Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
177/15.0GAVLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ÉLIA SÃO PEDRO
Descritores: CRIME DE DIFAMAÇÃO
PALAVRAS
ROUBAR
Nº do Documento: RP20171026177/15.0GAVLG.P1
Data do Acordão: 10/26/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 53/2017, FLS.109-115)
Área Temática: .
Sumário: I - A ofensa da honra ou consideração, através de palavras, depende da conotação que o contexto lhes confere.
II – Sendo usada a expressão “roubar” esta deve ser interpretada no contexto em que foi proferida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso Penal 177/15.0GVLG.P1
Acordam na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
1.1. B…, assistente devidamente identificado nos autos acima referenciados, deduziu acusação particular contra C…, requerendo julgamento em processo comum e perante Tribunal Singular, imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de difamação, previsto e punido pelo artigo 180º, n.º 1 do Código Penal.
O Ministério Público não acompanhou a acusação particular, nos termos e com os argumentos aduzidos a fls. 86/87 dos autos.
Realizada a audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença com a seguinte decisão (transcrição):
Pelo exposto, decido:
A)- Julgar o arguido B… autor material e na forma consumada de um crime de difamação, previsto e punido pelo artigo 180°, n.º 1 do Código Penal e, consequentemente, condenar o mesmo na pena de 70 (setenta) dias de multa à taxa diária de €7.00 (cinco euros), perfazendo o montante global de €490.00 (quatrocentos e noventa euros).
B)- Julgar parcialmente procedente o pedido cível deduzido pelo assistente/demandante quanto aos danos não patrimoniais sofridos, condenando-se o demandado a pagar ao demandante a quantia de €300.00 (trezentos euros), quantia a que acrescerão juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a notificação para contestar e vincendos até efectivo e integral pagamento.
C)- Condenar o arguido, no tocante à parte crime, nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC.
Não há lugar a custas cíveis- artigo 4°, n." 1, al. n) do Regulamento das Custas Processuais.
1.2. Inconformado com a condenação, o arguido recorreu para este Tribunal da Relação, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
I. O Tribunal a quo incorreu em erro no julgamento da matéria de facto, na medida em que, face à prova produzida nos autos, devia ter julgado não provados os factos vertidos nos pontos 2º e 5º da matéria de facto julgada provada.
II. O Tribunal a quo fundamenta a sua decisão de facto, quanto ao facto vertido no ponto 2º da matéria julgada provada, no depoimento das testemunhas D… e E…, respectivamente esposa e filho do assistente, ambos coligidos com as declarações do assistente e do arguido.
III. em momento algum dos respectivos depoimentos, qualquer destas testemunhas relatou a factualidade vertida no ponto 2º da matéria de facto julgada provada.
IV. Quanto à descrição dos factos em causa nos autos depôs a testemunha D…, em depoimento gravado, tendo a gravação início às 22.03.2017 – 14:39:56 e fim: 22.03.2017 – 14:47:27, ao minuto 01:47 a 02:52.
V. A testemunha E…, depôs, quanto à descrição dos mesmos factos, em depoimento gravado, com início 22.03.2017 – 14:47:29 e fim 22.03.2017 – 14:52:10, aos minutos 01:18 a 02:21.
VI. Da prova produzida nos autos e quanto ao teor do ponto 2º da matéria de facto julgada provada, apenas se retira que «A esposa do assistente, declinou tal imputação de tais factos, ao que o arguido reiterou que tinha provas».
VII. Mas já não que o arguido tenha dito ter visto o assistente a perpetrar os factos e, ainda menos, que o arguido tenha concretizado os bens retirados e a hora e data em que os factos teriam ocorrido.
VIII. Deve assim o ponto 2º da matéria de facto julgada provada ser reapreciado e reformulado, devendo passar a constar da matéria de facto julgada provada apenas que «A esposa do assistente, declinou tal imputação de tais factos, ao que o arguido reiterou que tinha provas», julgando-se não provado o restante teor do facto em causa.
IX. No que se refere ao ponto 5º da matéria de facto julgada provada, o Tribunal a quo fundamenta a sua decisão de facto, no depoimento das testemunhas D… e E…, respectivamente esposa e filho do assistente, ambos coligidos com as declarações do assistente e do arguido.
