Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
354/20.2PBVLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: WILLIAM THEMUDO GILMAN
Descritores: SILÊNCIO DO ARGUIDO
NEGAÇÃO DOS FACTOS
VERSÃO DIVERSA
INOCUIDADE PARA A PENA
Nº do Documento: RP20220713354/20.2PBVLG.P1
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO (CRIMINAL)
Área Temática: .
Sumário: I - Considerar-se como fator de medida de pena que depõe contra o arguido, nos termos do artigo 71º, n.º 1 e 2, e) do Código Penal, o facto de este se ter remetido ao silêncio, não ter confessado, ter negado os factos ou apresentado versão diversa da que veio a resultar provada, constitui uma compressão injustificada da liberdade de escolha do modo de defesa e, por aí, uma clara violação do direito de defesa do arguido e do processo justo e equitativo, consagrados nos artigos 61º do Código de Processo Penal e 32º, n.º 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa e 48º, n.º 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
II - Com efeito, se qualquer uma destas circunstâncias de facto fosse suscetível de como fator de medida de pena, enquanto conduta posterior ao facto, ser valorada contra o arguido, este poderia ficar não só compelido a falar, como a confessar os factos imputados ou, então, se apresentasse uma versão diferente dos factos imputados, a tentar acertar na versão dos factos que o Tribunal viesse a dar como provada, sempre sob pena de o seu constitucionalmente garantido comportamento processual poder vir a ser valorado contra si em sede de determinação da pena.
III - Assim, o facto de o arguido não ter confessado os factos, negando a maioria ou apresentando versão diversa da que resultou provada, constitui circunstância inócua para a medida da pena.
(da responsabilidade do Relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 354/20.2PBVLG.P1
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Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:

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1-RELATÓRIO
No processo comum (coletivo) nº 354/20.2PBVLG, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Criminal do Porto - Juiz 5, após julgamento, em 8.03.2022, foi proferido acórdão com o seguinte dispositivo:
Em face do exposto, acordam as Juízas que compõem este Tribunal Colectivo em julgar parcialmente procedente a acusação pública, por parcialmente provada, e, em consequência:
a) Absolvem o arguido AA da prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica agravado, na pessoa da ofendida BB, p. e p. pelo artigo 152.º, nº1, al. d), e nº2, al. a), ambos do Código Penal;
b) Absolvem o arguido AA da prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica agravado, na pessoa do ofendido CC, p. e p. pelo artigo 152.º, nº1, al. d), e nº2, al. a), ambos do Código Penal;
c) Condenam o arguido AA pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica agravado, na pessoa da assistente DD, p. e p. pelo artigo 152.º, nº1, al. b), e nº2, al. a), ambos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão;
d) Condenam o arguido AA pela prática, em autoria material (por convolação de um crime de violência doméstica agravado de que o arguido vinha acusado), de um crime de violência doméstica simples, na pessoa da assistente DD, p. e p. pelo artigo 152.º, nº1, al. b) do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão;
e) Em cúmulo jurídico das penas parcelares acima fixadas em c) e d), condenam o arguido AA na pena única de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão, cuja execução se suspende por igual período com regime de prova;
f) Aplicam ao arguido AA as penas acessórias de proibição de contacto com a assistente DD pelo período de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses, proibição essa que inclui o afastamento do arguido da residência e/ou do local de trabalho da assistente, sendo o seu cumprimento fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância, bem como de obrigação de frequentar programas específicos de prevenção de violência doméstica.
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Nos termos do disposto no artigo 82º-A do CPP e 21º, nºs 1 e 2 da Lei nº112/2009, de 16/09, arbitram à assistente DD a quantia de €3.200,00 (três mil e duzentos euros) a título de reparação pelos prejuízos sofridos.
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Custas criminais pelo arguido, nos termos do artigo 513º do CPP, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC e suportando os encargos devidos (artigo 514º do CPP).
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(…)
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Não se conformando com esta decisão, o arguido recorreu para este Tribunal da Relação, concluindo na sua motivação o seguinte (transcrição):
«(Do incorrecto julgamento da matéria de facto)
1. O recorrente considera que foram incorrectamente julgados os pontos 3, 4, 5, 7, 9, 11, 12, 13, 15, 21 e 23 da matéria de facto considerada provada pelo tribunal.
2. No que respeita ao ponto 3 da matéria de facto, da prova produzida em julgamento resultou que o arguido usava as referidas expressões, mas em contexto de discussão entre o casal.
3. É o que resulta das declarações do arguido, na passagem de 6:30 a 07:20 e de 11:40 a 12:30, na sessão de 21.02.2022 (com início às 15:00:13 e fim às 16:01:43).
4. A assistente também refere que o arguido só ficava mais agressivo quando não tinha dinheiro –passagem do seu depoimento, de 12:40 a 14:00, na sessão de 21.02.2022 (com início às 16:02:38 e fim às 17:09:58).
5. As testemunhas BB, filha do casal, e EE, mãe da assistente, também referem que só ouviam as referidas expressões em contexto de discussão – conforme resulta das declarações para memória futura da testemunha BB, concretamente na passagem de 07:20 a 07:49, em 17.12.2020 (com início às 12:40:00 e fim às 12:56:00); e do depoimento da testemunha EE, na passagem de 5:20 a 6:00, na sessão de 24.02.2022 (com início às 11:11:19 e fim às 11:36:52).
6. Assim, o tribunal a quo apenas deveria ter considerado provado que «Em contexto de discussão entre o casal, o arguido por vezes apelidava a ofendida de “estúpida”, “burra”, “inútil” e “incompetente”.»
7. No que respeita ao ponto 4 da matéria de facto considerada provada, o recorrente discorda do período temporal (entre 2006 e 2016) em que o tribunal considerou provado terem existido agressões.
8. A assistente refere que esses comportamentos começaram na gravidez da sua filha, em 2006 – conforme resulta do depoimento da assistente, na passagem de 15:00 a 16:00, na sessão de 21.02.2022 (com início às 16:02:38 e fim às 17:09:58).
9. Quando perguntada sobre exemplos concretos, a última agressão em que a assistente consegue de algum modo indicar uma data (embora não totalmente apurada), terá ocorrido quando a mesma estava a dar de mamar ao seu filho mais novo (que nasceu em 2011) – cf. depoimento da assistente, na passagem de 16:35 a 17:08, na sessão de 21.02.2022 (com início às 16:02:38 e fim às 17:09:58).
10. Este período temporal coincide com declarações do arguido, que referiu que as discussões mais acesas entre o casal terão ocorrido entre 2008 e 2011 (embora tenha negado qualquer agressão) – conforme resulta das declarações do arguido, na passagem de 11:40 a 12:30, na sessão de 21.02.2022 (com início às 15:00:13 e fim às 16:01:43).
11. A assistente não refere qualquer data concreta que permita concluir que as agressões ocorreram até 2016, como o tribunal considerou.
12. Assim, o tribunal apenas poderia ter considerado provado que “Em datas não concretamente apuradas, situadas entre 2006 (na gravidez da filha) e 2011, o arguido desferiu murros na face e cabeça da ofendida, desferindo lhe pontapés e apertando-lhe o pescoço.”
13. No que respeita ao ponto 5, o mesmo deveria ter sido considerado não provado.
14. A própria assistente não confirmou tais situações, referindo expressamente que não sabia se as mesmas tinham ocorrido em restaurantes – conforme resulta claramente do seu depoimento, na passagem de 29:00 a 29:44, na sessão de 21.02.2022 (com início às 16:02:38 e fim às 17:09:58).
15. No que respeita ao ponto 7, o recorrente entende que a redacção do mesmo deveria ter sido complementada e esclarecida pelo tribunal.
16. Tendo em consideração o que se disse em relação aos pontos 3 e 4, o ponto 7 da matéria de facto deveria ter a seguinte redacção: “As discussões entre o arguido e a assistente cessaram no ano de 2016, quando o arguido se mudou para o Brasil.”
17. No que respeita ao ponto 9 da matéria de facto provada, o recorrente entende que o mesmo deveria ter sido considerado não provado.
18. A expressão “passou a perseguir a DD” não se trata de um facto, mas sim de uma conclusão.
19. A única circunstância concreta em que se fala de uma eventual perseguição na via pública é quando a assistente relata os factos ocorridos no dia 6 de Julho de 2020 – facto esse que é objecto de individualização nos pontos 12 e 13 da matéria de facto.
20. Uma vez que a única situação que poderia configurar uma perseguição já se encontra descrita nos pontos 12 e 13, esta parte do ponto 9 não deveria ter sido considerada provada.
21. Por outro lado, no que concerne aos “sucessivos contactos telefónicos para o local de trabalho” da assistente, também não existe prova de que tal tivesse ocorrido.
22. A única testemunha que depôs sobre este facto foi a testemunha FF, que referiu apenas UM contacto do arguido para o local de trabalho da assistente – conforme resulta do seu depoimento, na passagem de 11:30 a 12:08, na sessão de 24.02.2022 (com início às 11:36:54 e fim às 11:54:54).
23. A própria assistente refere contactos do arguido para o seu telemóvel, mas não refere quaisquer contactos para o local de trabalho - conforme resulta do seu depoimento, na passagem de 47:30 a 48:18, na sessão de 21.02.2022 (com início às 16:02:38 e fim às 17:09:58).
24. No que respeita ao ponto 12 da matéria de facto, o recorrente considera que não ficou provado que o mesmo tenha atravessado o carro à frente do carro da assistente, impedindo-a de circular.
25. Esta situação foi relatada em pormenor pela assistente, que referiu que o arguido tinha o carro dele na traseira da viatura da assistente – conforme resulta do depoimento da assistente, na passagem de 45:45 a 47:06, na sessão de 21.02.2022 (com início às 16:02:38 e fim às 17:09:58).
26. Assim, o facto descrito no ponto 12 deveria ter sido descrito com a seguinte redacção: Na tarde de 6 Julho de 2020 o arguido questionou a ofendida sobre o teor do depoimento que havia prestado em sede de outro inquérito e quando a DD entrou para a sua viatura para sair do local, o mesmo declarou-lhe “Vou-te dar a última chance. Tens cinco minutos. Anda para o meu carro, vamos conversar”.
27. No que respeita ao ponto 13 da matéria de facto, o deveria ter sido descrito com a seguinte redacção: De seguida, o arguido foi atrás do carro da assistente, enquanto lhe dizia, por telefone, “Anda para o meu carro. Vamos conversar. Isto vai correr mal.” – cf. resulta da mesma passagem do depoimento da assistente mencionada para o ponto 12.
28. No que respeita aos pontos 11 e 15 da matéria de facto, o recorrente considera que os mesmos carecem de esclarecimentos.
29. O arguido explicou que contactava a assistente diversas vezes, para combinar assuntos relacionados com o exercício das responsabilidades parentais dos filhos de ambos, nomeadamente as visitas – cf. passagem de 24:20 a 25:10, das suas declarações, na sessão de 21.02.2022 (com início às 15:00:13 e fim às 16:01:43).
30. O arguido via-se obrigado a insistir nas mensagens e telefonemas, pois a assistente nunca atendia nem respondia.
31. Por outro lado, o arguido explicou o contexto da mensagem descrita no ponto 15, referindo que a mesma terá sido enviada após o mesmo ter tentado falar com a assistente, junto da casa da mãe desta, para tratar de assuntos relacionados com o filho de ambos, tendo sido recebido com gritos e insultos por parte da assistente – conforme refere nas suas declarações, na passagem de 35:20 a 36:32, na sessão de 21.02.2022 (com início às 15:00:13 e fim às 16:01:43).
32. A própria assistente corrobora a versão do arguido, e confirma que a mensagem foi enviada nessa circunstância – conforme resulta do seu depoimento, na passagem de 48:20 a 49:33, na sessão de 21.02.2022 (com início às 16:02:38 e fim às 17:09:58).
33. Em face do exposto, tendo em conta a prova produzida, o ponto 15 da matéria de facto deveria ter sido sujeito aos seguintes esclarecimentos: A partir da apresentação da queixa que deu origem ao presente processo, o arguido contactou insistentemente com a ofendida, quer por chamadas telefónicas, quer através de mensagens, a fim de tratar do exercício das responsabilidades parentais dos filhos menores de ambos.
34. No que respeita ao ponto 21 da matéria de facto, e por coerência com tudo aquilo que se referiu em relação aos outros pontos, o mesmo deveria ser alterado em conformidade, por não ter ficado demonstrado que o arguido tenha tido qualquer tipo de actuação com o intuito de afetar a capacidade de reação e movimentação da arguida, de não respeitar a sua vontade, e de a destratar enquanto pessoa livre e autónoma.
35. Ao decidir como decidiu, o douto tribunal a quo violou o artigo 127.º do Código de Processo Penal.
(Da qualificação jurídica dos factos)
36. O recorrente não se pode conformar que os factos constantes dos pontos 8 a 15 da matéria de facto provada tenham sido qualificados como crime de violência doméstica.
37. No que respeita aos contactos insistentes (por telefone e mensagem) com a assistente, ficou demonstrado que os mesmos tinham por finalidade tratar de assuntos relacionados com o exercício das responsabilidades parentais dos filhos de ambos, pelo que falha desde logo o elemento subjectivo do tipo.
38. No que respeita aos factos ocorridos no dia 6 de Julho de 2020, não ficou demonstrado que tivesse havido qualquer intenção, por parte do mesmo, de infligir maus tratos psíquicos à assistente, privar a sua liberdade ou de algum modo importuná-la.
39. A expressão “isto vai correr muito mal”, por si só, não representa qualquer tipo de ameaça.
40. Em face do exposto, entende o recorrente que os factos descritos nos pontos 8 a 15 da matéria de facto provada, com as alterações e esclarecimentos acima referidos (resultantes da reapreciação da prova), não configuram qualquer crime – pelo que deveria o mesmo ter sido absolvido, nessa parte.
Sem prescindir, e caso assim não seja entendido
41. No que respeita aos factos descritos nos pontos 8 a 15 da matéria de facto provada, os mesmos, a serem crime, apenas poderiam configurar o crime de perseguição previsto no artigo 154º-A do Código Penal, e já não o crime de violência doméstica.
