Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
34/14.8T8PNF-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANTÓNIO LUÍS CARVALHÃO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO E DE TRABALHO
DANO BIOLÓGICO
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RP2023091834/14.8T8PNF-A.P1
Data do Acordão: 09/18/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; CONFIRMADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - Quando na apreciação do acidente enquanto acidente de viação (processo cível) é arbitrada quantia a título de dano biológico (na vertente patrimonial, mais concretamente perda da capacidade de ganho) com recurso à equidade, ainda que para tal sejam ponderados alguns elementos objetivos referenciais, entre eles a retribuição anual auferida pelo sinistrado, o valor é fruto de um juízo equitativo.
II - Assim, o facto do valor dessa retribuição referencial ser superior à considerada para fixar as prestações devidas por aplicação da LAT [por aquela incluir prémio de produtividade e ajudas de custo] não permite dizer que o dano concreto reparado não é o mesmo, muito menos se podendo afirmar que se o valor da indemnização pelo dano biológico recorrendo, entre outros elementos, a uma retribuição de X foi de € 400.000,00, se fosse ponderada uma retribuição de Y a indemnização seria de W, e considerar este valor W como limite até ao qual tem lugar a suspensão de direito a pensões/direitos resultantes de acidente de trabalho, pois tal desvirtuaria a ponderação equitativa do “tribunal cível”.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de apelação n.º 34/14.8T8PNF-A.P1
Origem: Comarca do Porto Este, Juízo do Trabalho de Penafiel – J1

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
No processo apenso, para efetivação de direitos emergentes de acidente de trabalho, são Sinistrado AA e Entidade Responsável a Seguradora “A... – Companhia de Seguros, S.A.”.

Em 10/10/2018 foi homologado acordo alcançado entre as partes, o qual previa o seguinte (como ficou a constar do respetivo Auto de Conciliação, que se reproduz):
Pelo SINISTRADO foi dito:
Que no dia 30 de Setembro de 2013, cerca das 18:30 horas, em ... – Amarante, foi vítima de um acidente de trabalho quando exercia as funções de condutor manobrador, sob as ordens, direção e fiscalização da entidade empregadora B... Lda., Endereço: Zona Industrial, ... ..., ... ... – Pnf, mediante a retribuição anual de (€ 545,00 x 14) + (€ 5,65 x 242) + (€ 2.212,67 x 1) – total anual € 11.209,97, cuja responsabilidade se encontrava totalmente transferida para a Seguradora.
O acidente ocorreu quando ao ocorreu um acidente de viação entre um automóvel ligeiro e a carrinha em que seguia, do evento resultou encarceramento, o que resultou traumatismo da cabeça e destes, fémur esquerdo, pé esquerdo e joelho esquerdo.
Submetido a exame médico no gabinete médico-legal de Penafiel foi-lhe atribuído o grau de incapacidade de 100% (IPA) e fixada a data da alta em 30 de março de 2016, data em que se completaram 30 meses após o acidente.
Reclama a quantia de € 28,00 a título de deslocações ao Tribunal e ao GML de Penafiel.
Reclama a pensão anual, vitalícia e atualizável no montante de € 8.967,98, acrescida do valor de € 2.241,99 relativa a familiares a cargo (seus filhos BB, estudante, nascido a .../.../2001, CC, estudante, nascido a .../.../2003 e DD, nascido a .../.../2015) a serem pagas mensalmente, até ao 3º dia de cada mês e no seu domicílio devidas a partir de 31 de março de 2016, correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão, bem como o subsídio de férias e de Natal, cada um igualmente no valor de 1/14 da pensão anual, a serem pagos nos meses de junho e novembro de cada ano, respetivamente, conforme o disposto no art.º 48º, nº 3, alínea a), 49º, nº 1, alínea c), 60º, nº 1 e 72º, nº 2, da Lei 98/2009, de 04 de setembro.
Reclama, ainda, o subsídio por elevada incapacidade permanente no valor de € 5.533,70.
Pelo legal representante da Companhia de Seguros foi dito: Aceita a existência e caracterização do acidente como de trabalho, o nexo de causalidade entre as lesões e o acidente, a retribuição transferida de (€ 545,00 x 14) + (€ 5,65 x 242) + (€ 2.212,67 x 1), o grau de incapacidade atribuído pelo perito médico do gabinete médico-legal.
Aceita, por isso, conciliar-se nos termos requeridos pelo sinistrado.

Em 08/01/2020 foi decidido incidente de revisão, nos seguintes termos:
1) declara-se que o sinistrado AA, em consequência do acidente de trabalho em apreço nos presentes autos, se encontra afetado desde 13/11/2018 de uma incapacidade permanente parcial de 44% com IPATH;
2) condena-se a responsável “A... – Companhia de Seguros, S.A.” no pagamento, ao sinistrado, da pensão anual e vitalícia, com efeitos desde 13/11/2018, no montante de € 6.591,46 (seis mil quinhentos e quarenta e um euros e quarenta e seis cêntimos).

