Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0856797
Nº Convencional: JTRP00042005
Relator: MARIA ADELAIDE DOMINGOS
Descritores: TRANSPORTE INTERNACIONAL
PRESCRIÇÃO
DOLO
NEGLIGÊNCIA
Nº do Documento: RP200901050856797
Data do Acordão: 01/05/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA.
Indicações Eventuais: LIVRO 362 - FLS 50.
Área Temática: .
Sumário: I - A negligência consciente não pode ser equiparada ao dolo para efeitos de contagem de prazo prescricional, relegando o art. 32º nº 1 da Convenção CMR para a jurisdição aplicável a possibilidade de tal equiparação.
II - E no nosso ordenamento jurídico a equiparação da negligência grosseira ao dolo surgiu pontualmente, como novidade, com a reforma de processo civil de 1995/96 para o restrito efeito de condenação por litigância de má fé.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 6797/08-5 (Apelação)

(Proc. n.º …/04.8TBVCD)

Recorrente: B……….
Recorrida: C……….., SA


Acordam no Tribunal da Relação do Porto


I – RELATÓRIO

B………., com sede em ………., Alemanha, intentou acção declarativa condenatória, sob a forma sumária, contra C………., S.A., com filial na Rua ………., ..-.., ………., ………., Vila do Conde, e contra D……….., Lda., com sede na Rua ………., …., ………., ………., Ermesinde, pedindo a condenação solidária das rés a pagarem-lhe a quantia de € 10.413,33, acrescida de juros de mora desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.
Para fundamentar a sua pretensão, e em síntese, alegou que na sua qualidade de seguradora e no âmbito de um contrato de seguro celebrado entre si e a sociedade E………., pagou àquela a quantia de € 10.410,33 (sendo € 9.517,38 de custo de reparação e € 892,50, pelo custo da peritagem), a título de indemnização pelos danos por ela sofridos durante o transporte de um forno, da sua sede para as instalações da sociedade F………., Lda., em Águeda, transporte esse da responsabilidade de ambas as rés, que não procederam segundo as boas regras da arte na realização do referido transporte.
A ré C………., S.A. veio contestar a acção, arguindo a sua ilegitimidade, dizendo que o transporte internacional da mercadoria foi convencionado entre a proprietária do forno e uma firma transitária alemã, que por sua vez contratou a ré, também transitária, como sua auxiliar, a qual, por sua vez, sub-contratou a 2ª ré.
Invoca também a excepção peremptória da prescrição do direito da autora dizendo que, como transitária, deveria ter sido demandada no prazo de 10 meses após a conclusão do transporte e após a conclusão da prestação dos seus serviços à sua congénere alemã (22.5.02), e mesmo no caso do transporte, no prazo de um ano desde aquela data. Mais invoca que a sua responsabilidade nunca poderia ir além do custo da reparação do forno.
Requereu, ainda, a intervenção acessória de Companhia de Seguros F………., S.A., tendo sido admitido o referido incidente.
A ré D………., Ld.ª, também contestou, impugnando os factos alegados pela autora, declinou a responsabilidade pelo sucedido, imputando-a à 1ª ré.
Requereu, também a intervenção principal da H………., SA, tendo sido admitido o referido incidente.
A autora respondeu, pugnando pela legitimidade da ré C………., SA, por esta ter assumido perante a proprietária da máquina, a posição de transportadora e quanto à excepção de prescrição defende que se trata de um transporte nacional, não sujeito às regras do CMR, mas mesmo que se entendesse que se tratava de um transporte internacional, o prazo de prescrição aplicável era de 3 anos e não de 1 ano, por a actuação das rés ter sido dolosa.
A interveniente H………., S.A. também contestou, impugnando, por desconhecimento, os factos alegados pela autora, declinando a sua responsabilidade por a mesma estar cingida aos transportes internacionais, o que não sucedeu, no caso dos autos.
A interveniente Companhia de Seguros F………., S.A. também contestou, invocando que o contrato de seguro que celebrou com a 1ª ré cobre apenas a sua actividade de transitário e não a de transportador, como foi o caso.
Apresentadas as respectivas respostas pela autora e pela ré C………., SA, foi proferido despacho saneador que relegou para final o conhecimento das excepções.
Foi realizada audiência de discussão e julgamento e proferida sentença que julgou improcedente a excepção dilatória de ilegitimidade da 1.ª ré, julgando-a parte legítima e julgou procedente a excepção peremptória de prescrição, absolvendo-se as rés dos pedidos contra si formulados.

Inconformada, apelou a autora, formulando, no essencial, as seguintes conclusões:
1. O transporte internacional do forno iniciou-se em Inglaterra, onde foi carregado, e terminou em Vila do Conde onde foi descarregado, iniciando-se, a partir daí até Águeda, um transporte nacional.
2. Tendo o dano ocorrido num transporte nacional, o direito da recorrente não se encontrava prescrito (à data do transporte ainda não se encontrava em vigor o DL 239/2003, de 04.08).
3. Caso se entenda, que o destino do forno era Águeda, e que até lá estava em curso um transporte internacional, é aplicável ao caso a Convenção CMR, sendo aplicável, dada a conduta dolosa do transportador, o prazo de 3 anos para a propositura da acção.