(Da determinação da medida da pena e da quantia fixada a título de reparação)
42. O arguido corrigiu a sua conduta e cessou as ofensas físicas em 2011, tendo continuado, por mais 5 anos, a fazer uma vida em comum com a assistente e com os filhos de ambos – circunstâncias que deveriam ter sido tidas em conta na medida da pena, em sentido favorável ao arguido.
43. Tendo em consideração que ficou demonstrado que foram proferidas em contexto de discussão, as expressões proferidas pelo arguido não revestem gravidade suficiente para serem subsumíveis ao crime de violência doméstica – circunstância que também deveria ter sido tida em conta na determinação da medida da pena.
44. Em face destas circunstâncias, encontram-se reunidas condições para uma atenuação especial da pena, ao abrigo do n.º 1 e da alínea d), do n.º 2, do artigo 72.º do Código Penal, com as consequentes alterações dos limites previstos no artigo 73.º do Código Penal.
45. A aplicação de uma pena próximo do limite mínimo legal, reduzido a 1/5 ao abrigo do artigo 73.º do Código Penal (ou seja, uma pena de 5 meses de prisão, suspensa na sua execução) já realizaria de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Sem prescindir, e caso assim não seja entendido,
46. Ainda que se entenda que as circunstâncias vindas de referir não são suficientes para fundamentar uma atenuação especial da pena, a pena aplicada, pela prática destes factos, deveria sempre situar-se próxima do limite mínimo legal, ou seja, 2 anos (suspensa na sua execução, como bem decidiu o tribunal).
47. Pelos mesmos motivos, entende o recorrente que a quantia que o arguido foi condenado a pagar à assistente deverá ser reduzida consideravelmente, em conformidade com o aqui alegado, quer no que respeita às circunstâncias do crime de violência doméstica agravado, quer no que respeita à absolvição ou alteração da qualificação jurídica do crime de violência doméstica simples.
48. Ao decidir como decidiu, o tribunal a quo violou os artigos 71.º, 72.º e 73.º do Código Penal.
Termos em que, requer a V. Exas., face a tudo o que ficou supra alegado, se dignem conceder provimento ao presente recurso, revogando a douta decisão recorrida e substituindo-a por outra que:
a) atenue especialmente a pena correspondente ao crime de violência doméstica agravada, aplicando ao arguido uma pena próxima do limite mínimo legal, reduzido a 1/5 ao abrigo do artigo 73.º do Código Penal (ou seja, uma pena de 5 meses de prisão), e suspensa na sua execução;
b) absolva o arguido do crime de violência doméstica simples, considerando-se que os factos que estiveram na origem do mesmo não configuram qualquer crime;
Sem prescindir e caso assim não seja entendido;
c) altere a qualificação jurídica dos factos que estiveram na origem do crime de violência doméstica simples, convertendo-os num crime de perseguição, previsto no artigo 154º-A do Código Penal, e já não o crime de violência doméstica, com aplicação de uma pena próxima do mínimo legal da moldura respectiva;
Sempre sem prescindir,
d) reduza consideravelmente a quantia que o arguido foi condenado a pagar à assistente - por força das decisões acima referidas. »
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O Ministério Público, nas suas alegações de resposta, pronunciou-se pela negação de provimento ao recurso e pela manutenção da decisão recorrida.
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A Assistente, nas suas alegações de resposta, pronunciou-se pela negação de provimento ao recurso e pela manutenção da decisão recorrida.
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Nesta sede o Exmo. Procurador-geral Adjunto, no seu parecer, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP
Colhidos os vistos e indo os autos à conferência, cumpre apreciar e decidir.
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2- FUNDAMENTAÇÃO
2.1- QUESTÕES A DECIDIR
Conforme jurisprudência constante e assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
Assim, face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, são as seguintes as questões a apreciar e decidir:
1- Impugnação da matéria de facto por erro de julgamento.
2- Qualificação jurídica dos factos.
3- Determinação da medida da pena.
4- Redução da indemnização.
2.2- A DECISÃO RECORRIDA:
Tendo em conta as questões objeto do recurso, da decisão recorrida importa evidenciar o seguinte:
2.2.1- A fundamentação da matéria de facto, que é a seguinte (transcrição):
« II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
2.1. Matéria de facto provada:
Factos considerados provados constantes da acusação pública:
1 - O arguido e a ofendida DD iniciaram uma relação de intimidade, com coabitação, no ano de 2006, adotando residência comum na Travessa ..., em ....
2 - Em comum têm dois filhos menores: BB (nascida em 2007) e CC (nascido em 2011).
3 – Desde o início da coabitação o arguido passou a apelidar a ofendida de “estúpida”, “burra”, “inútil” e “incompetente”.
4 – Em datas não concretamente apuradas, situadas entre 2006 (na gravidez da filha) e 2016, o arguido desferiu murros na face e cabeça da ofendida, desferindo-lhe pontapés e apertando-lhe o pescoço.
5 – Quando em restaurantes, o arguido dizia à ofendida: “tens de fazer aquilo que te estou a dizer” e apelidava-a de “estúpida” e “parva”.
6 – Nas discussões dentro da residência comum o arguido expressava-se em tom alto, referindo por vezes: “Isto não vai ficar assim” ou “isto é uma merda”.
7 - Tais condutas do arguido cessaram no ano de 2016, quando o mesmo se mudou para o Brasil.
8 - No ano de ano de 2018 o arguido regressou definitivamente do Brasil com intenção de reatar com a ofendida, o que esta recusou.
9 – A partir de então, o arguido passou a perseguir a DD, seguindo-a na via pública e efetuando sucessivos contactos telefónicos para o local de trabalho desta.
10 - O arguido propalou para a ofendida que “se não for dele, não será de mais ninguém”.
11 - O arguido escreveu e endereçou várias mensagens de texto à ofendida e tentou insistentemente conversar com ela por telefone, mesmo sabendo não ser esta a vontade da mesma.
12 - Na tarde de 6 de Julho de 2020 o arguido questionou a ofendida sobre o teor do depoimento que havia prestado em sede de um outro Inquérito e quando a DD entrou para a sua viatura para sair do local, o mesmo atravessou o seu veículo na frente e, por telefone, declarou-lhe “tens três minutos para saíres do carro e vires ter comigo”.
13 - De seguida, o arguido efetuou o seguimento da mesma por várias artérias e, por telefone, instou-a a parar até que, junto a uns semáforos, lhe declarou diretamente: “isto vai correr tão mal!”.
14 - O arguido só cessou a perseguição à ofendida quando se apercebeu que esta se dirigia a uma Esquadra policial, em ....
15 - A partir daí, o arguido passou a contatar insistentemente com a ofendida, quer por chamadas telefónicas, quer através de mensagens, onde chegou a escrever-lhe: “Demonstras te a barraqueira e pessoa mal educada e sem formação que és lamento que convivas com os nossos filhos, foste chamar a polícia ?!? Porque ? Queres espetáculo ? Puseste te a falar alto , para que ?? Que deus acompanhe os meus filhos e a ti que não te desamparar pois tu bem precisas de um acompanhamento psiquiátrico ou de um psicólogo …”;
16 - O arguido, quando era data de visitas, exigia estar com os filhos ainda que estes tivessem obrigações escolares.
17 - Em Março de 2020 o arguido chegou a levantar a mão, fazendo crer à menor BB que a ia agredir, sem que a mesma conseguisse descortinar o que teria feito para desencadear tal reação daquele.
18 - Em data não apurada o arguido apertou com força a mão da filha.
19 - O arguido apelidava o filho (a quem assim de dirigia) de «palhaço».
20 – O arguido discutia com a ofendida na presença dos filhos.
21 - O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de molestar a ofendida no seu corpo e saúde, de afetar a respetiva capacidade de reação e movimentação, de não respeitar a sua vontade e de a destratar enquanto pessoa livre e autónoma.
22 - O arguido agiu, amiúde, no interior da residência comum, a coberto da reserva de intimidade que tal locus lhe proporcionava (e, portanto, sem risco de ser surpreendido) e num espaço que deveria servir de conforto e de segurança para a ofendida.
23 - Não desconhecendo o carácter ilícito e criminalmente censurável da sua conduta.
Das condições pessoais do arguido (relatório social):
24 - AA é proveniente de ..., ..., de agregado de origem composto pelos pais, proprietários de armazém de produtos alimentares e de confeitaria/padaria, e duas irmãs, junto de quem refere ter beneficiado de condições de conforto material e relacional.
Refere trajectória escolar continuada até aos 18 anos de idade, quando concluiu o 12º ano de escolaridade, com registo de uma retenção no 10º ano de escolaridade que reporta a mudança de estabelecimento de ensino. Apesar de descrever percurso escolar ajustado e investido, depois disso, contrariamente às suas duas irmãs, que obtiveram formação superior, optou por iniciar funções laborais como comercial ao serviço da empresa de produtos alimentares do pai, cuja condução referiu ter tido que assumir decorrido um ano, com transferência da gestão da mesma para si. Segundo afirmou, ponderou entretanto obter formação superior na área do Direito, tendo por volta dos 21 anos chegado a efectuar um dos exames de admissão na Universidade Católica do Porto, propósito a que, contudo, não deu continuidade por ter concluído pela incapacidade de conciliação com a sua actividade laboral.
No decurso da crise financeira de 2008 reporta o surgimento progressivo de dificuldades financeiras na actividade da empresa, decorrentes de obtenção de receitas inferiores aos custos observados e da falta de pagamento de clientes, em virtude do que refere ter acumulado débitos fiscais e à Segurança Social cujo montante total afirmou não saber precisar. Disse ter sido objecto do seu primeiro confronto judicial, com condenação em pena de multa, já extinta por pagamento.
À data do encerramento daquela primeira empresa, tinha já outra empresa, no ramo de transportes, que referiu ter constituído em nome individual por volta de 2007, atento o decréscimo do volume de negócios daquela, cujo exercício prosseguiu até 2013 com recurso a motoristas em regime de prestação de serviços para transporte de mercadorias diversificadas e a colaboração, não formalizada em termos contratuais, e à colaboração da sua companheira e ofendida no presente processo ao nível do desenvolvimento de tarefas administrativas.
Optou, entretanto, por ir para o Brasil, País onde tem familiares e equacionava como promissor em termos de oportunidade de negócios na área da perfumaria, tendo permanecido cerca de 5 anos em S. Paulo. Segundo afirmou, regressou no decurso do fracasso do projecto empresarial que tinha desenvolvido naquela área, o qual reporta a restrições legais e administrativas de maior exigência, comparativamente a Portugal, e após registo de confrontos judiciais relacionados com o não pagamento de rendas dos espaços comerciais cujas consequências, por ausência de bens após o encerramento da empresa, afirmou estarem prestes a ser objecto de extinção por prescrição temporal.
Estabeleceu união de facto aos 23 anos de idade com a ofendida, funcionária da empresa do seu pai, com quem teve dois filhos, actualmente com 14 e 10 anos de idade, e manteve projecto de vida conjunta durante cerca de 12 anos, com desenvolvimento de actividade empresarial comum. Separou-se da mesma no decurso da sua permanência no Brasil, observando desde então, particularmente durante o último ano, situação de conflito, relacionada com o convívio/participação na vida dos menores e com a denúncia efectuada pela mesma pelos crimes de violência doméstica que deram origem ao presente processo, encontrando-se aqueles diferendos a ser objecto de intervenção judicial em sede de processo de regulação das responsabilidades parentais.
AA reporta degradação e posterior ruptura desta relação no decurso da sua ida para o Brasil, após não concretização de projecto de fixação naquele País com a ofendida, tendo chegado a proceder à entrega judicial dos menores aos pais da companheira, como medida de salvaguarda dos mesmos, devido a divergências quanto ao estilo de vida desajustado e de gastos excessivos que afirma ter entretanto aquela assumida e que atribui ao envolvimento da mesma noutros relacionamentos afectivos e em jogos de azar, muito embora reconheça ter ele também mantido outro relacionamento afectivo durante o período que esteve no Brasil. Reporta ainda à ofendida responsabilidade pelos factos que deram origem ao processo penal supra referido, relativos a sociedade empresarial com actividade principal relacionada com a compra e venda de bens imobiliários, da qual aquela, em conjunto com outro individuo, eram gerentes de direito, tendo sido excluído da gestão da mesma na conclusão do inquérito judicial, com dedução de acusação por crime de fraude fiscal apenas relativamente ao arguido.
AA refere viver há cerca de três anos com os pais, de 72 e 71 anos de idade, reformados, em habitação pertencente aos mesmos, sita na Rua ..., ..., ..., de quem refere depender economicamente dado não desenvolver qualquer actividade laboral nem dispor de nenhuma fonte de rendimentos. Referiu não se encontrar inscrito na bolsa de emprego do Instituto de Emprego e Formação Profissional nem efectuar qualquer diligência de obtenção de um posto de trabalho, mantendo quotidiano desenvolvido normalmente fora da habitação dos pais, junto de amigos empresários, porquanto disse aguardar autorização de organismo europeu para assumir a representação comercial em Portugal de marca brasileira de medicamentos e suplementos alimentares, o que perspectivava vir a acontecer dentro de seis meses.
Estas informações foram diferentes das fornecidas pela irmã e por amigo do arguido, os quais lhe atribuíram a prossecução de actividade como comercial na área dos produtos alimentares e de higiene e de protecção pessoal, sem dispor de vínculo laboral, da qual retirava condições de autonomia financeira. A irmã, que nos referiu ignorar, à semelhança dos pais, a existência do processo atrás referido e dos motivos que deram origem ao mesmo, reportou-lhe trajectória profissional caracterizada pelo desenvolvimento de diversas actividades empresariais, frequentemente em simultâneo, em função de objectivos de expansão e alargamento, sem conhecimento de quaisquer dificuldades financeiras ou problemas judiciais associados a esses negócios. Nos contactos estabelecidos no meio de residência dos pais do arguido, a presença de AA nesta habitação, quando identificada, era percebida como intermitente, sem possibilidade de confirmação da sua permanência naquela habitação ou de identificação do modo de subsistência do mesmo.