X. A propósito, afirma ainda o Tribunal a quo que «coligidos os elementos de prova descritos e lidos os mesmos à luz das regras de experiência comum e da normalidade, é legítimo concluir que o arguido, ao actuar da forma descrita, representou como possível que a sua conduta fosse ofensiva da honra e consideração do assistente, conformando-se com tal realização». Até porque, ainda segundo o Tribunal a quo «na verdade, a expressão utilizada, recorrendo ao uso do verbo “roubar”, traz consigo uma carga ofensiva e estigmatizante, o que o arguido não pode desconhecer, pelo que a representação dessa ofensa é validade por tais regras, enquanto factos interno que se extrai dos factos objectivos provados».
XI. O simples facto de alguém afirmar, perante terceiro, que outrem roubou não é suficiente, de per se, para que se conclua estar preenchido o tipo de ilícito do crime de difamação, na sua vertente subjectiva, não obstante o possa ser para o preenchimento do mesmo tipo de ilícito na sua vertente objectiva.
XII. Do ponto de vista do homem médio, constitui difamação a divulgação de informação ofensiva referente a terceira pessoa, se essa informação não tiver qualquer adesão à realidade.
XIII. O Arguido estava, à data dos factos, convicto de que o Assistente havia perpetrado os factos que lhe imputou. Desde logo porque assim lho haviam dito, garantindo-lhe existirem testemunhas dos mesmos.
XIV. A leitura da sentença proferida no processo n.º 179/15.7GAVLG, da Instância Local Criminal de Valongo, Juiz 1 (cuja certidão se encontra junta a fls. 73/77), é, neste ponto, esclarecedora: existiam, afinal, as tais testemunhas referidas pelo arguido, seja o sucateiro a quem teriam sido vendidos os bens, seja a arrendatária (vulgo “caseira”) da casa vizinha do local onde ocorreu o furto.
XV. O certo é que os indícios recolhidos em sede de inquérito foram suficientes para que o Ministério Público deduzisse acusação pública.
XVI. O certo é que até o Tribunal a quo teve de concluir «em face do contexto descrito e apurado, não se poder concluir que a conduta do arguido é conduzida pela intenção primeira ou necessária de produzir a aludida ofensa na honra e consideração do assistente».
XVII. Pelo contrário, concluiu o Tribunal a quo que «de facto, pela imputação descrita veio a correr processo-crime, que deu lugar à acusação pública por crime, também ele, de natureza pública e o arguido sustenta a imputação em causa numa pretensa informação que lhe havia sido transmitida, pelo que é eivado de tal informação que dirige a expressão descrita, tendo o Tribunal ficado convicto que a intenção primeira do arguido era ver a situação descrita resolvida sem recurso a meios judiciais».
XVIII. Em momento algum, no desenvolvimento do seu processo decisório e volitivo interno, o arguido realizou que, com tal interpelação para resolução extrajudicial do litígio, poderia estar a ofender a honra e consideração do assistente, assim realizando um facto que preenche um crime.
XIX. Inexiste, assim, prova que permita concluir nos termos do ponto 5º dos factos julgados provados, que devia assim ter sido julgado não provado.
XX. O circunstancialismo do caso em apreço, aliado à circunstância de o assistente ter vindo a ser publicamente acusado e julgado pelos factos que lhe foram imputados pelo arguido, acusação que se fundou precisamente nos testemunhos que o arguido cria serem prova de tais factos, e ao facto de ter ficado demonstrado que a intenção primária era solucionar a questão extrajudicialmente e não injuriar ou difamar o assistente, depõe no sentido de não ser doloso o preenchimento do tipo objectivo de ilícito.
XXI. Os elementos constantes dos autos, permitem concluir que o agente agiu com negligência inconsciente, uma vez que não chegou sequer a representar a possibilidade de realização do facto ilícito, dada a convicção de culpa do assistente que o animava e o propósito e intenção de solucionar a questão sem necessidade de recorrer a tribunais, o que determinava a interpelação do assistente para o efeito.
