdão de 05/07/2008, ambos disponíveis em www.dgsi.pt;
- Sendo aquela estatuição daquela cláusula não só legítima por convencionada de acordo com a liberdade contratual e as disposições legais que daí decorrem, como por contrariamente ao quanto veio o tribunal a quo decidir, encontrar-se de harmonia com a lei, usos, costumes e boa-fé;
- Caso assim não fosse, o pedido de registo realizado junto da Conservatória do Registo Automóvel sempre teria que ser recusado, questionado, ou pelo menos sujeito a oposição de terceiros ou potenciais interessados no cancelamento do registo;
- O que não se verificou por a estatuição de tal cláusula se mostrar adequada à lei em vigor, nomeadamente ao instituto da reserva de propriedade interpretado de forma actualista, como impõe a realidade dos negócios jurídicos actuais. Os quais não são contrários nem à letra da lei nem à ratio legis, na qual se integra a admissibilidade da reserva da propriedade privada nos contratos de financiamento como o em apreço;
- Pelo contrário o despacho recorrido por contrário quer ao príncípio da liberdade contratual quer às regras de interpretação actualista previstos, respectivamente, nos artigos 405º e 9º/1 a final do Código Civil.
Não foram apresentadas contra-alegações.
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Questão a decidir:
- estipulação de cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador.
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Factos a considerar:
1.º A massa insolvente apreendeu o seguinte bem: veículo automóvel de marca Ford, modelo …, matrícula ... – FR - .. (auto de apreensão constante do apenso B);
2.º Sobre o veículo encontra-se registada uma reserva de propriedade em favor da ré (certidão de fls. 11 do apenso B);
3.º A ré reclamou um crédito sobre os insolventes no valor de €7.295,37, classificado como comum (relação de créditos constante do apenso A);
4.º O crédito da ré sobre os insolventes nasce de um contrato de mútuo denominado de “Contrato de Financiamento para Aquisição a Crédito” que os insolventes solicitaram para aquisição do veículo identificado no artigo 1º, em 02-01-2013 (fls. 6 verso a 8 verso)
5.º A reserva de propriedade foi convencionada como garantia do cumprimento do contrato;
6.º A ré não era a vendedora do veículo.
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Está em causa a questão da validade da cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador não vendedor.
Existem, a propósito, duas teses em confronto.
Segundo uma, defendida na sentença recorrida, a referida cláusula apenas pode ser estabelecida em contratos de alienação, o que não é o caso do contrato de mútuo; donde, o alienante não poder transferir a cláusula de reserva de propriedade para o financiador; por outro lado, só o vendedor, como proprietário do bem, pode reservar a respectiva propriedade – sendo impossível alguém reservar para si a propriedade de uma coisa que não tem – cfr. neste sentido, na doutrina, GRAVATO MORAIS, in CDPrivado, 6-52, e na jurisprudência, entre outros, os ac.s do STJ de 12-7-2011; desta Relação, de 10-10-2016 e de 13-10.2010; da Relação de Coimbra, de 8-3-2016 e de 17-12-2014; e da Relação de Lisboa, de 17-12-2015, todos in www.dgsi.pt.
Já outra tese defende que o art.409º, nº1, do C.Civil admite a transmissão da propriedade reservada do vendedor para o mutuante, como garantia do crédito concedido ao comprador, o que deriva do princípio da liberdade contratual; de qualquer modo, tal retira-se de uma interpretação actualista daquele preceito legal devendo, por isso, adoptar-se para a compra e venda financiada por uma terceira entidade a solução prevista para a compra e venda com reserva de propriedade celebrado entre vendedor e comprador; podendo ainda lançar-se mão do instituto da sub-rogação – cfr. na doutrina, MARIA ISABEL MENERES CAMPOS, in A Reserva de Propriedade: do Vendedor ao Financiador; e, na jurisprudência, também entre outros, o ac. do STJ de 30-9-2014 – com um voto de vencido – e desta Relação, de 24-2-2011, in www.dgsi.pt.
Dito isto, e atenta a factualidade apurada, logo se conclui que a apelação não poderá proceder, qualquer que seja a posição que se defenda.
Na verdade, mesmo para quem defenda a tese da validade da cláusula de reserva de propriedade estabelecida a favor do financiador, tal pressupõe que se verifique a transmissão da propriedade reservada do vendedor para o mutuante, o que se não resulta da factualidade provada, nem dos autos – mas que se verifica, estando documentada, na situação analisada no ac. do STJ de 30-9-2014 supra referido, e que nos pareceu decisiva na solução aí encontrada, onde se defende a validade da cessão da reserva de propriedade do vendedor para o financiador com base nos seguintes argumentos: a natureza da propriedade reservada; a interpretação actualista; o princípio da liberdade contratual; e a natureza dispositiva dos art.s 408º e 409º do C.Civil.
