Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1950/20.3T8VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: DIVÓRCIO SEM CONSENTIMENTO
VALOR EXTRA PROCESSUAL DAS PROVAS
SEPARAÇÃO DE FACTO
HABILITAÇÃO
Nº do Documento: RP202210251950/20.3T8VFR.P1
Data do Acordão: 10/25/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; DECISÃO CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Para que as declarações e depoimentos produzidos num processo possam ser utilizados noutro processo contra a parte desfavorecida com essa prova, nos termos do art. 421º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil, é necessário que, no primeiro processo, tenha sido respeitado o princípio da audiência contraditória e que a utilização decorra da iniciativa da parte interessada em se aproveitar de tal prova.
II – A utilização dessa prova não pode resultar da iniciativa oficiosa do tribunal.
III – As declarações prestadas, nos Serviços do Ministério Público, sem audiência contraditória, no âmbito de um processo administrativo destinado à eventual instauração de processo de maior acompanhado, não podem, por iniciativa do próprio tribunal, ser utilizadas contra a aqui ré em posterior ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge.
IV – Qualquer dos sucessíveis que for chamado à herança do autor falecido tem legitimidade para, após habilitação e com vista a efeitos patrimoniais, tal como o permite o art. 1785º, nº 3 do Cód. Civil, fazer prosseguir a acção de divórcio intentada pelo autor.
V – A separação de facto entre os cônjuges para que possa constituir fundamento de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges exige a verificação de dois elementos:
i) um de natureza objetiva que consiste na cessação dos deveres conjugais impostos pelo art. 1676º do Cód. Civil., de partilha de leito, mesa e habitação, pelo prazo mínimo consecutivo de um ano.
ii) outro de natureza subjetiva, que dá forma e sentido ao elemento objetivo que é a separação de facto, e que consiste numa disposição interior ou, como se diz, no art. 1782º do Cód. Civil, num “propósito”, da parte de ambos os cônjuges ou de um deles, de não restabelecer a comunhão de vida matrimonial, sendo ainda essencial que esse propósito de não restabelecer a comunhão exista desde a data em que a separação teve início, e que se mantenha durante um ano consecutivo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 1950/20.3T8VFR.P1
Comarca de Aveiro – Juízo de Família e Menores de Santa Maria da Feira – Juiz 1
Apelação
Recorrente: AA
Recorridos: BB e outros
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e João Ramos Lopes

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
CC intentou, em 16.7.2020, a presente ação de Divórcio Sem Consentimento do Outro Cônjuge contra AA, tendo alegado que, em 12.5.2018, por temer pela sua segurança, saiu da casa de morada de família e desde então o autor e a ré não mais viveram sob o mesmo teto, fizeram refeições em conjunto ou partilharam o leito conjugal. Mais acrescentou que não pretende reatar a vida em comum com a ré.
O autor veio a falecer em 22.10.2020, tendo-se habilitado a prosseguir com os autos para efeitos patrimoniais, em sua representação, os filhos:
- BB;
- DD;
- EE; e
- FF.
Em sede de tentativa de conciliação a ré declarou não pretender o divórcio.
Notificada, a ré contestou, alegando que o seu falecido marido nunca se quis separar dela, nem se divorciar.
O que ocorreu foi que em reunião familiar os filhos do casal propuseram que o pai fosse para casa do filho GG, por aí usufruir de melhores condições habitacionais, o que foi aceite. A ré teria a visita dos filhos e poderia visitar o falecido autor todos os dias na casa do filho GG. Os filhos BB e FF passaram a querer controlar os dinheiros do falecido autor e levaram o pai para a casa deles, data a partir da qual não mais conseguiu contactar com o marido, por tal não lhe ter sido permitido pelos referidos filhos.
Alega ainda que o falecido marido não teve vontade de se separar da ré, sendo que a separação de facto foi contra a vontade deste.
Realizou-se audiência prévia e foi proferido despacho saneador, com identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas de prova.
Efetuou-se audiência de julgamento com observância do legal formalismo.
Por fim, proferiu-se sentença que julgou a ação procedente e, em consequência, decretou o divórcio entre o falecido autor CC e a ré AA, com a consequente dissolução do casamento.
Inconformada com o decidido, interpôs recurso a ré que finalizou as suas alegações com as seguintes conclusões:
1ª- O falecido Autor CC foi casado em primeiras núpcias com HH e deste conjúgio nasceu em .../.../1962, EE, sendo que tal casamento foi dissolvido por morte da esposa;
2ª- Em 28.04.1970 o referido CC casou com AA sob o regime imperativo da separação de bens;
3ª- Deste segundo casamento nasceram os filhos GG, DD, BB e FF.
4ª- O casal formado por CC e AA exploraram toda a sua vida o estabelecimento comercial Café ..., sito na zona central de Santa Maria da Feira, no qual além de produtos próprios de um estabelecimento de café também tinha a concessão do Jogo da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, como jogo de Euromilhões, totoloto, etc, e produtos de snack-bar.
5ª- Dessa atividade terão aforrado ao longo dos anos muito dinheiro o qual colocaram em aplicações financeiras e em depósitos bancários.
6ª- Tais aplicações e depósitos bancários, por confiança mútua, ficaram a quase totalidade na titularidade do CC, bastando a sua assinatura para os movimentar, aliás, carecendo de qualquer intervenção da esposa atento o regime de bens.
7ª- Entretanto, atenta a idade do casal, alguns filhos e até genro, passaram a estar pelo estabelecimento e tomar ciência dos valores do casal, mormente a partir de 2015 quando o CC, conforme documento constante dos autos e supramencionado, passou a ter sintomas de demência e problemas de saúde.
8ª- Com a assinatura do CC, ou com sua procuração, eram movimentados depósitos bancários e aplicações.
9ª- A esposa AA, sendo tais bens produto também do seu trabalho, procurava impedir o esbanjamento de bens, sendo que apesar do regime de bens, em caso de óbito do marido ela seria sua herdeira.
10ª- Analisados os depoimentos prestados em audiência gravada cotejados com os documentos juntos aos autos, temos que factos concretos infra descritos dos depoimentos sobre as duas questões essenciais dos autos,
- I- a vontade do Autor se separar da Ré com intenção de não restabelecer a vida em comum e II- a vontade de se divorciar- impõem uma decisão oposta quanto aos FACTOS julgados PROVADOS, sobretudo a vontade de o Autor se divorciar da Ré.
[as conclusões 11ª a 27ª correspondem a transcrições dos depoimentos da ré e das testemunhas GG, II, JJ, KK e LL][1]
28ª- Do essencial destes depoimentos resulta que o falecido Autor estava manietado, cerceado e condicionado pelo que não tinha o livre exercício da sua vontade, estava manietado na sua vontade.
29ª- Revelam que foi mantido cerceado pelos filhos FF e BB para evitar contactos com a mulher, com o filho GG, com o irmão II, com o amigo JJ, com as vizinhas da porta KK e MM.
30ª- E revelam também esses depoimentos e o da testemunha LL que o falecido CC nunca era deixado só, era sempre acompanhado pela FF ou pelo BB ou até algum genro.
31ª- Não foi permitido ir com ele ao Hospital, a consultas, falar com ele à vontade e sem ninguém por perto no café, como queria o irmão II.
32ª- Não é dada informação ao filho GG, à mulher e outras pessoas íntimas do internamento do falecido no Hospital, não são informados da sua morte e não é colocado o nome da mulher no edital.
33ª- Estranhamente, é ofuscado que o falecido padecia de doenças graves, tendo-lhe sido diagnosticada demência, conforme documento nos autos e supra referido.
35ª- Mas, de forma genérica e sem qualquer alicerce é alegado que a Ré padecia de alcoolismo, que não consta demonstrado sendo infirmado por quem, estranho à contenda, mas vizinha e frequentador quase diária do café diz que jamais viu ou sequer ouviu dizer tal coisa.
36ª- É alegado que o A. viajou para a Suíça quando estava em casa da filha FF, o que constituiu admiração para a Ré e testemunhas, sendo certo que se de tais viagens pode sempre ter-se ou obter-se prova documental, os requerentes jamais juntaram aos autos uma tal prova e isso seria fácil de o fazer pelo que é estranha tal alegação sem provas.