XXII. O arguido estava convicto de que o assistente era culpado dos factos que lhe imputou e de que tinha provas suficientes disso mesmo. Da mesma forma, o arguido estava convicto de que, nessas circunstâncias, a interpelação do assistente para a reparação dos danos, para cuja finalidade era necessário imputar-lhe os factos, sempre seria lícita, não preenchendo qualquer tipo legal de crime.
XXIII. Donde se conclui que o agente se encontrava, pelo menos, em erro sobre as circunstâncias de facto, designadamente sobre aquelas que cria serem excludentes da ilicitude da imputação, o que, nos termos do artigo 16.º do CP exclui o dolo.
XXIV. O crime de difamação é um crime doloso, pelo que estão arredadas do seu âmbito as condutas negligentes.
XXV. Tendo sido a conduta do agente levada a cabo a título negligente, não pode o mesmo ser condenado pelo crime por que foi julgado.
XXVI. In casu, verifica-se, ainda, a causa de exclusão da punibilidade prevista no art.º 180, n.º 2 do CP, o que não foi considerado pelo Tribunal a quo.
XXVII. Conforme decorre da sentença recorrida, o arguido só fez a imputação no intuito único de procurar a resolução extrajudicial da questão, não tendo sido sua intenção ofender a honra do assistente, pelo que é legítimo o interesse que este visava realizar.
XXVIII. Da sentença recorrida decorre, ainda, que, pelos factos que consubstanciam a imputação efectuada pelo arguido, foi o assistente publicamente acusado e julgado, não obstante haja sido absolvido.
XXIX. Se havia motivos suficientemente sérios para justificarem a dedução de acusação pública contra o assistente, por maioria de razão os mesmos motivos têm de ser considerados suficientemente sérios para se considerar que, em boa fé, o arguido reputou verdadeira a imputação que fez, à data em que a fez.
XXX. Termos em que se encontram preenchidos os pressupostos da não punibilidade da conduta do arguido.
1.3. Respondeu o MP na 1ª instância, pugnando pela improcedência do recurso e formulando, por seu turno, as seguintes conclusões (transcrição):
I. O crime de difamação vem previsto e punido no artigo 180º do Código penal, onde se dispõe: “1. Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra e consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido…
II. A formulação de juízo desonrosos (fatos desonroso) poderá não ser ilícita quando verdadeira, contudo se atendermos ao que foi referido pelo arguido verificamos que o mesmo negou ter proferido as expressões que lhe são imputadas, tão só, que se deslocado a casa do assistente e perguntado pelo mesmo à esposa.
III. Ora, negando o arguido que imputou determinados factos ao não podemos de qualquer forma referir que a conduta do arguido está acoberta do disposto no artigo 31º do Código Penal.
IV. Aliás, não resultaram provados quaisquer factos concretos que sustentem uma adequação material com os juízos de desvalor emitidos pelo arguido ou que, com base nos mesmos o arguido tivesse fundamento sério para, em boa fé, os reputar como verdadeiros.
V. Estando em causa juízos de apreciação e valoração, não se aplica a causa de justificação constante da previsão do art.º 180º, nº 2, do Código Penal, a qual só se aplica à imputação de factos e não a juízos de valor desonrosos.
VI. Daí que, a conduta do arguido ultrapassou, sem dúvida, o juízo razoável e socialmente adequado de valoração crítica.
VII. O arguido, ao actuar da forma descrita, representou como possível que a sua conduta fosse ofensiva da honra e consideração do assistente, conformando-se com tal realização.
VIII. A decisão do julgador da primeira instância, devidamente fundamentada, é uma decisão plausível segundo as regras da experiência, pelo que tal decisão não merece qualquer reparo, sendo inatacável, uma vez que a mesma foi proferida segundo a livre convicção do julgador, tendo por base a imediação da prova;
IX. A prova produzida na Audiência de Julgamento é mais do que suficiente para permitir a condenação do arguido pelo crime pelo qual veio a ser condenado.
X. Entre a fundamentação da matéria de facto e o teor da factualidade dada como provada e como não provada há completa compatibilidade, o que nos permite concluir que o tribunal “a quo” apreciou correctamente a prova feita em audiência de discussão e julgamento.
