Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0111584
Nº Convencional: JTRP00039227
Relator: JOAQUIM GOMES
Descritores: DEVASSA POR MEIO DA INFORMÁTICA
Nº do Documento: RP200605310111584
Data do Acordão: 05/31/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: LIVRO 445 - FLS 42.
Área Temática: .
Sumário: O patrão que no local de trabalho dos seus empregados instala um sistema electrónico que permite saber as vezes que cada empregado se desloca à casa de banho, as horas a que o faz e o tempo que aí demora não preenche o elemento objectivo do crime de devassa por meio de informática.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, no Tribunal da Relação do Porto.

I.- RELATÓRIO

1.- Na instrução n.º …/2000 do ..º Juízo Criminal do Tribunal de Santa Maria da Feira, em que são:

Recorrente/Assistente: B………. .

Recorrido: Ministério Público
Recorridos/Arguidos: C………. .

foi proferido despacho de não pronúncia a fls. 258-261 e datado de 2001/Set./27, relativamente a um crime de devassa por meio de informática p. e p. pelo art. 183.º do Código Penal que o assistente imputa ao arguido e que no decurso do inquérito já tinha merecido um despacho de arquivamento por parte do Ministério Público.
2.- O assistente, não se conformando com aquela decisão, interpôs recurso da mesma a fls. 269-274 (2001/Out./12), em virtude de, no seu entender, os autos indiciarem que o arguido cometeu tal ilícito criminal, pugnando que o mesmo seja pronunciado pela sua prática, apresentando as conclusões que se passam a transcrever:
1.ª) Dos autos resulta que o arguido, desde Janeiro de 1996, nas instalações da fábrica de calçado pertencente à firma “D………., Lda.”, criou, utilizou e continua a utilizar um ficheiro automatizado de dados pessoais referentes aos seus trabalhadores, entre os quais o assistente.
2.ª) O referido sistema é activado por cada um dos trabalhadores, entre eles o assistente, através de um cartão magnético de uso pessoal que permite a identificação do seu titular. Com a utilização do referido sistema o assistente sabe rigorosamente a que horas é que cada um dos seus trabalhadores entrou no quarto de banho para satisfazer as suas necessidades fisiológicas, quanto tempo aí passou e a que horas é que daí saiu.
3.ª) Durante o inquérito, o arguido faltou à verdade quanto á finalidade da utilização do referido sistema e quanto à forma da sua utilização porque estava consciente de que o sistema informático existente na empresa era ilegal.
4.ª) Poderá também presumir-se que tal sistema nunca teria sido registado caso a Comissão Nacional de Protecção de Dados Pessoais Informatizados tivesse tomado conhecimento da sua verdadeira utilização e finalidade.
5.ª) As regras da experiência e os juízos de normalidade daí decorrentes (que nada têm a ver com a “lógica” referida na sentença) mostram-nos que os quartos de banho foram criados para que as pessoas possam satisfazer as suas necessidades fisiológicas - mais concretamente: urinar, defecar, tratar da higiene intima - de uma forma recatada, isolada e com condições de higiene.
6.ª) As mesmas regras de experiência dizem-nos que a esmagadora maioria das pessoas utiliza os quartos de banho para satisfazer as suas necessidades fisiológicas e não para qualquer outro fim, designadamente para “... fumar, conversar, descansar, comer, etc.”
7.ª) Na ausência de qualquer prova em contrário que demonstre uma utilização anormal do espaço, isto é, contrária às regras da experiência, terá de presumir-se que o tempo que as pessoas passam no interior de uma casa de banho diz respeito à sua vida privada. E por isso tal período de tempo não deverá ser controlável. Exigir-se que se saiba o que de concreto lá se passou para que se possa afirmar que tal período de tempo diz respeito à vida privada dos seus utilizadores é um critério inaceitável porque é em si mesmo violador da privacidade dos utilizadores.
8.ª) A decisão recorrida avaliou incorrectamente os factos indiciados nos autos. O tempo que as pessoas despendem nos quartos de banho não pode ser objecto de registo informático porque diz respeito à vida privada dos utilizadores.
9.ª) O Senhor Procurador junto do Supremo Tribunal Administrativo já entendeu, numa situação precisamente análoga àquela que se discute nos presentes autos, que “o referido controlo informático constitui um atentado à vida privada e à dignidade da pessoa humana”.
10.ª) O tempo que uma pessoa despende diariamente na casa de banho pode ser revelador de aspectos característicos do funcionamento do seu próprio corpo e isso é absolutamente íntimo e não registável.
11.ª) O arguido age com dolo
12.ª) Se se soubesse o que se estava a passar dentro das casas de banho não estaríamos apenas perante o problema da “devassa por meio de informática” (art. 193° Código Penal) mas também perante um crime de “devassa da vida privada” (art. 192° do Código Penal). Haveria neste caso um claro concurso de infracções.