37ª- Não há prova de que a saída do falecido A. da sua casa tenha sido da sua vontade, ao invés, a prova produzida é no sentido de ausência de vontade de se separar da mulher.
38ª- E se não ocorreu essa vontade de se separar carece de sentido dizer que o A. não quis reatar a vida em comum.
39ª- Finalmente, a questão das declarações prestadas pelo A. num processo judicial estranho aos autos e sem contraditório da Ré, trata-se de auto de declarações prestadas pelo declarante num processo junto do Ministério Público, acompanhado da sua MD mandatária, que também o era no divórcio, à data.
40ª- Foi impugnado o teor do documento quanto à genuína vontade do declarado por ser notório que sem razão para o processo em causa o declarado está eivado de alegação de factos induzidos tendo em vista matéria alegada em processo de divórcio que já tinha sido instaurado, patrocinado pela MD mandatária.
41ª- O que é evidenciado pelos “Esclarecimentos “a) que nada importam para aquele processo no MP, b) porque é que menciona a procuração à sua advogada ali presente, c) fala em dependência de álcool relativamente à Ré que não pôde contraditar, d) sendo esse uma alegação na P.I. de Divórcio já intentado, e) que razão tem para nesse processo no MP declarar que é de sua vontade divorciar-se e f) declara, sem qualquer justificação ou sentido, que nunca foi impedido de contactar com a mulher.
42ª Vicio na declaração atenta a contradição entre o declarado na P.I. de divórcio, diz maio de 2018, data da separação, e nesse auto de 01.09.2020, depois da ação de divórcio, diz-se separado há cerca de 3 anos.
43ª Cotejando estas assináveis incongruências do documento com os depoimentos transcritos e a prova documental referida nos autos, como o Testamento, desconhecido dos filhos, mormente da FF e do BB, acrescendo a forma induzida como terá sido a vontade do declarante, assistido pela sua mandatária do divórcio já requerido e cujo alegado coincide com o que consta da P.I. de divórcio, tal declaração em auto enferma de vício que impede a sua produção de efeitos, não corresponde a uma vontade consciente e falta à verdade pelo que tal documento, unilateral, não pode por si fundar uma vontade de se divorciar.
44ª- Aliás, destaca-se, tal como se fez na contestação, que o A., devendo ter estado presente pessoalmente em Tribunal, não o fez e não estava ainda internado no Hospital nem houve notícia de seu impedimento, pelo que este documento não pode por si ser alicerce da intentada acção de divórcio pois não pode representar a vontade cônscia e livre do A..
45ª- Resulta dos depoimentos transcritos que não podia ser dado como provado que no período de tempo mencionado em 3. o falecido A. nunca pretendeu reatar a vida em comum com a Ré.
46ª- E pelos mesmos meios de prova e provas produzidas em julgamento, cujos depoimentos constam supratranscritos, resulta que não podia dar-se como provado que a conselho dos filhos o falecido A. ausentou-se da casa de morada de família em maio de 2018, na sequência de desentendimentos ocorridos entre o casal devido ao mau ambiente familiar decorrente de consumos de álcool em excesso por parte da Ré.
47ª- Mas, sobretudo desses depoimentos transcritos supra não se pode dar como provada uma intenção do A. se separar da Ré e de se divorciar.
48ª- Ao invés a Ré fez prova que o seu falecido marido deixou a casa do casal sem qualquer intenção ou vontade de pôr termo ao casamento, que não quis, de forma livre e consciente, divorciar-se da Ré.
49ª- E tendo sido separado o casal por ação dos filhos requerentes do prosseguimento do processo de divórcio, mormente os filhos FF e BB, estes obrigaram o Autor falecido a manter-se separado da Ré e sem contactos com ela, com o outro filho e familiares e amigos, contra a sua vontade e moldando a sua vontade.
50ª- Tratando-se de plano que os filhos habilitados gizaram no sentido de prejudicar a Ré com a declaração de divórcio afastando-a da partilha.
51ª- Atenta a impugnação da matéria de facto e a pugnada falta de prova de factos que pudessem fundar a acção de divórcio, o direito aplicado padece de erro, pelo que devia ter sido proferida sentença a julgar a acção totalmente improcedente.
52ª- Acresce que, quanto ao direito de prosseguimento da ação pelos filhos que, o Código Civil na sua redação original decretava a impossibilidade de ser continuada pelos herdeiros dos cônjuges ou prosseguir contra eles ação de divórcio com a justificação de que o direito ao divórcio é um direito pessoal, é um direito inereditável.
53ª- Por força das alterações de 1977 o legislador não deixou de ter em conta o caracter pessoal do direito ao divórcio, e assim não permitiu que os herdeiros pudessem ter a iniciativa de intentar a ação.
54ª- Mas por outro lado permitiu que, intentada a ação, pudessem os herdeiros prosseguir com a ação já intentada, pois, o divórcio era baseado na culpa permitindo sancionar o cônjuge culpado.
55ª- Até 2008 o divórcio era baseado na culpa, teriam que ser alegados e provados factos para declarar o cônjuge culpado, a ação corria com a produção de prova de factos culposos, não existia, em termos litigiosos, um divórcio sem culpa.
56ª Logo, seria legítimo que os herdeiros prosseguissem com a ação para sancionar um comportamento culposo e evitar que este, apesar da sua culpa na ruptura do casamento ainda viesse a beneficiar desse estado.
57ª- Porém, o regime atual do divórcio, atenta a redação que foi dada pela Lei nº61/2008 de 31-10, mantido pela Lei nº49/2018 de 14.08, é de um divórcio sem culpa, ao invés do regime de pretérito, e cujo art.1787 CC foi expressamente revogado, permitindo um divórcio com fundamento em causas objetivas apesar de não prescindir da vontade de se divorciar.
58ª- Significa que se permite em termos práticos, como é o caso dos autos em que o Autor nem sequer esteve pessoalmente em Juízo no ato pessoalíssimo declarar na tentativa de conciliação a sua vontade, como que uma presunção de vontade para meros interesses patrimoniais egoísticos e quiçá perversos, como é o caso dos autos em que a Ré foi casada em regime imperativo de separação de bens.
59ª- Por isso, no caso dos autos, ocorre violação do direito fundamental que consagra a inereditabilidade dos direitos pessoais, o que releva na apreciação do elemento subjectivo do divórcio, no caso, e violando-se a teleologia da norma do art.1785ºdo CC.,
60ª E assim, a interpretação da norma do art.1785, nº3 do CC. para efeitos patrimoniais, atenta a redação que foi dada pela Lei nº61/2008 de 31-10, cujos termos atuais do regime do divórcio, Lei nº49/2018 de 14.08, é um divórcio sem culpa, ao invés do regime de pretérito, cujo art.1787 CC foi revogado, permite como que uma presunção de vontade para meros interesses patrimoniais.
61ª- E assim invoca-se a inconstitucionalidade da interpretação simples e literal da norma tal como o Tribunal “a quo” faz porquanto que tal viola a estabilidade das relações pessoais e as normas do direito sucessório que só permitem “deserdação” nos casos nela expressamente previstos,
62ª- Violando os princípios constitucionais ínsitos nos arts.17º e 36º, nº2 ambos do CRP e o estatuto dos direitos fundamentais pois por esta norma permite-se o divórcio formal, por representação, prescindindo da culpa na violação do direito, devendo ser declarada a inconstitucionalidade da aplicação e interpretação do art.1783, nº3 CC sufragada nos autos.
Pretende assim a revogação da sentença recorrida.
Os autores/habilitados apresentaram contra-alegações, nas quais se pronunciaram pela confirmação do decidido.
O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
Cumpre então apreciar e decidir.
*
FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
*
As questões a decidir são as seguintes:
I – A reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto;
II – A dissolução do casamento por divórcio.
*
É a seguinte a factualidade dada como provada na sentença recorrida:
1. O A. CC e a Ré AA contraíram entre si casamento no dia 28.04.1970, no regime imperativo da separação de bens.
2. O A. faleceu em 22.10.2020.
3. Desde maio de 2018 até à data da entrada em juízo do processo de divórcio (16.07.2020), e mesmo até ao falecimento do A. (22.10.2020), ininterruptamente, o A. e a Ré não viveram debaixo do mesmo teto, não fizeram refeições em conjunto e não partilharam o mesmo leito conjugal.