XI. Fazendo a ponderação global das provas produzidas e valoradas pelo tribunal “a quo”, forçoso é concluir que o tribunal julgou correctamente a matéria de facto, e, uma vez que se verificam todos os elementos típicos do crime pelo que o arguido foi condenado, nenhuma censura merece a decisão recorrida, devendo a mesma ser confirmada;
XII. Analisando a sentença verifica-se que o tribunal “a quo” enumerou os factos provados e não provados, indicou e examinou criticamente as provas, expôs os motivos de facto e de direito que serviram para formar a convicção do tribunal.
XIII. Dir-se-á, pois, que se nos afigura que o recurso do arguido não merece provimento em qualquer das suas vertentes, pelo que deverá manter-se a douta sentença recorrida.
XIV. Face aos factos dados como provados na sentença, dúvidas não existem de que o arguido praticou os aludidos ilícitos pelo qual foi condenado.
XV. A sentença recorrida não viola quaisquer normas legais.
1.4. Nesta Relação, o Ex.º Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, concordando com a resposta do MP no Tribunal “a quo”.
1.5. Deu-se cumprimento ao disposto no art. 417º, 2 do CPP.
1.6. Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.
2. Fundamentação
2.1. Matéria de facto
A sentença recorrida deu como assente a seguinte matéria de facto:
Factos Provados
Da discussão da causa resultaram provados, com interesse para a decisão da causa, os seguintes factos:
1°- No dia 16 de Junho de 2015, cerca das 15 horas, o arguido dirigiu-se à casa do assistente, sita na Rua …, n.º .., …, freguesia de …, Valongo e na ausência do assistente, dirigiu-se à sua esposa, proferindo a seguinte expressão "O B… que vá pôr tudo o que roubou na casa de banho",
2°- A esposa do assistente, declinou tal imputação de tais factos, ao que o arguido reiterou que tinha provas e que teria visto o seu marido, assistente nos autos, a retirar coisas da casa de banho contígua a uma casa propriedade sua, designadamente o cilindro, a torneira e outros objectos, entre as 22 e as 23 horas do dia 13 de Junho.
3°- A mulher do assistente replicou que haviam vivido na habitação durante décadas, que nunca nada tinham desaparecido e bem assim que nem ela nem o marido jamais Já tinham voltado.
4°- Contra o aqui assistente, pela prática do crime de furto qualificado dos bens elencados em 1°, correu o processo n.º 179/15 .7GA VLG neste Juízo Local Criminal 11, Instância de Valongo, Comarca do Porto, tendo o assistente vindo a ser absolvido da prática do mesmo.
5°- O arguido, ao actuar da forma descrita em 1 o e 2°, actuou representando como consequência possível da sua conduta a ofensa do assistente na sua honra e consideração e conformou-se com tal realização, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
6°- Como consequência da conduta ao arguido, o assistente sentiu-se envergonhado, perturbado e humilhado.
7°- O assistente sentiu angústia e tristeza com a instauração do processo crime e com a sujeição a julgamento.
8°- O arguido é motorista de profissão, aufere €600.00 mensais, é casado, a esposa aufere o salário mínimo nacional, vivem em casa própria, tem 3 filhos, maiores, o 4° ano de escolaridade e não tem antecedentes criminais registados.
Factos Não Provados
Com interesse para a decisão da causa, não se lograram provar quaisquer outros factos que excedam ou estejam em contradição com a factual idade provada, não se tendo provado que:
A-) O arguido, ao actuar da forma descrita em 1 ° e 2°, actuou de forma deliberada, livre e consciente, querendo ofender a honra e consideração do assistente.
B-) O arguido, ao actual' da forma descrita em 10 e 2°, representou como consequência necessária da sua conduta a ofensa da honra e consideração do assistente.
Motivação da Matéria de Facto
Provada
O Tribunal fundou a sua convicção na análise crítica de todos os meios de prova carreados para a audiência de julgamento, à luz do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127° do Código de Processo Penal, entendido como a "valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos" e à margem de uma qualquer "operação puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável"- ln Código de Processo Penal Anotado, Comentado, José António Henriques dos Santos Cabral, Almedina, 2014, pág. 462.