13.ª) Estão totalmente indiciados os elementos do tipo legal de crime de devassa por meio de informática, previsto e punido pelo artigo 193.° do Código Penal.
14.ª) O arguido criou, mantém e utiliza na sua fábrica de calçado, desde Janeiro de 1996, um ficheiro automatizado de dados individualmente Identificáveis referentes à vida privada dos seus trabalhadores, designadamente acerca do tempo que estes despendem nos sanitários da empresa a satisfazerem as suas necessidades fisiológicas.
15.º) A decisão recorrida viola o disposto nas seguintes disposições legais: art. 193.º, do Código Penal; art. 308.º, 286.°, n.º, 1, do Código de Processo Penal; art. 80.º do Código Civil; art. 26.º, 1, da Constituição da República Portuguesa.
3.- O arguido respondeu a fls. 279-282, insurgindo-se contra tal recurso e a imputação que lhe é feita no mesmo, apresentando, para o efeito, as seguintes conclusões:
1.ª) O ficheiro informatizado existente na empresa “D………., LDA”, de que o recorrido é sócio gerente, está devidamente registado na C.N.P.D.P.I.
2.ª) A C.N.P.D.P.I., analisou no local quer o sistema quer os dados objecto de tratamento, os quais não sofreram quaisquer alterações desde 1997.
3.ª) Conhecedora dos factos e de toda a situação em pormenor, a C.N.P.D. aprovou e registou o dito ficheiro.
4.ª) Tal sistema tem como objectivo controlar o tempo de trabalho efectivo, sendo registáveis todas as interrupções de trabalho por iniciativa do trabalhador.
5.ª) A empresa ou o recorrido não controlam a vida privada do recorrente ou de qualquer trabalhador, nem isso lhe interessa ou pode interessar.
6.ª) De qualquer modo, sempre seria impossível esse controlo, já que, após o registo de interrupção, o recorrido não tem como saber onde é que o recorrente tenha ido (casa de banho, balneários, refeitório) visto que a porta de acesso é a mesma onde se localiza o insersor.
7.ª) Mas mesmo que fosse possível apurar que o recorrente ia ao quarto de banho (e não é) sempre seria impossível controlar o tipo de actividade que o mesmo lá foi fazer.
8.ª) E de tal maneira assim é que poderia acontecer a ida ao quarto de banho, exactamente para não fazer nada, porque é dos poucos sítios da empresa onde não é possível o controlo.
9.ª) E sempre assim acontece desde 1996.
10.ª) O recorrido sempre respeitou e cumpriu a Lei, nomeadamente as regras contidas na Lei 67/98.
11.ª) Pelo que não pode o recorrido, cumprindo a Lei, ser incriminado.
12.ª) E não pode (nem devia) o recorrente servir-se dos Tribunais para atingir fins eminentemente politico-sindicais.
4.- O Ministério Público também contra alegou a fls. 284-287, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, porquanto no seu entender, e em suma, o sistema instalado na referida fábrica visa apenas controlar os lapsos de tempo que o trabalhador passa sem efectivamente exercer qualquer actividade laboral, não havendo, por isso, qualquer devassa da vida privada do mesmo por se proceder ao registo informatizado de tais lapsos de tempo.
Nesta Relação o ilustre Procurador-Geral Adjunto dissentiu deste entendimento e emitiu parecer no sentido de que o assistente tem toda a razão.
5.- Cumpriu-se o disposto no art. 417.º, n.º 2 do C. P. Penal, tendo o arguido respondido a este parecer, mantendo, no essencial, tudo aquilo que já tinha antes expendido.
6.- Após uma nova redistribuição do processo em 2005/Nov./30, colheram-se novos vistos legais, nada obstando ao conhecimento do mérito.
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II.- FUNDAMENTOS.
1. - A DECISÃO RECORRIDA.
Na parte que aqui interessa e que está essencialmente impugnada, foi decidido nos termos que se passam a transcrever:
“Estabelece o art. 308.º do CPP que “se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.
Por sua vez o art. 283.º, n.º 2 refere que: “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.
Assim, sendo este o entendimento legal em que deve assentar a prolacção de despacho de pronuncia ou de não pronuncia, do mesmo resulta que o despacho de pronúncia só deve ser proferido se se poder formular um juízo de probabilidade de aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança.
Em sede de instrução as testemunhas vieram referir unanimemente que:
- cada vez que vão à casa de banho têm de utilizar um cartão magnético que acciona o sistema acima referido.
- tal sistema foi introduzido em 1996 e alargado em 1999 a quaisquer paragens da actividade produtiva imputáveis ao trabalhador;
- Os trabalhadores podem gastar 15 minutos, depois alargados a 30 minutos e depois a uma hora, por mês, para além do intervalo diário de 10 minutos a meio da manhã, para deslocações à casa de banho. Se excederem esse tempo pode ser-lhes descontada determinada quantia no prémio de produtividade, não sujeito a recibo.