Aquando da nova entrevista, realizada a 31.01.2022 no âmbito do presente processo, o arguido afirmou ter conhecido melhoria da sua situação financeira e laboral, dispondo agora de rendimentos mensais médios na ordem dos 800€, obtidos através da prestação de trabalho como comercial, ao abrigo de contrato de prestação de serviços efectuado em Janeiro deste ano, para duas empresas para as quais já desenvolvia anteriormente estas funções, sem dispor de qualquer vínculo ou registo de actividade formalizado, uma de comercialização de produtos congelados de padaria e pastelaria, sediada em ... mas com unidade de fabrico em Castelo de Paiva, a outra em ..., de venda de produtos alimentares e de higiene e proteção pessoal. Reafirmou manter residência junto dos pais (situação infirmada, contudo, pela mãe no contacto pessoal estabelecido a 11.02.2022 junto da residência desta que disse ignorar onde AA vive actualmente), continuando a utilizar o endereço do escritório de pessoa amiga para toda a sua documentação e recepção de correspondência em função de preocupações de proteção dos progenitores, reportando, contudo, como sendo do próprio. Referiu prosseguir diligências de procura de habitação autónoma na zona do Porto e da Maia para fixação futura com a actual namorada, de nacionalidade brasileira, residente nesse País, onde prossegue funções laborais como economista em empresa de produtos financeiros, com quem mantém relacionamento afectivo há cerca de dois anos, através de visitas mútuas e frequentes de ambos, concretizadas por deslocações alternadas entre os dois Países.
Reporta não estabelecer qualquer comunicação com a ofendida, a quem atribui pensão de alimentos para os dois descendentes comuns, correspondente a 150€ mensais, mediante transferência bancária, subsistindo situação de litígio com a mesma relativamente ao contacto com os filhos. No presente, continua a dispor de interacção com os mesmos por ocasião de convívios quinzenais, de 3 horas de duração, aos sábados de tarde, sob a supervisão da sua irmã mais velha, residente em ..., conforme determinado pelo Juízo de Família e Menores ..., acrescidos, desde 25.09.2021, de convívios de mais 1h no período da manhã nesses mesmos dias nas instalações da ADICE, em ..., sob a supervisão técnica do Centro de Apoio Familiar e Aconselhamento Parental desta instituição, igualmente solicitado por aquele Tribunal, no sentido do desenvolvimento de intervenção junto do arguido para trabalho de competências parentais com o objectivo de reaproximação do mesmo aos filhos. De acordo com as informações prestadas pelo CAFAP, estes últimos convívios, supervisionados por este organismo, têm decorrido com regularidade, revelando AA correspondência à intervenção desenvolvida, quer ao nível da interacção estabelecida com os filhos durante os convívios, quer na receptividade revelada para aderir a intervenção adicional que lhe foi proposta.
Iniciou a 13.12.2021 acompanhamento psicológico junto do serviço de psicologia do Centro Social ... – ADICE, frequentando ainda, desde Dezembro de 2021, programa de intervenção na parentalidade desenvolvido pelo CAFAP, composto pela participação em 10 sessões individuais e pela criação de situações de interacção com os filhos entre as sessões para prática e consolidação de comportamentos de parentalidade positiva, cuja realização foi também proposta à ofendida. Nos atendimentos efectuados com esta e com o arguido, o CAFAP identifica dificuldades por parte de ambos para se distanciarem do conflito parental e preservarem os filhos do mesmo, assegurando-lhes um desenvolvimento adequado às suas necessidades, sendo ainda perceptível alguma inconsistência/ambivalência por parte dos menores nas interacções estabelecidas com o arguido.
AA demarca-se das circunstâncias que deram origem ao presente processo, atribuindo a instauração do mesmo a iniciativa reactiva da ofendida ao processo criminal relacionado com a empresa de que a mesma foi sócia gerente de direito, pelo qual tem ainda pendente acusação da prática de crime de fraude fiscal. Verbaliza expectativas de clarificação daquelas circunstâncias e de obtenção de desfecho favorável, não equacionando qualquer necessidade de intervenção para além das identificadas e trabalhadas no contexto da regulação das responsabilidades parentais.
AA, de 42 anos de idade, observou, de acordo com o descrito, trajectória laboral iniciada após a conclusão do 12º ano de escolaridade, por volta dos 19 anos, dominantemente desenvolvida por conta própria em diferentes ramos de actividade, relacionados com a comercialização de produtos alimentares e transportes, quer em Portugal, quer no Brasil. Reporta, no decurso dos diferentes projectos empresariais a que esteve associado, o surgimento de dificuldades financeiras e problemas judiciais relacionados com a não assunção de encargos e responsabilidades fiscais e sociais, aparentemente ignorados pelos seus familiares que apenas identificam a instauração dos confrontos judiciais relacionados com a ex-companheira e os dois filhos menores de ambos, ofendidos no presente processo.
Alegadamente a viver há três anos com os pais, em ..., sem presença socialmente reconhecida junto destes que permita a identificação do seu modo de vida e subsistência, detém condições de autonomia financeira provenientes do desenvolvimento de actividade comercial, com realização frequente de deslocações ao Brasil, para convivência com a sua actual namorada, com quem pretende constituir vivência comum em Portugal.
Mantém situação de litígio com a ofendida, com quem viveu em união de facto durante 12 anos e com quem tem dois filhos menores, relacionados com a convivência com os menores e com a pendência de outro processo criminal em que se encontra acusado do crime de fraude fiscal relacionado com empresa de que a ofendida foi sócia gerente. Com medida de afastamento e proibição de contactos relativamente à ofendida, determinada nos presentes autos, cuja monitorização electrónica foi inviabilizada pelo não consentimento do arguido à instalação dos equipamentos de geo-localização, tem vindo a conhecer convivência com os filhos circunscrita a convívios quinzenais, determinadas no âmbito de Regime de Regulação das Responsabilidades Parentais, sob a mediação de familiar e de supervisão técnica institucional, com correspondência à intervenção desenvolvida neste contexto e acolhimento favorável às propostas de acompanhamento psicológico individual e de participação em programa estruturado de desenvolvimento de competências parentais recentemente iniciados.
Dos antecedentes criminais do arguido:
25 – O arguido tem averbadas no seu Certificado de Registo Criminal as seguintes condenações:
- Por sentença proferida a 01/10/2012 e transitada em julgado a 22/10/2012, no âmbito do Processo Comum Singular nº203/10.0GFPRT, do 2º Juízo Criminal de Santo Tirso, na pena de 55 dias de multa à taxa diária de € 8,00, no total de € 440,00, pela prática, em 03/08/2010, de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348º, nº1 do Código Penal. Esta pena foi declarada extinta pelo cumprimento a 13/02/2013.
- Por sentença proferida a 01/10/2014 e transitada em julgado a 13/10/2012, no âmbito do Processo Sumaríssimo nº2163/11.0TAGDM, do Juízo Local Criminal de Gondomar- J1, na pena de 250 dias de multa à taxa diária de € 7,00, no total de € 1.750,00, pela prática, em 10/08/2009, de um crime de falsificação ou contrafacção de documento, p. e p. pelo artigo 256º, nº1, als. c), d) e e), e nº3 do Código Penal. Esta pena foi declarada extinta pelo cumprimento a 16/03/2016.
- Por sentença proferida a 17/06/2015 e transitada em julgado a 19/01/2016, no âmbito do Processo Comum Singular nº6291/11.4IDPRT, do Juízo Local Criminal de Valongo – J2, na pena de 160 dias de multa à taxa diária de € 6,00, no total de € 960,00, pela prática, em 2010, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105º, nº1 do Regime Geral das Infracções Tributárias. Esta pena foi declarada extinta pelo cumprimento a 01/03/2016.
- Por sentença proferida a 19/04/2016 e transitada em julgado a 19/05/2016, no âmbito do Processo Comum Singular nº3473/12.5IDPRT, do Juízo Local Criminal de Valongo – J1, na pena de 220 dias de multa à taxa diária de € 7,00, no total de € 1.540,00, pela prática, em 12/05/2010, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105º, nº1 do Regime Geral das Infracções Tributárias. Esta pena foi declarada extinta pelo cumprimento a 16/06/2016.
- Por sentença proferida a 14/12/2020 e transitada em julgado a 03/11/2021, no âmbito do Processo Comum Singular nº709/19.5GAMAI, do Juízo Local Criminal da Maia – J1, na pena de 160 dias de multa à taxa diária de €9,00, no total de €1.440,00, pela prática, em 27/06/2019, de um crime de gravações e fotografias ilícitas, p. e p. pelo artigo 199º do Código Penal.
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Factos considerados provados constantes da contestação:
26 – Em 2019 o arguido, a assistente e os filhos foram juntos de férias para o Algarve.
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2.2. Matéria de facto não provada:
Com interesse para a decisão, não se provaram quaisquer outros factos constantes da acusação pública ou da contestação e, designadamente, que:
a) Nas circunstâncias supra mencionadas em 1. dos factos provados, o arguido e a ofendida tivessem adoptado residência comum na Travessa ..., bloco ..., entrada ..., ... andar/..., em ...;
b) Desde o início da coabitação o arguido impedisse que a ofendida privasse, de qualquer forma, com a sua família ou amigos;
c) O arguido tivesse deixado de atribuir à ofendida qualquer vencimento pelo trabalho que a mesma desempenhava por conta do mesmo, tornando-a economicamente dependente para qualquer despesa pessoal ou do agregado familiar, por mais insignificante que fosse;
d) As agressões supra mencionadas em 4. dos factos provados o fossem de forma regular e até 2018 e sempre que a ofendida expressava qualquer opinião que não fosse de concordância com o arguido;
e) Quando o menor CC contava com 5 anos de idade o arguido tivesse agredido a DD a murro, facto presenciado por aquele, que se retirou para o seu quarto a chorar;
f) Valendo-se do facto de ter registado todos os negócios em nome da ofendida e de, em consequência, ter o salário penhorado e constar no Banco de Portugal, o arguido alegasse que a mesma precisa dele;
g) O referido em 9. supra dos factos provados tivesse ocorrido por o arguido não se ter conformando com a decisão da ofendida aludida em 8. supra;
h) Nas circunstância referidas em 9. supra dos factos provados, o arguido tivesse rondando a residência da ofendida pelas 01:00 e 02:00 horas da madrugada;
i) Nas circunstância referidas em 12. a 14. supra dos factos provados, o arguido tivesse tentado, sem sucesso, forçar as portas e vidros da viatura onde a ofendida se fazia transportar e tivesse feito menção de pretender embater no carro da ofendida;
j) Para além do referido em 18. supra dos factos provados, o arguido tivesse, noutras ocasiões, entre 2018 e Agosto de 2020, apertado com força a mão da filha;
k) O arguido apelidasse o filho (a quem assim de dirigia) de “maluco”;
l) O arguido tivesse agido com o propósito de isolar social e familiarmente a ofendida:
m) O arguido AA tivesse sujeitado os seus filhos menores a destrates físicos e emocionais, bem sabendo que atentava contra a saúde destes;
n) O arguido sempre se tivesse preocupado com a educação dos seus filhos, mesmo no Brasil falava com os responsáveis das escolas dos seus filhos.
o) Até à presente data, em nenhuma das visitas os menores demonstrassem estar contrariados, amedrontados, tristes ou com medo do pai.
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2.3. Motivação da decisão de facto:
Na formação da sua convicção, baseou-se este Tribunal Colectivo na análise conjugada de toda a prova produzida valorada à luz das regras de normalidade e de experiência comum.
O arguido prestou declarações em audiência de julgamento, tendo, no essencial, negado os factos que lhe são imputados na acusação pública, tal como já havia feito em sede de 1º interrogatório judicial. Confirmou, apenas, que entre 2006 e 2018 teve discussões “acesas” com a ofendida DD, por vezes à frente dos filhos, mas nunca a agrediu fisicamente. Em relação aos filhos, confirmou que, em Março de 2020, apertou com força a mão da sua filha BB - esclarecendo que o fez em tom de repreensão por a mesma ter tido uma atitude rebelde – e uma vez chamou “palhaço” ao filho CC, mas foi em tom de brincadeira por o mesmo ser muito activo, desafiador e “brincalhão”.1 (1 Negou alguma vez lhe ter chamado “maluco”.)
Em termos de prova testemunhal, baseou-se o Tribunal no teor das declarações prestadas pela assistente DD em audiência de julgamento; nas declarações para memória futura prestadas pelos ofendidos BB e CC, bem como no depoimento das testemunhas GG, Psicóloga, a qual tem vindo a prestar apoio psicológico à assistente desde Janeiro de 2020; EE, mãe da assistente; FF, amiga da assistente desde 2019, tendo sido colegas de trabalho numa empresa; HH e II, irmã e cunhado do arguido; JJ, KK, LL e MM, todos amigos do arguido, sendo as duas últimas amigas de infância.
Nas suas declarações a assistente DD relatou que conheceu o arguido em 2001, quando a mesma trabalhava numa empresa do pai daquele, tendo começado a viver juntos em 2006, na Travessa ..., em ..., e em 2007 nasceu a filha do casal, BB.
Relatou que, nas alturas em que o arguido não tinha dinheiro, tornava-se agressivo, sendo que os maus-tratos físicos que o mesmo lhe infligiu começaram em 2006, quando estava grávida da filha de ambos, e prolongaram-se até 2016/2017, quando se separaram. Nessas alturas, chamava-lhe “burra”, “estúpida” e “incompetente” e dava-lhe pontapés, socos e murros na cabeça, tendo chegado a apertar-lhe o pescoço. Contou que, numa ocasião em que estava a amamentar o filho de ambos, o arguido, sem qualquer razão, deu-lhe uma bofetada.
Esclareceu que nunca recorreu a assistência médica porque tinha medo de represálias por parte do arguido.
Referiu também que em 2016 o arguido foi viver para o Brasil tendo regressado a Portugal em 2018, altura em que tentou reatar a relação de ambos, o que a assistente recusou, e a partir daí o arguido passou a fazer-lhe “esperas” à porta de casa e a persegui-la de carro2 (2 Contou que no verão de 2018 a assistente tinha saído com outro homem e o arguido exigia saber da relação deles, tendo a assistente deixado de estar com essa pessoa com medo do que o arguido pudesse fazer.) , tendo chegado a dizer-lhe: “se não fores minha, não és de mais ninguém”.