Cotejou e coligiu o Tribunal: - as declarações do arguido; - as declarações do assistente B…; - o depoimento da testemunha B… e E…; - certidão da sentença proferida no processo n.º 179/] 5.7GAVLG deste Juízo Local Criminal, a fls, 73 a 77 dos autos - certificado de registo criminal a fls. 99;
Concretizando:
Quanto aos Factos Provados:
-em 1º a 5º, foi determinante o depoimento da testemunha D… e E…, coligido com as declarações do assistente e do arguido.
Vejamos.
A testemunha D… descreveu, de forma credível, ao Tribunal a ida do arguido a sua casa, perguntando pelo assistente, sendo que, informado que este não estaria, proferiu a expressão descrita, reiterando que tinha elementos que o faziam crer naquela imputação, aludindo a uma pretensa testemunha do alegado furto.
Tais factos são secundados pelo depoimento da testemunha E…, filho do assistente, que se encontrava na residência junto à sua mãe que, como tal, os presenciou, tendo sido este quem foi, a pedido desta, chamar o pai ao estabelecimento comercial de café a fim de lhe relatar o sucedido.
O assistente, não tendo presenciado os factos, narrou ao Tribunal que, em momento subsequente aos mesmos, foi chamado pelo filho para ir a casa, tendo a assistente lhe reproduzido as expressões proferidas pelo arguido.
O arguido, pese embora negando a prática dos factos, negando que tivesse proferido a expressão em causa, reconheceu que se dirigiu a casa do assistente, sendo que este não se encontrava na mesma, tendo sido atendido pela esposa (e confirmando a presença do filho menor do assistente).
Sem embargo de ter referido que apenas questionou a mulher do assistente sobre se este estaria em casa e, informado que não estava, se retirou, refere também que a sua intenção era interpelar o assistente sobre o alegado furto das peças de casa de banho, por ter sido informado que o assistente teria vendido umas peças num sucateiro.
Refere, ainda, de forma espontânea, que a mulher do assistente lhe alude ao facto de "não saber de nada", sendo que, instado a esclarecer tal afirmação e em que contexto a mesma foi dita, não logrou explicar ao Tribunal a mesma.
Ora, coligidos os elementos de prova descritos e lidos os mesmos à luz das regras da experiência comum e da normalidade, é legítimo concluir que o arguido, ao actuar da forma descrita, representou como possível que a sua conduta fosse ofensiva da honra e consideração do assistente, conformando-se com tal realização.
Na verdade, a expressão utilizada, recorrendo ao uso do verbo "roubar", traz consigo uma carga ofensiva e estigmatizante, o que o arguido não pode desconhecer, pelo que a representação dessa ofensa é validada por tais regras, enquanto factor interno que se extrai dos factos objectivos provados.
Já quanto aos factos descritos em 6° e 7°, atendeu o Tribunal igualmente às declarações do assistente e aos depoimentos das testemunhas D… e E…, que, pelas relações familiares que com ele mantêm, puderam testemunhar o seu estado de espírito.
Por fim, as condições pessoais, sociais e económicas do arguido foram chanceladas pelas suas declarações, não merecedoras de qualquer censura nesta parte e quanto à ausência de antecedentes criminais, foi considerado o teor do certificado de registo criminal de fls. 99 dos autos.
Quanto aos Factos Não Provados:
Resultaram os mesmos de, em face do contexto descrito e apurado, não se poder concluir que a conduta do arguido é conduzida pela intenção primeira ou necessária de produzir a aludida ofensa na honra e consideração do assistente.
De facto, pela imputação descrita veio a correr processo crime, que deu lugar à dedução de acusação pública por crime, também ele, de natureza pública e o arguido sustenta a imputação em causa numa pretensa informação que lhe havia sido transmitida, pelo que é eivado de tal informação que dirige a expressão descrita, tendo o Tribunal ficado convicto que a a intenção primeira do arguido era ver a situação descrita resolvida sem recurso a meios judiciais, razão pela qual não foi considerado como provado o descrito em A) e B).