4. O comportamento da ré C………., SA foi doloso, na modalidade de dolo eventual, ou, pelo menos, agiu com negligência grosseira que, atentas as circunstâncias, tem de equiparar-se ao dolo, por se encontrar contratualmente obrigada a não violar a embalagem onde estava acondicionado o forno.
5. O artigo 17.º, n.º 4, alínea b) da Convenção CMR isenta a responsabilidade do transportador, caso a mercadoria não se encontre devidamente embalada. Assim sendo, a alteração da embalagem pelo transportador deve ser causa de especial responsabilização.
6. O forno chegou a Vila do Conde em bom estado e foi na operação de carga e descarga, que incluiu o desmantelamento da embalagem, que se verificaram os danos.
7. Dizer-se que o transportador não previu que ocorressem danos com o desmantelamento da embalagem é premiar uma conduta gananciosa, como foi a da ré C………., SA que, por razões económicas, tal como ficou provado, praticou um facto ilícito e violador das obrigações contratuais assumidas e admitiu que os danos se verificariam, como veio a acontecer.
8. A Autora alegou factos demonstrativos do dolo, que provou, sendo que o Juiz que proferiu o saneador também percebeu que estavam alegados factos suficientes para tal demonstração.
9. A ré C………., SA, por ter violado de forma grave e consciente e com previsão de verificação os danos ocorridos, as boas regras da arte que resultam da experiência comum dos transportadores, também identificadas na Convenção CMR, nomeadamente no n.º 4 do artigo 17.º, deve ser condenada no pedido.
10. A sentença recorrida violou os artigos 1.º, 17.º, n.º 4, alínea b), 23.º, 29.º e 32.º daquela Convenção CMR, pelo que deve ser revogada.

Nas suas contra-alegações a apelada C………., SA defende, a título principal, a manutenção da decisão recorrida, por se encontrar prescrito o direito da autora e, a título subsidiário, ao abrigo do artigo 684.º-A, n.º 1 do CPC, para o caso de ser procedente o recurso da autora, que o tribunal de recurso se pronuncie sobre a alteração da causa de pedir e, caso assim se não entenda, seja declarada a nulidade da sentença recorrida, com fundamento no artigo 688.º, n.º1, alínea b) do CPC.

Conclusões da recorrida C………., SA no que concerne à ampliação do âmbito do recurso:
1. A causa de pedir da acção reporta-se ao cumprimento defeituoso do contrato de transporte entre Vila do Conde e Águeda, enquanto no presente recurso se fundamenta o pedido de condenação da recorrida na sua actuação dolosa.
2. Tais factos consubstanciam alteração da causa de pedir, impossível de ocorrer nesta fase do recurso por falta de acordo das partes, nos termos do artigo 273.º do CPC.
3. Sendo que os factos consubstanciadores da causa de pedir foram alegados na petição inicial e objecto de quesitação (quesitos 13.º, 2.ª parte e 14.º da base instrutória) e receberam a resposta não provado.
4. Mesmo que não fosse procedente a excepção de prescrição, o pedido teria de ser julgado improcedente face à prova produzida, sob pena de violação do artigo 273.º do CPC e 342.º do Código Civil.
5. O mesmo se dirá em relação à sentença recorrida, na medida em que padeceria, de vício de nulidade previsto no artigo 668.º, n.º 1, alínea b) do CPC, por violação do artigo 659.º, n.º 2 e 3 do mesmo Código.
6. É que na sentença em apreço o Tribunal dá como provados os factos de fls. 7, 8 e 9 que constavam da base instrutória, sem contudo efectuar o exame crítico das provas que se lhe impõe.
7. Todavia, e caso assim não se entendesse, e se remetesse a sentença recorrida para a decisão sobre a matéria de facto proferida no âmbito do artigo 653.0 do Código de Processo Civil, sempre a mesma teria violado o disposto nos artigos 352.º do Código Civil e 617.º do Código de Processo Civil.
8. Com efeito, a matéria vertida nos artigos 43.º a 58.º da base instrutória foi extraída, quase ipsis verbis, da contestação da 2.ª ré, portanto, são factos favoráveis à parte contrária, a ora recorrente, todavia, não são desfavoráveis em relação à 2.ª ré, como a lei impõe, mas tão somente quanto à 1.ª ré, que em caso algum os admitiu.
9. Logo tais factos, face à lei substantiva e processual, não podem considerar-se provados por confissão do representante legal da 2.ª ré, nem como assentes com base em prova testemunhal, face à sua incapacidade de depor como testemunha.
10. Assim, e caso a decisão recorrida se tenha baseado nesta confissão, o que se desconhece face à ausência de fundamentação nos termos do artigo 659.º, n.º 3, do Código de Processo Civil - vício que já se apontou -, sempre a mesma violaria de forma incontornável o disposto no artigos artigo 352.º do Código Civil e 617.º do Código de Processo Civil.

II- FUNDAMENTAÇÃO
A- Objecto do Recurso:
Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objecto do recurso nos termos dos artigos 684.º, n.º 3 e 690.º, n.º 1 e 2 do CPC, sem prejuízo do disposto no artigo 660.º, n.º 2 do mesmo diploma legal, a questão essencial a decidir é da eventual prescrição dos direitos da autora, o que pressupõe a qualificação jurídica das obrigações assumidas pela ré C………., SA.