Em 11/05/2022 veio a “A... – Companhia de Seguros, SA”, por apenso ao processo de acidente de trabalho, impulsionar o presente processo de declaração de suspensão de direito a pensões/direitos resultantes de acidente de trabalho [art.º 151º, nº 1 do Código de Processo do Trabalho], pedindo, nos termos dos artos 151º e 153º do Código de Processo do Trabalho, que fosse desonerada de pagar a pensão ao Sinistrado, sendo decretada a suspensão do direito do Requerido ao recebimento da pensão anual e vitalícia que lhe vem sendo paga pela Requerente, até que se esgote o montante de € 400.000,00 pago pela Seguradora C... – Companhia de Seguros, S.A., ao Réu, a título de dano patrimonial futuro, no âmbito da ação que correu termos sob o nº 2712/18.3T8PNF no Tribunal da Comarca do Porto Este, Juízo Central Cível de Penafiel, Juiz 2.
Alegou para tanto, em síntese, que o acidente em causa no processo é simultaneamente de trabalho e de viação, tendo no processo no qual se discutiu o acidente enquanto de viação, no qual a Requerente foi interveniente, sido proferida sentença, com trânsito em julgado, condenando a seguradora para a qual foi transferida a responsabilidade decorrente do acidente de viação no pagamento de «indemnização devida a título de compensação dos danos de natureza patrimonial futuros, decorrentes da incapacidade geral para o trabalho (IPG), também denominado défice-funcional permanente o seguinte: tudo em conjunto, entende o tribunal que o valor justo da indemnização deve ser na ordem dos € 400.000,00, valor ao qual têm de ser subtraídas as verbas recebidas da ISS e da Interveniente pelo dano em causa»; esse valor indemnizatório englobou o valor pago e fixado no âmbito de pensão anual e vitalícia determinado no processo por acidente de trabalho apenso; tem sido jurisprudência pacífica que as indemnizações não se cumulam, sendo complementares, no sentido de que as devidas pelo acidente de trabalho subsistem para além da medida em que são absorvidas pelas pagas por outros responsáveis civis; estão verificados os pressupostos para ser decretada a suspensão do dever da Requerente pagar a pensão até que se esgote o montante recebido pelo Requerido a título de ressarcimento dos danos patrimoniais futuros no processo relativo ao acidente enquanto de viação.

Realizada «audiência de partes» frustrou-se a conciliação das mesmas, pelo que foi o Requerido notificado para poder contestar, apresentando então o mesmo contestação, alegando, em resumo, que apenas há cumulação/duplicação de indemnizações se estivermos perante o mesmo dano, e não é esse o caso dos autos, pois no processo apenso está em causa pensão que visa ressarcir o dano patrimonial futuro inerente à perda de capacidade de ganho (IPP), enquanto no processo relativo ao acidente enquanto de viação foi arbitrada uma indemnização pelo dano da lesão da integridade psicofísica suscetível de avaliação médico-legal, correspondente a um dano biológico que, além das implicações ao nível profissional, compensa pelas consequências nefastas, diretas ou indiretas, ao nível das atividades pessoais (o tornar a vida do Requerido mais penosa e difícil), pelo que não se pode dizer que o ressarcimento do dano biológico, na sua vertente patrimonial, represente uma duplicação da indemnização consubstanciada no recebimento da pensão anual fixada em sede de acidente de trabalho; caso assim não se entenda a cumulação é apenas parcial porquanto nos cálculos do dano biológico foram considerados rendimentos do trabalho superiores aos considerados no cálculo da pensão resultante do acidente de trabalho (“prémio de produtividade” e “ajudas de custo”), que representa cerca de metade do valor arbitrado; concluiu dever improceder o pedido da Requerente.

Foi proferido despacho a possibilitar à Requerente pronunciar-se sobre exceção invocada pelo Requerido, e ainda a determinar a notificação das partes para se poderem pronunciar sobre o eventual efeito de caso julgado da sentença proferida em sede de primeira instância no processo nº 2712/18.3T8PNF quanto ao enquadramento dos pedidos aí formulados pela então interveniente e ora Autora, descritos no ponto “III. Agora quanto ao pedido da interveniente” da citada sentença, mais precisamente quanto à perda de direito do ora Ré “às prestações que vinha recebendo por doença ou invalidez” e, consequentemente, sua consideração de que o valor pago ao Autor a título de pensões “se destina, precisamente, a indemnizar o dano emergente da IPP da qual o Autor ficou a padecer”, que deve ser deduzido à quantia fixada ao Autor a título de dano biológico.