Contou, ainda, que no dia 6 de Julho de 2020, quando a assistente tinha prestado depoimento no DIAP no âmbito de um outro processo-crime3 (3 Inquérito instaurado por crime de fraude fiscal.) e quando se encontrava no estacionamento no interior da sua viatura, o arguido telefonou-lhe e disse-lhe que tinha 5 minutos para parar o carro e ir falar com ele; como a assistente não anuiu, o arguido atravessou o seu carro à frente do carro da daquela, passando depois a persegui-la por várias ruas e, sempre ao telefone, disse-lhe: “isto vai correr muito mal”. Tal perseguição só cessou quando a assistente seguiu em direcção à Esquadra da Polícia ....
Confirmou também que o arguido lhe telefonava constantemente4 (4 Chegou a ter 40 chamadas seguidas do arguido, como referiu.), mesmo depois da separação, chamadas que ela não atendia por não pretender reatar a relação, enviando-lhe, outrossim, inúmeras mensagens escritas para o telemóvel, nas quais lhe chamava “barraqueira” e outros epítetos.
Em relação aos filhos do casal, a assistente confirmou que o arguido chamava por vezes “palhaço” ao filho CC, mas nunca os agrediu fisicamente.
Por sua vez, a ofendida BB relatou, em declarações para memória futura, que assistiu a muitas discussões entre os pais, sendo que o seu pai, em tom de voz exaltado, dizia à sua mãe: “isto não vai ficar assim” e “isto é uma merda”. Por vezes, quando estavam em restaurantes, ouvia o pai a dize à mãe para “fazer como ele dizia” e chamava-lhe “estúpida” e “parva”, dizendo-lhe para estar calada que estavam em público.
Confirmou que o seu pai nunca lhe bateu, mas em Março de 2020, num dia em que ela e o seu irmão iam almoçar com o pai, este, sem qualquer razão5 (5 Estava chateado e queria que ela escolhesse o restaurante onde iriam almoçar, conforme mencionou.) , levantou-lhe a mão para lhe bater, não tendo, contudo, chegado a fazê-lo. Noutra ocasião, em data que não soube precisar, mas posterior a 2018 (após o regresso do arguido do Brasil), o pai chegou a apertar-lhe a mão com força, também sem qualquer motivo.
Referiu ainda que o seu pai não lhe dava apoio na Escola, pressionando-a para estar com ele mesmo quando ela tinha compromissos escolares.6 (6 testes ou trabalhos para apresentar.)
Já o menor CC afirmou que o seu pai lhe chamava “palhaço” e “maluco” e, já depois da separação dos pais, viu algumas vezes o seu pai a rondar de carro a casa da mãe.
Quer a assistente DD, quer a ofendida BB prestaram tais declarações de forma que se nos afigurou segura, coerente, convicta e fundamentada, tendo relatado pormenorizadamente todos os episódios em questão, nos quais participaram directamente, pelo que mereceram a este Tribunal total credibilidade.
Por outro lado, a versão dos factos relatada pelas ofendidas DD e BB mostra-se, no geral, corroborada pelos depoimentos das testemunhas GG, EE e FF.
Na verdade, a testemunha GG referiu em audiência de julgamento que, em Janeiro de 2020, a assistente DD pediu ajuda na Câmara Municipal ... por questões relacionadas com violência doméstica de que era vítima e por questões habitacionais. Nessa altura a assistente estava muito transtornada, fragilizada, receosa e ansiosa com a sua situação familiar (e também habitacional), receando pelo seu bem-estar e dos seus filhos, já que estes tinham muito medo que o pai “fizesse mal” à mãe. A assistente mostrou-lhe então diversas mensagens que o arguido lhe tinha enviado.
A testemunha EE descreveu, de forma detalhada, as vicissitudes da relação da sua filha DD com o arguido, tendo mencionado que se apercebeu de que a sua filha não estava bem e então esta contou-lhe que, quando o arguido tinha problemas de dinheiro, lhe batia. Numa ocasião, já depois do nascimento da sua neta BB, viu uma marca no pescoço da sua filha e, tendo-a questionado, esta confessou-lhe que tinha sido o arguido que lhe tinha apertado o pescoço. Apesar destas agressões, a sua filha dizia-lhe que não deixava o arguido por causa dos filhos e também porque gostava dele.
Conforme referiu, esta a testemunha conviveu de perto com a filha e o arguido durante a vivência em comum, tendo assistido a várias discussões em que o arguido chamava “burra” e “incompetente” à DD. Por vezes, os filhos menores também assistiam às discussões dos pais e ouviam o pai a apelidar a mãe de “burra”. Também contou que, depois da separação do casal, o arguido telefonava insistentemente à ofendida DD e esta não lhe atendia o telefone, bem como passou a ir a casa da ofendida exigindo estar com os filhos e dizendo-lhe que lhe ia “fazer a vida negra” e que “não iria ter descanso”, como assistiu. Contou, ainda, que no dia 6 de Julho de 2020 a sua filha lhe telefonou muito assustada a dizer que o arguido a estava a ameaçar e que tinha atravessado o carro à sua frente, factos que reportou à Polícia.
Já a testemunha FF esclareceu que, em 2019, ela e a assistente DD trabalhavam juntas numa fábrica de peças de automóveis e que a DD estava constantemente a receber telefonemas e mensagens7 (7 Referiu que os telefonemas aconteciam de 5 em 5 minutos, sobretudo à hora do almoço, sendo que a testemunha chegou a ver algumas dessas mensagens, nas quais o arguido ameaçava e menosprezava a ofendida e lhe dizia que ela tinha problemas mentais. Numa dessas mensagens, o arguido ameaçou a ofendida que ia ter à fábrica onde a mesma trabalhava caso não se encontrasse com ele, ao que a mesma, por receio, acedeu.) do arguido, o que a deixava muito nervosa, assustada e ansiosa, ao ponto de ter passado a deslocar-se para o trabalho no carro da testemunha8 (8 Antes, deslocava-se no seu próprio carro.) por ter medo que o arguido a seguisse. Disse também que viu, por diversas vezes, a carrinha do arguido junto à fábrica onde ambas trabalhavam, estando o arguido a olhar para dentro da fábrica. Noutra ocasião, o arguido telefonou para o local de trabalho da ofendida pedindo informações sobre a mesma. Por causa destes e doutros episódios, passou a ser o marido da testemunha a ir levá-las e a ir busca-las ao trabalho por receio do que o arguido pudesse fazer.
Os depoimentos destas testemunhas afiguraram-se verosímeis, tendo sido, dum modo geral, consonantes entre si e congruentes com a prova documental constante dos autos, designadamente, com o teor da listagem das chamadas telefónicas efectuadas pelo arguido à assistente entre 19/08/2020 e 18/10/2020, junta aos autos a fls. 217 a 226, bem como com o teor das mensagens enviadas pelo arguido à assistente e transcritas nos autos a fls. 137 a 184 e 318 a 333.9(9 O teor da mensagem assinalada no ponto 15. dos factos supra considerados provados mostra-se transcrita nos autos a fls. 329.)
Relativamente ao facto acima considerado provado alegado na contestação, valoraram-se as declarações prestadas pelo arguido e pela assistente, bem como o depoimento da testemunha EE, todos coincidentes em afirmar que no Verão de 2019 a assistente foi com os filhos e com o arguido passar férias para o Algarve, embora a assistente e a sua mãe tenham esclarecido que a assistente e arguido não estiveram juntos como casal e que tal só sucedeu porque os menores iam de férias com o pai e não queriam ir sozinhos com ele, tendo insistido para a mãe os acompanhar.
Quanto aos factos respeitantes aos elementos subjectivos das infracções (factos acima considerados provados sob os nºs 21. e 23.), o Tribunal teve em conta todos os factos e meios de prova atrás referidos respeitantes aos elementos objectivos dos tipos de ilícito em causa.
Quanto aos antecedentes criminais do arguido, valorou o Tribunal o teor do respectivo CRC junto aos autos.
No que respeita aos factos relativos às condições pessoais, familiares, sociais e económicas do arguido, o Tribunal teve em consideração o teor do relatório social do arguido, junto aos autos.
No que concerne à factualidade considerada não provada, estribou-se o Tribunal na circunstância de sobre a mesma não ter sido produzida prova bastante capaz de convencer o Tribunal da sua veracidade.
Assim é que, relativamente à factualidade supra descrita em a) dos factos considerados não provados, quer o arguido, quer a assistente DD afirmaram que nunca viveram juntos na Travessa ..., em ..., sendo esta a morada dos pais da assistente.
Em relação à factualidade supra descrita nas alíneas b), c), f) e l) dos factos considerados não provados, a prova produzida a esse respeito não foi concludente.
Na verdade, nem a assistente, nem nenhuma das testemunhas ouvidas em julgamento confirmou que o arguido impedia a assistente de privar com a família10 (10 Os pais e irmão da assistente sempre estiveram presentes nas celebrações familiares do casal e a mãe da assistente convivia regularmente com a filha, arguido e filhos destes, conforme relatado por todos.) e, quanto aos amigos da assistente, esta referiu que deixou de conviver mais amiúde com as suas amigas porque estas não gostavam do arguido11(11 Caso de uma amiga de nome NN.); tendo as testemunhas II e HH mencionado que os amigos que viam nos convívios em casa do arguido eram amigos comuns à DD e tendo a testemunha LL referido que chegou a ver nesses convívios uma amiga da assistente que era cabeleireira.
Quanto aos negócios do casal e gestão dos respectivos rendimentos, apesar de a assistente e a sua mãe terem mencionado que a DD não tinha ordenado e que entregava ao arguido todo o apuro diário do supermercado que geriam, tendo que pedir ao arguido dinheiro para as despesas, a própria assistente reconheceu que o arguido nunca a proibiu de comprar os bens de que necessitasse. Também as testemunhas HH, LL e MM foram coincidentes em afirmar que nunca se aperceberam de que a assistente dependesse financeiramente do arguido, vendo-a a pagar as suas próprias despesas (cabeleireiro, restaurantes, compras de Natal, roupas para os filhos, etc.). Esta última testemunha mencionou também que, quer o arguido, quer a assistente, recorriam por vezes aos serviços do seu escritório de advocacia para tratar de assuntos relacionados com as empresas, sendo ambos as gerir as mesmas. De referir, ainda, neste tocante, que se desconhece se terá existido algum acordo entre arguido e assistente quanto à gestão dos rendimentos do casal, tendo o arguido mencionado que nenhum deles tinha salário atribuído, mas ambos tinham acesso ao dinheiro proveniente da exploração do supermercado.
No que toca ao alegado episódio de agressão física perpetrada pelo arguido contra a ora assistente e que terá sido presenciado pelo filho CC quando este contava com 5 anos de idade, a única pessoa que o relatou foi o próprio menor12 (12 Que contava com 9 anos de idade quando prestou declarações para memória futura.), tendo, no entanto, tal relato suscitado ao Tribunal as maiores reservas. Com efeito, em face das regras de normalidade e de experiência comum, não se nos afigura crível que uma criança de tão tenra idade tivesse capacidade de recordar esse ou outros episódios de forma rigorosa e objectiva. O menor relatou que estava no seu quarto e ouviu a sua mãe a gritar no quarto ao lado, tendo lá ido “sorrateiramente” ver o que se passava e então viu o pai por cima da mãe a dar-lhe murros;
então, começou a chorar e foi para o seu quarto. Questionado sobre a razão pela qual a sua irmã não tinha acorrido ao local e não a foi chamar, o menor respondeu que o quarto da irmã era longe do quarto dos pais e que a mesma estava com os “fones” colocados e não ouviu a mãe a gritar. Simplesmente, nem a irmã, nem a mãe do menor relataram este episódio, sendo que, segundo o menor, esta última terá ido ao seu quarto “consola-lo” após este evento. O menor CC disse também que a porta do quarto dos pais estava totalmente aberta aquando daquela agressão, o que não é comum, sendo antes natural que o pai tivesse fechado a porta do quarto para os filhos não verem nem ouvirem o que se estava a passar. Ainda: o menor foi categórico em afirmar que tinha 5 anos de idade quando isto ocorreu e, questionado, referiu que sabia que tinha 5 anos porque foi numa altura em que um armário de casa lhe tinha caído em cima e então “disseram-lhe que tinha 5 anos”. Também referiu que, noutra altura, a mãe lhe disse que o pai a ameaçara que “lhe iria tirar os filhos”, sendo que, por vezes, sonha que o pai está a “fazer mal” à mãe, a ele e à irmã. Perante isto, ficou o Tribunal na dúvida se o relato do menor não será fruto de todo este conflito que envolve os seus pais a repercutir-se de forma muito intensa e negativa numa criança tão nova e, por isso, bastante impressionável e sugestionável.
Quanto ao facto vertido na alínea h) dos factos considerados não provados, apenas o menor CC referiu ter visto o carro do pai a rondar a casa da mãe “de dia e de noite”13 (13 Sem ter indicado, contudo, quaisquer circunstâncias, designadamente de tempo.), o que não foi corroborado nem pela irmã nem pela mãe14.(14 A este respeito a assistente relatou apenas um episódio em que o arguido lhe fez uma “espera” à porta de casa insistindo em saber quem era a pessoa com quem a assistente tinha saído, conforme já acima indicado.)
Já a factualidade vertida na alínea i) dos factos considerados não provados não foi confirmada por nenhuma das pessoas ouvidas em audiência de julgamento, designadamente pela assistente, que interveio directamente no episódio ocorrido a 06/07/2020.
No que concerne aos alegados maus-tratos infligidos pelo arguido aos seus filhos menores, para além de se ter apurado que o arguido chamava “palhaço” ao filho e que, numa ocasião, fez menção de levantar a mão à filha para lhe bater e, noutra, apertou com força a mão desta, nada mais se apurou nesse tocante por total ausência de prova, sendo certo que o menor CC referiu que o seu pai também lhe chamava “maluco”, mas tal não foi confirmado por nenhuma das pessoas que com ele conviviam de perto.(15 A sua mãe, irmã e avó materna.)