E não resulta também dos autos qualquer factualidade no sentido de que tenha ocorrido qualquer sub-rogação, nas modalidades legalmente previstas.
De qualquer modo, perfilhamos o entendimento seguido na sentença recorrida.
Assim, dispõe-se no art.409º, nº1, do C.Civil: “Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar apara si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento”.
Decorre, assim, desta norma que a cláusula de reserva de propriedade apenas pode ser estipulada em contratos de alienação, suspendendo um dos seus efeitos: a transmissão da propriedade – art.879º, al. a), do C.Civil.
E suspendendo ela os efeitos translativos inerentes a um contrato de alienação, apenas pode ser estipulada nesse contrato: só pode reservar para si o direito de propriedade sobre um bem o respectivo titular, ou seja, o alienante.
Pelo que, no contrato de mútuo, tendo por finalidade o financiamento da aquisição de um bem, e apesar da conexão que possa existir entre os dois contratos, o mutuante não pode reservar para si um direito que não tem.
É, assim, juridicamente impossível o mutuante reservar para si um direito de propriedade que não tem. E sendo tal legalmente impossível, estamos perante uma cláusula nula – art.280º, nº1, do C.Civil.
Como se escreve no voto de vencido constante do referido ac. do STJ de 30-9-2014:
“E não se vê que os citados preceitos possam ser interpretados actualisticamente no sentido da douta decisão maioritária, visto que na letra da lei não existe o mínimo de correspondência verbal, no referido sentido, ainda que imperfeitamente expresso (art.9º nº2 do CC).
Portanto, não parece justificado lançar-se mão de mecanismos jurídicos como a “alienação da propriedade em garantia” ou da “transmissão da propriedade em garantia” consagrados no direito brasileiro ou alemão, para justificar a licitude da reserva de propriedade a favor da financeira (que não seja, simultaneamente a vendedora), uma vez que tais mecanismos não foram adoptados pelo nosso direito positivo.
Assim, por muito actualistas que sejam tais concepções, a sua aplicação traduzir-se-á na criação de uma nova norma, o que não é função da jurisprudência nem do intérprete.
Seja como for, mesmo a admitir-se que na interpretação do art.409º do CC caberia a constituição da reserva de propriedade para garantir um crédito alheio, tal só significaria que o comprador não adquiriria a propriedade da coisa comprada ao vendedor reservatário, enquanto não pagasse o crédito ao terceiro financiador. Mas não significaria a atribuição ao terceiro da propriedade da coisa, que se manteria na esfera jurídica do vendedor.
Por outro lado, não se vê como a dita propriedade do veículo pudesse ser adquirida pela A. (financeira) por via da cessão ou da sub-rogação.
Tais institutos são típicos do direito das obrigações, que não dos direitos reais e, se a dúvida ainda era sustentável face à redacção do art.785º do Código de 1867, o novo Código eliminou-a com toda a clareza, restringindo intencionalmente o objecto da cessão de créditos.
Notar-se-á, ainda, que a aplicação das regras da cessão de créditos a quaisquer outros direitos, consignada no art.588º do CC, não abrange os direitos reais cuja forma de transmissão e constituição é regulada no Livro das Coisas (art.s 1316º e seg.)…
Portanto, por via da cessão de créditos ou sub-rogação transmitem-se direitos de crédito, não se transmitem nem constituem direitos reais.
Como resulta do art.1316º do CC, o direito real de propriedade apenas se adquire por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei (entre os quais não se conta a cessão de créditos ou a sub-rogação).
Ora, não consta dos autos a celebração de qualquer contrato por via do qual a A. (financeira) tenha adquirido à vendedora a propriedade do veículo em questão, nem consta que tenha adquirido essa propriedade por qualquer outra forma idónea para produzir tal aquisição.
Logo, não tendo a A. a qualidade de proprietária do veículo, não podia assumir a titularidade da reserva de propriedade com a consequente entrega definitiva do veiculo”.
Efectivamente, não se vê como, a seguir-se a tese defendida pelo recorrente, uma vez entregue o bem ao financiador - na sequência da resolução do contrato de financiamento - por efeito da cláusula de reserva de propriedade, aquele possa fundamentar – até para efeitos de registo – o seu direito de propriedade, pois, manifestamente, não o adquiriu por qualquer das vias previstas no art.1316º do C.Civil.
Pelo que o recurso não merece provimento.
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Acorda-se, em face do exposto, em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.
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Porto, 08-10-2018
Abílio Costa
Augusto de Carvalho
Carlos Gil