Depois de as partes se pronunciarem, e de ser realizada «audiência prévia» (convolando audiência de julgamento que fora agendada), foi proferido despacho saneador, conhecendo de mérito, declarando a suspensão da obrigação da Requerente “A... - Companhia de Seguros, S.A.” a pagar a pensão anual devida ao sinistrado AA até perfazer o montante de € 400.000,00 (quatrocentos mil euros).
Foi fixado o valor do processo em € 400.000,00.

Não se conformando com a sentença proferida, dela veio o Requerido/Sinistrado interpor recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES, que se transcrevem[1]:
1.ª O (pretenso) direito que, por via da presente ação, a Autora A... pretende fazer valer contra o Recorrente advém-lhe do disposto nos nos 2 e 3 do art.º 17º da NLAT (Lei nº 98/2009, de 04 de setembro).
2.ª É sabido que, no caso de acidente de viação, quando este é simultaneamente abrangido pela responsabilidade civil e pela responsabilidade infortunística laboral, a primeira tem um carácter primacial relativamente à segunda, surgindo esta última como complementar daquela.
3.ª E é pacífico que, atento o citado regime legal vigente e aplicável, as indemnizações por acidentes que sejam, em simultâneo, de viação e de trabalho não são cumuláveis, complementando-se entre si até que o seu valor global se mostre apto a ressarcir integralmente o dano.
4.ª Não se ignora também que é vedado ao lesado obter, em duplicado, o ressarcimento do mesmo dano da seguradora do risco viário e da seguradora do risco laboral.
5.ª Porém, apenas haverá cumulação/duplicação de indemnizações se estivermos perante o mesmo dano.
6.ª E não ocorre cumulação/duplicação se os danos ressarcidos forem distintos, o que ocorre no confronto entre o denominado dano biológico, enquanto dano esforço em geral, e o dano patrimonial futuro decorrente da incapacidade permanente parcial para uma profissão, que é um dano específico, não sendo abrangido por aquele primeiro.
7.ª No caso sub judice, do confronto da decisão proferida no âmbito da ação cível emergente de acidente de viação, mormente do cotejo do douto acórdão do STJ, concluiu-se que aí foi fixada ao aqui Recorrente uma indemnização pelo dano biológico, na sua vertente patrimonial, resultante do défice funcional permanente da integridade físico-psíquica que o afeta.
8.ª Por sua vez, no processo principal (emergente do acidente de trabalho), foi fixada uma pensão anual calculada com base na IPP atribuída ao Sinistrado, ora Recorrente, e no salário que este auferia, transferido para a entidade responsável, aqui Recorrida.
9.ª Assim, a indemnização fixada no âmbito do processo emergente do acidente de viação e aqueloutra fixada no acidente de trabalho visam ressarcir danos distintos, não se tratando da mesma coisa.
10.ª Na ação emergente de acidente de trabalho, foi atribuída ao aqui Recorrente uma indemnização, em forma de pensão anual, destinada a ressarcir o dano patrimonial futuro inerente à perda de capacidade de ganho (IPP).
11.ª Por sua banda, na ação cível, emergente de acidente de viação, foi arbitrada ao aqui Recorrente uma indemnização pelo dano da lesão da integridade psicofísica suscetível de avaliação médico-legal, correspondente a um dano biológico.
12.ª Interpretando o douto acórdão proferido pelo STJ no âmbito da ação civil, não pode concluir-se que a quantia que, em sede de acidente de viação, foi arbitrada ao aqui Recorrente a título de ressarcimento do dano biológico, na sua vertente patrimonial represente uma duplicação da indemnização consubstanciada no recebimento da pensão anual fixada em sede de acidente de trabalho.
13.ª Pelo contrário, será adequado concluir que a indemnização pecuniária de € 400.000,00 fixada no douto acórdão do STJ proferido no âmbito da ação cível não tinha como função ou finalidade a compensação das perdas salarias e prejuízo patrimonial decorrentes do grau de incapacidade laboral fixado no âmbito do processo de acidente de trabalho, mas antes indemnizar o dano biológico.
14.ª Conforme tem sido reafirmado na jurisprudência do STJ, o dano biológico vem sendo qualificado pela jurisprudência dos nossos Tribunais superiores como tratando-se de um dano base ou um dano-evento, que deve e merece ser ressarcido autonomamente, enquanto dano de natureza patrimonial, pois que, para além das implicações ao nível profissional, sempre terá consequências nefastas, diretas ou indiretas, ao nível das atividades pessoais, tornando a vida diária do lesado mais penosa e difícil.
15.ª Temos, pois, que a indemnização pelo dano patrimonial futuro emergente da IPP, fixada em sede de processo emergente de acidente de trabalho e a indemnização pelo dano biológico, na sua vertente patrimonial, são realidades distintas entre si.
16.ª Tratando-se, pois, de danos distintos – dano biológico, enquanto dano esforço em geral e dano futuro decorrente da incapacidade permanente para uma profissão, que é um dano específico – não existe no caso vertente uma duplicação de indemnizações em favor do ora recorrente suscetível, como tal, de provocar um injustificado enriquecimento deste e de motivar a pretendida suspensão/exoneração da pensão.