B- De facto:
A 1.ª instância considerou provada a seguinte factualidade:
Da Matéria de Facto Assente:
1- A A. é uma seguradora sediada na Alemanha que se dedica à exploração de seguros de transporte e outros.
2- A A., através de carta registada com aviso de recepção datada de 6 de Dezembro de 2002, apresentou à 1ª ré uma reclamação escrita pedindo a indemnização de € 10.410,33.
3- A 1ª ré, pela sua carta de 17 de Dezembro desse mesmo ano, repudiou a pretensão da A. rejeitando a reclamação e tendo devolvido toda a documentação que lhe havia sido remetida.
4- A 1ª ré celebrou com a “Companhia de Seguros F………., S.A”, um contrato de seguro de responsabilidade civil de transitário, em vigor, sob a apólice nº ..-..-…… (cfr. Doc. de fls. 189 e ss.).
5- A 2ª Ré celebrou um contrato de seguro com a companhia de seguros H………., SA, ao abrigo da apólice nº 76/……., que garante a responsabilidade da segurada como transportador, pela perdas e danos causados às mercadorias no veículo que efectuou o transporte e que sejam imputados por culpa ou negligência nos termos da Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR) – (cfr. Fls. 168 e ss.).
Da Base Instrutória:
1- A 2ª ré prestava serviços de transporte de mercadorias, nacional e internacional à 1ª ré, sendo o transporte de mercadorias nacional com regularidade mensal, tendo sido a 2ª ré contratada pela 1ª ré para efectuar o transporte do forno em questão, juntamente com outras mercadorias, desde o país de origem (Inglaterra) e até ao entreposto da 1ª ré em ………., ………., Vila do Conde, sendo que esse transporte iniciou-se em 15 de Maio de 2002 a partir de ………. no camião da 2ª ré por determinação da 1ª ré.
2- A “E……….” adquiriu à “F………., Lda.” o forno identificado na factura junta a fls. 8.
3- Porque pretendia alterar o queimador do forno, os reguladores de pressão e tubagem, a E………. teve que fazer deslocar o forno até às instalações do fabricante, em Águeda.
4- A sociedade proprietária do forno é beneficiária de um seguro de transporte das suas mercadorias cujo âmbito se encontra definido na apólice cuja tradução foi junta a fls. 9 a 11.
8- No dia 21 de Maio de 2002 o referido camião descarregou os bens transportados na filial da primeira Ré em Vila de Conde.
9- Como a altura do compartimento da carga fosse insuficiente, a 1ª ré decidiu então utilizar a viatura da 2ª ré, e como ainda assim fosse insuficiente, um funcionário da 1ª ré deu instruções ao pessoal para desmantelar a palete, no armazém, para que ficasse apenas o estrado, por forma a reduzir a altura do volume em alguns centímetros, tendo sido a máquina descarregada do camião que a trouxe desde a origem para aquela viatura da 2ª ré.
10- Quando no dia 22 de Maio de 2002, durante a hora de almoço, o forno foi entregue no destino, F………., Lda, um funcionário desta empresa apercebeu-se de que a palete estava desmantelada.
11- Ao comentar esse facto com o transportador, por este foi-lhe dito que houve necessidade de reduzir a altura do volume para poder entrar no camião.
12- Descarregada a máquina logo se aperceberam dos danos que a mesma tinha sofrido.
13- Desse facto deu a F………., Lda conhecimento de imediato à 1ª Ré por e-mail e até o reforço mais tarde através das cartas juntas aos autos a fls. 13 a 15.
14- Porque as Rés não assumiram qualquer responsabilidade pelo sucedido, a proprietária do forno accionou o seu seguro que de imediato promoveu uma perícia.
15- A perícia foi conduzida pela “I………., Lda.”, sociedade que a essa actividade se dedica e que confirmou os danos provocados no forno assim como os custos inerentes à actuação das Rés.
16- A caixa do camião tem 237cm de altura e 240 cm de largura.
17- A altura do equipamento é de 220 cm, a da palete 15,5 cm, e a da caixa de cartão 1 cm.
18- O forno, com um peso de 1500kg e 220 cm de altura é mais pesado na parte superior, pelo que facilmente poderia tombar durante o transporte ou durante as operações de carga e descarga.
19- A proprietária do forno, E………., já foi ressarcida pela autora pelos danos sofridos, ou seja, o valor de € 9.517,836 correspondente ao custo da reparação e o custo da peritagem suportado pela Autora que importou em € 892,50, no total de € 10.410,33.
20- A 1ª Ré é uma empresa transitária, cujo escopo legalmente fixado consiste na prestação de serviços de natureza logística e operacional que inclui o planeamento, o controlo, a coordenação e a direcção das operações relacionadas com a expedição, recepção, armazenamento e circulação de bens ou mercadorias.
21- A 1ª Ré remeteu à 2ª Ré a carta junta a fls. 91, responsabilizando-a por eventuais danos resultantes da palete se encontrar com a embalagem em mau estado e por os volumes se encontrarem soltos.
22- Quando a 1ª Ré recebeu interpelações por parte da Seguradora da Mercadoria Transportada, a Autora, no sentido de proceder ao pagamento da quantia de € 10.410,33, de imediato, remeteu o tratamento dessa questão para a 2ª Ré.