4. No período de tempo mencionado em 3. o falecido A. nunca pretendeu reatar a vida em comum com a Ré.
5. A conselho dos filhos o falecido A. ausentou-se da casa de morada de família em maio de 2018, na sequência de desentendimentos ocorridos entre o casal devido ao mau ambiente familiar decorrente de consumos de álcool em excesso por parte da Ré.
*
Passemos à apreciação do mérito do recurso.
I – A reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto
1. A ré, no recurso que interpõe, insurge-se contra a factualidade provada, mais propriamente contra os seus nºs 4 e 5 [4. No período de tempo mencionado em 3. o falecido autor nunca pretendeu reatar a vida em comum com a ré; 5. A conselho dos filhos o falecido autor ausentou-se da casa de morada de família em maio de 2018, na sequência de desentendimentos ocorridos entre o casal devido ao mau ambiente familiar decorrente de consumos de álcool em excesso por parte da ré], entendendo que estes dois pontos factuais não podem ser dados como provados, convocando nesse sentido excertos dos depoimentos prestados pela própria ré AA e também pelas testemunhas GG, II, JJ, KK e LL.
Embora longe da exemplaridade, a impugnação da decisão relativa à matéria de facto efetuada pela ré respeita os ónus previstos no art. 640º do Cód. de Proc. Civil, motivo pelo qual iremos proceder à sua reapreciação quanto aos referidos pontos factuais nºs 4 e 5, no que se terá também em atenção que os autores habilitados/recorridos indicaram, a esse propósito na sua resposta, excertos do depoimento prestado pela testemunha NN e das declarações de parte de BB.
*
2. Na sentença recorrida, a Mmª Juíza “a quo” fundamentou extensamente a sua convicção probatória tendo escrito o seguinte, quanto aos pontos factuais impugnados:
“(…)
Quanto aos pontos 3., 4. e 5. dos factos provados:
- Foi relevado, de forma muito significativa, o auto de declarações do falecido A., datado de 01.09.2020 e constante de fls. 130 a 131, do qual resulta que o falecido foi ouvido nos serviços do Ministério Público naquela data, no âmbito de um processo administrativo com vista à instrução de eventual processo de maior acompanhado (o qual veio a ser arquivado em 08.09.2020, por não se terem verificado os pressupostos de que dependia a entrada do processo – ver fls. 11 e 12 dos autos), e declarou estar separado da esposa há 3 anos, estar a viver com a filha FF, conduziu até abril de 2020, deixou de o fazer nessa data porque não renovou a carta de condução, é o próprio que trata das questões burocráticas com finanças, segurança social, bancos, etc…, compreendeu o teor da procuração que passou à sua advogada para dar entrada com o processo de divórcio, há 3 anos geria um café com a esposa, cessou a atividade devido à dependência alcoólica da esposa, o que originou vários conflitos, é sua vontade divorciar-se da esposa, nunca foi impedido de contactar com ela por quem quer que fosse.
Para que não subsistissem dúvidas sobre o teor das declarações transcritas e assinadas pelo falecido A. cerca de 1 mês antes do seu falecimento, foi determinada a inquirição da senhora Técnica de Justiça Auxiliar NN, que procedeu à tomada de declarações, a qual disse que, na sua perceção, o A. prestou as declarações constantes do auto sem estar sujeito a coação ou instrumentalização. O falecido referiu-lhe que estava a viver com a filha FF por vontade própria, não contactava com a esposa porque não queria, não estava impedido de contactar com ninguém. O falecido estava tranquilo, tinha um discurso fluente, não teve dificuldades em responder ao que lhe foi questionado. O processo de divórcio já estava pendente.
Da perspetiva deste tribunal esta prova teria bastado (não só pela sua data, como por as declarações do A. terem sido prestadas em juízo, perante funcionária judicial) para se p[o]der concluir que o falecido A. esteve separado da esposa por vontade própria mais de um ano, reportado à data da entrada em juízo do processo, a separação foi motivada por conflitos com a Ré devido a consumos de álcool em excesso por parte da mesma, o A. pretendia divorciar-se e não tencionava retomar a vida em comum com a Ré.
Não obstante, para além desta prova, por vontade das partes, foram ainda ouvidos, do lado dos A.A.:
Na qualidade de partes:
- FF, A.A. habilitada, a qual referiu que o pai viveu consigo na sua casa entre junho de 2018 e a data do falecimento, de forma ininterrupta. Durante todo esse período nunca manifestou vontade de se reconciliar com a Ré. Em setembro de 2018 a Ré procurou o A. em casa da declarante, este disse-lhe pelo intercomunicador que não queria falar com ela e também não quis que ela subisse.
O A. tinha as chaves da sua casa, ia ao café sozinho, onde convivia com os amigos, ia a pé para a casa da irmã, sita em ..., conduziu até 2020, altura em que não renovou a carta de condução (sendo que a havia renovado em 2019), alterou a sua residência oficial associada ao cartão de cidadão em junho ou julho de 2020, viajou em 2018 e 2019 sozinho para a Suíça, para visitar outra filha, dava passeios, levava os netos à escola, etc… O pai sempre esteve lúcido. Em finais de 2019 o pai disse-lhe que queria divorciar-se e por isso levaram-no a uma Sra. Advogada, com quem o mesmo falou a sós.
O que motivou a separação foi o facto de a Ré ter começado a beber álcool em demasia com maior frequência, na sequência do que chegou a tratar mal um cliente no café ao tempo explorado pelo casal, tiveram um processo da ASAE e problemas com o negócio do jogo da Santa Casa. Houve uma reunião familiar, o filho GG levou o falecido A. para a casa onde estava a viver, local onde esteve cerca de 1 mês, e ainda assim era a declarante quem de manhã e ao fim do dia prestava apoio ao pai, em junho de 2018 o pai passou a viver consigo, por vontade própria. O irmão GG procurou o pai duas vezes (agosto e setembro de 2018) e o pai não quis estar com o mesmo.
O pai esteve internado e não quis que se comunicasse o internamento.
- BB, A.A. habilitado.
Detalhou as circunstâncias em que o pai deixou de viver com a mãe: desde 2017, devido a alcoolismo, a mãe foi negligenciando os cuidados do pai, nomeadamente não lhe fazia o almoço, não tratava da casa e das roupas, no café explorado por ambos tratava mal os clientes. No dia 12.05.2018 as coisas complicaram-se e em reunião de família o irmão GG disse “basta, chega”, chamou as autoridades e levou o pai para a casa onde vivia, que era de uma familiar sua. O pai esteve cerca de um mês em casa do GG, altura em que a FF e o declarante cuidavam dele durante o dia, depois passou a viver com a FF. O A. dizia que o GG não lhe prestava atenção. Desde junho de 2018 até ao falecimento, sem interrupção, o pai esteve a viver, por vontade própria, em casa da FF. Nunca quis voltar para a casa de morada de família e a partir de meados de 2019 iniciou a dizer que queria divorciar-se, até porque continuava a pagar os consumos da casa onde a Ré estava a viver. O A. teve reuniões com a advogada, umas na presença do declarante e da FF e outras a sós com a advogada. O processo de divórcio acabou por dar entrada mais tarde, por causa do Covid e da Advogada.
O pai era autónomo, nomeadamente fez duas viagens à Suíça, uma delas sozinho, tinha as chaves da casa da FF, saía quando queria, ia ao café, onde tomava café com os amigos e lia o jornal, ia à casa do declarante, conduzia (o que fez até 2020), ia levar o filho mais novo da FF à escola, usava o seu telemóvel, etc…
Em setembro de 2018 a mãe foi a casa da FF para estar e falar com o pai, o pai não quis falar com ela.
Na qualidade de testemunhas, indicadas pelos A.A.:
- OO, esposa do habilitado BB.
A testemunha repetiu o teor das declarações de parte antes mencionadas, ou seja, que o A. esteve a viver com a filha mais nova FF entre junho de 2018 e o seu falecimento, ininterruptamente e por vontade própria, que o mesmo dizia não ter condições para voltar a viver com a Ré, que queria divorciar-se, que era uma pessoa autónoma e consciente, que tomou a decisão de dar entrada com o processo de divórcio de forma livre, que não tinha os movimentos cerceados, dado que tinha as chaves da casa da filha, ia ao café, usava telemóvel, fazia os seus passeios sozinho, levava os netos à escola, alterou a sua residência oficial por vontade própria, foi à Suíça sozinho, a declarante e o marido estavam com ele duas a três vezes por semana, ora na casa da declarante, ora na da FF.