17.ª O dano patrimonial que a indemnização fixada na ação cível visou ressarcir, não é um dano laboral, mas sim um dano biológico, que mais não é do que um dano patrimonial indireto, correspondente à designada afetação da capacidade física/psíquica do lesado, aqui recorrente, com repercussão nas suas atividades da vida diária, familiares, domésticas, sociais, desportivas e de lazer.
18.ª É patente a diversidade dos danos que as indemnizações recebidas por acidente de trabalho e por acidente de viação visaram ressarcir, pelo que inexiste in casu, o indispensável fenómeno da duplicação, de que depende o direito de exoneração, razão pela qual fenece à recorrida A... o direito de exoneração de que se arroga e que o Tribunal a quo, erradamente, lhe consentiu.
Sem prescindir:
19.ª Por cautela de patrocínio, há que admitir que possa vingar o entendimento segundo o qual se verifica in casu acumulação indevida entre a indemnização (pensão anual) fixada no âmbito do acidente de trabalho e a indemnização pelo dano biológico arbitrada no âmbito do processo emergente de acidente de viação.
20.ª Caso assim se entenda, haverá que verificar e levar em devida consideração se essa (putativa) acumulação será total ou meramente parcial.
21.ª Na verdade, conforme ensina Cruz de Carvalho, in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Lisboa 1980, Petrony, pág. 134, a reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho compreende apenas as prestações previstas na Lei, neste caso na NLAT.
22.ª E, prossegue o mesmo Autor (ob. cit., pág. 134) “só há direito a desoneração da obrigação por parte da entidade empregadora ou da seguradora da entidade empregadora, se a indemnização arbitrada na ação cível por acidente de viação visar ressarcir os mesmos danos que àqueles compete reparar”.
23.ª Ora, da leitura atenta da decisão do STJ proferida no âmbito da ação cível emergentes do acidente de viação resulta, desde logo, que no cálculo da indemnização de € 400.000,00 fixada pelo dano biológico patrimonial foram levados em consideração rendimentos do trabalho que não entraram no cálculo e composição da pensão fixada no processo emergente de acidente de trabalho.
24.ª Referimo-nos, concretamente, ao “prémio de produtividade” e às “ajudas de custo”.
25.ª Assim, nas suas “contas”, o douto acórdão do STJ considerou:
-- o salário base auferido de € 545,50 x 14 meses.
-- o subsídio de refeição de € 129,95 x 11 meses.
26.ª Nessas mesmas “contas”, conforme expressamente consta da alínea UUU) dos factos provados, o STJ considerou também que o Autor “… ao menos em grande parte dos meses do ano recebia um vencimento maior, sob a denominação de prémio de produtividade, num valor entre os 200 e os 300 EUR e/ou ajudas de custo, ainda no valor mensal entre os 300 e os 500 EUR”.
27.ª Extrai-se também do mesmo aresto do STJ que o valor global do prémio de produtividade e das ajudas de custo ascende, portanto, ao montante mensal de cerca de € 650,00 (média dos montantes referidos).
28.ª Não sofrerá dúvidas que este montante (€ 650,00 mensais), não integrando a remuneração transferida para a A... pela entidade patronal do Recorrente, não foi, nem podia ser, considerado em sede de processo laboral para efeitos de cálculo da pensão.
29.ª Resulta, pois, que do montante global de € 400.000,00 fixado pelo STJ no âmbito da ação cível como compensação pelo dano biológico patrimonial, uma parte destina-se a ressarcir a perda de estritos rendimentos salariais (salário base e subsídio de refeição) e a restante parte, não menos substancial, destina-se ao ressarcimento da perda de rendimentos do prémio de produtividade e das ajudas de custo.
30.ª Concluiu-se, pois, sem margem para a menor dúvida que, caso exista a propalada acumulação de indemnizações, esta somente se verificará na parte proporcional ao salário do recorrente tido em conta para cálculo da pensão.
31.ª E impõe-se, portanto, discriminar qual a medida que, na indemnização de € 400.000,00 fixada na ação cível, cabe a cada parcela do rendimento perdido que se pretendeu ressarcir, pois que somente em relação à parcela afeta à indemnização da IPP laboral poderá falar-se em cumulação.
32.ª Tal discriminação, a fazer mediante recurso a regras de equidade, caberá, em princípio, ao foro civil e não ao foro laboral.
33.ª Importa também ter presente que da parte do dano patrimonial a considerar para efeitos de (eventual) cumulação, deduzido da parcela respeitante ao ressarcimento da perda dos prémios de produtividade e das ajudas de custo, somente numa (pequena) parcela poderá ocorrer duplicação com a indemnização fixada no acidente de trabalho.
