Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
343/17.4JAAVR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA ERMELINDA CARNEIRO
Descritores: MEDIDA DE COAÇÃO
CONTINUAÇÃO DA ACTIVIDADE CRIMINOSA
Nº do Documento: RP20171011343/17.4JAAVR-A.P1
Data do Acordão: 10/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 50/2017, FLS 53-62)
Área Temática: .
Sumário: Se em face das circunstâncias do caso e da incapacidade do arguido de controlar os seus ímpetos, é de emitir um juízo de prognose de perigosidade social do arguido verifica-se em concreto o perigo de continuação da actividade criminosa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 343/17.4JAAVR-A.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo de Instrução Criminal – Juiz 1

Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:

I - Relatório
Nos autos de Inquérito supra referenciados em que é arguido, B..., após 1º interrogatório judicial foi proferido, em 1 de julho de 2017, despacho que fixou ao identificado arguido a medida coativa de prisão preventiva, por existir fortemente indiciada a prática pelo mesmo de um crime de homicídio na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131º, 22º, nºs 1 e 2, alíneas a) e b), 23º, nºs 1 e 2 do Código Penal e 86º do Regime Jurídico de Armas e suas Munições, aprovado pela Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro e de um crime de detenção de arma proibida previsto e punido pelos artigos 86º, nºs 1 alínea c), e 2), com referência ao artigo 3º, nº 6, alínea a) do Regime Jurídico de Armas e suas Munições, aprovado pela Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro e encontrarem-se verificados os pressupostos da respetiva aplicação, mormente os perigos de continuação da atividade criminosa, de perturbação do decurso do inquérito, de perturbação da ordem e tranquilidade públicas e de fuga.
Inconformado com esta decisão, dela recorreu o arguido, rematando a motivação de recurso que apresentou, com a formulação das seguintes conclusões: (transcrição)
«CONCLUSÕES:
I. No sistema processual vigente, a regra é a liberdade e a prisão a excepção, sendo a prisão preventiva uma medida de coacção meramente subsidiária, uma ultima ratio. No caso concreto tem pleno cabimento tal pensamento.
II. A justificação da decisão que impõe aos arguidos uma qualquer medida de coacção não pode consistir, apenas, na adesão a argumentos de cariz geral e abstracto, nada concretos, tal como fez o Despacho recorrido, pelo que viola o mesmo, para além do artigo 204º, do Código de Processo Penal, os artigos 379.º, nº.1, alínea a) e 374.º, nº.2, do mesmo diploma legal, assim como os artigos 18.º, n.os 2 e 3, 27.º e 32.º, n.os 1 e 2, todos da Constituição da República Portuguesa.
III. Atentos os frágeis indícios de continuação da actividade criminosa e de perturbação da ordem e da paz social, violados foram também pelo despacho recorrido os princípios da adequação e da proporcionalidade plasmados no artigo 193.º, nº1, do referido diploma legal.
IV. Violado mostrou-se também pelo Despacho recorrido o disposto no artigo 204.º, n.º 1, al a) e c), do Código de Processo Penal, por não se mostrar verificado em concreto, quer o perigo de fuga, quer o perigo de continuação da actividade criminosa pelo arguido e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas.
V. Também se mostra violado o princípio da subsidiariedade da prisão preventiva, positivado no artigo 193.º, n.º 2, do C. P. Penal, já que não se demonstra no despacho recorrido que as outras medidas de coacção são insuficientes ou inadequadas ao caso concreto do arguido.
VI. Ainda que assim não se entenda, sempre deverá a medida de coacção de prisão preventiva ser substituída pela medida de coacção de obrigação de permanência na habitação do ora recorrente (vide artigo 201º do Código de Processo Penal), sendo esta perfeitamente suficiente para fazer face às exigências cautelares que se fazem sentir in casu.
Termos em que, e nos mais que V. Exas doutamente suprirão, deve o presente recurso merecer inteiro provimento e, em consequência, ser revogado o despacho recorrido, ordenando-se a imediata restituição do arguido à liberdade, mediante a prestação de outras medidas de coacção não detentivas;
ainda que assim não se entenda, sempre deverá o arguido ser sujeito à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, ainda que sujeita a fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, nos termos previstos na lei, assim se fazendo Justiça!».