23- Por indicações da 1ª Ré, o camião dirigiu-se directamente a Lisboa ao terminal daquela, onde efectuou a descarga parcial das mercadorias transportadas.
24- Para proceder à descarga daquelas mercadorias, o forno foi movimentado pelo pessoal da 1ª Ré, que o descarregou e carregou novamente.
25- O camião, no percurso subsequente e de acordo com as instruções da 1ª Ré, fez escala no ………., onde largou mercadorias sem que o forno tivesse sido movimentado.
26- Seguidamente, o camião dirigiu-se ao terminal da 1ª Ré de Vila do Conde, onde foi descarregado no dia 21 de Maio de 2002.
27- O aludido forno foi descarregado na presença do sócio-gerente da Ré, J………., não sendo visíveis quaisquer sinais da mercadoria estar danificada.
28- No dia seguinte, após a mercadoria ter chegado ao armazém da 1ª Ré e aí ter sido descarregada e depositada, aquela pretendeu carregar o forno no camião de outro transportador a fim de efectuar o trajecto Vila do Conde – Águeda.
29- Tal operação foi feita por conta e risco da 1ª Ré com o único escopo de economizar no transporte.
30- E foi quando procediam ao desmantelamento da palete – com o forno em cima - que os funcionários da 1ª Ré causaram os danos que, posteriormente, se constatou existirem.
31- Face à irredutibilidade da 1ª Ré, a 2 ª Ré participou a ocorrência à sua correctora de seguros, a K.……… S.A, para os subsequentes termos de averiguação de eventual responsabilidade pelos danos verificados na mercadoria e supostamente ocorridos no transporte internacional.
32- Mas jamais lhe foram disponibilizados os elementos necessários à instrução do processo, apesar das diversas insistências quer junto da 1ª Ré, quer junto da Valor Exacto.
33- E a K………., SA acabou por não dar seguimento à participação, dada a falta de elementos que lhe permitisse aferir das verdadeiras causas do sinistro, e encerrou o processo.

C- De Direito:
Vejamos, então, se ocorreu a prescrição do direito de indemnização invocado pela autora, conforme foi decidido na sentença recorrida.
Pressuposto prévio desta análise é a qualificação jurídica do contrato celebrado entre as partes.
A sentença concluiu que a ré C……….., SA tinha celebrado um contrato de transporte internacional obrigando-se a transportar o forno desde Inglaterra até Portugal, tendo sub-contratado a 2.ª ré para proceder materialmente aos actos de transporte.
Consequentemente, considerou aplicável a Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada, designada por Convenção CMR.[1]
A recorrente defende, em primeira linha, que tendo o forno sido transportado de Inglaterra até Vila do Conde, onde foi descarregado, o contrato de transporte internacional de mercadorias ao qual é aplicável a Convenção CMR, terminou com essa descarga, existindo a partir dali e até ao local da entrega final – Águeda – um contrato de transporte nacional, ao qual não se aplica a referida Convenção CMR, nem o prazo de prescrição nela previsto, mas sim o Código Comercial, não tendo prescrito o direito que pretende fazer valer nesta acção.
De qualquer modo, defende que a entender-se, como fez a sentença recorrida, que os danos não ocorreram durante o transporte, não considerando a carga e descarga como operação de transporte, a 1.ª ré deve ser responsabilizada pela totalidade dos danos provocados, sem que possa invocar a prescrição.
Em segunda linha, defende que qualificando-se o contrato como contrato internacional de mercadorias, o prazo de prescrição é de 3 anos e não de 1 ano, dada a conduta dolosa da 1.ª ré, donde resultaria a não prescrição do direito invocado e, consequentemente, a sua condenação.
Vejamos, então, qual o contrato em causa nos autos.
Previamente, importa clarificar um aspecto relacionado com a prova. Encontra-se vertida na sentença, no supra ponto 20 dos factos provados, oriundo do ponto n.º 25 da base instrutória, que “A 1ª Ré é uma empresa transitária, cujo escopo legalmente fixado consiste na prestação de serviços de natureza logística e operacional que inclui o planeamento, o controlo, a coordenação e a direcção das operações relacionadas com a expedição, recepção, armazenamento e circulação de bens ou mercadorias.”
Analisada a matéria de facto provada, constante da decisão proferida sobre a matéria de facto (fls. 442 a 446), verifica-se que o facto em causa foi dado como “não provado”, constando da fundamentação daquela decisão fáctica a razão da resposta negativa. Diz-se naquele despacho, textualmente, o seguinte: “As respostas negativas dadas ao números que as receberam fundaram-se na ausência da prova respectiva (mormente quanto ao n.º 25, uma vez que tal matéria carece de prova documental que suporte o aí questionado e tal documento não foi junto aos autos) ou tida por insuficiente, nos termos supra assinalados” (sublinhado nosso).
Porém, na transposição para a sentença, o facto acabou por ser tido como “provado”. Trata-se de um erro material que só era susceptível de rectificação antes da subida do recurso, dada a interposição deste, conforme resulta dos artigos 666.º, n.º 2 e 667.º, n.º 2 do CPC.