Em sede de inquérito foi ouvido o arguido que depôs afirmando que:
- Em Janeiro de 1996, o horário de trabalho passou de 45 horas para 40 horas semanais, o que representou uma quebra de 12 %.
- O arguido viu-se na necessidade de implementar um sistema informático que permitisse controlar o tempo de trabalho efectivo, individual e colectivamente, respeitando ao mesmo tempo a questão da privacidade dos trabalhadores no que respeita à satisfação das suas necessidades fisiológicas, ou seja do tempo despendido nos quartos de banho:
- Os trabalhadores devem passar o cartão magnético sempre que ocorre uma interrupção do trabalho a estes imputável. É o caso de idas à casa de banho, ao exterior da fábrica, refeitório, vestiários etc.
Do inquérito resulta ainda que o ficheiro, pomo da discórdia está devidamente registado pela Comissão Nacional de Protecção de Dados.

Perante esta matéria, não existem duvidas que os trabalhadores devem accionar o sistema informático acima descrito cada vez que vão á casa de banho.
Não se duvida igualmente que a obrigação de “picar o ponto”, só se alargou a todas as paragem na actividade laboral imputáveis ao trabalhador a partir de 1999, talvez como forma de acautelar denúncias como a que se aprecia nos presentes autos.
No entanto, será que esta é matéria suficiente para integrar o crime previsto no art. 193° do CP?
Estabelece esse artigo que é punido "quem criar, mantiver ou utilizar ficheiro automatizado de dados individualmente identificáveis e referentes a convicções políticas, religiosas ou filosóficas, à filiação partidária ou sindical, à vida privada, ou a origem étnica".
Do depoimento do arguido retira-se que a intenção da empresa foi a de controlar a produtividade da mesma e não interferir na vida privada de cada trabalhador.
Ora, como foi referido por estes, as paragens da actividade laboral devem-se quase exclusivamente às idas à casa de banho. Entende-se, assim, que à empresa fosse sobretudo estas que interessava controlar, impondo por isso, a obrigação de "picar o ponto" apenas quando os trabalhadores iam à casa de banho e só posteriormente alargando tal controlo a qualquer paragem da actividade produtiva imputável ao trabalhador.
Note-se que a empresa apenas pode controlar através deste sistema a presença dos trabalhadores num determinado espaço fisico - a casa de banho da empresa. Não pode controlar a actividade dos trabalhadores dentro desse espaço físico. Assim, não tem possibilidade de saber se os trabalhadores estão a satisfazer as suas necessidades fisiológicas e que espécie de necessidades fisiológicas (e aí estar-se-ia a infringir a vida privada de cada trabalhador) ou se estão eventualmente a desenvolver outra espécie de actividade - fumar, conversar, descansar, comer, etc.
Assim, entendo que não existe qualquer violação da vida privada dos trabalhadores
O requerente da abertura de instrução parte da premissa (que até poderá ser lógica mas não é necessariamente verdadeira) que os trabalhadores apenas vão à casa de banho para satisfação de necessidades fisiológicas. Ora, a experiência diz-nos que esta premissa nem sempre é verdadeira.
Assim, falece a conclusão que pretende extrair - a existência de devassa à vida privada por meio de informática.
Acresce que a entidade responsável pelo controlo e protecção dos dados pessoais tem conhecimento da situação, estando o ficheiro devidamente registado.
Assim, e ainda que se admita serem verdadeiros os depoimentos prestados pelos trabalhadores, entendo que não está preenchido o crime de devassa por meio de informática.
Pelo exposto decido não pronunciar o arguido pelos crimes que lhe é imputado no requerimento de abertura de instrução”
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2.- DO DIREITO.
As questões suscitadas em recurso prendem-se essencialmente com a existência de indícios suficientes ou não, de modo a que o arguido seja pronunciado pela prática, como autor material, de um crime de devassa por informática, o que iremos apreciar, cabendo nesta última parte a referência ao direito de reserva sobre a intimidade da vida privada e ao preceituado no art. 80.º do Código Civil, assim como ao contemplado no art. 26.º, 1, da Constituição da República Portuguesa (C. Rep.).
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a) Os indícios suficientes para a pronúncia.
Estabelece o art. 308.º, n.º 1 do Código Processo Penal que “Se, até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.
Segundo o art. 283.º, n.º 2, para onde remete o art. 308.º, n.º 2, do citado código “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança”.