O Ministério Público respondeu ao recurso nos termos que constam a fls 256 a 263, pugnando pela manutenção do decidido.
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto em concordância com as posições assumidas pelo Ministério Público na 1ª instância, emitiu parecer (fls 71e 72) no sentido da improcedência do recurso.
Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código Processo Penal, veio o arguido manter a posição assumida na motivação apresentada.
Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência, cumprindo apreciar e decidir.
***
II - Fundamentação
Conforme entendimento pacífico são as conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação que operam a fixação e delimitação do objeto dos recursos submetidos à sua apreciação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que seja ainda possível conhecer.
Vistas as conclusões são as seguintes as questões suscitadas pelo recorrente:
- nulidade da decisão por falta de fundamentação no que concerne à existência dos requisitos a que alude o artigo 204º do Código Processo Penal;
- violação dos princípios da adequação e proporcionalidade por inexistência dos perigos de continuação da atividade criminosa, de perturbação da ordem e da paz social e de fuga;
- violação do princípio da subsidiariedade por suficiência de outras medidas coativas;
- consequente substituição da medida de prisão preventiva por outras medidas não detentivas, ou, quando muito, pela medida de obrigação de permanência na habitação, com sujeição a vigilância eletrónica.
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O Despacho recorrido tem o seguinte teor (transcrição parcial)
«(…)
Indiciam fortemente os autos que:
1. No dia 29 de Junho de 2017, durante a tarde, no acantonamento de indivíduos de etnia cigana sito na Rua ..., ..., Ovar, no exterior das casas ali existentes, mais concretamente nos terrenos em frente das mesmas, C..., residente naquele acantonamento, envolveu-se em discussão e confronto físico com alguns dos seus familiares, ali também residentes, principalmente com o seu pai, D..., tendo para esse efeito utilizado o pau aguçado e a barra de ferro apreendidos nos autos, de forma ainda não exactamente apurada.
2. Cerca das 19 horas desse mesmo dia, na sequência do conflito que se vinha desenrolando entre pai e filho, nele interveio o arguido B..., irmão de C..., com quem este se veio a envolver também em discussão e confronto físico, que evoluiu até ao interior da barraca onde o arguido residia.
3. Nessa ocasião, o arguido dirigiu-se ao roupeiro existente no quarto dos filhos, de onde retirou a espingarda caçadeira, sem marca, modelo ou nº de série visíveis, com canos justapostos com 74cm de comprimento, no entretanto apreendida nos autos (fls. 57).
4. Com ela na sua posse, o arguido municiou-a com dois cartuchos e, com ela empunhada, seguiu no encalce do seu irmão C..., o qual se pôs em fuga daquela casa em direcção ao exterior.
5. Quando a vitima C... se encontrava já no exterior da casa, de costas para o arguido e a poucos metros deste, o arguido apontou a espingarda na sua direcção, tendo disparado pelo menos um tiro, que atingiu a vitima nas costas, após o que se colocou em fuga e escondeu a arma no pinhal envolvente, onde, por indicação sua, veio mais tarde a ser localizada e apreendida.
6. Por sua vez, C..., depois de atingido, veio a ser encontrado, ferido, deitado sobre um colchão da respectiva barraca, por E..., que chamou o 112, vindo a ser transportado de imediato, como consequência directa e necessária da conduta do arguido, às Urgências do Centro Hospitalar ..., onde veio a ser alvo de uma intervenção cirúrgica de urgência.
6. De facto, da relatada conduta do arguido, resultaram para C... as lesões descritas a fls. 60-70, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, designadamente vários orifícios punctiformes no 1/3 inferior do hemitórax posterior direito, abdómen e face posterior do braço direito, hematoma peri-renal extenso à direita, englobando o duodeno e que se estendia até ao nível do cego, laceração hepática do segmento VII e múltiplas perfurações milimétricas nos segmentos V, VI, VII, VIII, laceração punctiforme do delgado a cerca de 100mm da válvula ileocecal com orifício de entrada e saída, laceração punctiforme do duodeno, que exigiram uma intervenção cirúrgica de urgência, da qual se encontra em convalescença no referido Hospital.