Quanto à demais factualidade considerada não provada, não foi produzida qualquer prova, sendo que as testemunhas ouvidas em audiência de julgamento não lhe fizeram qualquer alusão e inexistem nos autos elementos probatórios susceptíveis, por si só, de a demonstrarem.
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2.2.2-A fundamentação de direito (transcrição das partes com relevo para o objeto do recurso):
« III - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
3.1. Do crime de violência doméstica:
Vem o arguido AA acusado da prática, em autoria material e concurso real, de dois crimes de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, nº1, al. b), e nº2, al. a), ambos do Código Penal (na pessoa da ofendida DD); um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº1, al. d), e nº2 al. a) do mesmo diploma legal (na pessoa da menor BB); e um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº1, al. d). e nº2, al. a) do mesmo diploma legal (na pessoa do menor CC).
Dispõe o artigo 152º do Código Penal
(…)
Postas estas breves considerações teóricas, vejamos o caso dos autos.
Em face dos factos dados como provados, não existem dúvidas acerca da prática pelo arguido AA dos crimes de violência doméstica na pessoa da sua ex-companheira DD – cfr. factualidade acima considerada provada sob os nºs 3., 4., 5., 9., 10., 11., 12., 13., 14., 15., 20., 21., 22., e 23.
De facto, a conduta do arguido, aí descrita, patenteia que o mesmo infligiu à assistente DD, sua companheira e mãe dos seus filhos, maus tratos físicos e psíquicos, traduzidos em agressões físicas, insultos e ameaças, ao longo de mais de 10 anos, servindo-se o arguido, por vezes a para tal efeito, da privacidade da residência familiar e praticando alguns desses actos (discussões) na presença dos filhos menores de ambos, BB e CC.
O arguido, agindo de forma livre, deliberada e consciente e bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e penalmente punidas, previu e quis tratar a assistente DD de modo desumano e humilhante - ao desferir-lhe pontapés e murros na face e cabeça, ao apertar-lhe o pescoço e ao apelidá-la de “estúpida”, “burra”, “parva”, “inútil” e “incompetente” - pretendendo que a mesma se sentisse menorizada e que fosse atingida na sua dignidade enquanto ser humano, o que conseguiu.
Também a “tortura” psicológica a que o arguido sujeitou a assistente DD a partir de 2018 - seguindo-a na via pública e efetuando sucessivos contactos telefónicos para o local de trabalho desta; dizendo-lhe que “se não for dele, não será de mais ninguém”; endereçando várias mensagens de texto à ofendida e tentando insistentemente conversar com ela por telefone mesmo sabendo não ser esta a vontade da mesma; atravessando o seu veículo na frente do veículo da assistente e dizendo-lhe “tens três minutos para saíres do carro e vires ter comigo”, perseguindo-a por várias artérias, instando-a a parar e ameaçando “isto vai correr tão mal!” - configura maus tratos psicológicos infligidos pelo arguido à ofendida DD, sua então companheira.
Mostram-se, pois, perfectibilizados todos os elementos, objectivos e subjectivos, dos tipos legais de crime de violência doméstica (na pessoa da assistente DD) de que o arguido vem acusado.
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A acusação pública imputa ao arguido a prática, em concurso efectivo, de dois crimes de violência doméstica agravados.
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No caso dos autos é possível identificar claramente dois ciclos de violência doméstica, perfeitamente definidos e autónomos entre si, levados a cabo pelo arguido contra a ora assistente: entre o início da vida em comum (2006) e a ida do arguido para o Brasil (2016) e entre o regresso deste do Brasil (2018, com perseguições constantes do arguido à assistente) e 2020 (episódio ocorrido a 6/07/2020 em que o arguido atravessou o seu carro à frente do carro da assistente).
Assim, segundo os indicadores fornecidos pelo processo, existiu um claro hiato temporal, durante a convivência em comum, em que cessaram os maus tratos físicos e psíquicos infligidos pelo arguido à assistente (em 2016), altura que ocorreu uma interrupção na conduta delituosa do arguido que se manteve até 2018 (data do regresso do arguido a Portugal), a apontar nitidamente para uma “quebra” da unidade resolutiva e para a consequente renovação da resolução criminosa, o que tanto basta para a afirmação da compleição de mais de um crime.
Entende-se, por conseguinte, que os factos ilícitos praticados pelo arguido, no que à pessoa da assistente DD concerne, se reconduzem a dois crimes de violência doméstica.
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No que respeita à imputada agravação da conduta do arguido resultante da circunstância de alguns dos factos terem sido praticados no domicílio comum e na presença dos filhos (al. a) do nº2 do artigo 152º do CP), temos apenas como certo que tal apenas se verificou no período compreendido entre 2006 e 2016, já que quanto à conduta levada a cabo pelo arguido contra a assistente entre 2018 e 2020 não consta que os filhos menores de ambos a tenham presenciado nem que tivesse ocorrido na casa de morada de família, até porque nessa altura arguido e assistente já se encontravam separados.19
Por conseguinte, os factos praticados pelo arguido contra a pessoa da assistente subsumem-se a um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152º, nº1, al. b), e nº2, al. a) do CP e um crime de violência doméstica simples, p. e p. pelo artigo 152º, nº1, al. b) do mesmo diploma legal.
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Em relação aos menores BB e CC, visto o quadro factual acima apurado, entendemos que a conduta do arguido AA não preenche os elementos objectivo e subjectivo do tipo de crime em questão. Com efeito, a esse nível, apurou-se apenas que o arguido, quando era data de visitas, exigia estar com os filhos ainda que estes tivessem obrigações escolares; em Março de 2020 o arguido chegou a levantar a mão, fazendo crer à menor BB que a ia agredir, sem que a mesma conseguisse descortinar o que teria feito para desencadear tal reação daquele; em data não apurada o arguido apertou com força a mão da filha; o arguido apelidava o filho de “palhaço”.
Ora, entendemos que tal comportamento, destituído de quaisquer outros factos e/ou circunstâncias, não reveste a gravidade e/ou o grau de intensidade que a lei exige para a verificação do tipo legal de crime de violência doméstica. Por outro lado, desconhece-se 20 as concretas circunstâncias em que o arguido apertou a mão da sua filha, admitindo-se, por outro lado, que a expressão “palhaço” dirigida ao filho tivesse um sentido puramente jocoso e não depreciativo 21, sendo ainda certo que na situação ocorrida em Março de 2020 o arguido não chegou a agredir fisicamente a filha.
Em nosso juízo, tais factos, por si só, não consubstanciam um tratamento cruel, desumano e comprometedor do desenvolvimento físico e psíquico dos menores BB e CC, no fundo, os maus tratos pressupostos no nº1 do artigo 152.º do CP, nem tão pouco, no contexto, outro tipo de ofensa, designadamente física, relevante. 22
Neste âmbito, não assumindo a apurada conduta do arguido AA relevância criminal, forçoso é de concluir pela sua absolvição nesta parte.
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3.2. Das consequências jurídicas do crime e da determinação concreta da pena:
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Volvendo ao caso dos autos e assente que o arguido AA cometeu dois crimes de violência doméstica na pessoa da assistente DD, um deles p. e p. pelo artigo 152.º, nº1, al. b) do CP e o outro p. e p. pelo artigo 152.º, nº1, al. b), e nº2, al. a) do CP, haverá agora que determinar a medida concreta das penas a aplicar a cada um deles, cujas molduras penais abstractas são as de prisão de 1 a 5 anos e prisão de 2 a 5 anos, respectivamente.
(…)
Utilizando os critérios vindos de enunciar, importa ponderar que, “in casu”, a gravidade do ilícito, plasmada no grau de ilicitude dos factos, no modo de execução destes e no grande período temporal em que persistiram os maus-tratos23, é relevante.
Por outro lado, os bens ou valores jurídicos lesados são comunitariamente muito relevantes24, acrescendo o laço afectivo do arguido com a vítima DD, a impor um especial dever de respeito ao arguido pela sua companheira e mãe dos seus filhos.
De destacar, ainda, as elevadíssimas necessidades de prevenção geral atentos os bens jurídicos protegidos e a grande frequência com este tipo de crimes ocorre na comunidade, tantas vezes com resultados dramáticos, com o consequente enorme alarme social associado a este tipo legal de ilícito.
No que respeita à culpabilidade do arguido, importa frisar a intensidade do dolo, revelando os factos igualmente uma atitude de negação e desprezo por bens e valores jurídicos relevantes por parte do arguido.
Quanto à personalidade do arguido AA, é de assinalar o seu percurso escolar ajustado e investido, bem como a sua inserção laboral, encontrando-se actualmente a trabalhar para duas empresas, uma delas no ramo de produtos alimentares e de higiene e protecção pessoal, e outra na área de produtos congelados de padaria e pastelaria, auferindo cerca de € 800,00 mensais. A favor do arguido milita ainda a circunstância de beneficiar de apoio familiar (dos seus pais e da sua actual namorada, relacionamento que perdura desde há cerca de 2 anos) e psicológico (a 13/12/2021 iniciou acompanhamento psicológico junto do serviço de psicologia do Centro Social ... – ADICE, frequentando ainda, desde Dezembro de 2021, programa de intervenção na parentalidade desenvolvido pelo CAFAP).
Em desabono do arguido destacam-se os seus antecedentes criminais, tendo sido já condenado pela prática dos crimes de desobediência, falsificação de documentos, abuso de confiança fiscal e gravações e fotografias ilícitas; a sua “indefinição” habitacional (apesar de afirmar residir em casa dos pais, tal não é confirmado pelos familiares próximos, como consta do relatório social), bem como a circunstância de se “demarcar” das razões que deram origem ao presente processo, atribuindo a instauração do mesmo a iniciativa reactiva da assistente, postura que manteve em audiência de julgamento ao negar a maior parte dos factos que lhe são imputados nestes autos.
Destarte, visto o quadro factual acima apurado e considerando as molduras penais abstractas previstas para cada um do tipo de ilícito em questão, julga-se adequado condenar o arguido AA nas seguintes penas parcelares:
a) 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão pela prática de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152.º, nº1, al. b), e nº2, al. a) do CP;
b) 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão pela prática de um crime de violência doméstica simples, p. e p. pelo artigo 152.º, nº1, al. b) do CP.
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3.3. Do concurso de crimes.
Os crimes de violência doméstica praticados pelo arguido encontram-se numa relação de concurso real e efectivo de infracções. (…)
De acordo com o disposto no nº2 do citado artigo 77º do CP, a moldura penal do concurso tem como limite mínimo a mais elevada das penas em concurso (a mais alta das penas parcelares) e como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
Assim, é a seguinte a moldura do concurso de crimes:
. Limite mínimo: 2 anos e 4 meses de prisão; limite máximo: 3 anos e 7 meses de prisão.
Nos termos do artigo 77º, nº1 do Código Penal, a determinação da medida concreta da pena única (…)
No caso concreto está em causa a aplicação de uma pena única correspondente à prática de dois crimes de violência doméstica, sendo um deles simples e o outro agravado.
Conforme acima visto, a gravidade dos tipos de ilícito de violência doméstica, plasmada no grau de ilicitude dos factos, no modo de execução destes, no longo período de tempo em que persistiram os maus tratos infligidos à assistente, é elevada. Os bens ou valores jurídicos lesados são comunitariamente muito relevantes, a que acresce o grande alarme social associado a este tipo de crime.
No que respeita à culpabilidade do arguido, importa reiterar a intensidade do dolo e, quanto à sua personalidade, é de destacar a sua postura de minimização e desvalorização face aos factos que lhe são imputados nestes autos.
Sopesando todas estas circunstâncias, considera-se ajustada a condenação do arguido AA na pena única de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão.
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3.4. Da suspensão da pena de prisão aplicada ao arguido AA:
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No caso dos autos, considerando que o arguido, apesar de ter antecedentes criminais, não tem averbada qualquer condenação por crime de igual natureza do versado nestes autos, sendo que as condenações que sofreu foram sempre em penas de multa, já extintas pelo cumprimento,28 e valorando ainda o facto do arguido ter apoio familiar e psicológico, entende-se ser possível formular um juízo de prognose favorável quanto ao seu comportamento futuro, justificando-se a suspensão da pena de prisão que agora lhe foi aplicada.
Quanto ao período da suspensão, a Lei nº 94/2017, de 23/08 revogou a regra da coincidência entre a duração da pena e o período de suspensão (com o mínimo de um ano), passando a vigorar o regime anterior, i.e., o tribunal fixa o período de suspensão entre um e cinco anos (cfr. artigo 50º, nº5 do CP). Porém, no caso dos autos, não se vislumbra razão válida para não fazer coincidir o período de suspensão com a duração da pena.
Assim, ao abrigo do disposto no artigo 50º, nº 5, do CP, suspende-se a pena de prisão aplicada ao arguido pelo período de 2 anos e 8 meses.
No entanto, considera-se conveniente e adequado (e até essencial) a promover a reintegração do arguido na sociedade que a suspensão da execução da pena de prisão seja acompanhada de regime de prova, mediante um plano individual de readaptação social, com obediência às injunções da entidade que acompanha tal plano (artigos 53º e 54º do CP).
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3.5. Das sanções acessórias:
A acusação pública proferida nos autos pugna pela aplicação ao arguido das sanções acessórias previstas nos nºs 4 a 6 do artigo 152º do Código Penal.
A Lei nº 59/2007, de 04/0929 veio criar novas penas acessórias, no âmbito específico do crime de violência doméstica, revelando preocupação, por um lado, em proteger a vítima (alargando o âmbito de aplicação da pena acessória de proibição de contacto, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, e criando as penas acessórias de proibição de uso e porte de armas, de inibição do poder paternal, da tutela e da curatela) e, por outro lado, em intervir de forma educacional e ressocializadora junto do agressor (prevendo a obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica).