Correlacionado com estes preceitos e por se tratar da fase de instrução, está o disposto no art. 286.º, n.º 1, deste mesmo Código, segundo o qual “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
Como ainda recentemente se sumariou no Ac. desta Relação de 2006/Jan./04 [Subscrito pelos mesmos signatários], divulgado em www.dgsi.pt “No culminar da fase de instrução, o juízo de pronúncia deve, em regra, passar por três fases: (i) um juízo de indiciação da prática de um crime, ou seja, a indagação de todos os elementos probatórios produzidos; (ii) um juízo probatório de imputabilidade desse crime ao arguido (iii) e um juízo de prognose condenatório, mediante o qual se possa concluir que predomina uma razoável possibilidade de o arguido vir a ser condenado por esses factos ou vestígios probatórios, estabelecendo-se um juízo semelhante ao juízo condenatório a efectuar em julgamento”.
Para o efeito partiu-se dos seguintes tópicos interpretativos, para os quais remetemos e que se podem cingir aos seguintes:
– o entendimento, doutrinal e jurisprudencial, que já advinha de expressão idêntica contemplada nos art. 349.º, 354.º, § 1 e 368.º [Estes dois últimos preceitos antes da redacção introduzida pelo Dec.-Lei n.º 185/72, de 31/Mai], de “fortes indícios” do art. 291.º, § 1 ou mesmo de “indícios bastantes de culpabilidade” do art. 362.º, todos do Código Processo Penal de 1929 ou da referência a “prova indiciária” do art. 26.º do Dec.-Lei n.º 35.007, de 1945/Out./13;
– à necessidade de ajustamento ao princípio “in dubio pro reo”, enquanto emanação da garantia constitucional da presunção de inocência [32.º, n.º 2, C. Rep.; 11.º, n.º 1 DUDH [Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 Dezembro de 1948]; 6.º, n.º 2 da CEDH [Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que foi aprovada, para ratificação, pela Lei n.º 65/78, de 13/Out]];
– bem como do dever de respeito pela dignidade da pessoa humana, enquanto vertente do Estado de Direito Democrático, o qual implica a preservação do bom nome e reputação [26.º, n.º 1, C. Rep.], contra as intromissões abusivas e arbitrárias na respectiva esfera de direitos [art. 12.º, DUDH; 8.º da CEDH], o que poderá advir de uma acusação ou de uma pronúncia efectuada com base em ligeiros indícios, no seguimento do raciocínio do que é insuficiente para condenar, pode ser bastante para acusar – segundo o art. 16.º, n.º 2 da C. Rep., “Os preceitos constitucionais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem”.
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b) Crime de devassa por meio de informática.
Tal ilícito encontra-se previsto no art. 193.º, do Código Penal e pune, segundo o seu n.º 1, “Quem criar, mantiver ou utilizar ficheiro automatizado de dados individualmente identificáveis e referentes a convicções políticas, religiosas ou filosóficas, à filiação partidária ou sindical, à vida privada, ou a origem étnica”, sendo certo, segundo o seu n.º 2 que “A tentativa é punível”.
O mesmo insere-se no Título I da Parte Especial do Código Penal, mais concretamente no capítulo VII, que diz respeito aos crimes contra a reserva privada pelo que, à partida, poderemos dizer que é esta vertente que se pretende tutelar com tal ilícito.
No entanto temos de convir que esta protecção é um denominador comum em relação aos demais ilícitos que integram tal capítulo, pelo que certamente poderemos encontrar alguma especificidade nessa tutela.
Para o efeito aponta-se que, com tal crime, “pretende-se garantir a interdição absoluta, constitucionalmente imposta, do tratamento informático de um conjunto de dados pessoais que a CRP afirma insindicáveis e de total e plena disponibilidade da pessoa a que se reportam” – é o que se afirma no “Comentário Conimbricence do Código Penal – Parte Especial”, Tomo I (1999), p. 744, da responsabilidade de Damião da Cunha.
Por sua vez, existe quem prefira sustentar, que o que está em causa é “o direito de qualquer pessoa em controlar qualquer informação ou facto que afecte a sua vida privada e, como tal, a sua intimidade”, que aqui diz respeito aos dados de carácter pessoal atrás enunciados que são sujeitos a tratamento informático – neste sentido F. Muñoz Conde, no seu “Derecho Penal – Parte Especial” (1999), p. 242, em anotação ao art. 197.º, do Código Penal Espanhol.
Afigura-se-nos que, para uma melhor compreensão do bem jurídico aqui em causa, temos que ter presente as injunções constitucionais atinentes com tal ilícito, designadamente as relativas ao direito à reserva da vida privada e familiar e à utilização da informática.
Ora e segundo o art. 26.º, n.º 1, da C Rep. “A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação”, acrescentando-se no seu n.º 4 que “A privação da cidadania e as restrições à capacidade civil só podem efectuar-se nos casos e termos previstos na lei, não podendo ter como fundamento motivos políticos”.