7. Ao actuar como descrito, o arguido actuou livre, deliberada e conscientemente, com o propósito de tirar a vida a C..., seu irmão, disparando na direcção das costas dele a curta distância, bem sabendo que a natureza do meio utilizado determinaria lesões susceptíveis de conduzir à morte do mesmo, atenta a distância a que efectuou os disparos e a forma como os direccionou, sem que, contudo, haja logrado os seus intentos por razões estranhas à sua vontade.
8. A arma propriedade do arguido B... não se encontrava manifestada nem registada, nem o arguido tinha licença de uso e porte da mesma, bem sabendo ser proibida a detenção e porte daquela arma e respectivas munições sem manifesto e registo e sem que possuísse licença de uso e porte das mesmas.
9. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e constituía crime.
10. Pelo exposto, encontra-se fortemente indiciada a prática pelo arguido, em autoria material e em concurso efectivo, de:
- um crime de homicídio, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º, 22.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e b), 23.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal e 86.º, n.º 3, do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23.02;
- um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.ºs 1, alínea c), e 2, com referência ao artigo 3.º, n.º 6, alínea a), do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23-02.
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Os factos supra descritos e indiciados nestes autos assumem manifesta gravidade, quer em face da moldura penal abstracta que lhes corresponde, quer pela forma como o arguido os praticou, mediante o uso de uma caçadeira e atingindo a vítima quando esta se encontrava de costas para si, indiferente ao facto de ser seu irmão, quer em face das lesões causadas, a demandarem a realização de uma intervenção cirúrgica de urgência.
Há ainda que atender ao tipo de crime que os factos supra descritos integram e à necessária repercussão social dos mesmos, e ao alarme social que necessariamente geram, especialmente no seio da comunidade cigana.
Tudo o que fica dito, leva-nos a afirmar a existência, no caso concreto, de um forte perigo de continuação da actividade criminosa e de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, previsto no artigo 204.º, alínea c), do Código de Processo Penal, não sendo ainda de arredar a possibilidade de fuga do arguido, perante a ameaça de cumprimento de uma pena severa que os factos podem anunciar, como forma de, dela, se eximir (artº204º, al.a), do mesmo código)
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Prova:
- comunicação de noticia de crime de fls. 2-4;
- Informação de piquete relativa à deslocação ao local e reportagem fotográfica de fls. 5-20;
- ficha biográfica de fls. 24-5;
- Auto de reconstituição de fls. 38-56;
- Auto de Apreensão de fls. 57;
- Elementos clínicos de fls. 60 e ss.
- Declarações do arguido prestadas neste interrogatório
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Procedendo a definição dos contornos da conduta do arguido, evidencia-se-nos, imediatamente e em primeira linha, que o mesmo é possuidor de uma personalidade extremamente reactiva e sem quaisquer freios que lhe permitam proceder à avaliação da gravidade das consequências das suas acções.
É certo que existiu uma situação de conflito familiar desencadeada pela vitima C..., cujo os contornos ainda melhor os apura que poderá em alguma medida tornar entendível e até justificável perturbação emocional por banda do arguido,
Como é natural não é possível descurar que alguém veja o filho, a mulher e seu pai serem agredidos ou ameaçados de tal, ficar de braços cruzados.
Todavia, no contexto familiar de desavença na presença de outros familiares homens e ainda, com reconheceu o próprio arguido, possuindo este corpo mais forte do que o do irmão, qualquer atitude defensiva a demandar pela situação poderia ter sido eficientemente alcançada sem necessidade de recurso a arma de fogo, como potencial letal para a vida e cuja a utilização pôs efectivamente em perigo a sobrevida da vitima C...,
Neste momento existem indícios nos autos, que nos permitam concluir de forma cabal de que o mesmo se encontra fora de perigo.
A corroborar a primeira impressão que nos fica, apresenta-se a posse ilícita da arma e respectivas munições, não se percebendo das declarações do arguido a que fim este efectivamente destinava tal posse, não colhendo a justificação de defesa pelo mesmo aventada dado que nenhum incidente logrou assinalar.