A Lei nº 19/2013, de 21-02 alterou o nº5 do artigo 152º do CP, substituindo a possibilidade legal de o juiz incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho na pena acessória de proibição de contacto com a vítima e de o fazer por meios técnicos de controlo à distância, pelo dever de o fazer em ambos os casos: deve agora incluir a medida de afastamento na pena acessória e deve determinar que a respectiva fiscalização se faça por aquele meio. No entanto, a imperatividade de que a fiscalização se faça por meios electrónicos resulta temperada ao conjugar-se com a nova redacção do nº1 do artigo 35º da Lei nº112/2009, de 16-0930, que faz depender o uso de meios técnicos de controlo à distância de tal se mostrar imprescindível para a vítima (existindo ainda a questão do consentimento para o uso de tais meios, o qual igualmente pode ser dispensado se o juiz considerar o uso de tais meios imprescindível para a protecção dos direitos da vítima – artigos 36º da Lei nº112/2009).
Como é sabido, a aplicação de uma pena acessória pressupõe a aplicação de uma pena principal mas não se basta com esta. De facto, afastada a possibilidade de aplicação automática de uma pena acessória, mostra-se necessário que o modo de execução do crime e a culpa do agente justifiquem a aplicação da pena acessória.
No caso dos autos é de ponderar a aplicação ao arguido da pena acessória de proibição de contactos com a vítima bem como da obrigação de frequentar programas específicos de prevenção de violência doméstica (nºs 4 e 5 do artigo 152º do CP).
Na verdade, tendo em consideração a constante “perseguição” a que o arguido sujeitou a assistente entre 2018 e 2020 e sendo certo que a execução da pena de prisão que agora lhe foi cominada será suspensa, mostra-se justificada a aplicação da sanção acessória de proibição de contacto com a assistente DD, por período igual ao da pena de prisão aplicada, ou seja, dois anos e oito meses, proibição essa que inclui o afastamento do arguido da residência e/ou do local de trabalho da assistente, sendo o seu cumprimento fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância. Por outro lado, a postura do arguido, ao se “demarcar” das razões que deram origem ao presente processo atribuindo a instauração do mesmo a iniciativa reactiva da assistente, postura que manteve em audiência de julgamento ao negar a maior parte dos factos que lhe são imputados nestes autos, recomenda vivamente a frequência pelo arguido de programas específicos de prevenção de violência doméstica por forma a consciencializar-se da gravidade deste tipo de condutas. Já quanto à sanção acessória prevista no nº6 do citado artigo 152º do CP – inibição do exercício das responsabilidades parentais – vista a absolvição do arguido dos crimes de violência doméstica nas pessoas dos seus filhos menores de que vinha acusado, entende-se não ser a mesma de aplicar in casu.
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IV - DO ARBITRAMENTO DE INDEMNIZAÇÃO Á VÍTIMA
A assistente DD não formulou qualquer pedido indemnizatório contra o aqui arguido. No entanto, a Lei nº30/2015, de 04/0931 prevê, entre o conjunto de medidas que visam assegurar a protecção e a promoção dos direitos das vítimas da criminalidade, a aplicação obrigatória do disposto no artigo 82º-A do Código de Processo Penal em relação a vítimas especialmente vulneráveis, excepto nos casos em que a vítima a tal expressamente se oponha (artigo 16º, nº2).
Também a Lei nº112/2009, de 16/0932, depois de indicar o se que entende por “vítima” para efeitos de tal diploma (artigo 2º, al. a), estabelece, no seu artigo 21º, nºs 1 e 2, que “1 - À vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável. 2 - Para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.”.
Tal significa que o tribunal, em caso de condenação, mesmo que não tenha sido deduzido pedido de indemnização civil, deve arbitrar à vítima uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos. Com efeito, “Em caso de condenação por violência doméstica, nos termos do n.º2, do artigo 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16/9, não tendo a vítima deduzido pedido de indemnização civil e não se tendo oposto ao seu arbitramento, o tribunal tem sempre de fixar uma indemnização, sem que tenha de haver prova de quaisquer "particulares exigências de protecção da vítima", que são presumidas pelo legislador neste tipo de crimes. Tratando-se de uma fixação oficiosa de indemnização por parte do tribunal, não dependente de prévio pedido deduzido pela ofendida, sempre estará tal indemnização sujeita a critérios de equidade e conformada pelos factos constantes da acusação, em relação aos quais incide a produção de prova na audiência de discussão e julgamento.”.33
Nessa medida, considerando a globalidade dos factos praticados pelo arguido, acima apurados, respeitantes à pessoa da assistente, considera-se ajustado, por recurso à equidade (artigo 566ª, nº3 do CC), arbitrar à assistente DD, como compensação pelos danos sofridos em virtude da actuação delituosa do arguido, a quantia de € 3.200,00 (três mil e duzentos euros).
Uma vez que o arguido foi absolvido dos crimes de que vinha acusado relativamente aos seus filhos menores, não é de arbitrar a estes qualquer compensação a esse nível.
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2.3- APRECIAÇÃO DO RECURSO.
2.3.1- Impugnação da matéria de facto por erro de julgamento.
Discorda o recorrente da decisão sobre a matéria de facto, entendendo que foram incorretamente julgados os pontos 3, 4, 5, 7, 9, 11, 12, 13, 15, 21 e 23 da matéria de facto considerada provada pelo tribunal, impondo-se decisão diversa da recorrida, quanto a esses pontos.
Nos termos do artigo 428.º, n.º 1 do Código Processo Penal, as Relações conhecem de facto e de direito e de acordo com o artigo 431.º “Sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada, nos termos do n.º 3, do artigo 412.º; ou c) Se tiver havido renovação da prova.”
Por outro lado, dispõe o artigo 412.º, n.º 3 que “Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.”.
E, no seu n.º 4 que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”
Posto isto, cabe referir que o reexame da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento, mas apenas sindicar aquele que foi efetuado, despistando e sanando os eventuais erros procedimentais ou decisórios cometidos e que tenham sido devidamente suscitados em recurso (Ac. STJ de 16.06.2005).
Assim, deve concluir-se que o recurso sobre a matéria de facto não pressupõe a reapreciação pelo tribunal de recurso de todos os elementos de prova que foram produzidos e que serviram de fundamento à sentença recorrida, mas apenas e tão-só a reapreciação da razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo, a incidir sobre os pontos de factos impugnados e com base nas provas indicadas pelo recorrente – Ac. do STJ de 10.01.2007.
O nosso Código de Processo Penal consagra no artigo 127.º o princípio da livre apreciação da prova. De acordo com este princípio, o tribunal é livre na formação da sua convicção, mas encontra-se vinculado às regras da experiência e da lógica comum, bem como às provas que estão subtraídas a essa livre convicção, sendo esta motivada, e estando ainda o tribunal sujeito aos princípios do processo penal, como o da legalidade das provas e in dubio pro reo.
O princípio in dubio pro reo, emanação da injunção constitucional da presunção da inocência do arguido, na vertente de prova (artigo 32.º, n.º 2 Constituição), constitui um limite do princípio da livre apreciação da prova na medida em que impõe nos casos de dúvida fundada sobre os factos que o Tribunal decida a favor do arguido.
Postas estas considerações, cabe concluir que assim e para além da violação das provas subtraídas à livre apreciação do julgador, ou da violação dos referidos princípios, o juízo decisório da matéria de facto só é suscetível de ser alterado, em sede de recurso, quando a racionalidade do julgamento da matéria de facto corresponda, de um modo objetivo, a um juízo desrazoável ou mesmo arbitrário da apreciação da prova produzida.
Posto isto, avancemos para os factos impugnados pelo recorrente, considerando as concretas provas que em relação aos mesmos foram indicadas pelo recorrente e em que foi cumprido o disposto no artigo 412º, n.ºs 3 e 4 do CPP.
Comecemos então pelo ponto 3º: «3 – Desde o início da coabitação o arguido passou a apelidar a ofendida de “estúpida”, “burra”, “inútil” e “incompetente”.»
Entende o recorrente que quanto a este ponto a redação deveria ser a seguinte:
«Em contexto de discussão entre o casal, o arguido por vezes apelidava a ofendida de “estúpida”, “burra”, “inútil” e “incompetente”.»
Quanto a este ponto, lida a motivação de facto da sentença e ouvidos os trechos das declarações/depoimentos apontados pelo recorrente (declarações do arguido e assistente e depoimentos das testemunhas BB, filha do casal, e EE, mãe da assistente) conclui-se que a utilização das referidas expressões ocorria por vezes e em contexto de discussão entre o casal, como pretende o recorrente, sendo que essa contextualização tem relevância na descrição dos factos da causa, mas não obstando, face à motivação de facto, que tivessem ocorrido desde o início da coabitação.
Assim, o ponto 3º passará a ter a seguinte redação:
«3 – Desde o início da coabitação o arguido, em contexto de discussão entre o casal, por vezes apelidava a ofendida de “estúpida”, “burra”, “inútil” e “incompetente”.»
Passemos ao ponto 4º: «4 – Em datas não concretamente apuradas, situadas entre 2006 (na gravidez da filha) e 2016, o arguido desferiu murros na face e cabeça da ofendida, desferindo-lhe pontapés e apertando-lhe o pescoço.»
Quanto a este ponto, lida a motivação de facto da sentença e ouvidos os trechos das declarações/depoimentos apontados pelo recorrente (declarações do arguido e assistente e depoimentos das testemunhas BB, filha do casal, e EE, mãe da assistente) conclui-se que, como refere o recorrente, a assistente apenas consegue situar dois episódios no tempo, um durante a gravidez da sua filha, no ano de 2006 ou princípios de 2007 e outro quando se encontrava a dar de mamar ao seu filho que nasceu em 2011, pelo que tem razão o recorrente, devendo a redação genérica do ponto 4 da matéria de facto provada ser corrigida quer no tempo quer no número de situações ocorridas – que são pelo menos duas - alterando-se o referido ponto nos seguintes termos:
«4 – Em datas não concretamente apuradas, pelo menos por duas vezes, uma situada no ano de 2006 ou 2007 (na gravidez da filha) e outra cerca de 2011 ou 2012, o arguido desferiu murros na face e cabeça da ofendida, desferindo-lhe pontapés e apertando-lhe o pescoço.»
Passemos ao ponto 5º: «5 – Quando em restaurantes, o arguido dizia à ofendida: “tens de fazer aquilo que te estou a dizer” e apelidava-a de “estúpida” e “parva”.»
Quanto a este ponto, lida a motivação de facto da sentença e ouvidos os trechos das declarações/depoimentos apontados pelo recorrente (declarações da assistente) e o depoimento da testemunha BB, filha do casal, constatamos que da conjugação dos dois depoimentos se pode retirar a existência de tal facto. Assim, prevalece a decisão do Tribunal recorrido nada havendo a alterar.
Quanto ao ponto 7º: «7 - Tais condutas do arguido cessaram no ano de 2016, quando o mesmo se mudou para o Brasil.»
Neste ponto, também não tem razão o recorrente, pois que, lida a motivação da sentença e tendo em conta as declarações da assistente, os comportamentos agressivos do recorrente, e aqui haverá de se ter em conta que tanto são comportamentos agressivos os insultos como as agressões, só terminaram quando este foi para o Brasil em 2016, pelo que não vemos que a prova indicada pelo recorrente imponha decisão diversa.
Vejamos o ponto 9º: «9 – A partir de então, o arguido passou a perseguir a DD, seguindo-a na via pública e efetuando sucessivos contactos telefónicos para o local de trabalho desta.»
No que respeita ao ponto 9 da matéria de facto provada, o recorrente entende que o mesmo deveria ter sido considerado não provado, porquanto no seu entender a expressão “passou a perseguir a DD” não se trata de um facto, mas sim de uma conclusão. Não tem razão o recorrente, porquanto o período deve ser lido no seu todo. Assim, a redação «passou a perseguir …, seguindo-a na via pública e efetuando sucessivos contactos telefónicos para o local de trabalho desta» lida no seu todo não constitui uma expressão meramente conclusiva, pois o vocábulo comum «perseguir» é concretizado pelo seguimento e pela realização de sucessivos contatos telefónicos.
Assim, este ponto deve manter-se tal como está.
Atentemos agora no ponto 12º: «12 - Na tarde de 6 de Julho de 2020 o arguido questionou a ofendida sobre o teor do depoimento que havia prestado em sede de um outro Inquérito e quando a DD entrou para a sua viatura para sair do local, o mesmo atravessou o seu veículo na frente e, por telefone, declarou-lhe “tens três minutos para saíres do carro e vires ter comigo”.»
Entende o recorrente que não ficou provado que tenha atravessado o carro à frente do carro da assistente, impedindo-a de circular, mas lida a motivação de facto do tribunal recorrido e ouvido o relato da assistente, que refere o modo como ocorreram os factos, descrevendo que primeiro a carrinha do arguido lhe travava a traseira, mas depois explicando que tinha gente a passar e que o arguido travou a passagem do carro da ofendida, que saiu do carro e lhe bateu nos vidros e no teto de abrir e que depois a ofendida conseguiu sair de marcha atrás sendo perseguida pelo arguido. Trata-se como é evidente de uma situação dinâmica e não vemos como do depoimento da ofendida se imponha solução diversa da acolhida na decisão recorrida. Com efeito, se o arguido a dada altura lhe travou o caminho com o carro e a ofendida teve de sair de marcha atrás, a solução encontrada na primeira instância é plausível, não sendo por isso de alterar a matéria de facto.
Quanto aos pontos 11º e 15º da matéria de facto, estes são do seguinte teor:
«11 - O arguido escreveu e endereçou várias mensagens de texto à ofendida e tentou insistentemente conversar com ela por telefone, mesmo sabendo não ser esta a vontade da mesma.»
«15 - A partir daí, o arguido passou a contatar insistentemente com a ofendida, quer por chamadas telefónicas, quer através de mensagens, onde chegou a escrever-lhe: “Demonstras te a barraqueira e pessoa mal educada e sem formação que és lamento que convivas com os nossos filhos, foste chamar a polícia ?!? Porque ? Queres espetáculo ? Puseste te a falar alto , para que ?? Que deus acompanhe os meus filhos e a ti que não te desamparar pois tu bem precisas de um acompanhamento psiquiátrico ou de um psicólogo …”;»
Entende o recorrente que estes carecem de esclarecimentos, uma vez que no que concerne às mensagens e contactos telefónicos, o arguido explicou que contactava a assistente diversas vezes, para combinar de assuntos relacionados com o exercício das responsabilidades parentais dos filhos de ambos, nomeadamente as visitas.