Assim sendo, não tendo sido corrigido oficiosamente pelo tribunal que proferiu a sentença, nem tendo as partes suscitado a rectificação antes da subida do recurso, está vedado ao tribunal ad quem proceder oficiosamente à sua correcção,[2] pelo que, apesar desta constatação, a questão a decidir – natureza e qualificação jurídica do contrato celebrado – terá de levar em conta a prova desta factualidade.
Independentemente da qualidade de transitária que a 1.ª ré tem, considerando a referida factualidade, a qualificação jurídica do contrato celebrado entre a ré C………., SA, e o expedidor, ainda que este tenha contratado a 1.ª ré através de um agente transitário na Alemanha, depende das concretas condições acordadas para a realização deste transporte.
Antes disso, importa definir juridicamente o que seja actividade transitária e contrato de transporte.
Nos termos do artigo 1.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 255/99, de 07.07, que estabelece o regime de acesso e exercício da actividade transitária, aplicável à data do factos, considerando que os mesmos datam de 2002 e este diploma começou a vigorar em 12.07.1999, a “actividade transitária consiste na prestação de serviços de natureza logística e operacional que inclui o planeamento, o controlo, a coordenação e a direcção das operações relacionadas com a expedição, recepção, armazenamento e circulação de bens ou mercadorias, desenvolvendo-se nos seguintes domínios de intervenção:
a) Gestão de fluxos de bens ou mercadorias;
b) Mediação entre expedidores e destinatários, nomeadamente através de transportadores com quem celebre os respectivos contratos de transporte;
c) Execução dos Trâmites ou formalidades legalmente exigidos, inclusive no que se refere à emissão do documento de transporte unimodal ou multimodal”.
Por seu lado, à data dos factos, o contrato de transporte rodoviário nacional de mercadorias, portanto aplicável às deslocações rodoviárias entre locais situados no território nacional, encontrava-se regulado nos artigos 366.º a 393.º do Código Comercial e era definido como um contrato de prestação de serviços de natureza mercantil, ao qual era aplicável subsidiariamente o artigo 1145.º do Código Civil.
Nestes termos, o contrato de transporte é aquele em que qualquer ou quaisquer pessoas, ou sociedades comerciais (o transportador), se proponham exercer a industria de fazer transportar por terra, canais ou rios, pessoas ou animais, alfaias ou mercadorias de outrem (o expedidor), mediante retribuição, por sua conta e responsabilidade, uma coisa de um lugar para outro e a fazer a sua entrega ao destinatário do local do destino (artigo 363.º, parágrafos 1 a 3, 367.º do Código Comercial e artigo 1145.º do Código Civil).
Configura-se como um contrato bilateral, oneroso, consensual, gerando uma obrigação de resultado para o transportador, uma vez que o cumprimento da sua obrigação exige que a coisa transportada seja colocada no lugar do destino, ficando a cargo do transportador a utilização de meios humanos e materiais necessários à execução daquela obrigação.
Por sua vez, quando o transporte de mercadorias é feito por estrada, a título oneroso por meio de veículos, ocorrendo o carregamento da mercadoria e o lugar de entrega da mesma em países diferentes, sendo um deles, pelo menos, contratante da Convenção CMR, existe um contrato de transporte internacional, ao qual é aplicável um regime jurídico específico regulado na referida Convenção CMR (artigo 1.º da Convenção).
Vejamos, agora, face à prova, qual é a situação contratual subjacente ao acto de transporte realizado.
A prova não é abundante no que concerne à negociação entre a 1.ª ré e o expedidor. De relevante para esta questão, porém, é que foi emitido o documento de fls. 12, designado por CMR, e que nos termos do artigo 6.º da Convenção CMR consubstancia a “declaração de expedição”, onde consta a 1.ª ré como transportadora. Foi também com base neste documento que o tribunal considerou provada a factualidade da qual resulta que a 1.ª ré contratou com a 2.ª ré na qualidade de transportador, conforme se pode ler na fundamentação inserta no despacho que fundamentou as respostas à base instrutória.
Não se descurando que 1.ª ré tem como escopo legal a prestação de serviços que caracterizam a actividade de transitário, a mesma tanto podia actuar nessa qualidade ou na qualidade de transportador com vista à contratação de um terceiro para executar o transporte, conforme muito bem refere a sentença recorrida e como tem sido comumente aceite pela jurisprudência. Nesses casos, “não há que distinguir entre actividade de transitário e transportador senão em face do que, concretamente, foi acordado, considerando-se que o transitário que celebrou o contrato de transporte assume as inerentes responsabilidades.” [3]
Assim sendo, parece-nos incontornável que, no caso concreto, face ao que consta da referida declaração de expedição, a 1.ª ré agiu na qualidade de transportador. Não existindo prova em sentido contrário que infirme o conteúdo daquela declaração de expedição, temos de concluir que foi na qualidade de transportador que a 1.ª ré se obrigou, perante o expedidor e o respectivo agente transitário alemão, a fazer transportar de Inglaterra para Portugal, o forno mencionado nos autos.