2.2. Matéria de Direito
O arguido insurge-se contra a decisão recorrida – que o condenou como autor material e na forma consumada de um crime de difamação, previsto e punido pelo artigo 180°, n.º 1 do Código Penal - por entender que o tribunal a quo deveria ter julgado não provados os factos constantes dos pontos 2º e 5º.
A conduta ilícita do arguido consistiu no facto de, no dia 16 de Junho de 2015, cerca das 15 horas, ter-se dirigido à casa do assistente e, na ausência deste, dirigiu-se à mulher do assistente, proferindo a seguinte expressão "O B… que vá pôr tudo o que roubou na casa de banho" (facto provado 1º).
No ponto 2º, deu-se como provado que “A esposa do assistente declinou tal imputação de tais factos, ao que o arguido reiterou que tinha provas e que teria visto o seu marido, assistente nos autos, a retirar coisas da casa de banho contígua a uma casa propriedade sua, designadamente o cilindro, a torneira e outros objectos, entre as 22 e as 23 horas do dia 13 de Junho.”
Na sua impugnação, sustenta o arguido que apenas se poderia considerar provado que “a esposa do assistente declinou tal imputação de tais factos, ao que o arguido reiterou que tinha provas”, mas já não se poderia ter dado como provado que o arguido disse ter visto o assistente a perpetrar os factos, concretizando os bens retirados (cilindro, torneira e outros) e as horas a que os factos terão ocorrido (entre as 22 e 23 h de 13.06)).
Justifica a sua alegação dizendo que nenhuma das testemunhas afirmou em audiência de discussão e julgamento que o arguido houvesse dito ter visto o assistente (marido da testemunha) a retirar coisas da casa de banho contígua a uma casa propriedade sua e, muito menos, tenha referido expressamente que o assistente retirou “designadamente o cilindro a torneira e outros objectos.”
O arguido tem alguma razão.
Os depoimentos que transcreve no corpo da motivação do recurso mostram-nos que aquilo que o arguido disse foi que havia uma pessoa que tinha visto o assistente com os objectos furtados e não que ele tinha visto. De resto, na fundamentação da matéria de facto, ao descrever o depoimento da testemunha D…, o julgador refere o mesmo: “ (…) reiterando que tinha elementos que o faziam crer naquela imputação, aludindo a uma pretensa testemunha do alegado furto” (fls. 141). Tal facto está em conformidade com o que o arguido admite ter ocorrido e com a própria motivação de facto da sentença, referindo que o arguido disse ser sua intenção “interpelar o assistente sobre o alegado furto das peças de casa de banho, por ter sido informado que o assistente teria vendido umas peças num sucateiro”.
Assim, da prova produzida em audiência de discussão e julgamento não decorre exactamente o que se deu como provado. O que resulta do depoimento da mulher do assistente é tão só que esta, ao questionar o arguido sobre a imputação do furto ao seu marido, ele lhe respondeu: “eu sei, eu tenho uma pessoa que viu o B… sair da casa de banho com o cilindro às costas e o resto do material”.
Impõe-se, deste modo, alterar o facto dado como provado no ponto 2, o qual passará a ter a seguinte redacção:
“2. “A esposa do assistente declinou tal imputação de tais factos, ao que o arguido reiterou que tinha provas e, quando ela lhe perguntou o motivo por que imputava o furto ao seu marido, o arguido respondeu: eu sei, eu tenho uma pessoa que viu o B… sair da casa de banho com o cilindro às costas e o resto do material”.
No ponto 5, deu-se como assente que o arguido agiu com dolo:
O arguido, ao actuar da forma descrita em 1 o e 2°, actuou representando como consequência possível da sua conduta a ofensa do assistente na sua honra e consideração e conformou-se com tal realização, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei”.
O arguido impugna este facto, por entender que o mesmo não está provado. As circunstâncias que rodearam os factos, tendo o assistente sido formalmente acusado do furto do material ora em causa, acusação que se fundou nos testemunhos que o arguido acreditava serem prova desses factos, e a circunstância de ter ficado provado que a intenção do arguido era solucionar a questão extrajudicialmente e não injuriar, levam a que se entenda que não agiu com dolo. E, dado que no tipo de ilícito em causa a conduta negligente não é punida, deve o mesmo ser absolvido do crime de difamação.