Por sua vez, no art. 35.º, da C. Rep. preceitua-se no seu n.º 1 que “Todos os cidadãos têm o direito de acesso aos dados informatizados que lhes digam respeito, podendo exigir a sua rectificação e actualização, e o direito de conhecer a finalidade a que se destinam, nos termos da lei”.
No seu n.º 2 já se alude que “A lei define o conceito de dados pessoais, bem como as condições aplicáveis ao seu tratamento automatizado, conexão, transmissão e utilização, e garante a sua protecção, designadamente através de entidade administrativa independente”, sendo certo que, de acordo com o seu n.º 3, que “A informática não pode ser utilizada para tratamento de dados referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem étnica, salvo mediante consentimento expresso do titular, autorização prevista por lei com garantias de não discriminação ou para processamento de dados estatísticos não individualmente identificáveis”.
Daí que se possa sustentar, que, com a tipificação do crime do art. 193 do Código Penal, pretende-se tutelar a interdição do registo informático de dados que revelem as convicções políticas, religiosas ou filosóficas, a filiação partidária ou sindical, bem como a vida privada ou a origem étnica de uma certa pessoa, permitindo a esta o controlo de tais dados.
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Haverá, no entanto, que delimitar as situações que integram o crime de devassa por meio de informática do art. 193.º do Código Penal, de outras previsões legais que são susceptíveis de conflituar com essa tipificação e que possam perturbar o seu enquadramento.
Convém não esquecer que este normativo foi introduzido pela Reforma de 1995, restringindo o âmbito da previsão legal do correspondente art. 181.º do Código Penal de 1982, ao n.º 2 deste preceito – aí se referia que “É punido com prisão até 2 anos quem processar ou mandar processar dados de carácter pessoal referentes a convicções políticas, religiosas, filosóficas, bem como outras atinentes à privacidade, em infracção da lei”.
Tais situações que se encontram tipificadas como crimes, estão contempladas nas vulgarmente designadas Lei de Protecção de Dados Pessoais, inicialmente na Lei n.º 10/91, de 29/Abr. e agora na Lei n.º 67/98, de 26/Out., que revogou aquele diploma, tendo entrado em vigor em 27/Out. do ano da sua publicação [art. 52.º] – tendo esta última transposto para a ordem jurídica nacional, a Directiva n.º 95/46/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 1995/Out./24, respeitante ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados.
Assim, no âmbito da Lei n.º 10/91, previa-se a utilização ilegal de dados [34.º], a obstrução do acesso [35.º], a interconexão ilegal [36.º], falsas informações [37.º], acesso indevido [38.º], viciação ou destruição de dados [39.º], desobediência qualificada [40.º] e a violação do dever de sigilo [41.º].
Já segundo a Lei n.º 67/98, punem-se como crimes o não cumprimento de obrigações relativas a protecção de dados [43.º] [Na al. a) tipifica-se a omissão das notificações obrigatórias à CNPD ou o pedido prévio de autorização a esta, restringindo o âmbito do previsto no art. 34.º da Lei n.º 10/91 e no art. 181.º, n.º 1, al. a) do C. Penal de 1982; na al. b) contempla-se o fornecimento de informações falsas ou a realização de modificações não consentidas, que correspondia ao cominado no art. 37.º da Lei n.º 10/91 e art. 181, n.º 1, al. b) do C. Penal de 1982; na al. c) prevê-se o desvio ou utilização de dados pessoais de modo incompatível com as finalidades de autorização, que corresponde ao art. 181.º, n.º 1, al. d) do C. Penal de 1982; na al. d) abrange-se a promoção ou efectivação de interconexões ilegais, anteriormente previstas no art. 36.º da Lei n.º 10/91 e art. 181.º, n.º 1, al. b); na al. e) visa-se as situações em que se ultrapassam os prazos fixados pela CNPD ou em disposições legais; na al. f) pune-se a manutenção do acesso a redes abertas depois da notificação da CNPD para as cessar], o acesso indevido [44.º], a viciação ou destruição de dados pessoais [45.º], a desobediência qualificada [46.º] e a violação do dever de sigilo [47.º].
No confronto entre estes normativos, que integram a secção III, designada por “Crimes”, do Capítulo VI, referente à tutela administrativa e jurisdicional, e a secção II, apelidada de “Contra-ordenações” e de acordo com a regra geral fixada no art. 13.º do Código Penal aqui “Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência” – o que é naturalmente extensível ao crime de devassa por meio de informática do art. 193.º do Código Penal.
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Tentando agora encontrar o tipo objectivo deste crime e na parte que aqui releva, vemos que a designação de “privacidade” do Código de 1982, passou para referência a “vida privada” com a Reforma de 1995.
Ora a designação de privacidade tem origem na ideia de “privacy” que tanto foi divulgada na doutrina, como na jurisprudência dos E.U.A. e que ao longo dos tempos tem sofrido uma evolução desde os primórdios do “the right to be alone”, como uma forma de obstar à intromissão da imprensa daquele país na vida privada dos cidadãos.