No que concerne à sub-contratação com a 2.ª ré, a prova revela, aqui de modo bastante seguro, que a 2.ª ré foi “contratada pela 1.ª ré para efectuar o transporte do forno” tendo a negociação ocorrido no âmbito do desenvolvimento da actividade de “prestação de serviços de transporte de mercadorias, nacional e internacional” que a 2.ª ré prestava com regularidade à 1.ª ré, iniciando-se esse transporte “em 15 de Maio de 2002 a partir de ………. no camião da 2.ª ré por determinação da 1.ª ré” (supra ponto 1 da matéria provada proveniente da b.i.).
Conclui-se, pois, tal como o fez a sentença recorrida, que a ré C………., SA, se obrigou a transportar a mercadoria (o forno) na qualidade de transportadora e não de transitária, tendo celebrado um contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada, ao qual é aplicável a Convenção CMR, uma vez que o carregamento da mercadoria ocorreu em Inglaterra e a entrega ocorreu em Portugal.
Defende, igualmente, a recorrente que a qualificar-se assim este contrato, ele deixou de ser internacional para passar a ser de transporte nacional de mercadorias em relação ao percurso entre Vila do Conde e Águeda.
Apesar de constar na declaração de expedição que o local de entrega era “……….”, modo como os ingleses designam a cidade do ………., a prova revela que o local final da entrega não era nessa cidade, mas sim em Águeda.
A Convenção CMR prescreve uma presunção no sentido da declaração de expedição, até prova em contrário, fazer fé das condições do contrato (artigo 9º, n.º 1).
Porém, podendo o contrato de transporte internacional rodoviário de mercadorias ser provado por qualquer meio admitido pela lei, tal como as estipulações adicionais ao mesmo, dada a sua natureza consensual, tem de se atender à alteração do local da entrega da mercadoria, em conformidade com a prova produzida (artigos 393.º e 394.º do Código Civil).
Na verdade, resulta do supra ponto 3 da matéria provada proveniente da base instrutória que a proprietária do forno (a E……….) pretendia fazer alterações no forno e que, para esse efeito, este tinha de ser trazido até às instalações do fabricante, em Águeda. Portanto, o destino final da mercadoria, ou seja, o local de entrega, era esta localidade e não o Porto, ou Vila do Conde.
O que sucedeu é que, por razões apenas atinentes ao interesse comercial da ré C………., S.A., a mercadoria, antes de chegar ao seu destino final, foi descarregada em dois locais diferentes. Primeiro, em Lisboa, para permitir a descarga de outras mercadorias igualmente transportadas e, posteriormente, em Vila do Conde, para o forno poder ser transferido para outro camião da 2.ª ré que, por sua vez, o iria transportar até às instalações da F………., Ld.ª, em Águeda, local do seu destino final (supra pontos 23, 26 e 28 da matéria provada proveniente da base instrutória).
Tais actos de descarregamento e carregamento ocorreram a mando da ré C………., S.A. e no seu interesse, não se configurando que os mesmos possam ser tidos como acto de entrega da mercadoria no seu destino final, ou que tenham a virtualidade de transformar um contrato de transporte internacional num contrato de transporte nacional de mercadorias.
Tal como já se decidiu neste Tribunal, “A entrega não se confunde com a descarga: esta é uma operação material, enquanto a entrega é um acto jurídico, podendo decompor-se em dois momentos constituídos pela apresentação da mercadoria ao destinatário e pela sua aceitação. A entrega só acontece quando o destinatário aceita a mercadoria e entrega a declaração de recepção ao transportador.”[4]
Donde se conclui que o contrato em causa, ao abrigo do qual o forno foi transportado desde Inglaterra até Águeda, é um contrato de transporte internacional, ao qual é aplicável a Convenção CMR, improcedendo as conclusões das alegações da recorrente quando defende a natureza nacional do contrato a partir de Vila do Conde.
Também não procede a alegação no sentido dos danos estarem fora do âmbito de aplicação da Convenção CMR, por terem ocorrido no acto de carga e descarga, uma vez que estes actos não têm autonomia em relação à obrigação de resultado assumida pela 1.ª ré C………., S.A. e que era a de entrega do forno no local de destino final. Assim, a descarga e carga do forno, quer em Lisboa, quer em Vila do Conde, são actos executórios intermédios e instrumentais, realizados com vista ao cumprimento da obrigação de resultado: a entrega da mercadoria.
Chegados a esta conclusão, importa, agora, averiguar qual o prazo de prescrição do direito invocada na presente acção.
Nesta matéria rege o artigo 32.º, n.º 1 da Convenção CMR, que estipula o seguinte: “As acções que podem ser originadas pelos transportes sujeitos à presente Convenção prescrevem no prazo de um ano. No entanto, a prescrição é de três anos no caso de dolo, ou de falta que a lei da jurisdição a que se recorreu considere equivalente ao dolo.”
Quanto à contagem do prazo prescricional, a alínea a) do mesmo preceito estipula que “O prazo de prescrição é contado: a) A partir do dia em que a mercadoria foi entregue, no caso de perda parcial, avaria ou demora.”
O n.º 2 do mesmo artigo prescreve que a “uma reclamação escrita suspende a prescrição até ao dia em que o transportador rejeitar a reclamação por escrito e restituir os documentos que a esta se juntaram.”
Tendo o acto de entrega ocorrido no dia 22 de Maio de 2002 e a reclamação escrita da autora apresentada à 1.ª ré sido repudiada, com a devolução de toda a documentação, em 17 de Dezembro desse ano, já tinha decorrido mais de um ano à data de entrada da petição, a qual deu entrada no dia 03 de Fevereiro de 2004 (artigos 279.º e 296.º do Código Civil).