Assim, legitimo é assumir, que a arma na sua posse sempre seria um meio de agressão face a terceiros, e que no caso concreto incidiu sobre o seu próprio irmão.
Daqui, quanto a nós, decorre o mais premente perigo que urge acautelar que é o perigo de continuação da actividade criminosa.
Não é este perigo, quanto a nós teórico e abstracto: se a vitima C... lograr sobreviver e voltar a casa, como se deseja, e perante a subsistência da sua personalidade conflituosa e a sua adição as drogas, necessariamente será de admitira a forte probabilidade de novos confrontos familiares ou intrafamiliares, ou nessas circunstâncias, ou nova reacção do arguido.
Note-se que, como o mesmo deixou bem expresso, desferiu dois tiros sendo que um deles foi deliberadamente dirigido ao corpo do seu irmão que se encontrava de costas.
Também não é de desconsiderar no que este crime concerne a possibilidade de o arguido reagir com o intuito de tirar a vida ou ofender a integridade física de outrem (terceiros) se colocado em situação de conflito que possa gerar o mesmo nível de stress com que vivenciou no dia 29 de Julho.
Se este é quanto a nós o perigo mais relevante dado também a facilidade com que o arguido pode obter a posse de outras armas de fogo, também não é de desconsiderar, face a pena efectiva de prisão que previsivelmente poderá ser aplicada que o mesmo procura a eximir-se ao seu comportamento pondo-se em fuga.
Por último e no que concerne ao alarme social, digamos que no intrafamiliar estamos perante pessoas com sentimentos neste momento ambivalente na medida em que tanto o agressor como a vitima pertencem ao seu seio. Dúvidas não temos que se estivéssemos perante situação diversa em que um deste fosse alheio a família, as reacções seriam mais efusivas e emotivas. Contudo, o nível de alarme social não se mede ao nível do seio da família e sim por referência a comunidade em que esta se encontra inserida, não nos restando dúvida de que uma tentativa de homicídio e a posse descontrolada de armas é absolutamente geradora de grave intranquilidade e receio público, esperando a polução uma resposta adequada e eficiente das instâncias judiciais que não só reafirme contra-factualcamente a validade da norma como estabeleça a paz jurídica.
Assim alicerçados e por forma a dar resposta adequada e proporcional, as exigências cautelares acabadas de pôr em evidência, considerando a personalidade do arguido, o seu passado criminoso, a sua inserção sociofamiliar e a pena que previsivelmente lhe virá aplicada decide-se que o mesmo deverá aguardar os ulterior termos do processo em prisão preventiva - dos art.ºs 191, 192º, 193º, 194º, 202º, n.º 1 al. a) e 204º, al. A) c) do C.P.Penal.»

Conhecendo:
Antes de mais impõe-se decidir se o despacho ora em crise padece de vício de nulidade por falta de fundamentação como assevera o recorrente.
Vejamos.
O dever de fundamentação das decisões judiciais consagrado na nossa Lei Fundamental - artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa - é uma garantia incontestável do conceito de Estado de direito democrático, assumindo, no domínio do processo penal, uma função estruturante das garantias de defesa dos arguidos. Com efeito, é através da fundamentação que se revelam as razões da decisão, permitindo aos respetivos destinatários e à comunidade a compreensão dos juízos de valor e da apreciação que o julgador levou a cabo. Para além disso, para efeitos de recurso, é ainda através da fundamentação que se alcança o controlo da atividade decisória.
Sendo o dever de fundamentação das decisões um imperativo constitucional incumbe ao legislador ordinário consagrar o modo como a mesma se realizará.
Na lei processual penal o dever de fundamentação encontra-se genericamente expresso no artigo 97.º, nº 5, do Código Processo Penal, o qual estatui “os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”.

