Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1205/16.8T8AMT-B.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MENDES COELHO
Descritores: QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA COMO CULPOSA
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RP202005111205/16.8T8AMT-B.P2
Data do Acordão: 05/11/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A quantia indemnizatória decorrente de responsabilização pessoal dos afectados pela qualificação da insolvência como culposa, fixada ao abrigo do disposto no art. 189º nº2 e) do CIRE, tem como beneficiários, como ali se prevê, os credores cujos créditos ficaram por pagar na insolvência, sem qualquer distinção entre tais credores ou categorias dos respectivos créditos;
II – Sendo explicitamente destinatários de tal indemnização aqueles credores e naqueles termos e não sendo tal indemnização integrante da massa insolvente, devem todos aqueles credores, em sede de critério para a distribuição da respectiva quantia, ser considerados como comuns e entre eles ser feito o respectivo rateio.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº1205/16.8T8AMT-B.P2
(Comarca de Porto Este – Juízo do Comércio de Amarante – Juiz 2)

Relator: António Mendes Coelho
1º Adjunto: Joaquim Moura
2º Adjunto: Ana Paula Amorim

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I Relatório

No âmbito do processo em que foi declarada a insolvência de “B…, S.A.”, teve lugar incidente de qualificação de insolvência em sede do qual foi, em 28/5/2018, proferida sentença em que se decidiu qualificar tal insolvência como culposa e, na sequência de tal qualificação e com base no disposto no art. 189º nº2 e) do CIRE, condenar C… e D…, membros do conselho de administração daquela sociedade, a indemnizar os credores da devedora declarada insolvente no montante de 50.000,00 euros.
Tal incidente foi declarado aberto por despacho proferido em 24/5/2017 e seguiu o seu curso até à sua decisão final, sendo que porém, por decisão de 15/11/2017, foi encerrado o processo de insolvência por insuficiência da massa ao abrigo do disposto no art. 230º nº1 d) do CIRE.
Tendo aquela sentença transitada em julgado [na sequência de acórdão deste Tribunal da Relação de 9/10/2018 que a confirmou (constante de fls. 221 a 259 dos presentes autos) e de recurso interposto deste para o Tribunal Constitucional cujo conhecimento foi por este tribunal recusado (conforme decisão sumária constante de fls. 276 a 286 e acórdão constante de fls. 299 a 307, este último decorrente de reclamação para a conferência relativa àquela decisão sumária)], vieram aqueles, na sequência de requerimento que formularam a 15/4/2019 e sobre o qual recaiu despacho a 30/4/2019, a proceder a depósito autónomo nos autos daquela quantia em que foram condenados.
Na sequência de tal depósito, pelo Mº Pº, através do Sr. Procurador da República junto do tribunal, foi, a 16/9/2019, feita a seguinte promoção:
Promovo se liquidem todas as custas em dívida nos autos e se proceda ao seu pagamento com o valor agora depositado.
Mais promovo que o valor remanescente seja rateado pelos credores da insolvência, cujos créditos foram reconhecidos por sentença e que aqui deverão ser todos considerados de natureza comum.
Na sequência de tal promoção, pela Sra. Juíza do processo foi, a 18/9/2019, proferido o seguinte despacho:
A sentença proferida nos autos condenou C… e D… a indemnizar os credores da devedora declarada insolvente no montante de 50.000€ (cinquenta mil euros).
Os requeridos vieram juntar depósito autónomo aos autos do mencionado valor.
Em face do exposto, julgo cumprida a obrigação referida.

Posto isto:
Liquide as custas em divida e proceda ao seu pagamento com o valor agora depositado.
Com o remanescente, proceda a rateio entre os credores, sendo que para este efeito, e atenta a sentença proferida, serão todos considerados comuns.

Notificado tal despacho, dele veio interpor recurso o credor E… – a quem foi reconhecido na sentença de verificação e graduação de créditos proferida nos autos (apenso 1205/16.8T8AMT-C) um crédito de natureza laboral no montante de 7.000 euros, considerado privilegiado e “gozando de primazia mercê do que determina o art. 333.º, n.º 1, al. a), do Código do Trabalho” – tendo na sequência da respectiva motivação apresentado as seguintes conclusões (que se transcrevem):

1 – No dia 18 de Setembro de 2019, o Tribunal “a quo” proferiu o seguinte Despacho: “A sentença proferida nos autos condenou C… e D… a indemnizar os credores da devedora declarada insolvente no montante de 50.000€ (cinquenta mil euros).
Os requeridos vieram juntar depósito autónomo aos autos do mencionado valor. Em face do exposto, julgo cumprida a obrigação referida. Posto isto: Liquide as custas em divida e proceda ao seu pagamento com o valor agora depositado. Com o remanescente, proceda a rateio entre os credores, sendo que para este efeito, e atenta a sentença proferida, serão todos considerados comuns.”.