Tal direito era assim perspectivado com um conteúdo negativo, até se situar, nos últimos tempos, como um direito de carácter positivo de protecção da pessoa em relação à informática. [O conceito de “privacy” surge, pela primeira vez, num artigo de S. D. Warren y L. D. Brandis, intitulado “The Right to Privacy”, publicado na “Harvard Law Review”, n.º 4, no ano de 1890/91, a pág. 193 a 220]
Porém o conceito estado unidense de “privacy” não está pré-definido, nem tem carácter unitário, assumindo diversas facetas, pois muito embora tenha surgido inicialmente por via doutrinal, veio a ser densificado e ampliado, de forma casuística, pela jurisprudência – veja-se a propósito as referência de direito comparado de Maria Mercedes Serrano Pérez, no seu estudo sobre “El derecho fundamental a la protección de datos. Derecho español e comparado” (2003), p. 32, que seguiremos por breves momentos.
A nível europeu a referência ao conceito de “privacy” teve bastante influência em Itália, onde chegou a ter uma grande aceitação, a par da noção de “riservatezza”, que queria significar “intimidade” ou “vida privada”, pretendo-se com ambos os conceitos acautelar-se o perigo da acumulação de dados informáticos.
A par destes conceitos e na falta de uma previsão constitucional para uma adequada tutela do bem jurídico em causa, surge igualmente o conceito de “liberdade informática”, para designar a protecção dos indivíduos face aos bancos de dados, mediante a faculdade dos mesmos poderem controlar as informações existentes a nível informático, passando a falar-se de um direito de “habeas data”, enquanto expediente para garantir a liberdade face à informática [Por contraposição ou na sequência do “habeas corpus”, que é um procedimento para garantir a liberdade física, pois como refere Vittorio Frosini, no seu “Diritto alla riservateza e calcolatori electtronici: una sintesi”, p. 295, citado por Maria Perez, “depois do direito de dispor livremente do corpo, do direito de expressar livremente o próprio pensamento, surge o direito de controlar a informação sobre a própria pessoa: é o direito de “Habeas Data”].
Na Alemanha estes novo perigos informáticos encontraram a sua defesa na personalidade (persölichkeitsrecht), mediante uma concepção aberta deste conceito, de modo a incluir, entre outras coisas, o direito de protecção de dados pessoais, uma vez que a Constituição desse país não consagrava expressamente um direito relativo à intimidade.
Foi assim que após a sentença do Tribunal Constitucional Federal Alemão de 1983/Dez./15, a qual declarou inconstitucional algumas normas da Lei de Censo de 1982/Mar./31, consolidou-se o reconhecimento a um “direito à autodeterminação informativa”, como forma de proteger o cidadão face a um banco de dados, mediante informações prestadas e aí registadas.
Esse “informationelle selbstestimmung” consistia no direito de um indivíduo controlar a obtenção, a titularidade, o tratamento e transmissão de dados relativos à sua pessoa.
No entanto, será de referir que até então persistiu na jurisprudência alemã e desde 1973, na sequência de um acórdão também proferido pelo Tribunal Constitucional desse país, o entendimento que ficou conhecido pela “teoria das três esferas”, mas cuja resposta se mostrava lacunosa perante os novos problemas decorrentes da existência de bancos de dados.
Tal posição distinguia três níveis ou graus de protecção, a saber:
i) um respeitante à esfera intima (intimsphäre), que se identifica com a noção de intimo, protegendo a vida pessoal e familiar que se pretende reservada e fora do conhecimento dos demais;
ii) outro referente à esfera privada (privatsphäre), relativo ao que cada pessoa tem como secreto ou particular, cuja violação ocorre quando se conhecem factos ou noticias que não se desejam revelar;
iii) um outro relativo à esfera individual (individualsphäre), que é tudo aquilo que individualiza uma pessoa, como a honra, o nome, a imagem.
Em Espanha, na sequência do art. 18.º, n.º 4 da sua Constituição, onde se preceitua que “La Ley limitará el uso de la informática para garantizar el honor y la intimidad personal y familiar de los ciudadanos y el pleno ejercicio de sus derechos” e após a sentença do Tribunal Constitucional n.º 292/2000, de 30/Nov. [BOE, n.º 4, de 2001/Jan./04], ficou reconhecido um direito fundamental à protecção de dados – na doutrina falava-se num direito de autodeterminação informativa, liberdade informática ou num direito de privacidade.
Mas então o que deve entender-se por “vida privada”.
A tutela constitucional da reserva da intimidade da vida privada assenta no citado art. 26.º, n.º 1, da C Rep., que é uma das facetas específicas do direito de personalidade.