34.ª Na verdade, o dano biológico patrimonial abarca, para além da estrita perda de rendimentos ressarcidos através da pensão laboral, uma panóplia de outros danos (entre os quais avultam a repercussão nas atividades da vida pessoal, doméstica, diária, familiares, sociais, desportivas e de lazer), que vão muito para além da efetiva perda salarial, sendo que somente relativamente a esta perda poderá, porventura, falar-se de acumulação indevida.
35.ª Impõe-se, portanto, estabelecer um juízo de equidade por forma a determinar qual o montante que, após dedução daquele destinado a compensar o prejuízo inerente à perda dos prémios de produtividade e das ajudas de custo e daqueloutro destinado a ressarcir o dano biológico, caberá ao ressarcimento de danos atinentes à estrita perda de proventos salariais.
36.ª Juízo de equidade este que, conforme atrás se disse, não compete ao foro laboral, mas sim ao foro civil.
37.ª Caso este Venerando Tribunal decida que poderá (e deverá) fazer aplicação das regras da equidade no apuramento do valor até ao qual será decretada a exoneração, haverá que relevar que o Autor está a receber da Recorrida A... uma pensão vitalícia, a qual, por imperativo legal, não é, em princípio passível de ser remida.
38.ª Caso tivesse havido remição da pensão, o Recorrente teria recebido da recorrida o respetivo capital de remição, o qual seria abatido ao valor da indemnização apurada e fixada no âmbito da ação cível emergente de acidente de viação.
39.ª Afigura-se, pois, que será de ficcionar a possibilidade de a pensão ser remida e calcular o capital que seria pago ao Recorrente a título dessa remição.
40.ª E mais nos parece que, por recurso a critérios de pura equidade, a desoneração do pagamento das pensões e a correspondente suspensão do direito do aqui Recorrente deverá ter como limite um montante correspondente ao (ficcionado) capital de remição da pensão.
41.ª A douta sentença recorrida violou, entre o mais, o disposto nos nos 2 e 3 do art.º 17º da NLAT (Lei n.º 98/2009, de 04 de setembro).
Termina dizendo dever ser a ação ser julgada totalmente improcedente, absolvendo-se o Requerido do pedido.

A Requerente/Seguradora apresentou resposta, formulando as seguintes CONCLUSÕES, que igualmente se transcrevem:
I. Veio o Recorrente AA apelar da douta sentença proferida pelo Tribunal a quo que julgou a ação intentada contra o Recorrente totalmente procedente, e muito bem declarou a suspensão da obrigação da Autora A... Companhia de Seguros, S.A. de pagar a pensão anual devida ao recorrente até perfazer o montante de € 400.000,00.
II. As alegações do Recorrente mais não são do que praticamente a integral reprodução do por si já vertido em sede de contestação, tendo então nessa fase o então Réu, agora Recorrente, invocado matéria de exceção, dizendo, o que vem agora repetir, ou seja, que não existiria uma identidade/cumulação entre a indemnização fixada em sede de ação cível e a fixada em sede de acidente de trabalho, no que se não concede nem consente.
III. Ao Recorrente não assiste qualquer razão, devendo o recurso a que se responde improceder in totum.
IV. Alega o Recorrente alega que no processo de acidente de trabalho a indemnização atribuída é destinada a ressarcir o dano patrimonial futuro, e na ação cível a indemnização arbitrada o teria sido tão-só pelo dano da lesão da integridade psicofísica – dano biológico, no que se não concede nem consente. Pretendeu e pretende o Recorrente fazer crer que o STJ no douto acórdão já transitado em julgado, não contemplou a compensação das perdas salariais decorrentes do grau de incapacidade laboral fixado no âmbito do processo de acidente de trabalho, mas apenas indemnizou o dano biológico, no que se não concede nem consente.
V. Está documentalmente provado nos presentes autos, no âmbito da ação de acidentes de viação, a então Ré Companhia de Seguros C... foi condenada a pagar e já pagou ao aqui Recorrente, uma indemnização pelo dano patrimonial futuro (perda da capacidade de ganho), pelo que, andou muitíssimo bem o Tribunal a quo, ao julgar a recorrida A... desonerada da obrigação em que foi condenada no âmbito da ação emergente de acidente de trabalho até o limite daquela quantia.
VI. Resulta da decisão do STJ a fls. 21 a 26 da mesma, que o Ré foi por via de tais autos ressarcido integralmente pelo mesmo dano, tendo sido considerado no montante indemnizatório e fixado a título de danos patrimoniais as perdas salariais. Tudo conforme resulta da certidão com nota de trânsito em julgado junta aos autos, nomeadamente do Acórdão do STJ, que aqui se dá por integralmente reproduzidos para todos os devidos e legais efeitos.