A decisão recorrida fundamentou a prova deste facto nos termos seguintes: “ (…) a expressão utilizada, recorrendo ao uso do verbo “roubar”, traz consigo uma carga ofensiva e estigmatizante, o que o arguido não pode desconhecer, pelo que a representação dessa ofensa é validada por tais regras, enquanto factor interno que se extrai dos factos objectivamente provados”.
A nosso ver, não é bem assim.
A expressão “roubar” deve ser interpretada no contexto em que foi proferida. A ofensa da honra ou consideração, através de palavras, depende da conotação que o contexto lhes confere. No caso em apreço, o arguido estava convencido – por ter sido informado por outrem – de que o assistente “roubara” material de uma casa de banho sua. Nessa convicção, dirigiu-se à casa do assistente e disse à mulher deste que “O B… que vá por tudo o que “roubou” na casa de banho” e, quando questionado sobre o uso dessa expressão, disse haver uma testemunha que viu o assistente com o cilindro às costas e o resto do material na mão.
A indagação do elemento subjectivo – representação de que estava a cometer um crime, nestas condições, não existe. O arguido estava convencido de que as informações eram verdadeiras e, por esse motivo, se dirigiu à residência do assistente. Estava portanto convencido de que o assistente tinha roubado o material da casa de banho, ou seja, estava convencido da verdade da imputação. Pelos vistos, estava mal convencido, pois em Tribunal não se provou aquele furto, mas estava tão convencido disso como estava convencido o MP, quando acusou o assistente daquele furto. Aliás, por razões muito semelhantes, o MP junto do tribunal à quo não acompanhou a acusação particular contra o arguido, sublinhado concretamente o contexto em que ocorreram os factos: “Na verdade (refere o MP a fls. 87), nada nos autos nos permite concluir pela consciência ou intenção do arguido de ofender a honra e consideração do assistente”.
Não existem, assim, dados objectivos minimamente seguros que permitam afirmar que o arguido representou como possível a prática de um crime de difamação; Com efeito, representar como possível é agir prevendo a prática do crime: sem previsão não há dolo (nem sequer eventual). Ora, da conduta do arguido, referindo, logo que lhe perguntaram, ter provas da prática do furto, mostra-nos que o mesmo não previu que estava a difamar alguém.
Nestes termos, e pelas razões expostas, o facto dado como provado no ponto 5 considerar-se não provado.
Não se provando o dolo em qualquer uma das suas modalidades, e estando em causa o crime de difamação, p. e p. pelo art. 180º, 1 do C. Penal, verifica-se que a conduta não é punível se o agente agir com negligência – cfr. arts 180º e 13º do C. Penal: só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência e, no caso, o tipo legal de crime não prevê a punição a título de negligência. Assim, deve o arguido ser absolvido do crime por que foi condenado.
A absolvição do crime implica também, no caso, a absolvição do pedido de indemnização civil. De facto, o mesmo assentou em factos (dolo eventual do arguido) que se não provaram. Por outro lado, da matéria de facto provada também não resulta que o arguido agiu com negligência, o que seria bastante para a responsabilidade civil extracontratual, nos termos do art. 483º e 484º do CC.
Assim, dado que a prova dos elementos constitutivos da responsabilidade civil compete ao lesado (art. 342º do CC) e tendo em conta a alteração da matéria de facto acima verificada, de onde resultou não provado o facto constante do ponto 5, impõe-se a absolvição do demandado, como consequência da procedência do recurso em matéria penal (art. 403º, 3, do CPP).
3. Decisão
Face ao exposto, os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Proto acordam em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, revogar a decisão recorrida e absolver o arguido C… do crime e do pedido de indemnização civil por que foi condenado em 1ª instância.
Sem custas neste recurso, uma vez que o assistente não respondeu ao recurso - art. 515º, 1, b) do CPP.
Custas da parte criminal pelo assistente, na 1ªinstância, nos termos do art. 515º, n.º 1, al. a) do CPP, fixando a taxa de justiça em 2 UC.

Porto, 26/10/2017
Élia São Pedro
Donas Botto