Assim sendo, a não prescrição do direito invocado pela apelante depende da aplicação do prazo prescricional mais alargado, cuja aplicação, por sua vez, depende da qualificação da actuação da 1.ª ré como dolosa ou como tendo praticado falta que a lei portuguesa equipare ao dolo.
A sentença recorrida, analisando a prova, entendeu que a conduta da ré C………., S.A. ao ordenar o desmantelamento da palete acondicionadora do forno, ficando apenas o estrado, de modo a baixar a altura do volume, de forma a caber no camião que o iria transportar até Águeda, não pode ser qualificada como dolosa, uma vez que a prova não permite concluir que a 1.ª ré ao ordenar o desmantelamento da palete – altura em que ocorreram os danos – tenha previsto o resultado ilícito e, mesmo assim, tenha levado por diante a sua actuação.
A recorrente defende, por seu lado, que a ré actuou com dolo eventual, ou pelo menos, com negligência grosseira, equiparável ao dolo, por se encontrar contratualmente vinculada a não alterar a embalagem da mercadoria, tanto mais que o artigo 17.º, n.º 4, alínea b) da Convenção CMR, a isenta de responsabilidade caso a mercadoria não se encontre devidamente embalada e, mesmo assim, por razões de ganância, violando as regras da arte e da experiência comum dos transportadores, de forma grave e consciente e com previsão do resultado, procedeu ao desmantelamento da embalagem.
A sentença recorrida destrinçou analiticamente os requisitos das várias modalidades de dolo (directo, necessário e eventual) e da mera culpa ou negligência (consciente e inconsciente), que aqui nos dispensamos de repetir.
O que importa realçar é que a conduta dolosa pressupõe a existência de um elemento volitivo ou emocional, traduzido no nexo de causalidade entre o facto ilícito e a vontade, e um elemento intelectual, que se traduz no conhecimento das circunstâncias de facto que integram a violação do direito ou da norma que tutela os interesses alheios e a consciência da ilicitude do facto.[5]
Todos estes elementos carecem de ser alegados e provados por aquele que invoca o direito ao ressarcimento, dado o seu carácter constitutivo (artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil).
No caso presente, da prova não resulta que a 1.ª ré, através dos seus trabalhadores, tenham agido de forma dolosa, em qualquer das modalidades assinaladas.
De facto, não se provou que tivesse vontade e intenção de directamente causar os danos, ou que tivesse previsto esse resultado como consequência necessária da sua conduta e, mesmo assim, tivesse agido, o que afasta a ocorrência, respectivamente, do dolo directo e do dolo necessário.
Quando ao dolo eventual, a sua verificação dependia de se ter provado que a 1.ª ré, através dos seus funcionários, tivesse previsto como possível ou eventual a produção do danos e, mesmo assim, tivesse agido, confiando que os mesmos não se verificariam.
Da prova apenas podemos retirar que foi dada ordem de desmantelamento da palete com vista à redução da altura, mas não existe qualquer facto indiciador ou revelador de que a 1.ª ré tenha previsto a eventualidade da ocorrência do dano e que tenha confiado na sua não produção. Portanto, também não se pode concluir pela existência de dolo eventual.
Defende a recorrente que as regras da arte e da experiência, aliadas ao conhecimento da regras jurídicas sobre a responsabilidade do transportador, permitem que se extraia a conclusão que a actuação é dolosa.
Em geral, a ocorrência de danos por violação das legis artis ou das regras da experiência profissional encontram acolhimento no âmbito da conduta negligente, na medida em que a mesma traduz omissões da diligência exigível ao agente, face aos especiais conhecimentos e qualificações que, em regra, possuiu sobre a matéria.
No caso, será essa a figura que melhor retrata a actuação da ré C………., S.A.. Na verdade, a sua qualidade de transportadora e de transitária, se considerarmos que esta actividade se enquadra no mesmo âmbito profissional, exigia que actuasse de forma mais previdente, menos descuidada ou precipitada, pois era-lhe exigível que prefigurasse a possibilidade de ocorrência de danos devidos ao desmantelamento da embalagem, considerando que lida diariamente com mercadorias embaladas, com acondicionamentos das cargas, avarias e perdas de mercadorias, etc.
Aliás, sendo a culpa aferida, no nosso sistema jurídico, conforme decorre do artigo 487.º, n.º 2 do Código Civil, em abstracto, face à diligência “de um bom pai de família”, independentemente daqueles especiais conhecimentos, sempre teríamos de concluir que tal diligência lhe era exigível, uma vez que uma pessoa medianamente diligente podia prever que a alteração da embalagem de uma mercadoria que ainda tinha de ser transportada, lhe poderia provocar danos.
Assim, podemos inferir que a 1.ª ré, face à intensidade do dever de diligência que sobre si impendia, agiu com negligência consciente.
Sendo assim, a questão que se coloca é se a negligência consciente deve ser equiparável ao dolo para efeitos de contagem do prazo prescricional, uma vez que o artigo 32.º, n.º 1 da Convenção CMR relega para a jurisdição aplicável a possibilidade de equiparação.