- PP, marido da habilitada FF.
Repetiu que o A., por vontade própria, esteve a viver na sua casa entre junho de 2018 até ao falecimento. Era uma pessoa autónoma, tinha as chaves da casa, saía para ir ao café, foi à Suíça duas vezes, tinha e usava o seu telemóvel, fazia caminhadas, levava os netos à escola. Várias vezes afirmou que não queria voltar a viver com a Ré e mais para o fim iniciou a dizer que queria divorciar-se. Nunca o viu a contactar ou a querer contactar com a Ré. Esta procurou-o em sua casa e o falecido, pelo intercomunicador, disse-lhe que não queria falar com ela, ele não desceu para falar com ela porque não quis.
- QQ, neto do falecido A., filho da habilitada EE.
Referiu que é visita frequente da casa da tia FF e certo dia estava em casa dela quando a Ré procurou o falecido A. para falar com ele. Pelo intercomunicador o avô do declarante disse à esposa que não queria falar com ela e não queria descer para estar com ela. Que saiba, depois desse episódio o seu avô não voltou a falar com a esposa. Frisou que o avô era autónomo e tinha total liberdade de movimentos, nomeadamente conduzia, sai livremente quando queria, ia visitar a mãe do declarante, por vezes a pé (as casas distam 6/7km), foi à Suíça duas vezes, tinha telemóvel, etc…
Do lado da Ré AA, a mesma prestou declarações de parte, tendo confirmado que desde maio de 2018 o casal nunca mais viveu junto. Acrescentou que o A. foi levado de casa pelo GG, que o levou para casa dele. A FF e o BB tratavam dele durante o dia. Esteve em casa do GG 1 mês e depois passou a viver com a FF. No verão de 2018 foi duas vezes a casa da FF para tentar falar com o marido. Na primeira vez foi a FF que atendeu no intercomunicador, o falecido A. veio ao intercomunicador, não desceu para falar consigo, depois a FF desligou o intercomunicador. A FF impedia o falecido A. de procurar e de estar com a declarante. No mês de julho de 2018 o A. chegou a ir ao café explorado pelo casal e disse-lhe que ia fechar o café por um mês, para férias. O A. queria ficar com a declarante e a FF não deixou. Em junho de 2018 o A. esteve hospitalizado e o filho BB, numa visita, afastou a declarante. Sabe que o marido tinha telemóvel, mas nunca soube o número. Desconhece se o marido andava sozinho pela rua.
Foram, ainda, ouvidas as testemunhas indicadas pela Ré:
- GG, filho do falecido A. e da Ré, que atualmente dá-se mal com os irmãos habilitados.
Disse que os pais não [vivem] juntos desde maio de 2018. Os irmãos mais novos FF e BB a partir de certa altura começaram a comportar-se como “os donos disto tudo”. Numa reunião familiar esses irmãos decidiram que o falecido pai ia viver com o declarante, e assim foi. O pai esteve em sua casa cerca de 1 mês, depois ficou a saber que estava a viver com a FF. O pai já estava com início de demência, já não estava bem. A mãe nem sabia que o pai estava na casa do declarante. Desde que o pai foi viver com a FF nunca mais conseguiu falar ou estar com ele, porque os irmãos não lhe permitiam os contactos. Chegou a ir a casa da FF para estar com o pai, por duas vezes, inclusive levou testemunhas, sem sucesso. Chamou a PSP, o pai não descia, dizia pelo intercomunicador que não queria, os agentes subiram ao apartamento da FF e voltaram dizendo que o pai não queria descer. Viu o pai algumas vezes na varanda do apartamento da FF. Considera que o pai estava manietado pelos irmãos mais novos, não acredita que ele quisesse divorciar-se, foi tudo uma invenção dos irmãos, o pai foi levado da casa de morada de família pelos filhos e esteve separado da Ré sempre sem pretender a separação.
- II, irmão do falecido A..
Remontou aos anos 70/80, altura em que esteve um ano a viver com o casal e disse que nessa altura o casal era muito unido. Depois dessa altura pontualmente estava com o irmão e visitou o casal algumas vezes, tendo tido a perceção de que continuavam a dar-se bem. Teve conhecimento a certa altura que havia problemas entre o casal e os filhos e que o casal estava separado. Pediu para visitar o A. e chegou a ir, com o GG, a casa da FF para o ver, em vão. Também tentou ligar várias vezes ao A., mas o telefone estava desligado ou não atendiam. Depois recebeu um telefonema de um dos sobrinhos para marcarem um encontro para o declarante visitar o irmão (marcaram dia, hora e local - em casa do BB). Nesse encontro falou com o A., que lhe pareceu estar bem, tinha uma conversa normal. Sugeriu ao A. irem até ao café, mas o BB disse logo que estavam bem ali. Durante o encontro não se sentiu à vontade e por isso não voltou a estar com o A.. Durante o encontro o A. não lhe falou da separação, nem lhe perguntou pela Ré. Desconhece as razões da separação.
- JJ, amigo do casal e cliente habitual do café antes explorado por eles.
Mencionou que o estabelecimento de café fechou pouco tempo depois da separação do casal. Estranhou a separação dado que o falecido A. e a Ré andavam sempre juntos e aparentavam darem-se bem, nunca tendo visto violência física ou verbal entre eles. Os filhos também estavam frequentemente no estabelecimento, a jantarem, eram mesas de 12, 13 e 16 pessoas. Desconhece os motivos da separação. A Ré disse-lhe que os filhos se teriam metido nos seus assuntos e que o A. estava a viver com o GG.
Nas semanas posteriores à separação a Ré andava desesperada, dizia que não conseguia falar com o marido, ligava-lhe e não atendiam.
O falecido A. terá ido primeiro para casa do filho GG, por decisão de todos os filhos. Considera que o falecido esteve condicionado pelos filhos no ato da separação. Quando passou a viver com a FF passou a estar condicionado por ela e os outros filhos, com exceção do GG. A Ré também lhe disse que o A. estava condicionado para se manterem separados.
O A. tinha uma carrinha estacionada numas instalações do declarante e pouco depois da separação apareceu nessas instalações com a FF por causa da carrinha. Sentiu que o A. estava condicionado pela filha, que estava a cerca de 20 metros do pai. Passado cerca de 1 mês a carrinha saiu das suas instalações, conduzida por pessoa distinta do A.. Depois disso nunca mais viu a carrinha a circular, embora também habitualmente não passasse junto da casa da FF. Também não voltou a ver ou a falar com o A., salvo uma vez em que o viu na varanda do apartamento da FF e lhe acenou, mas o A. não o terá conhecido.
Está convencido que se o A. ao tempo necessitasse de ajuda estava capaz de a solicitar.
O GG pediu-lhe para ir com ele à casa da FF, para servir de testemunha. Também estava o II. Aí chegados o GG tocou à campainha, o A. veio ao intercomunicador e disse que não queria falar com ninguém. A polícia foi chamada, não tem ideia de terem subido ao apartamento. Não pode afirmar que o falecido A. estivesse condicionado, mas achou estranho que não quisesse falar com o filho GG e com o seu irmão II. O GG disse-lhe que o pai frequentava num café perto da casa da FF e que havia sido visto sozinho na rua, nas imediações da casa da FF, uma das vezes pelo próprio GG e outra por terceiros.
- RR, irmão da Ré.
Esta testemunha pareceu-nos padecer de limitação, o que justifica as suas declarações pouco claras e incoerentes. Começou por referir que não havia estado com o falecido A. desde a separação do casal, com exceção de uma única vez em que, por acaso, o havia visto na rua, quando andava a passear com a FF e a EE. O falecido A. pareceu-lhe estar bem. Depois, a instâncias da Ilustre mandatária dos A.A. habilitados, referiu que já depois da separação do casal, por 3 ou 4 vezes, a convite da FF, ia com esta e com o A. até Esposende, local onde a FF trabalhava, e enquanto aquela estava a trabalhar ficavam os dois a passear por Esposende. Nesses passeios o falecido dizia-se cansado. Nessas conversas nunca falaram da separação, cuja causa desconhece, nem o A. lhe referiu que tivesse vontade de estar ou de viver de novo com a Ré.