No caso em análise o despacho recorrido, como claramente decorre da transcrição supra, explicita as razões pelas quais considera verificada a existência dos perigos contidos nas alíneas a) e c) do artigo 204.º do Código Processo Penal, demonstrando todo o raciocínio cognitivo que elaborou para assim considerar. É certo que relativamente ao perigo de fuga consignado na alínea a) do artigo 204.º do Código Processo Penal, o tribunal a quo apenas se limitou a invocar a previsibilidade de condenação em pena efetiva de prisão, o que como analisaremos infra, de per si, não consubstancia a verificação desse perigo. Porém, tal já se não verifica no que concerne aos perigos de continuação da atividade criminosa e de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas mencionados na alínea c) do preceito citado, os quais se encontram desenvolvidamente fundamentados.
E tanto assim se verifica que o recorrente, na motivação do recurso, amplamente refuta a fundamentação vertida na decisão impugnada. O que o recorrente verdadeiramente discorda é daquela fundamentação e não da sua ausência como veio invocar.
Inexiste, pois, a propalada nulidade.
Quanto às demais questões recursivas suscitadas resumem-se as mesmas, em súmula, à pretensão do recorrente em ver substituída a medida coativa de prisão preventiva que lhe foi aplicada, alegando a inexistência dos pressupostos a que aludem os artigos 204.º e 202.º do Código Processo Penal, considerando, em consequência, ser a decisão recorrida violadora dos princípios da adequação, proporcionalidade e subsidiariedade.
Embora de forma sucinta entendemos imperioso aduzir algumas considerações relativamente à medida coativa de prisão preventiva que foi aplicada ao arguido após o seu interrogatório judicial.
Consagra o artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa o princípio geral do direito à liberdade e segurança, contemplando as apertadas exceções que existem em relação ao mesmo.
Além disso, pode ler-se no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa:
“Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.”.
Os princípios constitucionais aludidos encontram-se plasmados e desenvolvidos na lei adjetiva penal. Por isso, compreende-se que se imponham vários princípios processuais para a aplicação de tais medidas de coação, desde logo, os de necessidade, legalidade, tipicidade, proporcionalidade e adequação, especialidade e, no que tange ainda à prisão preventiva, o de subsidiariedade.
Consideremos que o artigo 204.º, do Código Processo Penal dispõe o seguinte:
“Nenhuma medida de coação, à exceção da prevista no artigo 196.º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida:
a) Fuga ou perigo de fuga;
b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou
c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.”
Por seu turno estatui o artigo 28.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa:
“A prisão preventiva tem natureza excecional, não sendo decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei.”
Assim, aos pressupostos de caráter geral enunciados no artigo 204.º do Código Processo Penal, acrescem os de caráter específico reportados no artigo 202.º do mesmo diploma legal (estes de verificação cumulativa), ou seja: 1- a existência de fortes indícios da prática de crime doloso; 2- que o crime indiciado seja punível com pena de prisão de máximo superior a cinco anos (al a) ou os demais elencados nas alíneas b), c), d), e) ou f); 3- que as demais medidas de coação previstas no Código Processo Penal sejam inadequadas ou insuficientes.
Deste modo, para que possa impor-se a medida coativa de prisão preventiva, é imperativo a verificação dos requisitos específicos previstos no artigo 202.º do Código Processo Penal e algum dos gerais contidos no artigo 204.º do mesmo diploma legal.
As restrições ao direito à liberdade, enquanto direito constitucionalmente consagrado, estão submetidas ao princípio da tipicidade constitucional das medidas privativas da liberdade e devem ater-se dentro dos limites necessários à salvaguarda de outros direitos igualmente protegidos pela Lei Fundamental.
Pretende o sistema jurídico, desta forma, encontrar o ponto de equilíbrio entre os direitos em confronto, como sejam, o direito à liberdade e o direito à segurança.
Feito este breve excurso sobre os pressupostos que subjazem à aplicação da medida coativa de prisão preventiva, reportemo-nos ao caso em análise.
Clama o recorrente pela substituição da medida coativa que lhe foi imposta de prisão preventiva, por medida menos gravosa, designadamente, não detentiva ou, em último caso, a de obrigação de permanência na habitação.
Para tanto, invoca a inexistência de perigo de fuga, de continuação de atividade criminosa e de perturbação de ordem pública aduzidos no despacho que fixou a medida.
Vejamos.