Partindo do disposto no art. 80.º do nosso Código Civil, onde se protege o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, enquanto uma das características da tutela geral da personalidade, encontramos aí um conceito amplo, de modo a abranger, como refere Rabindrananath Capelo de Sousa [No seu “Direito Geral de Personalidade” (1995), p. 316 a 325, com inúmeras notas exemplificativas], “não só o respeito da intimidade da vida privada, em particular a intimidade da vida pessoal, familiar, doméstica, sentimental e sexual e inclusivamente os respectivos acontecimentos e trajectórias, mas ainda o respeito de outras camadas intermédias e periféricas da vida privada, como as reservas de domicílio e de lugares adjacentes, da correspondência e de outros meios de comunicação privada, dos dados pessoais informatizáveis, dos lazeres, dos rendimentos patrimoniais, dos demais elementos privados da actividade profissional e económica, bem como também, last but not the least, a própria reserva sobre a individualidade do privada do homem no seu ser para si mesmo, v. g., sobre o seu direito a estar a só e sobre os caracteres de acesso privado do seu corpo, da sua saúde, da sua sensibilidade e da sua estrutura intelectiva”.
Também outros vão neste sentido, como Paulo Mota Pinto [“O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, no BFDUC (1993), n.º 69, p. 526 e ss.], ao considerar como núcleo da vida privada aqueles que “a pessoa tem em relação a estes acontecimentos, desde que sejam pessoais (…) um interesse de privacidade”, dando como exemplo os dados relativos à filiação, residência, número de telefone, estado de saúde, vida conjugal, amorosa e afectiva, os factos que decorreram dentro do lar, as informações transmitidas por carta ou outros meios de telecomunicações, os factos passados que caíram no esquecimento, objectos contendo recordações pessoais, situação patrimonial, encontros com os amigos, saídas e entradas em casa”
Também a citada Lei de Protecção de Dados Pessoais, no dá um conceito amplo de “Dados pessoais”, ao considerar como tal, no seu art. 3.º, al. a), “qualquer informação, de qualquer natureza e independentemente do respectivo suporte, incluindo som e imagem, relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável (“titular dos dados”); é considerada identificável a pessoa que possa ser identificada directa ou indirectamente, designadamente por referência a um número de identificação ou a um ou mais elementos específicos da sua identidade física, fisiológica, psíquica, económica, cultural ou social”.
Porém, no seu art. 7.º, já se restringe este conceito, quando se estabelece, como regra, sujeita a algumas específicas excepções, a proibição do tratamento de dados sensíveis, considerando como tal, no seu n.º 1 os “dados pessoais referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem racial ou étnica, bem como o tratamento de dados relativos à saúde e à vida sexual, incluindo os dados genéticos”.
A propósito do direito informático, Garcia Marques [“Informática e vida privada” (1988), publicado na Separata do BMJ 373] chegou a avançar como noção de vida privada, “aquele conjunto de actividades, situações, atitudes ou comportamentos individuais que, não tendo relação com a vida pública (privada entendido como separado da coisa pública), respeitem estritamente à vida pessoal e familiar da pessoa”.
A tutela juslaboral, surgiu agora mais precisa com o actual Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27/Ago., que no seu art. 16, sob a epígrafe “Reserva da intimidade da vida privada”, estabelece no seu n.º 1 que “O empregador e o trabalhador devem respeitar os direitos de personalidade da contraparte, cabendo-lhes, designadamente, guardar reserva quanto à intimidade da vida provada”.
Acrescenta-se no seu n.º 2 que “O direito à reserva da intimidade da vida privada, abrange quer o acesso, quer a divulgação de aspectos atinentes à esfera intima e pessoal das partes, nomeadamente os relacionados com a vida familiar, afectiva e sexual, com o estado de saúde e com as convicções políticas e religiosas”.
No caso da protecção de dados pessoais, regula-se no seguinte art. 17.º, n.º 5, que “Os ficheiros e acessos informáticos utilizados pelo empregador para tratamento de dados pessoais do candidato a emprego ou trabalhador ficam sujeitos à legislação em vigor”
Por sua vez e no âmbito da tutela penal dos crimes contra a reserva da vida privada, mais concretamente no art. 192.º, n.º 1 do C. Penal, respeitante à devassa da vida privada, pune-se aí “Quem, sem consentimento e com intenção de devassar a vida privada das pessoas, designadamente a intimidade da vida familiar ou sexual”, mediante um leque alargado de modalidades de condutas típicas descritas nas alíneas que se lhe seguem, que visem conversas ou comunicações telefónicas [al. a)], fotografias, filmagens (pessoas, objectos ou espaços íntimos) [al. b)], observação ou escutas às ocultas, de pessoas em lugares privados [al. c)], divulgação de factos da vida privada ou doença grave [al. d)].