- KK, que era cliente habitual do café explorado pelo casal e amiga da Ré, com quem priva diariamente.
Nunca mais viu o falecido Sr. CC desde a separação do casal e tudo o que sabe a propósito da separação foi-lhe contado pela Ré. Sempre viu o falecido A. e a Ré muito unidos. Aliás toda a família era unida. A Ré disse-lhe que os filhos lhe haviam tirado o marido. Acompanhou a Ré a casa da FF, dado que aquela queria estar e falar com o marido. A Ré tocou à campainha, a FF falou pelo intercomunicador e depois chamou o Sr. CC que, através do intercomunicador, disse à Ré que andava à deriva e ia ao médico no dia seguinte, a Ré respondeu-lhe que também ela andava à deriva, que queria marcar um encontro para falarem e que se propunha a ir com ele ao médico no dia a seguir, depois a ligação do intercomunicador foi interrompida e a conversa ficou por ali. Reconheceu que o falecido estava no seu juízo perfeito e que podia ter descido para falar com a Ré, o que não ocorreu, porém acrescentou que a Ré tinha a expectativa de a filha FF a convidar a entrar na casa dela, o que não ocorreu. Depois a Ré teve conhecimento que o Sr. CC estava doente.
A Ré sempre quis falar com o marido, mas nunca conseguiu. Pensa que os filhos quiseram levar o pai da casa de morada de família, mas não sabe porquê. Não acredita que o A. quisesse estar separado da mulher (é uma fé sua) e acha que os filhos, com exceção do GG, foram os responsáveis pela separação. Aquando da separação o Sr. CC foi para casa do GG, para ajudar a Ré.
- LL, tia de uma ex-mulher da testemunha GG, com quem este vive.
Mencionou que o GG levou o Sr. CC para viver na sua casa, nem foi previamente informada do facto. O Sr. CC esteve lá 3 semanas a dormir, durante o dia os outros irmãos vinham-no buscar de manhã e traziam-no à noite. Tais irmãos ficaram a saber que o GG andava a investigar o que eles andavam a fazer e certo dia levaram-no de manhã e ele não regressou à noite. Chegou a ver o Sr. CC a chorar na sua casa, preocupado com a Ré. Quando o Sr. CC deixou de pernoitar em sua casa o GG trouxe a Ré para a sua casa. A AA também chorava. Considera que o Sr. CC teria tido a possibilidade de voltar para a esposa no período que esteve em sua casa. Durante as 3 semanas em que o Sr. CC esteve a dormir em sua casa a Ré nunca aí o procurou.
- MM, amiga da Ré e que era cliente habitual do café explorado pelo casal antes do respetivo encerramento.
Disse ter tido conhecimento da separação do casal talvez 1 mês após a sua ocorrência. O café fechou, tinha um letreiro a dizer “fechado para férias” e depois não voltou a reabrir. Contaram-lhe que o café fechou devido a umas zangas entre o casal e os filhos, houve barulho e foi chamada a polícia. Soube depois que o A. estava a viver com uma filha no .... A AA queixava-se do facto. Serviu de testemunha à AA (estava também a KK) num dia em que aquela procurou o Sr. CC na casa da FF. A AA tocou à campainha, a FF respondeu pelo intercomunicador, ela chamou o pai e este falou pelo intercomunicador. O Sr. CC disse no intercomunicador que andava à deriva, que não iria descer porque estava de pijama, que iria ao médico no dia seguinte, a AA disse-lhe que também andava à deriva, que queria falar e estar com ele, que se propunha a ir com ele no dia seguinte ao médico, até que o intercomunicador se desligou ou foi desligado. Depois disso a Ré disse-lhe que não mais havia conseguido falar com o marido porque os filhos não deixavam, desconhecendo se tal corresponde à verdade.
A filha da declarante chegou a ver o Sr. CC a andar na rua, sozinho, andava devagar e pareceu-lhe triste.
Fazendo a análise crítica de toda esta longa, excessiva e maçadora prova produzida, temos, por assim dizer, dois blocos de interesses, liderados cada qual por filhos do casal, de um lado os habilitados e do outro o irmão GG, que “representa” os interesses da Ré, embora não seja parte no processo.
O bloco de interesses da Ré tentou criar a convicção no julgador de que o A. foi obrigado pelos filhos a separar-se (chegando a testemunha GG a imputar a responsabilidade aos irmãos, a mando de quem teria agido), posteriormente foi obrigado pelos habilitados FF e BB a manter-se separado contra a sua vontade e não era sua intenção divorciar-se. Foram os filhos habilitados que gizaram plano nesse sentido, para prejudicar a Ré (casada em regime de separação de bens).
Ora, esta versão dos factos, além de fortemente contraditada pela prova, não faz, à luz das regras básicas do bom senso e de experiência comuns, qualquer sentido.
Na verdade, começando pela versão da própria testemunha GG, não é verosímil que tenham sido os irmãos FF e BB a decidir que os pais teriam de ser separados, contra a vontade do A. e até da própria testemunha, e que tenha sido a testemunha a levar o pai para sua casa (que na verdade é a casa de uma familiar da sua ex-mulher). Não é minimamente credível que alguém tenha obrigado a testemunha GG a levar o pai para sua casa, contra a vontade de ambos. O que decorreu da prova foi que a testemunha GG teve a iniciativa de levar o pai para sua casa, ao que o pai e os irmãos, presentes em reunião familiar, acederam, versão dos factos que decorre até das declarações de parte da Ré AA.
As restantes testemunhas indicadas pela Ré limitaram-se nessa matéria a dar nota de não acreditarem na vontade do falecido A. de se separar e manter-se separado da Ré, sem, porém, assentarem essa convicção em factos do mundo do ser, tratando-se, portanto, de convicções baseada em “fé” pessoal, e não em factos.
Acresce que, conforme resulta até dos depoimentos do bloco de prova indicado pela Ré, o falecido Sr. CC, ao longo do período em que viveu em casa da FF, saía de casa desacompanhado, dava os seus passeios, ia ao café das redondezas da casa da filha, passeou horas por Esposende com a testemunha RR, irmão da Ré, foi visitado pelo seu irmão II, deslocou-se à Suíça duas vezes, pelo menos uma delas sozinho, tinha e usava telemóvel, foi procurado pela Ré e pelo filho GG em casa da filha FF e aqueles obtiveram como resposta não pretender o A. falar e/ou estar com eles, a testemunha GG chamou as forças de autoridade para certificar que o pai não estava condicionado e a resposta que obteve dos agentes policiais foi que o A. não pretendia falar com ele. O A. esteve a prestar declarações 1 mês antes de falecer, estava lúcido e traduziu com toda a clareza que nunca fora impedido de contactar com quem quer que fosse, tinha passado a procuração à sua advogada para dar entrada com o processo de divórcio e pretendia divorciar-se.
De resto, se o A. tivesse pretendido reatar a vida em comum com a Ré teria tido essa possibilidade até no período de um mês em que viveu em casa do filho GG.
Perante a avassaladora força desta prova, as convicções, baseadas na “fé” das testemunhas indicadas pela Ré nenhum relevo e credibilidade mereceram ao tribunal, a começar pelo depoimento do filho GG.
Não custa a acreditar que o falecido A. tenha seguido a sugestão dos filhos, e principalmente do filho GG, no dia em que se separou, em maio de 2018, e em que foi viver para casa deste seu filho. Admitindo-se, até, que tal decisão, ditada pelas circunstâncias, tenha causado sofrimento ao próprio falecido A. - por si e mesmo pela Ré -, e à própria Ré.
Retirar desse facto que o falecido A. foi manietado na sua vontade e movimentos pelos filhos FF e BB e que nunca pretendeu separar-se da Ré, manter-se separado e dar entrada com o processo de divórcio, é uma conclusão que não está demonstrada com base em factos, antes pelo contrário, resultando de toda a prova que o falecido A. entendia não existirem condições para voltar a viver com a Ré e a certa altura quis dar entrada com o pedido de divórcio.