Compulsados os elementos certificados nestes autos e que o despacho recorrido refere, é de concluir que está fortemente indiciada a prática pelo arguido B..., ora recorrente, de um crime de homicídio na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131º, 22º, nºs 1 e 2, alíneas a) e b), 23º, nºs 1 e 2 do Código Penal e 86º do Regime Jurídico de Armas e suas Munições, aprovado pela Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro e de um crime de detenção de arma proibida previsto e punido pelos artigos 86º, nºs 1 alínea c), e 2), com referência ao artigo 3º, nº 6, alínea a) do Regime Jurídico de Armas e suas Munições, aprovado pela Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro.
Atentemos então se a medida coativa aplicada é proporcional e adequada ou, ao invés, se é violadora dos princípios da adequação e proporcionalidade e subsidariedade.
As medidas de coação são meios processuais que limitam a liberdade pessoal do arguido, tendo em vista assegurar a eficácia da administração da justiça penal. «São meios processuais de limitação de liberdade pessoal ou patrimonial (…) que têm por fim acautelar a eficácia do procedimento, quer quanto ao seu desenvolvimento, quer quanto à execução das decisões condenatórias» - cfr. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, II, pág. 232.
Na escolha da medida de coação, o juiz tem de atender aos critérios que decorrem princípios da legalidade (artigo 191.º do Código Processo Penal), da necessidade, adequação e proporcionalidade (artigo 193.º, nº 1 do Código Processo Penal).
Consagra o mencionado artigo 193.º do Código Processo Penal:
“1- As medidas de coação e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
2- A prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coação,
3- Quando couber ao caso medida de coação privativa da liberdade nos termos número anterior, deve ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação sempre ela se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares.
4- A execução das medidas de coação e de garantia patrimonial não deve prejudicar o exercício de direitos fundamentais que não forem incompatíveis com as exigências cautelares que o caso requerer.”
Em conformidade com estes princípios, deve o juiz escolher, em cada caso concreto e dentro do elenco das medidas de coação previstas na lei, a medida de coação adequada e proporcionada.
E no caso concreto, face aos elementos coligidos nos autos, adiantamos desde já, afigurar-se-nos ser a medida coativa de prisão preventiva proporcional à gravidade dos crimes fortemente indiciados e à sanção que previsivelmente será aplicada. Com efeito, o arguido utilizando uma espingarda que previamente municiou com dois cartuchos, arma essa proibida e que detinha guardada num roupeiro no quarto dos seus filhos, alvejou o seu irmão desferindo dois tiros, sendo um deles deliberadamente dirigido contra o seu corpo e quando o mesmo se encontrava de costas.
A personalidade demonstrada pelo arguido na materialização dos crimes indiciados é reveladora de uma natureza violenta e insensível, denotando incapacidade de gerir as suas emoções. Se não pode olvidar-se o facto de a vítima ter apresentado previamente comportamentos ofensivos da própria integridade física de familiares e encontrar-se em contenda com o arguido, igualmente se não pode escamotear que a conduta deste foi perpetrada já após o irmão ter encetado a fuga, ou seja, quando já havia sido ultrapassada a situação de conflito.
Como refere o acórdão desta Relação do Porto de 25 de março de 2010, processo nº 1936/09.9JAPRT-A.P1, disponível in www.dgsi.pt, convocado, aliás, pelo recorrente, «o perigo de continuação da actividade criminosa decorrerá de um juízo de prognose de perigosidade social do arguido, a efectuar a partir de circunstâncias anteriores ou contemporâneas à conduta que se encontra indiciada e sempre relacionada com esta.».
E toda a incapacidade manifestada pelo arguido em controlar os seus ímpetos, evidenciada no facto de ter ido no encalço de quem anteriormente o colocara em descontrolo emocional, com o propósito deliberado de lhe tirar a vida, apesar de já terminada a contenda e encontrando-se a vítima em situação indefesa (de costas e em fuga), bem assim como deter ilegalmente na sua posse uma arma de fogo e respetivas munições (ademais guardada num roupeiro no quarto dos filhos) inculcam um juízo de prognose de perigosidade social do arguido, verificando-se, por isso, em concreto o perigo de continuação da atividade criminosa.