2 – O Apelante não se conforma com este Despacho e, por via disso, recorre do mesmo.

3 – Cremos que o Despacho Recorrido é violador dos princípios da igualdade, da proporcionalidade e da justiça.

4 – O crédito do Apelante é um crédito laboral.

5 – E os créditos laborais gozam de protecção a nível constitucional (artigo 59º, nº3 da CRP) e a nível laboral (artigo 333º e seguintes do CT).

6 – Ora, por sentença proferida nos autos foram C… e D… condenados a indemnizar os credores da devedora declarada insolvente no montante de € 50.000,00 (cinquenta mil euros) e que valor da indemnização terá como limite as forças do património dos Requeridos.

7 – E a al. e) do nº2 do artigo 189º do CIRE prevê que na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve “Condenar as pessoas afectadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respectivos patrimónios, sendo solidária tal responsabilidade entre todos os afectados”.

8 – Como tal, os administradores da devedora foram condenados nos termos da alínea e) do nº2 do artigo 189º do CIRE.

9 – A nossa lei é omissa em relação ao beneficiário de tais obrigações.

10 – Assim, no silêncio da lei, há que recorrer ao elemento sistemático pelo que, tendo em atenção o princípio “par condito creditorum”.

11 – Afigura-se que os valores indemnizatórios fixados deverão ser integrados na massa e distribuídos pelos credores cujos créditos, reconhecidos, não hajam obtido satisfação.

12 – Pelo que, andou mal o tribunal “a quo” ao decidir que com o remanescente, se proceda a rateio entre os credores, sendo que para este efeito, e atenta a sentença proferida, todos considerados comuns.

13 – Pois, o pagamento directo aos credores iria permitir que surgissem violações ao princípio da igualdade.

14 – O pagamento aos credores da insolvência deve depender da categoria em que estes se inserem e dos seus créditos se encontrarem verificados.

15 – Isto significa que, após pagas as dívidas da massa insolvente (custas do processo e honorários do administrador judicial), o Apelante deve ser pago em primeiro lugar face a todos os outros credores,

16 – Pelo exposto, viola o Despacho Recorrido o disposto na alínea e) do nº2 do artigo 189º do CIRE e o disposto no artigo 59º, nº3 da CRP devendo a mesma ser revogada.

O Mº Pº apresentou resposta às alegações do Recorrente, nas quais pugna pela manutenção do despacho recorrido, tendo para o efeito considerado o seguinte (transcrevem-se os respectivos parágrafos da peça):
Desde logo, o artigo 189.º, n.º 2, al. e), do CIRE, não distingue os créditos, tratando- os todos por igual.
Por outro lado, nem todos os créditos sobre a insolvência de natureza laboral são garantidos ou privilegiados, mas apenas “os créditos que beneficiem, respectivamente, de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente”, e apenas “até ao montante correspondente ao valor dos bens objecto das garantias ou dos privilégios gerais, tendo em conta as eventuais onerações prevalecentes”, tal como resulta do artigo 47.º, n.4, al. a), do CIRE.
Sendo que nos termos do artigo 333.º, n.º 1, do Código do Trabalho, “Os créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação gozam dos seguintes privilégios creditórios:
a) Privilégio mobiliário geral;
b) Privilégio imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua actividade.”
Daqui se retira que no processo de insolvência nem sempre os créditos laborais dos trabalhadores gozam de garantia no pagamento (basta pensar na hipótese em que apenas é apreendido e vendido um imóvel do empregador insolvente no qual o trabalhador não prestava a sua actividade).
De qualquer modo, os afectados pela qualificação culposa da insolvência não assumem a posição da devedora nos autos, quer como entidade patronal quer como insolvente, e os bens que constituem o património dos mesmos, embora pudessem responder pela dívida correspondente à indemnização em que o respectivo titular foi condenado, nunca integrariam a massa insolvente nem poderiam ser apreendidos fora de eventual processo executivo, sendo certo que a indemnização foi paga voluntariamente.
Diga-se, ainda, que os afectados pela qualificação culposa da insolvência foram condenados a indemnizarem os credores da insolvência e não a massa insolvente.
Deste modo, e correspondendo a valor depositado nos autos ao pagamento de uma indemnização, sobre a qual os créditos laborais não gozam de qualquer garantia legal, o despacho recorrido ao ordenar o pagamento rateado por todos os credores da insolvência não violou quaisquer normais jurídicas nem quaisquer princípios, nomeadamente os que são indicados pelo recorrente, pelo que deverá ser mantido e o recurso julgado improcedente.