E nem se diga, como se disse nas alegações orais, que o facto de, aquando da marcação da primeira tentativa de conciliação, o A. não ter vindo ao tribunal e ter-se pretendido que fosse representado por advogada com poderes especiais, é demonstrativo de o A. não pretender o divórcio. Na verdade, poderíamos aqui especular e encontrar inúmeras causas pelas quais o A. tivesse evitado deslocar-se a juízo, desde logo, por exemplo, para não se cruzar presencialmente com a Ré. Dizer que a sua não presença nessa diligência prova que o mesmo não pretendia o divórcio é apenas mais uma especulação, sem qualquer sustentação no mundo do ser, como aquela outra.
E também o facto de o A. não ter tido a iniciativa de, em vida, alterar o testamento não permite suportar a ideia de que o mesmo não pretendia o divórcio, nem sendo, além do mais, incompatível a ideia de que o A., apesar de pretender o divórcio, não pretendesse deixar a Ré sem teto, caso falecesse antes. “
*
3. Procedemos à audição das declarações e dos depoimentos, de que foram indicados excertos, por parte da recorrente e dos recorridos.
A ré AA foi ouvida em declarações, tendo dito, de relevante, que o casal deixou de viver junto desde 12.5.2018, tendo sido o seu marido que saiu de casa, levado pela sua filha e pelo seu enteado. Quando este faleceu estava em casa da filha FF. Referiu que o marido, no café, depois de terem deixado de viver juntos e quando já estava na casa da filha FF, em julho de 2018, lhe disse agarrado a si e na presença dos dois filhos mais novos “eu fico com a mãe; eu fico com a mãe”. Disse também que a filha FF não deixava que o seu marido falasse consigo. Desde meados de 2018 que nunca mais voltou a falar com o marido, mas andou sempre à procura dele. Quanto à questão do alcoolismo disse que “isso é um paleio deles.”
GG, filho do autor falecido e da ré, disse que o pai saiu inicialmente para sua casa, sublinhando, porém, que ele não quis sair, não tomou posição. Depois o pai foi para casa da sua irmã FF e a partir daí os seus irmãos mais novos esconderam-no e não mais conseguiu contactar com ele, tendo ainda referido que o seu pai já não conduzia. Disse depois que o divórcio é uma invenção dos seus irmãos por causa dos bens materiais e que o seu pai se limitava a assinar “papeizinhos”, se calhar nem sabia que entrou um processo de divórcio. O seu pai estava “manietado” pelos filhos mais novos. Realçou também que ninguém o avisou de que o pai entrara no hospital, nem do seu falecimento. E perentoriamente afirmou que o pai não se queria divorciar da sua mãe. Quando esteve em sua casa o pai estava sempre preocupado com a sua mulher.
II, irmão do autor falecido, disse que fez duas tentativas para o visitar em casa da FF, mas não foi possível. Foi depois visitá-lo uma vez a casa do BB, conversaram, mas não falaram sobre a separação. Nessa ocasião sugeriu ao autor que fossem ao café para conversarem à vontade, mas o BB disse que ali estavam bem. Nada sabe sobre a separação, embora diga que eram um casal muito unido.
JJ é amigo do autor falecido e disse que estranhou a separação porque se tratava de um casal unido, que vivia “na comunhão dos santos”. Numa ocasião, já após a separação, em que o autor foi com a filha FF ao seu estabelecimento pareceu-lhe que ele estava condicionado pela presença da filha. A seguir a isso só viu o autor à distância e achou também estranho que quando, noutra situação, em que acompanhou o filho GG e o irmão II a casa da FF, o autor não tivesse querido falar nem com o filho, nem com o irmão. “Arriscou” ainda dizer, seguindo-se o léxico da testemunha, que o autor foi condicionado, porque nunca o viu a agir sozinho, mas sempre acompanhado. E quanto à ré AA disse-lhe que não entendia a separação.
KK é cliente habitual do café e amiga da ré. Depois da separação nunca falou com o autor e o que sabe é através da ré AA. Para si a separação foi uma admiração, sempre viu os dois a tratarem-se bem um com o outro. Na sua opinião a separação foi feita pelos filhos. Mais referiu que acompanhou a ré a casa da filha FF, dado que aquela queria estar e falar com o marido. A ré tocou à campainha, a FF falou pelo intercomunicador e depois chamou o autor que, através do intercomunicador, disse à ré que andava “à deriva” e ia ao médico no dia seguinte, a ré respondeu-lhe que também ela andava à deriva, que queria marcar um encontro para falarem e que se propunha a ir com ele ao médico, mas depois a ligação do intercomunicador foi interrompida e a conversa ficou por ali. Sublinhou ainda que nunca viu qualquer razão para aquela separação e não acredita que o autor quisesse estar separado da mulher. Acha que havia muitos interesses da parte dos filhos em querer separar a mãe do pai. Nunca viu a D.ª AA embriagada nem nunca ouviu falar disso.
LL é tia da ex-mulher de GG. Disse que o GG levou o pai para sua casa durante três semanas. O sr. CC mostrava preocupação pela sua mulher, tendo dito para a testemunha “o que é que os meus filhos andam a fazer à minha mulher, o que é que vai ser da minha mulher”. Durante as três semanas em que o autor esteve na sua casa a ré nunca lá apareceu. Não sabe os motivos da separação.
NN é técnica de justiça auxiliar, tendo tomado declarações ao autor no âmbito de um processo administrativo (maior acompanhado). Disse que o autor estava lúcido e tinha um discurso fluente que não parecia ensaiado.
BB, filho do autor habilitado nos autos, foi ouvido em declarações de parte. Disse que o pai deixou de viver com a mãe no dia 12.5.2018, tendo ido viver para casa de uma tia da ex-mulher do seu irmão GG. Tal aconteceu porque a sua mãe, por causa de adição de álcool, não prestava os cuidados mínimos imprescindíveis ao seu pai, tinha deixado de cozinhar e tratava mal os clientes no café que ambos exploravam. Passado cerca de um mês foi viver para casa da FF, onde esteve ininterruptamente entre junho de 2018 e a data do seu falecimento. Durante este período não queria voltar a casa com a sua mulher lá e queria divorciar-se. Foi a partir de meados de 2019 que o pai começou a verbalizar a ideia de que queria divorciar-se. Disse também que o pai era autónomo, tendo feito naquele período duas viagens à Suíça, uma delas sozinho, tinha as chaves da casa da FF, saía quando queria, ia ao café e conduzia, o que fez até 2020. Referiu ainda que em setembro de 2018 a mãe foi a casa da FF para estar e falar com o pai, mas este não quis falar com ela.
Relativamente aos demais depoimentos e declarações, de que não foram indicados excertos em sede recursiva (FF; OO; PP; QQ, RR e MM), teremos em atenção a síntese que dos mesmos foi feita na sentença recorrida.
*
4. Deverá a Relação alterar a decisão factual se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa – cfr. art. 662º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil.
Sucede que a Relação, nesta reapreciação, goza de autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção sobre os meios de prova sujeitos a livre apreciação, sem exclusão do uso de presunções judiciais.
Como tal, a livre convicção da Relação deve ser assumida em face dos meios de prova que estão disponíveis, impondo-se que o tribunal de recurso sustente a sua decisão nesses mesmos meios de prova, descrevendo os motivos que o levam a confirmar ou infirmar o resultado fixado em 1ª instância.[2]
*
5. Vejamos então se há fundamento para alterar o decidido no tocante aos pontos factuais impugnados pela ré/recorrente e aqui, para além da prova que oralmente foi produzida em audiência, há que atentar no auto de declarações do falecido autor, constante de fls. 130/131, prestadas em 1.9.2020 nos Serviços do Min. Público da Procuradoria do Juízo Local Cível de Santa Maria da Feira, no âmbito de processo administrativo nº 1171/20.5T9VFR destinado à eventual propositura de ação especial de maior acompanhado, cujo conteúdo a Mm.ª Juíza “a quo” relevou, nas suas palavras, de forma muito significativa.
No entanto, a nosso ver, não o fez de forma acertada.