Ainda, há que ponderar as fortes exigências de prevenção geral que se fazem sentir neste tipo legal de crime. Trata-se de um crime de homicídio, embora não consumado por razões alheias à vontade do arguido, sendo o bem jurídico atingido o que maior relevo assume (porque de vida humana se trata) sendo o próprio legislador que o define como sendo de criminalidade especialmente violenta – cfr. artigo 1.º al. l) do Código Processo Penal.
E não se diga, como argumenta o recorrente, que no caso concreto por se tratar de elementos da mesma família, não se verifica alarme na comunidade que ambos integram. Este tipo de crime, sendo por excelência potenciador de sentimentos de vingança, de insegurança e de intranquilidade, cometido ademais no seio de uma comunidade de etnia cigana onde imperam valores e tradições muito próprias, a libertação do arguido tenderia a manter o alarme social decorrente da prática do crime.
Ainda e como refere Maia Costa in Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2ª edição, pág. 823 «(…) o perigo da perturbação da ordem e tranquilidade públicas só poderá ser invocado em situações em que a libertação do arguido ponha em causa, com alto grau de probabilidade, e gravemente, a ordem ou a tranquilidade públicas, entendidas em termos gerais, embora a nível local, mas não de grupo ou estrato social.».
Acresce, tal como se expressa no despacho recorrido, que a posse indevida e descontrolada de armas, designadamente, armas de fogo, é incontestavelmente geradora de alarme e tranquilidade públicas, tanto mais que, no caso concreto, tal tipo de arma foi utilizada para o cometimento do tentado crime de homicídio.
Do que fica dito, resulta mostrar-se verificado o perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade pública.
Dos autos não constam, porém, elementos objetivos, donde possa extrair-se a verificação do perigo de fuga como referido na decisão em crise. Como já supra se aludiu, a mera previsibilidade de condenação não implica, por si só, a presunção de perigo de fuga. O juízo da existência deste perigo deve fundar-se em elementos objetivos extraídos da análise global de todas as circunstâncias do caso e que possam revelar que o arguido em liberdade se furtará à ação da justiça, o que no caso em análise não decorre. É verdade e constam dos elementos coligidos nos autos que a primeira reação do arguido foi colocar-se em fuga e esconder a arma de fogo que utilizara. Porém, decorrido esse primeiro momento, constata-se que foi o próprio arguido quem colaborou na localização e apreensão da arma e na reconstituição dos factos.
Contudo, perante a verificação dos perigos de continuação da atividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, não violou o despacho recorrido, ao aplicar a medida coativa de prisão preventiva ao arguido, quaisquer princípios, designadamente, os princípios de adequação, proporcionalidade e subsidariedade, como lhe imputa o recorrente.
Refira-se, por último, que a obrigação de permanência na habitação não se mostra suficiente para satisfação das exigências cautelares. No caso em apreço, o indiciado crime de tentativa de homicídio surgiu no âmbito de um conflito familiar, pelo que é fortemente potenciador de gerar outras contendas semelhantes à ocorrida, tanto mais que a vítima e o arguido são irmãos e integram ambos a mesma comunidade.
Daí que se justifique plenamente o decretamento da prisão preventiva, revelando-se a mesma necessária e adequada às exigências cautelares que o presente caso requer, bem como proporcional à gravidade dos crimes fortemente indiciados.
Em síntese, face a gravidade dos ilícitos fortemente indiciados e ao perigo de continuação da atividade criminosa e de perigo para a perturbação da ordem e tranquilidade públicas, apenas a medida de coação da prisão preventiva se mostra adequada e proporcional - artigos 202.º, n.º 1 alínea a), 204.º, alínea c) e 193.°, todos do Código Processo Penal.
Improcede, assim, o recurso.
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III – Decisão:
Acordam em conferência na Primeira Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente o recurso apresentado pelo recorrente, B..., confirmando-se integralmente a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente que se fixam em 4 Ucs.

Porto, 11 de outubro de 2017
(elaborado pela relatora e revisto por ambos os subscritores – artº 94 nº2 do Código Processo Penal)
Maria Ermelinda Carneiro
Vítor Morgado