VII. Resulta assim em evidência que, por via do processo de acidente de viação, o Recorrente foi já ressarcido pelo dano emergente da IPP da qual ficou a padecer, e que, que nas suas contas, o STJ considerou efetivamente: – salário base auferido de € 574,70 x 14 = € 8.045,14/ano – o subsídio de refeição de € 129,95 x 11 = € 1.429,45/ano, o que perfaz o montante global de € 388.485,25 [€ 9.475,25 x 41 anos (até aos 78anos de idade)], pelo que, tudo em conjunto, entendeu o STJ que o valor justo da indemnização pelo dano patrimonial futuro (perda de capacidade de ganho) era de € 400.000,00.
VIII. O Acórdão do STJ, transitado em julgado, e que consubstancia caso julgado para os devidos e legais efeitos.
IX. Quanto aos alegados prémios de produtividade e ajudas de custo, o STJ não deixou de ponderar os respetivos montantes.
X. Deixou de ter fundamento a manutenção de uma pensão anual ao Recorrente, uma vez que o valor indemnizatório englobou o valor pago e fixado no âmbito de pensão anual vitalícia, determinado no Processo n.º 34/14.8T8PNF do Juízo do Trabalho de Penafiel.
XI. Tal resulta ainda claro da sentença proferida em sede de primeira instância, no mesmo processo de acidente de viação, e igualmente constante da certidão junta aos autos que refere expressamente: “III. Agora quanto ao pedido da interveniente: (…) No caso de evento que se configure como acidente simultaneamente de trabalho e evento gerador de responsabilidade civil nos termos gerais, as duas indemnizações completam-se, sem sobreposição, de forma a que o lesado seja ressarcido do total dos prejuízos sofridos. (…) Como se disse, se há cumulação de responsabilidades não a há de indemnizações, pois o sinistrado só pode receber a maior de ambas, porquanto, de outro modo, haveria enriquecimento sem causa, ou injusto locupletamento da parte do sinistrado ou de quem lhe suceda. Deste modo, a indemnização a arbitrar ao lesado deverá ser calculada como se este nada tivesse recebido do responsável pelo acidente laboral; e, com recebimento da indemnização, o beneficiário deixa de ter direito às prestações que vinha recebendo por doença ou invalidez, ficando até obrigado às reposições do que anteriormente tenha recebido.(…) Dado que a sub-rogação não se verifica em relação às prestações futuras a seguradora laboral pode exercer esse direito apenas quanto à parte da indemnização que já se mostra paga no último momento atendível (…) Por outro lado, não são cumuláveis as prestações da seguradora laboral com as indemnizações a pagar por terceiro civil responsável, quando se destinem a satisfazer o mesmo dano. Quando se tenham presentes agora a origem/natureza das prestações demonstradamente satisfeitas ao interveniente, cujo “reembolso” é, pois, a fazer pela Ré, nos termos que antecedem, importa concluir que o valor satisfeito já ao Autor a título de pensões, se destina, precisamente, a indemnizar o dano emergente da IPP da qual o Autor ficou a padecer. Assim, ao valor supra arbitrado caberá reduzir aquela quantia, sob pena de duplicação de indemnizações. (…)
XII. Ora, tal redução demonstra, desde logo que, no cálculo para fixação de indemnização ao Sinistrado no âmbito do processo de acidente de viação, o Tribunal, desde a primeira instância e até á decisão final do STJ como supra se citou, teve em conta o dano emergente da IPP.
XIII. Pelo que todas as perdas salariais – dano patrimonial futuro – foram integralmente ressarcidas no processo de acidente de viação.
XIV. Em sede de sentença (1ª Instância), conforme certidão junta aos autos, consta da mesma, não tendo sido objeto ou matéria de recurso: “… com o recebimento da indemnização, o beneficiário deixa de ter direito às prestações que vinha recebendo por doença ou invalidez, ficando até obrigado às reposições do que anteriormente tenha recebido”, o que consubstancia caso julgado quanto à perda de direito do Réu às pensões no âmbito processo de acidentes de trabalho.
XV. Tal sentença mais esclareceu que “importa concluir que o valor satisfeito já ao Autor a título de pensões, se destina, precisamente, a indemnizar o dano emergente da IPP da qual o Autor ficou a padecer. Assim, ao valor supra arbitrado caberá reduzir aquela quantia, sob pena de duplicação de indemnizações”. Não se pode contudo retirar desta parte da sentença a fixação de um valor a título de dano emergente da IPP, porquanto o STJ veio a fixar a indemnização na vertente patrimonial relativa à perda da capacidade de ganho conforme descrito supra no presente articulado. Assim, a indemnização fixada em sede de acidentes de viação abrangeu um dano específico decorrente da incapacidade permanente parcial para a profissão.
XVI. A indemnização fixada pelo STJ para além do mesmo, indemnizou o dano patrimonial futuro inerente à perda de capacidade de ganho, motivo pelo qual desde logo em primeira instância se diz expressamente que com o recebimento da indemnização, o beneficiário deixa de ter direito às prestações que vinha recebendo por doença ou invalidez, ficando até obrigado às reposições do que anteriormente tenha recebido.