Com efeito, há que ter em conta o art. 421º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil onde se estatui o seguinte:
«Os depoimentos e perícias produzidos num processo com audiência contraditória da parte podem ser invocados noutro processo contra a mesma parte, sem prejuízo do disposto no nº 3 do artigo 355º do Cód. Civil; se, porém, o regime de produção de prova do primeiro processo oferecer às partes garantias inferiores às do segundo, os depoimentos e perícias produzidos só valem no segundo como princípio de prova
Exige-se assim que a parte desfavorecida com o resultado probatório tenha sido parte no primeiro processo e que nele tenha sido respeitado o princípio da audiência contraditória, isto é, que a parte tenha sido convocada para os atos de preparação e produção de prova e admitida a neles intervir, independentemente de ter estado efetivamente presente e ter tido intervenção efetiva (art. 415º). Se esse princípio tiver sido violado ou a parte tiver sido revel, a eficácia extraprocessual da prova está excluída – cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 4ª ed., pág. 234.
Tal como se exige também que a utilização da prova produzida no outro processo não decorra de iniciativa oficiosa do tribunal, mas sempre e somente de invocação das partes. Ou seja, a parte que se queira aproveitar dessa prova tem de invocar e alegar, no segundo processo, os meios de prova produzidos no primeiro processo – cfr. Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, pág. 637.[3]
Ora, no caso dos presentes autos, verifica-se que nenhum destes dois requisitos em que se funda a aplicação do disposto no art. 421º do Cód. de Proc. Civil se mostra verificado.
Em primeiro lugar, na tomada de declarações ao autor em 1.9.2020, em que este foi assistido pela sua mandatária, não esteve presente a ré, nem mandatário por si constituído, tal como não resulta que esta tenha sido convocada para estar presente em tal diligência.
Significa isto que as declarações do autor foram produzidas sem a audiência contraditória da ré.
Em segundo lugar, flui também dos autos que o autor, na sua petição inicial, aludiu apenas à instauração do processo administrativo de maior acompanhado – nº 1171/20.5T9VFR -, o qual viria a ser arquivado por despacho de 8.9.2020.
Em nenhum momento posterior vieram os autores habilitados solicitar que fossem tomadas em conta as declarações prestadas pelo falecido autor, em 1.9.2020, no âmbito do referido processo administrativo de maior acompanhado, e que fosse junta a estes autos de divórcio cópia das mesmas.
Essa cópia surge no processo apenas por iniciativa oficiosa do próprio tribunal, conforme decorre do despacho proferido em 7.10.2021.[4]
Porém, tal como já atrás se referiu, a utilização de depoimentos produzidos num outro processo não pode decorrer dessa iniciativa oficiosa, terá antes que ser resultado de invocação e alegação da própria parte, que, neste caso, não ocorreu.
Por conseguinte, o recurso às declarações prestadas nos Serviços do Ministério Público pelo autor falecido, em 1.9.2020, como meio probatório, encontra-se inviabilizado por não se mostrarem preenchidos os pressupostos do art. 421º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil.
Para além disso, há ainda a referir que nos encontramos, de forma evidente, perante declarações que não foram produzidas no âmbito de um processo jurisdicional, mas sim num processo de natureza administrativa, em que se procura obter tão-só um juízo de viabilidade relativamente à eventual propositura de uma ação especial de maior acompanhado.
Situação que, a nosso ver, por ser implícito que os depoimentos e perícias a considerar para os efeitos do art. 421º do Cód. de Proc. Civil devem ser provenientes de processo jurisdicional, é igualmente obstativa da valoração daquelas declarações nos presentes autos, nem sequer como princípio de prova.[5]
*
6. Depois de feito este excurso sobre o valor probatório das declarações prestadas pelo autor falecido em 1.9.2020 nos Serviços do Ministério Público, tornado necessário em virtude do indevido relevo que, a nosso ver, lhe foi dado pela Mmª Juíza “a quo” em termos probatórios, teremos agora que cingir a nossa apreciação à prova que oralmente foi produzida na audiência de julgamento, que atrás já se deixou enunciada e relativamente à qual rege o princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 607º, nº 5 do Cód. de Proc. Civil.
A questão factual que se acha no cerne do presente recurso reside em saber se no período de tempo compreendido entre maio de 2018 e a data da entrada em juízo do processo de divórcio – 16.7.2020 – e mesmo a data do falecimento do autor – 22.10.2020 – o falecido nunca pretendeu reatar a vida em comum com a ré [facto nº 4].
Ora, analisada e ponderada toda a prova, o que se constata é que surgem duas versões antagónicas sobre esta questão factual. De um lado, os que, favoráveis à posição da ré e onde esta naturalmente se inclui, transmitem a ideia de que o autor foi obrigado pelos filhos a separar-se da ré e que não era sua intenção divorciar-se. Do outro, os que dizem que o autor, plenamente autónomo, se queria efetivamente divorciar, sem que houvesse qualquer constrangimento nesse sentido da parte dos filhos e que, sendo essa a sua intenção, nunca pretendeu reatar a vida em comum com a ré.
A autonomia do autor resulta, a nosso ver, manifesta da prova produzida em audiência.
A propositura da presente ação de divórcio em 16.7.2020, encontrando-se o autor lúcido e autónomo, é sinal inequívoco da sua intenção de se divorciar, sempre havendo a sublinhar que uma decisão de tamanho significado após cerca de cinquenta anos de casamento é inevitavelmente fonte de sofrimento e de dor, tanto para o autor entretanto falecido como para a própria ré.
É, por isso, compreensível que o autor, face à sua decisão de não manter o casamento, quisesse evitar os contactos diretos com a ré.
Neste contexto, consideramos que o nº 4 se deve manter na factualidade assente.
Já no que toca ao nº 5, supérfluo para a sorte da ação perante o que consta dos factos com os nºs 3 e 4, entendemos que a prova produzida nos autos não é suficiente para que se possa concluir que entre o casal ocorreram desentendimentos motivados por consumos excessivos de álcool por parte da ré, de tal forma que a sua redação passará a ser a seguinte:
“O falecido autor ausentou-se da casa de morada de família em maio de 2018”
*
Deste modo, embora sem repercussão na solução jurídica do pleito, julga-se parcialmente procedente a impugnação da matéria fáctica efetuada pela ré/recorrente, alterando-se a redação do nº 5 da factualidade provada nos termos que atrás se deixaram consignados.
*
IIA dissolução do casamento por divórcio
1. O autor, em 16.7.2020, intentou contra a ré, seu cônjuge, a presente ação de divórcio sem o consentimento desta, fundando-se para tal efeito no disposto no art. 1781º, als. a) e d) do Cód. Civil.
Acontece que o autor entretanto faleceu no dia 22.10.2020, tendo, porém, a ação de divórcio prosseguido a sua tramitação, impulsionada por herdeiros, ao abrigo do art. 1785º, nº 3 do Cód. Civil, onde se preceitua o seguinte:
«O direito ao divórcio não se transmite por morte, mas a ação pode ser continuada pelos herdeiros do autor para efeitos patrimoniais, se o autor falecer na pendência da causa; para os mesmos efeitos, pode a ação prosseguir contra os herdeiros do réu.»
Deste entendimento discorda a ré/recorrente, em sede recursiva, mas sem razão.
Com efeito, não havendo dúvidas quanto à natureza pessoal da ação de divórcio, o que leva a que esta não possa ser proposta pelos herdeiros do cônjuge falecido, já não se exclui, face ao preceito legal citado, que tendo sido a ação intentada por este e, demonstrando-se o seu propósito de se divorciar (propósito de que pode presumir-se não viria a desistir no futuro), esta venha a ser continuada pelos seus herdeiros, à semelhança do que sucede com outras ações pessoais, como flui dos arts. 1640º, nº 2 e 1641º do Cód. Civil.
Conforme se refere no Ac. Relação de Coimbra de 16.12.2015[6] (proc. nº 29/11.3TBMMV.C1, relator Fonte Ramos, disponível in www.dgsi.pt.), que se passa a citar:
«Os “herdeiros” do cônjuge autor, a quem o art.º 1785º, n.º 3, do CC, permite a prossecução da acção de divórcio, só podem ser os sucessíveis que, no caso de a acção proceder e o divórcio vir efectivamente a ser decretado, serão chamados à sucessão do cônjuge falecido como seus herdeiros legais ou testamentários [os sucessíveis que sejam chamados à sucessão do cônjuge falecido como seus herdeiros legais ou testamentários no caso de a acção proceder e o divórcio vir efectivamente a ser decretado; além dos sucessíveis efectivamente chamados, poderão continuar a acção as pessoas que como tal serão chamadas com o afastamento do cônjuge demandado], ou seja, os sucessíveis cuja designação se converterá em vocação se se verificar a referida eventualidade.[7]
São esses sucessíveis os titulares dos interesses patrimoniais que o art.º 1785º, n.º 3, do CC, pretende tutelar, a fim de que a partilha dos bens do casal e a sucessão do cônjuge sobrevivo não sejam alteradas (ou não sejam significativamente alteradas) pela circunstância fortuita/imprevista de um dos cônjuges ter falecido na pendência da acção de divórcio.