A propósito tem se entendido que a noção de vida privada abrangida por este tipo legal de crime tem carácter restritivo, abrangendo apenas a esfera da nuclear da intimidade, que é reconhecida a todas as pessoas – neste sentido “Comentário Conimbricence do Código Penal – Parte Especial”, Tomo I (1999), p. 729, anotado por M. Costa Andrade.
Transpondo esta posição para o crime de devassa por meio de informática do art. 193.º, considera-se igualmente como vida privada “o núcleo mais íntimo e restrito do conceito de vida privada; ou seja: trata-se tão-só da vida privada referida no art. 192.º, em especial a vida privada enquanto vida familiar ou sexual” – “Comentário Conimbricence do Código Penal – Parte Especial”, Tomo I (1999), p. 747, agora da responsabilidade de Damião da Cunha.
Isto significa que uma coisa é a incidência da tutela constitucional da reserva da vida, outra é a juscivilista, uma outra é a tutela administrativa ou a laboral e uma outra ainda é a tutela penal, que são diversos modos de protecção da vida privada, cada um com um enfoque e âmbito distintos – veja-se a propósito Pierre Kayser, no seu “La Protection de la Vie Privée par le droit – Protection du secret de la vie privée” (1995), p 318 e ss.
Daí que e s.m.o. não se possa transpor, como de certo modo pretende o recorrente, acompanhado pelo ilustre PGA, o conceito juscivilista da vida privada e integrá-lo no tipo legal de crime do art. 193.º do C. Penal, pois enquanto ali se visa um conceito amplo de reserva da intimidade privada, aqui já se restringe esse conceito, dando pleno sentido ao carácter fragmentário do direito penal.
Isto significa que o direito penal, enquanto direito de protecção dos bens jurídicos, tem sempre uma função de ultima ratio, como decorre do art. 18.º n.º 2 da C. Rep, onde se diz que “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.
Como se referiu no Ac. n.º 108/99 [“Acórdãos do Tribunal Constitucional”, Vol. 42.º, p. 551/2] do Tribunal Constitucional, “É, assim, um direito enformado pelo princípio da fragmentaridade, pois que há-de limitar-se à defesa das perturbações graves da ordem social e à protecção das condições sociais indispensáveis ao viver comunitário. …A necessidade social apresenta-se, deste modo, como critério decisivo da intervenção do direito penal”.
Daí que qualquer tipo de reacção ou intervenção penal, incluindo as suas consequências ou efeitos, deve ser orientado pelos princípios da proporcionalidade e da necessidade, só se justificando os mesmos quando forem indispensáveis para assegurar os valores éticos-sociais constitucionalmente protegidos.
Nesta conformidade, podemos então assentar que com a referência a vida privada existente no tipo legal de crime do art. 193.º, pretende-se apenas abranger “o núcleo duro da vida privada” e mais sensível de cada pessoa, como seja a intimidade, a sexualidade, a saúde, a vida particular e familiar mais restrita, que se pretende reservada e fora do conhecimento dos demais.
Ora e muito embora não tenhamos dúvidas que a deslocação de uma pessoa ao quarto de banho, no seu local de trabalho, seja um acontecimento da sua vida privada, em sentido amplo, já não o é em sentido restrito.
E isto porque o local de trabalho, não é um espaço de acesso exclusivamente reservado a esse indivíduo ou às pessoas com quem vive, como seria o seu domicílio, porquanto o mesmo tem que o partilhar com os restantes trabalhadores ou colaboradores onde exerce as suas funções.
Daí que uma deslocação ao quarto de banho, no local de trabalho, que é o que está aqui em causa, seja perceptível pelas demais pessoas que se encontrem nesse local, designadamente por quem represente a entidade patronal, não significando esse acontecimento qualquer situação da sua vida privada ou familiar mais restrita, da sua intimidade, da sua saúde ou sexualidade.
Com isto não se pretende dizer que seja lícito, para efeitos de tutela decorrente da Lei de Protecção de Dados – mas isso não está aqui em causa –, o registo informático do número de vezes e o lapso de tempo que uma certa pessoa, enquanto trabalhador de uma empresa, se desloca ao quarto de banho, ou que os mesmos não se possam opor a esse registo.
O que se sustenta é que esse registo informático, não encontra tutela, pelas razões expostas, na tipificação expressa no art. 193.º do C. Penal.
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III.- DECISÃO.
Nos termos e fundamentos expostos, decide-se julgar improcedente o presente recurso interposto pelo assistente B………., e, em consequência, mantém-se o despacho de não pronuncia.

Condena-se o assistente na taxa de justiça de seis (6) Ucs – cfr. art. 515.º, n.º 1, al. b) do Código Processo Penal.

Notifique.
Porto, 31 de Maio de 2006
Joaquim Arménio Correia Gomes
Manuel Jorge França Moreira
Manuel Joaquim Braz