XVII. O STJ, na fundamentação do seu douto Acórdão, transitado em julgado, esclareceu cabalmente que a título de perda da capacidade de ganho foi considerada a remuneração anual de € 9.475,25 x 41anos, o que perfazia desde logo, o montante global de € 388.475,00, pelo que, ao fixar o valor da indemnização pelo dano patrimonial futuro (perda da capacidade de ganho) em € 400.000,00, acomodou na diferença de € 11.525,00 para considerar prémios de produtividade e ajudas de custo cuja integralidade e regularidade não foi dada como provada, o que também transitou em julgado, e se requereu fosse declarado verificado.
XVIII. Veio aos autos o Recorrente pronunciar-se igualmente sobre o caso julgado, dizendo, como igualmente refere em sede de alegações, mas se olvida de referir em sede de conclusões de recurso que, e cita-se: “Não oferece dúvidas que a douta decisão proferida na ação cível (proc. n.º 2712/18.3T8PNF, cujos termos correram pelo Juízo Central Cível de Penafiel – Juiz 2), tendo transitado, constitui caso julgado material, sendo vinculativa quer no identificado processo em que foi prolatada, quer também fora dele, incluindo, naturalmente, os presentes autos”.
XIX. O recurso a que se responde foi interposto pelo Recorrente apenas de matéria de direito, sendo inequívoco que o Recorrente não pôs em causa qualquer dos factos dados como provados, que aliás nem tão pouco contestou os mesmos, resultando da douta sentença proferida pelo Tribunal a quo a matéria de facto dada como provada (que aqui se dá por integralmente reproduzida) e que não pode importar decisão diversa da proferida pelo Tribunal a quo.
XX. Bem andou o Tribunal a quo na decisão proferida, desde logo face aos factos dados como provados, e quanto à questão de Direito, não se percebe que o Recorrente alegue que Tribunal não se pronunciou, quando ao invés, o Tribunal se pronunciou quanto a todas as questões, e fundamentou a sua decisão exemplarmente.
XXI. Refere a Douta sentença em crise: “Como é consabido a pensão devida por acidente de trabalho visa indemnizar a perda ou a diminuição da capacidade geral de ganho do sinistrado. E, por outro lado, a indemnização por danos patrimoniais - lucros cessantes - atribuída no âmbito da responsabilidade subjetiva civil visa reparar uma vantagem que o lesado iria beneficiar, se não fosse a lesão, nomeadamente o direito de ganho que se frustrou”.
XXII. Também se pronunciou o Tribunal a quo quanto à não acumulabilidade das indemnizações, que quer a Doutrina, quer a Jurisprudência, quer o próprio Recorrente aceita não ser devida (cfr. aliás conclusão 3ª das alegações a que se responde).
XXIII. A fundamentação é clara e responde integralmente às questões suscitadas pelo Recorrente, ainda que não lhe dê razão, porquanto a mesma não lhe assiste: “Nesta conformidade, face ao exposto, há que considerar que o prejuízo patrimonial da perda ou diminuição da capacidade geral de ganho do sinistrado (que a pensão anual e vitalícia fixada na ação de acidente de trabalho visa reparar), se encontra reparado pela indemnização fixada na ação cível, que já se encontra liquidada. Tal realidade preenche, pois, os pressupostos do direito de desoneração contemplado no anteriormente referido artigo 31.º da Lei n.º 100/97. Retornando ao caso dos autos temos como certo que o acidente sofrido foi, simultaneamente, de trabalho e de viação. Mais se demonstrou que no âmbito da mencionada ação cível, declarou-se ser devida ao recorrente uma indemnização no valor de € 400.000,00, que visou ressarcir danos patrimoniais futuros, concretamente lucros cessantes, pois no que respeita a outros danos, neles se incluindo os danos não patrimoniais, foram fixados outros montantes distintos”. (negrito e sublinhado nosso). “Assim, no que respeita aos danos patrimoniais futuros - a título de lucros cessantes - parece-nos evidente que os mesmos correspondem no acidente de trabalho aos danos resultantes da perda da capacidade de trabalho e de ganho do recorrente, para cuja reparação lhe foi atribuída a pensão. Estando assim demonstrado que em consequência do acidente dos autos, correu termos uma ação cível, no âmbito da qual a Seguradora responsável pela reparação do acidente de viação foi condenada por sentença transitada em julgado, a pagar ao sinistrado uma indemnização de € 400.000,00, «por lucros cessantes», os quais se destinam a compensar a perda da capacidade geral de ganho do trabalhador/sinistrado, não resta qualquer dúvida de que esta indemnização visa ressarcir o mesmo dano que fundamentou a pensão atribuída ao réu no âmbito do processo emergente de acidente de trabalho. Ora, tendo o réu recebido no âmbito da ação de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, indemnização no valor total de € 400.000,00, a título de lucros cessantes, que independentemente dos diferenciados critérios que conduziram à fixação de tal indemnização, não pode deixar de ser considerada como destinada a compensar a perda de capacidade geral de ganho do sinistrado. Nesta conformidade teremos de concluir