Mas não tem razão o recorrente, pois lida a motivação da decisão de facto e atentando no teor das mensagens e a listagem das chamadas telefónicas de fls. 217 a 226 e a transcrição das mensagens que se mostram juntas aos autos de fls. 137 a 184 e de fls. 318 a 333, bem se compreende que a insistente tentativa de comunicação e efetiva comunicação, e o inequívoco teor agressivo das mensagens e comunicações, não foram feitas com o intuito de simplesmente tratar de assuntos parentais. E a comprová-lo temos ainda o depoimento da testemunha FF que esclareceu que, em 2019, ela e a assistente DD trabalhavam juntas numa fábrica de peças de automóveis e que a DD estava constantemente a receber telefonemas e mensagens do arguido, o que a deixava muito nervosa, assustada e ansiosa, ao ponto de ter passado a deslocar-se para o trabalho no carro da testemunha por ter medo que o arguido a seguisse.
Assim, não parece que a prova indicada pelo recorrente impusesse decisão diversa à tomada pelo tribunal recorrido, devendo estes pontos da matéria de facto manter-se como estão.
Quanto ao ponto 13º: «13 - De seguida, o arguido efetuou o seguimento da mesma por várias artérias e, por telefone, instou-a a parar até que, junto a uns semáforos, lhe declarou diretamente: “isto vai correr tão mal!”..»
Neste ponto, quanto ao qual entende o recorrente dever ser esclarecido, também não tem razão, pois que, lida a motivação da sentença e tendo em conta as declarações da assistente que referiu o caminho durante o qual foi perseguida, parece evidente que percorreu várias ruas, pelo que não vemos que se impusesse decisão diversa, devendo manter-se o decidido.
Quanto ao ponto 21 da matéria de facto diz o recorrente que por coerência com tudo aquilo que se referiu em relação aos outros pontos, o mesmo deveria ser alterado em conformidade. Não alcançamos, face ao que fomos referindo a propósito dos pontos impugnados atrás analisados, que se imponha qualquer modificação da decisão do Tribunal recorrido. E o mesmo se dirá relativamente ao ponto 23 da matéria de facto quanto ao conhecimento do carácter ilícito e criminalmente censurável da sua conduta, mostrando-se a decisão recorrida devidamente fundamentada e de acordo com as regras da experiência e do normal suceder das coisas da vida.
Concluindo, percorrida a matéria de facto impugnada, concluímos que o Tribunal, na fundamentação da matéria de facto explicou, com clareza, o caminho lógico que percorreu para dar como provada aquela matéria, a qual, com exceção dos pontos por nós assinalados, corresponde a uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência, pelo que não se violou o princípio da livre apreciação da prova previsto no artigo 127.º do Código Penal, sendo a decisão sobre a matéria de facto, por isso, inatacável.
Também em relação aos princípios da presunção da inocência e in dubio pro reo cabe dizer que, com exceção dos assinalados pontos, não se verificou violação destas regras, uma vez que o tribunal, tal como resulta da decisão recorrida, não ficou na dúvida, nem se vislumbra que devesse ter ficado quanto à ocorrência dos factos que resultaram provados ou que tivesse de decidir de outro modo quanto aos factos não provados.
Por tudo o que se disse, a matéria de facto assente na primeira instância deve ser alterada nos seguintes termos:
O ponto 3º passará a ter a seguinte redação: «3 – Desde o início da coabitação o arguido, em contexto de discussão entre o casal, por vezes apelidava a ofendida de “estúpida”, “burra”, “inútil” e “incompetente”.»
O ponto 4º passará a ter a seguinte redação: «4 – Em datas não concretamente apuradas, pelo menos por duas vezes, uma situada no ano de 2006 ou 2007 (na gravidez da filha) e outra cerca de 2011 ou 2012, o arguido desferiu murros na face e cabeça da ofendida, desferindo-lhe pontapés e apertando-lhe o pescoço.»
2.3.2- Qualificação jurídica dos factos.
O recorrente insurge-se na parte relativa à qualificação jurídica dos factos apenas quanto ao segundo crime de violência doméstica pelo qual foi condenado, o relativo aos factos ocorridos a partir de 2018, não recorrendo quanto ao primeiro dos crimes, relativo aos factos ocorridos até 2016.
Entende o recorrente que os factos constantes dos pontos 8 a 15 da matéria de facto provada não deviam ter sido qualificados como crime de violência doméstica, entendendo que não estão preenchidos todos os elementos desse tipo de ilícito doméstica e, quando muito, a verificar-se algum crime será o crime de perseguição previsto no artigo 154º-A do Código Penal.
Considerando a matéria de facto assente nesta instância, a qual, na sua essência se mantém igual à fixada na primeira instância, havendo apenas alterações que se poderão considerar de pormenor ou de concretização e apenas relativamente aos factos que integraram o primeiro crime de violência doméstica, desde já se dirá que não merece qualquer censura a qualificação jurídica efetuada pela primeira instância quanto ao segundo dos crimes de violência doméstica, sendo improcedente nesta parte o recurso do arguido.
Com efeito, resulta do artigo 152º do Código Penal que o bem jurídico protegido no crime de violência doméstica é complexo, abrangendo a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e a honra, em suma trata-se de proteger a integridade corporal, saúde física e psíquica e dignidade da pessoa humana, em contexto de relação seja de coabitação conjugal ou análoga ou de namoro e mesmo após cessar aquela coabitação.
Assim, as condutas previstas e punidas por este artigo podem ser de várias espécies: maus tratos físicos, ou seja, ofensas corporais simples, maus tratos psicológicos, isto é, humilhações, provocações, privações da liberdade, molestações, ameaças, insultos, tratamento cruel, isto é, desumano, etc.
Mas tal basta apenas a existência de maus-tratos físicos ou psicológicos, torna-se ainda necessário que tais atos sejam reveladores de um tratamento insensível ou degradante da condição humana da sua vítima.
Como elemento subjetivo exige-se o dolo.
Na alínea a) do n.º 2 do artigo 152º prevê-se, com interesse para o caso dos autos, uma variante agravada para o caso de o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima.
Resulta dos factos provados, em suma e na parte que agora interessa a analisar, que o arguido e a ofendida DD iniciaram uma relação de intimidade, com coabitação, no ano de 2006, e que em 2016 o arguido se ausentou para o Brasil. Em 2018 o arguido regressou definitivamente do Brasil com intenção de reatar com a ofendida, o que esta recusou e a partir de então o arguido passou a perseguir a DD, seguindo-a na via pública e efetuando sucessivos contactos telefónicos para o local de trabalho desta; disse à ofendida que “se não for dele, não será de mais ninguém”; escreveu e endereçou várias mensagens de texto à ofendida e tentou insistentemente conversar com ela por telefone, mesmo sabendo não ser esta a vontade da mesma; na tarde de 6 de Julho de 2020 o arguido questionou a ofendida sobre o teor do depoimento que havia prestado em sede de um outro Inquérito e quando a DD entrou para a sua viatura para sair do local, o mesmo atravessou o seu veículo na frente e, por telefone, declarou-lhe “tens três minutos para saíres do carro e vires ter comigo”, efetuou o seguimento da mesma por várias artérias e, por telefone, instou-a a parar até que, junto a uns semáforos, lhe declarou diretamente: “isto vai correr tão mal!”, só cessou a perseguição à ofendida quando se apercebeu que esta se dirigia a uma Esquadra policial; a partir daí, o arguido passou a contatar insistentemente com a ofendida, quer por chamadas telefónicas, quer através de mensagens; e que o arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de molestar a ofendida no seu corpo e saúde, de afetar a respetiva capacidade de reação e movimentação, de não respeitar a sua vontade e de a destratar enquanto pessoa livre e autónoma não desconhecendo o carácter ilícito e criminalmente censurável da sua conduta.
Ora, tal comportamento do arguido, após a recusa da ofendida de reatar a relação, com seguimentos na via pública e telefonemas e mensagens constantes, com o atravessamento do veículo e perseguição automóvel à ofendida e ameaças de que se não era para ele não era para ninguém, constitui um comportamento maltratante, molestador que revela, claramente, um tratamento insensível ou degradante da condição humana da sua vítima.
E mais resulta dos factos provados o elemento subjetivo do tipo de ilícito em causa.
O facto de tal comportamento integrar também o crime de perseguição previsto no artigo 154º-A do Código Penal, não afasta a qualificação dos factos como crime de violência doméstica.
Com efeito, o crime de violência doméstica, dado o bem jurídico complexo protegido, encontra-se quase sempre em concurso aparente com um ou vários de diversos crimes base, como por exemplo, a ameaça, a coação, a ofensa à integridade física, a injúria, a perseguição.
Por isso que no artigo 152º, n.º 1 Código Penal se prevê uma cláusula de subsidiariedade expressa: «(…) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.»
Nos casos em que a punição do crime que se encontra também preenchido pela conduta do agente tiver uma moldura penal inferior ao da violência doméstica, prevalece a punição pelo crime de violência doméstica.
E é o que sucede no caso dos autos, em que o crime de perseguição tem uma moldura inferior ao da violência doméstica.
Por outro lado, também o artigo 154º-A, n.º 1 do CP, relativo ao crime de perseguição, que o recorrente invoca, também tem uma cláusula de subsidiariedade expressa: «(…) é, punido com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.»
E esta cláusula afasta a aplicação do artigo 154º-A do CP, determinando a aplicação da norma da violência doméstica, cuja moldura peal é mais grave.
Ora, face a estas considerações, censura não há a fazer à decisão recorrida quanto à qualificação jurídica dos factos, pelo que, não havendo lugar quer a absolvição do segundo crime de violência doméstica pelo qual o recorrente foi condenado ou à sua convolação para o crime de perseguição, improcede o recurso nesta parte.
2.3.3- Determinação da pena – da redução da pena aplicada.
Entende o recorrente que a pena aplicada pelo crime de violência doméstica agravada, o primeiro dos crimes cometidos, deve ser atenuada especialmente e aplicada uma pena próxima do limite mínimo legal, reduzido a 1/5 ao abrigo do artigo 73.º do Código Penal (ou seja, uma pena de 5 meses de prisão), e suspensa na sua execução ou, subsidiariamente, que a pena aplicada, pela prática destes factos, deveria sempre situar-se próxima do limite mínimo legal, ou seja, 2 anos (suspensa na sua execução, como bem decidiu o tribunal).
Argumenta para tanto e em resumo que o arguido corrigiu a sua conduta e cessou as ofensas físicas em 2011, tendo continuado, por mais 5 anos, a fazer uma vida em comum com a assistente e com os filhos de ambos e que tendo em conta que decorreram mais de 10 anos sobre as ofensas físicas praticadas pelo arguido, e atendendo a que as expressões utilizadas pelo mesmo apenas foram proferidas em contexto de discussão, encontram-se reunidas condições para uma atenuação especial da pena, ao abrigo do n.º 1 e da alínea d), do n.º 2, do artigo 72.º do Código Penal, com as consequentes alterações dos limites previstos no artigo 73.º do Código Penal.
Comecemos pela pretendida atenuação especial.
A moldura penal aplicável ao crime de violência doméstica cometido pelo recorrente é, nos termos do artigo 152.º, n.º 2, do Código Penal, de pena de prisão de 2 a 5 anos.
Nos termos do artigo 72º, n.º 1 do Código Penal, «O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.»
E dispõe tal artigo no seu n.º 2 que:
«Para efeito do disposto no número anterior, são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:
a) Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;
b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;
c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;
d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta.»
O princípio que regula a aplicação deste instituto, como ensina Figueiredo Dias[1], é a diminuição acentuada não só da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena, e consequentemente das exigências de prevenção.
As circunstâncias previstas no n.º 2 não têm o efeito automático de desencadear o efeito atenuativo especial, mas apenas quando da sua presença se poder concluir que a «imagem global do facto», resultante da atuação da ou das circunstâncias, se apresente tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respetivo.
A atenuação especial da pena só em casos extraordinários ou excecionais pode ter lugar: para a generalidade dos casos, para os casos «normais», lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios[2].
Ora, vistos os factos provados, não vemos como concluir que estejamos perante um caso extraordinário.
Com efeito, a ilicitude do facto é elevada, quer em si mesma quer em face da sua reiteração, tendo em conta as concretas condutas assumidas pelo arguido, com agressões, ameaças, insultos, prolongadas no tempo e o facto de terem ocorrido, embora parte delas há já uma década, não baixa as exigências de prevenção de modo a fazer crer que o caso se fasta de tal modo da normalidade que a moldura penal normal é excessiva, tanto mais que o arguido quando regressou do Brasil voltou a cometer um crime de violência doméstica sobre a ofendida, o que faz concluir que a necessidade de pena não se esbateu.
Por outro lado, a culpa do arguido é elevada, revelando a sua indiferença perante a vítima e uma personalidade altamente desvaliosa, dada a conceção desvirtuada que demonstrou possuir sobre a relação entre homem e mulher.
Concluindo, não há fundamento para fazer funcionar o instituto da atenuação especial da pena, como pretende o recorrente.
Vejamos agora se, ainda que sem aplicação da atenuação especial, se deve reduzir a pena aplicada ao arguido para o primeiro crime de violência doméstica cometido. Face aos factos provados na decisão recorrida, atentemos no direito.
Nos termos do artigo 40º, nº 1 do Código Penal a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Por sua vez, dispõe o nº 2 do mesmo artigo que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
Prevenção e culpa são, portanto, os critérios gerais a atender na fixação da medida concreta da pena, refletindo a primeira a necessidade comunitária da punição do caso concreto e constituindo a segunda, dirigida ao agente do crime, o limite às exigências de prevenção e portanto, o limite máximo da pena.
A medida da pena resultará da medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos no caso concreto, ou seja, da tutela das expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada – prevenção geral positiva ou de integração – temperada pela necessidade de prevenção especial de socialização, constituindo a culpa o limite inultrapassável da pena.