O nosso ordenamento jurídico imprime ao dolo, enquanto modalidade mais grave da culpa, um forte juízo de censura, dada a estreita identificação entre a vontade do agente e o facto, enquanto as situações de mera culpa ou negligência recebem um juízo de menor censurabilidade por haver uma ligação menos incisiva entre o agente e o facto.
Apesar disso, e tal como foi expresso pelo Supremo Tribunal de Justiça, “No nosso ordenamento jurídico, a equiparação da negligência grosseira ao dolo surgiu, pontualmente, como novidade, com a reforma processual civil operada em 1995/96, para o restrito efeito de condenação por litigância de má fé (cfr. art.456º CPC).” [6]
Assim, da distinção resultam apenas e, excepcionalmente, efeitos diferentes, na medida em que só nalguns casos a obrigação de indemnização pressupõe o dolo, por exemplo, nos casos previstos nos artigos 814.º, n.º 1 e 815.º, n.º 1 do Código Civil. [7]
Ao nível da responsabilidade extracontratual a distinção interfere na determinação do quantum indemnizatório, como decorre dos artigos 483.º, 494.º e 570.º do Código Civil.
No domínio da prescrição não existe norma que destrince entre dolo e negligência.
No domínio da responsabilidade civil extracontratual, o artigo 498.º, n.º 3 do Código Civil estabelece diferentes prazos de prescrição, mas só para o caso do facto ilícito constituir crime.
Ao invés, as regras sobre prescrição estão relacionadas com a ideia de inércia negligente do exercício do direito por parte do respectivo titular e com a necessidade de segurança jurídica e certeza dos direitos. Tal como refere Aníbal de Castro “A prescrição é determinada no interesse do devedor ou sujeito passivo da relação jurídica, e supõe a negligência ou inércia do titular do direito, o que inculca a sua renúncia e o torna, por isso, indigno de protecção jurídica.” [8]
Portanto, pela própria natureza, estas motivações abstraem-se de juízos de maior ou menor censurabilidade subjacentes à distinção entre dolo e negligência.
Para além disso, até se pode extrair da proibição de inderrogabilidade do regime da prescrição previsto no artigo 300.º do Código Civil, o afloramento de um princípio geral de imodificabilidade dos prazos prescricionais, mormente em função da alteração das condições em que a mesma opera os seus efeitos legais.
E quanto à rigidez dos prazos, tal como refere Menezes Cordeiro,[9] quando fixa um prazo, “a norma torna-se auto-suficiente: vale por si, esgotando-se na missão de fixar um prazo predeterminado. Não é lícito, ao intérprete aplicador, alongar ou restringir prazos (pré-)fixados por lei, a coberto de directrizes jurídico-científicas”.
Deste modo, afigura-se-nos que o nosso sistema jurídico não permite um raciocínio de equiparação entre dolo e negligência consciente, para efeitos de aplicação do prazo de prescrição alargado, nos termos referidos no artigo 32.º, n.º 1 da Convenção CMR.
Assim sendo, temos de concluir, tal como fez a sentença recorrida, que à data de entrada da acção em juízo, por ter decorrido mais de um ano, os direitos da autora referentes à reclamação de indemnização à cargo da 1.ª ré, pelos prejuízos decorrentes do transporte da máquina, encontravam-se prescritos.
Pelo exposto, improcedem na totalidade as conclusões das alegações da apelante e fica prejudicada a apreciação da matéria relativa à ampliação do âmbito do recurso, nos termos requeridos pela apelada.
Dado o vencimento, a apelante B………., suportará as custas devidas (artigo 446.º, n.º 1 e 2 do CPC).

III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acorda-se em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante.

Porto, 05 de Janeiro de 2009
Maria Adelaide de Jesus Domingos
Baltazar Marques Peixoto
José Augusto Fernandes do Vale

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[1] A Convenção CMR foi assinada em Genebra em 19.05.1956, e aprovada, para adesão, pelo Decreto-Lei n.º 46 235, de 18.03.1965, e foi modificada pelo Protocolo de Genebra de 05.07.1978, aprovada, para adesão, pelo Decreto-Lei n.º 28/88, de 06.09.
[2] Ac. RP, de 29.05.2003, processo n.º 0331990, in www.dgsi.pt.
[3] Ac. STJ, de 25.02.1997, CJ, ano V, 1997, tomo II, página 21. No mesmo sentido, Ac. STJ, de 14.01.1993, CJ, ano I, 1993, tomo I, página 44 e Ac. STJ, de 01.06.2004, processo n.º 04A1767, in www.dgsi.pt.
[4] Ac. RP, de 29.05.2008, processo n.º 0830327, in www.dgsi.pt
[5] Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, Almedina, 1982, págs 484 e seguintes.
[6] Ac. STJ, de 06.07.2006, processo n.º 06B1679, in www.dgsi.pt
[7] Neste sentido, Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, Almedina, 7.ª edição, 1998, páginas 470, 480 e 507.
[8] Aníbal de Castro, “A Caducidade na Doutrina, na Lei e na Jurisprudência”, 3.ª edição, Livraria Petrony, 1894, página 43.
[9] Menezes Cordeiro,“Tratado de Direito Civil Português”, I, Parte Geral, Tomo IV, Almedina, 2007, pág. 162.