Foram dispensados os vistos nos termos previstos no art. 657º nº4 do CPC.
Considerando que o objecto do recurso – sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso – é delimitado pelas suas conclusões (arts. 635º nº4 e 639º nº1 do CPC), há apenas uma única questão a tratar: saber se o montante depositado nos autos, proveniente da indemnização prevista no art. 189º nº2 e) do CIRE, deve ser distribuído pelos credores da insolvência considerando a categoria em que se reconheceram estar inseridos os respectivos créditos e a sua verificação ou deve ser distribuído por todos os credores rateadamente, considerando-os para o efeito todos como comuns.
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II – Fundamentação

Os dados a ter em conta são os acima alinhados no relatório.
Vamos ao tratamento da questão enunciada.
Como se vê do recurso, o Recorrente, reconhecido nos autos como titular de crédito laboral e com a categoria de privilegiado pela própria sentença de verificação e graduação de créditos que foi proferida no respectivo apenso da insolvência (apenso C), defende, em contrário do entendimento que consta vertido na decisão sob recurso, que o remanescente da quantia indemnizatória de 50.000,00 euros depositada nos autos (que sobre após pagamento das custas em dívida) deve – por recurso ao elemento sistemático de interpretação e de acordo com o princípio par conditio creditorum (que defendeu na sua motivação consistir na “igualdade entre os credores de acordo com a sentença de verificação e graduação de créditos”) já que, no seu entendimento, a lei é omissa em relação ao beneficiário de tal indemnização – ser integrado na massa insolvente e ser pago aos credores tendo-se em conta a categoria dos respectivos créditos, e não, como ali, considerando-se todos os credores como comuns.
Analisemos.
Como se prevê do art. 46º nº1 do CIRE, a massa insolvente “salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo” (sublinhados nossos).

O montante em causa, que só agora surge no processo por via da condenação dos administradores da insolvente que acima se identificaram ao abrigo do disposto no art. 189º nº2 e) do CIRE, não se integra em qualquer daquelas situações: sendo o mesmo proveniente de indemnização por responsabilidade pessoal ou própria daquelas pessoas, não é bem da insolvente à data da declaração de insolvência, nem é bem pela insolvente adquirido na pendência do processo.
Além disso, como daquele art. 189º nº2 e) do CIRE resulta, prevê-se em tal preceito uma responsabilidade legal por facto ilícito dos afectados pela qualificação culposa da insolvência em benefício dos credores cujos créditos ficaram por satisfazer na insolvência, do que decorre que a indemnização que com base nele se arbitre é directamente fixada a favor daqueles credores sem distinção entre estes.
Deste modo, além de ser de concluir que tal montante indemnizatório não integra a massa insolvente segundo o critério geral previsto no art. 46º nº1 do CIRE, o mesmo, tendo destinatários específicos assinalados, também não é integrável na massa insolvente por força do “salvo disposição em contrário” também previsto naquele preceito.
Por outro lado, considerando-se que a própria lei indica, naquele art. 189º nº2 e) do CIRE, os beneficiários da indemnização ali prevista nos termos que acima se referiram (credores cujos créditos ficaram por satisfazer na insolvência, sem distinção entre estes), daqui decorre que, em contrário do defendido pelo Recorrente (conclusão 9 do recurso), a lei não é omissa em relação a tais beneficiários.
Sendo a lei clara quanto a quem é destinatário da indemnização em causa e não sendo esta integrante da massa insolvente – quer pelo motivo que se referiu, quer porque ainda, no caso, já nem o podia ser, pois nem sequer há massa insolvente para administrar [já que, como se referiu no relatório desta peça, o processo de insolvência foi encerrado por decisão de 15/11/2017 e com tal encerramento cessaram as atribuições do administrador, como decorre do art. 233º nº1 b) do CIRE] –, há que tratar do seu destino considerando os destinatários a ela legalmente assinalados.
Ora, sendo explicitamente destinatários de tal indemnização os credores cujos créditos ficaram por satisfazer na insolvência, sem qualquer distinção entre tais credores ou categorias dos respectivos créditos e não sendo tal indemnização integrante da massa insolvente, não há fundamento para que se possa defender, no caso, o funcionamento da categoria de crédito privilegiado reconhecida ao crédito do Recorrente como critério para o seu pagamento preferencial em relação aos outros, já que, como decorre do disposto no 47º nº4 a) do CIRE, o privilégio creditório reconhecido ao mesmo [com base no disposto no art. 333º nº1 a) do Código do Trabalho, que por sua vez traduz a aplicação legal da garantia prevista no art. 59º nº3 da Constituição de que “Os salários gozam de garantias especiais, no termos da lei”) só se verifica sobre bens integrantes da massa insolvente”.

Assim, em relação ao destino a dar à quantia indemnizatória em referência, há que considerar todos aqueles credores como comuns e entre eles ser feito o respectivo rateio (como previsto no art. 784º nº2 do C.Civil), como se fez na decisão recorrida.
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Sumário (da exclusiva responsabilidade do relator – art. 663 º nº7 do CPC):
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III – Decisão
Por tudo o exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente.
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Porto, 11 de maio de 2020
Mendes Coelho
Joaquim Moura
Ana Paula Amorim