Quanto à medida concreta da pena, cabe referir que esta apura-se de acordo com o preceituado no artigo 71º, ou seja:
“... em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, atendendo “a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele”.
Resulta deste preceito que são as exigências de prevenção geral que hão de definir a chamada moldura da prevenção, em que o limite máximo da pena corresponderá à medida ótima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena se deve propor alcançar e o limite inferior será aquele que define o limiar mínimo de defesa do ordenamento jurídico, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmente em causa aquela sua função tutelar.
Dentro dessa moldura da prevenção geral, cabe à prevenção especial determinar a medida concreta.
Essa determinação em função da satisfação das exigências de prevenção obriga à valoração de circunstâncias atinentes ao facto (modo de execução, grau de ilicitude, gravidade das suas consequências, grau de violação dos deveres impostos ao agente, conduta do agente anterior e posterior ao facto, etc.) e alheias ao facto, mas relativas à personalidade do agente (manifestada no facto), nomeadamente as suas condições económicas e sociais, a sensibilidade à pena e suscetibilidade de ser por ela influenciado, etc.
Vejamos então.
Consideraram-se na decisão recorrida os seguintes elementos:
«Utilizando os critérios vindos de enunciar, importa ponderar que, “in casu”, a gravidade do ilícito, plasmada no grau de ilicitude dos factos, no modo de execução destes e no grande período temporal em que persistiram os maus-tratos, é relevante.
Por outro lado, os bens ou valores jurídicos lesados são comunitariamente muito relevantes, acrescendo o laço afectivo do arguido com a vítima DD, a impor um especial dever de respeito ao arguido pela sua companheira e mãe dos seus filhos.
De destacar, ainda, as elevadíssimas necessidades de prevenção geral atentos os bens jurídicos protegidos e a grande frequência com este tipo de crimes ocorre na comunidade, tantas vezes com resultados dramáticos, com o consequente enorme alarme social associado a este tipo legal de ilícito.
No que respeita à culpabilidade do arguido, importa frisar a intensidade do dolo, revelando os factos igualmente uma atitude de negação e desprezo por bens e valores jurídicos relevantes por parte do arguido.
Quanto à personalidade do arguido AA, é de assinalar o seu percurso escolar ajustado e investido, bem como a sua inserção laboral, encontrando-se actualmente a trabalhar para duas empresas, uma delas no ramo de produtos alimentares e de higiene e protecção pessoal, e outra na área de produtos congelados de padaria e pastelaria, auferindo cerca de € 800,00 mensais. A favor do arguido milita ainda a circunstância de beneficiar de apoio familiar (dos seus pais e da sua actual namorada, relacionamento que perdura desde há cerca de 2 anos) e psicológico (a 13/12/2021 iniciou acompanhamento psicológico junto do serviço de psicologia do Centro Social ... – ADICE, frequentando ainda, desde Dezembro de 2021, programa de intervenção na parentalidade desenvolvido pelo CAFAP).
Em desabono do arguido destacam-se os seus antecedentes criminais, tendo sido já condenado pela prática dos crimes de desobediência, falsificação de documentos, abuso de confiança fiscal e gravações e fotografias ilícitas; a sua “indefinição” habitacional (apesar de afirmar residir em casa dos pais, tal não é confirmado pelos familiares próximos, como consta do relatório social), bem como a circunstância de se “demarcar” das razões que deram origem ao presente processo, atribuindo a instauração do mesmo a iniciativa reactiva da assistente, postura que manteve em audiência de julgamento ao negar a maior parte dos factos que lhe são imputados nestes autos.»

Destes fatores, quando se refere na decisão recorrida «Em desabono do arguido destacam-se (…), bem como a circunstância de se “demarcar” das razões que deram origem ao presente processo, atribuindo a instauração do mesmo a iniciativa reactiva da assistente, postura que manteve em audiência de julgamento ao negar a maior parte dos factos que lhe são imputados nestes autos», valorou-se contra o arguido o seu comportamento processual, ao não assumir os factos, o que não deveria ter sido feito.
Se é certo que um dos fatores de medida de pena que podem depor contra o arguido é a sua conduta posterior ao facto criminoso (artigo 72º, n.º 1 e 2 al. e) do CP) e se também não se duvida que o comportamento processual do arguido é uma conduta posterior a tal facto, a verdade é que não se pode nunca esquecer que o processo criminal, nos termos do artigo 32º, n.º 1 da Constituição, assegura todas as garantias de defesa.
Entre as garantias de defesa encontra-se em posição de destaque a liberdade que o arguido tem de escolher o modo como pretende exercer a sua defesa, desde logo através opção de se remeter ao silêncio, sem que por isso possa ser desfavorecido, ou de prestar declarações, confessando ou negando os factos, ou de apresentar versão diversa dos factos imputados, sem que esse modo de defesa que livremente assumiu possa ser censurado.
Não é o modo de defesa escolhido pelo arguido que está a ser julgado, sob pena de se pôr em causa tal liberdade de escolha e ficarem minadas as garantias de defesa do processo penal.
A prestação de declarações, embora não deixe de constituir um meio de prova, constitui na essência um meio de defesa do arguido, pelo que deve ser garantida a liberdade do seu exercício.
Assim, seguindo na esteira do ensinamento de Eduardo Correia, Figueiredo Dias e Maria João Antunes[3], entendemos que o comportamento processual do arguido (o silêncio, a não confissão, a negação dos factos, a apresentação de versão diversa da que resultou provada, etc…) não deve, por princípio, ser valorado contra si, atenta a posição em que se encontra e a necessidade de acautelar o seu direito de defesa, a não ser que seja de imputar à intenção de prejudicar o decurso normal do processo[4], a qual desde já adiantamos não se vislumbra no caso dos autos.
Nas palavras de Eduardo Correia[5]: “A negação do crime corresponde, por seu lado, a um direito do arguido e portanto não pode, necessariamente, considerar-se elemento da agravação da pena. Em processo penal não há, por parte do arguido, um «dever de colaboração com a justiça», nem tão-pouco se poderá falar aqui de dolo ou má fé processual.
E até há quem, como Hans-Heinrich Jescheck, vá mais longe e recuse qualquer tomada de consideração do comportamento processual na individualização da pena porque colide com a máxima processual de que o acusado possui liberdade para articular a sua defesa do modo que deseje[6].
Considerar-se como fator de medida de pena que depõe contra o arguido, nos termos do artigo 71º, n.º 1 e 2, e) do Código Penal, o facto de este se ter remetido ao silêncio, não ter confessado, ter negado os factos ou apresentado versão diversa da que veio a resultar provada, constitui uma compressão injustificada da liberdade de escolha do modo de defesa e, por aí, uma clara violação do direito de defesa do arguido e do processo justo e equitativo, consagrados nos artigos 61º do Código de Processo Penal e 32º, n.º 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa e 48º, n.º 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
Com efeito, se qualquer uma destas circunstâncias de facto fosse suscetível de como fator de medida de pena, enquanto conduta posterior ao facto, ser valorada contra o arguido, este poderia ficar não só compelido a falar, como a confessar os factos imputados ou, então, se apresentasse uma versão diferente dos factos imputados, a tentar acertar na versão dos factos que o Tribunal viesse a dar como provada, sempre sob pena de o seu constitucionalmente garantido comportamento processual poder vir a ser valorado contra si em sede de determinação da pena.
Ora, como refere Germano Marques da Silva, a propósito do direito ao silêncio do arguido e à não punição da mentira, há que ter a humildade de reconhecer que a verdade judiciária não é necessariamente a verdade histórica[7] [8].
Assim, o facto de o arguido não ter confessado os factos, negando a maioria ou apresentando versão diversa da que resultou provada, constitui circunstância inócua para a medida da pena.
Desconsiderando então o referido fator inócuo para a determinação da medida da pena, entendemos que, para cumprir as exigências de prevenção geral positiva, com alguma importância atenta a frequência deste tipo de comportamentos violentos em contexto relacional, a que acrescem os antecedentes criminais, mas não deixando de ter em conta relativamente às exigências de prevenção especial que pesam a favor do recorrente, como se refere na decisão recorrida, a inserção laboral e familiar do arguido e o acompanhamento psicológico, tudo visto afigura-se adequada a pena de 2 anos e 2 meses de prisão.
Relativamente ao segundo grupo de factos, correspondentes ao crime de violência doméstica simples, entendemos que são também aplicáveis as considerações que fizemos a propósito do primeiro dos crimes, designadamente as exigências de prevenção geral elevadas, dada a frequência com que este modo de execução do crime de violência doméstica ocorre, mais se tendo em conta as condenações anteriores e os fatores favoráveis da inclusão familiar, laboral e o acompanhamento psicológico, afigura-se adequada a pena de 1 ano e 2 meses de prisão.
Quanto à pena única, afigura-se, obedecendo aos parâmetros do artigo 77º do Código Penal, considerando a moldura de 2 anos e 2 meses a 3 anos e 4 meses de prisão, dada a gravidade já com alguma importância do conjunto dos factos, dois crimes de violência doméstica sobre a mesma vítima e cometidos ao longo do tempo, com uma quebra e depois um retomar da atividade criminosa, os antecedentes criminais e a personalidade do arguido, que demonstra nos factos cometidos ser desrespeitosa dos bens jurídicos pessoais, afigura-se adequada em ordem a satisfazer as exigências de prevenção do crime, a sua fixação em 2 anos e 6 meses de prisão.
A suspensão da pena de prisão manter-se-á com as obrigações nela fixadas pela primeira instância, não só por se mostrar adequada face ao conjunto das circunstâncias atendíveis como também por dela não ter sido interposto recurso. O período será de 2 anos e 6 meses, nos termos do artigo 50º, n.º 1 e 5 do Código Penal, o qual se mostra adequado e suficiente às exigências de prevenção geral e especial do caso.
2.3.4- Redução da indemnização.
Entende o recorrente que a quantia que foi condenado a pagar à assistente deverá ser reduzida consideravelmente.
As agressões, injurias, ameaças veladas, seguimentos, telefonemas e mensagens que consubstanciaram os crimes cometidos pelo arguido constituem sofrimentos, danos de natureza moral ou não patrimonial cuja gravidade implica o merecimento da tutela do direito, devendo ser indemnizados por montante a fixar equitativamente pelo Tribunal, nos termos do artigo 496º, nº1 e 3 do Código Civil.
A fixação equitativa do montante indemnizatório dos danos não patrimoniais sofridos pela ofendida deve ter em conta o grau de culpabilidade do arguido, a situação económica deste e do lesado e outras circunstâncias pertinentes, tendo de constituir sempre um mínimo de efetiva compensação pelos sofrimentos sentidos, sob pena de não se pode falar sequer de uma indemnização.
O montante da indemnização deve ser proporcionado à gravidade do dano, objetivamente, apreciado, tendo a decisão recorrida, tal como resulta do trecho da decisão acima transcrito, enunciado de forma suficiente o processo lógico através do qual chegou à liquidação do dano, à fixação da compensação.
Considerando, por um lado, a gravidade da conduta do arguido, no modo de execução dos crimes de violência doméstica, com as agressões descritas nos factos provados, as injúrias e ameaças prolongadas no tempo e as perseguições, bem como a culpa dolosa, intensa; e, por outro lado, a sua condição económica modesta, afigura-se adequada, em ordem a conduzir a um juízo equitativo de compensação, a fixação da indemnização em 3.200€, tal como decidido pela primeira instância.
Assim, nesta parte é de negar provimento ao recurso.
*
3- DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao recurso do arguido e, em consequência:
a) Alterar a matéria de facto conforme referido supra em 2.3.1.
b) Reduzir a pena aplicada ao crime de violência doméstica agravado para dois anos e dois meses de prisão.
c) Reduzir a pena aplicada ao crime de violência doméstica simples para um ano e dois meses de prisão.
d) Reduzir a pena única do cúmulo jurídico para dois anos e seis meses de prisão, mantendo-se a suspensão da sua execução como decretado na sentença recorrida, com o regime de prova e as condições nela fixadas, mas pelo período de dois anos e seis meses.
c) No mais, manter a decisão recorrida.
*
Custas: sem custas na parte criminal e na parte civil com custas pelo recorrente.
*
Notifique.
(Elaborado e revisto pelo relator – art. 94º n.º 2, do CPP)
Porto, 13 de julho de 2022
William Themudo Gilman
Liliana Páris Dias
________________________________
[1] Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do Crime, 1993, p. 305.
[2] Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do Crime, 1993, p. p. 306-307.
[3] Cfr. sobre esta matéria: Eduardo Correia, Direito Criminal II, 1968, pág. 330; Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, Aequitas, 1993, pág. 255; Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Primeiro Volume I, 1981, págs. 448-449; Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, 2ª ed. 2022, p. 57; e, ainda, Claus Roxin e Bernd Schunemann, Derecho Procesal Penal, Buenos Aires, 2019, pág. 312; bem como o Ac. TRP de 17-06-2020 (William Themudo Gilman), in www.dgsi.pt; e ainda os Ac TRP de 08-06-2022 (Processo n.º 307/21.3PAVNG.P1), TRP de 27-04-2022 (Proc. n.º 1176/20.6T9PNF.P1), TRP de 14-04-2021 (Proc. n.º 301/20.1GBAGD.P1), TRP de 06-05-2020 (Proc. n.º 20/19.1PASJM.P1), TRP de 06-11-2019 (Proc. 842/17.8T9AGD.P1), não publicados em dgsi.pt, mas consultáveis no registo de decisões da plataforma Citius.
[4] Cfr., de novo Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, Aequitas, 1993, pág. 255; Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, 2ª ed. 2022, p. 57.
[5] Cfr.: Eduardo Correia, Direito Criminal II, 1968, pág. 330.
[6] Cfr. Hans-Heinrich Jeschek e Thomas Weigend, Tratado de Derecho Penal, Parte General, 5ª ed., Granada, 2002, pág. 964.
[7] Cfr. Germano Marques da Silva, Direito Processual Português, 2ª ed. 2017, pág.317.
[8] Cfr. sobre o direito ao silêncio e à não punição da mentira, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Primeiro Volume, 1981, págs. 449-452.