Trata-se, por um lado, de possibilitar que o cônjuge sobrevivo seja excluído como sucessor, da herança do cônjuge falecido, do mesmo modo que dela seria excluído se o falecimento se tivesse verificado já depois de decretado o divórcio; titulares naturais deste interesse, os sucessíveis que forem chamados à herança do falecido se a acção de divórcio proceder devem por isso ser admitidos a continuar a acção intentada para que seja atingido o objectivo da lei, como efectivamente acontecerá se a acção continuar e vier a ser proferida sentença que decrete o divórcio, quer se trate de sucessão legítima (art.º 2133º, n.º 3, in fine, do CC), quer se trate de sucessão testamentária (art.º 2317º, alínea d), in fine, do CC).
Assim, na sucessão legítima, se o cônjuge autor falecer e deixar cônjuge e descendentes - como sucede no caso em análise -, estes devem ser admitidos a continuar a acção, para que, se o divórcio for decretado, não sofram a concorrência do cônjuge e, não havendo herdeiros testamentários, a herança lhes pertença por inteiro (para que a sucessão seja deferida tal como o seria se o falecimento do cônjuge autor se tivesse verificado já depois de ter sido proferida a sentença que decretou o divórcio).”
Deste modo, os autores habilitados, enquanto descendentes do autor falecido, são titulares de interesses patrimoniais que justificam a sua legitimidade para prosseguir a presente ação ao abrigo do art. 1785º, nº 3 do Cód. Civil, nada obstando a essa legitimidade a circunstância de dos cinco filhos do autor apenas quatro se terem habilitado para o prosseguimento da demanda.
Por outro lado, também não se vislumbra que a interpretação que acabou de se fazer do art. 1785º, nº 3 do Cód. Civil possa envolver violação de qualquer princípio ou norma constitucional, designadamente dos arts. 17º e 36º, nº 2 da Constituição da República.
Por conseguinte, o prosseguimento da ação de divórcio para efeitos patrimoniais, na sequência da habilitação de herdeiros efetuada, mostrou-se acertado e isento de censura.[8]
*
2. Continuando, há agora que apreciar dos fundamentos para decretar o divórcio, sem o consentimento do outro cônjuge, com referência à factualidade assente, sendo certo que o mesmo se apoia no art. 1781º, als. a) e d) do Cód. Civil, cujo texto é o seguinte:
«São fundamento do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges:
a) A separação de facto por um ano consecutivo;
(…)
d) Quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a ruptura definitiva do casamento
«Entende-se que há separação de facto, para os efeitos da alínea a) do artigo anterior, quando não existe comunhão de vida entre os cônjuges e há da parte de ambos, ou de um deles, o propósito de não a restabelecer.» - cfr. art. 1782º do Cód. Civil.
Trata-se de uma causa de divórcio objetiva, independente da culpa dos cônjuges e bilateral, ou seja, pode ser invocada por qualquer um deles – cfr. também art. 1785º, nº 1, 1ª parte do Cód. Civil.[9]
Assim, face aos referidos normativos legais, para que a separação de facto entre os cônjuges constitua fundamento de divórcio exige-se a verificação de dois elementos.
Um de natureza objetiva que consiste na cessação dos deveres conjugais impostos pelo art. 1676º do Cód. Civil., de partilha de leito, mesa e habitação, pelo prazo mínimo consecutivo de um ano.
Outro de natureza subjetiva, que dá forma e sentido ao elemento objetivo que é a separação de facto, e que consiste numa disposição interior ou, como se diz, no art. 1782º do Cód. Civil, num “propósito”, da parte de ambos os cônjuges ou de um deles, de não restabelecer a comunhão de vida matrimonial. Essencial é ainda que esse propósito de não restabelecer a comunhão exista desde a data em que a separação teve início, e que se mantenha durante um ano consecutivo.[10]
Regressando ao caso concreto, face ao que consta dos nºs 3 e 4 da factualidade dada como assente, e salientando-se a circunstância do nº 4, após reapreciação da prova produzida em julgamento, se ter mantido como provado, não podemos deixar de considerar como preenchidos os dois elementos – objetivo e subjetivo – que são exigidos para que a separação de facto possa constituir fundamento para declarar o divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, nesta caso, a ré.
Em primeiro lugar, encontra-se provado no nº 3 que desde maio de 2018 até à data da entrada em juízo do processo de divórcio - 16.7.2020 -, e mesmo até ao falecimento do autor - 22.10.2020 -, ininterruptamente, o autor e a ré não viveram debaixo do mesmo teto, não fizeram refeições em conjunto e não partilharam o mesmo leito conjugal.
Daí decorre que, com reporte à data da propositura da ação de divórcio, a separação de facto dos dois cônjuges já se mantinha, consecutivamente, há mais de um ano, o que significa estar preenchido o denominado elemento objectivo para que aquela separação de facto possa constituir fundamento de divórcio.
Tal como preenchido está também o respetivo elemento subjetivo, uma vez que se mostra provado que da parte do autor durante o período de tempo mencionado no nº 3, ou seja, desde maio de 2018 até à data do seu falecimento, em 22.10.2020, nunca este pretendeu reatar a vida em comum com a ré.
Há assim que julgar improcedente o recurso interposto pela ré com a consequente confirmação da sentença recorrida.
*
Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil):
………………………………
………………………………
………………………………
*
DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela ré AA e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas, pelo seu decaimento, a cargo da ré/recorrente.

Porto, 25.10.2022
Rodrigues Pires
Márcia Portela
João Ramos Lopes
_________________
[1] Prática esta que não se considera processualmente correta em sede de conclusões.
[2] Cfr. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2ª ed., Almedina, págs. 823 e 825.
[3] Cfr. também Ac. Rel. Guimarães de 4.12.2016, proc. 3459/12.0TJVNF-D.G1, relatora Maria Luísa Ramos, disponível in www.dgsi.pt.
[4] É o seguinte o texto deste despacho: “Por ora, solicite ao processo identificado a fls. 11v/12 [é o nº 1171/20.5T9VFR] o envio de cópia das declarações do aí requerido.
Para o caso de tais declarações estarem gravadas, solicite permissão de acesso electrónico ao processo, nomeadamente a tais declarações.”
[5] Cfr. Ac. Rel. Porto de 15.3.2012, proc. 6584/09.0TBVNG.P1, relatora Deolinda Varão, disponível in www.dgsi.pt., referente a um processo de averiguação oficiosa de paternidade.
[6] Referido em sede de contra-alegações.
[7] Cf. o acórdão do STJ de 21.5.1981, in BMJ 307º, 210 e Antunes Varela, Direito da Família, Livraria Petrony, 1987, pág. 487 e nota (1).
E não será “a qualidade de herdeiros no momento da propositura da acção” que conferirá tal legitimidade, ao contrário do que se defendeu no acórdão do STJ de 15.4.1986, in RLJ, 122º, pág. 85/BMJ 356º, 382.
[8] De referir, inclusive, que a ré, ora recorrente, nem sequer impugnou, nessa ocasião, a decisão proferida em 17.5.2021 em que simultaneamente com a decisão de habilitação de herdeiros, se determinou, implicitamente, o prosseguimento dos autos com o agendamento de tentativa de conciliação.
[9] Cfr. Andreia Carvalho, “O divórcio sem o consentimento de um dos cônjuges”, 2015, Universidade de Coimbra, pág. 85, disponível in eg.uc.pt.
[10] Cfr., por ex., Guilherme de Oliveira, “Manual de Direito da Família”, 2020, Almedina, págs. 277/278; Ac. STJ de 23.2.2021, proc. 3069/19.0T8VNG.P1.S1, relatora Maria João Tomé e Ac. Rel. Coimbra de 18.1.2022, proc. 373/20.9T8ACB.C1, relatora Cristina Neves, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.