que o prejuízo patrimonial da perda ou diminuição da capacidade geral de ganho do sinistrado (que a pensão anual e vitalícia fixada na ação de acidente de trabalho visa reparar), se encontra reparado pela indemnização fixada na ação cível, que visa a reparação do mesmo dano e que já se encontra liquidada. (negrito e sublinhado nosso). Em suma, sendo o acidente simultaneamente de trabalho e de viação e o responsável civil pelo acidente de viação tenha, no âmbito da ação que conheceu da responsabilidade civil, sido condenado no pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais, destinada a compensar a perda ou diminuição da capacidade de ganho (lucros cessantes), é de considerar verificada a cumulação de indemnizações, justificando-se o reconhecimento do direito de desoneração previsto nos nos 2 e 3 do art.º 17 da NLAT, até que se mostre esgotado a cobertura do capital recebido por acidente de viação, uma vez que é o responsável civil quem deve em primeira linha responder pelo ressarcimento do dano sofrido. Neste sentido se tem pronunciado a jurisprudência designadamente (…) É precisamente esta a situação que se verifica no caso, pelo que o presente incidente tem de proceder” (negrito e sublinhado nosso).
XXIV. Mais se pronunciou e fundamentou a Douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, acerca do caso julgado material:
Acresce que, como se pode ler no Ac. TRP de 08/06/2022, Proc n.º 2044/18.7T8OAZB.P1, (…) Evitando desnecessárias considerações teóricas da nossa parte, incluindo em resposta sobre o que releva para efeitos da aferição da identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, como ainda a respeito da questão dos efeitos do caso julgado, nomeadamente no que respeita à sua eficácia material, permitimo-nos acompanhar de seguida – remetendo-se também para o que há muito tem sido afirmado pela Doutrina e Jurisprudência –, o texto do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de junho de 2017 [1], quando se refere o seguinte (transcrição):” (sublinhado nosso)
«(…) [N]o que respeita à eficácia do caso julgado material, desde há muito que tanto a doutrina [2] como a jurisprudência têm distinguido duas vertentes: a) - uma função negativa, reconduzida a exceção de caso julgado, consistente no impedimento de que as questões alcançadas pelo caso julgado se possam voltar a suscitar, entre as mesmas partes, em ação futura; b) - uma função positiva, designada por autoridade do caso julgado, através da qual a solução neste compreendida se torna vinculativa no quadro de outros casos a ser decididos no mesmo ou em outros tribunais. Quanto à função negativa ou exceção de caso julgado, é unânime o entendimento de que, para tanto, tem de se verificar a tríplice identidade estabelecida no artigo 581.º do CPC: a identidade de sujeitos; a identidade de pedido e a identidade de causa de pedir. Já quanto à autoridade do caso julgado, existem divergências. Para alguns, entre os quais Alberto dos Reis, a função negativa (exceção de caso julgado) e a função positiva (autoridade de caso julgado) são duas faces da mesma moeda, estando uma e outra sujeitas àquela tríplice identidade [3]. Segundo outra linha de entendimento, incluindo a maioria da jurisprudência, a autoridade do caso julgado não requer aquela tríplice identidade, podendo estender-se a outros casos, designadamente quanto a questões que sejam antecedente lógico necessário da parte dispositiva do julgado [4] No que respeita à tríplice identidade para efeitos de verificação da exceção de caso julgado, o artigo 581.º dispõe que: (…) Quanto à identidade de sujeitos, o que é essencial não é a sua identidade física, mas a mesmidade da posição ou da qualidade jurídica na titularidade direitos e obrigações contemplados pelo julgado [5]. (…) Também, no que respeita à identidade do pedido e da causa de pedir, importa aferi-la não de um modo global, mas sim em função de cada pretensão parcelar em que se possa decompor o objeto das causas em confronto e dos correspetivos segmentos decisórios.» (fim de transcrição) Ainda também por apelo à Doutrina, citada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07 de dezembro de 2016 [6], referem: - Lebre de Freitas [7] que “(…) Pela exceção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda ação, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito”, enquanto que “a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito (...). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda ação, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há de ser proferida”; – J. J. Gomes Canotilho [8] que “Em geral, considera-se que a segurança jurídica está conexionada com elementos objetivos da ordem jurídica – garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito – enquanto a proteção da confiança se prende mais com as componentes subjetivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos atos dos poderes públicos”; - Miguel Teixeira de Sousa [9], que “(…) A autoridade de caso julgado é o comando de ação, a proibição de omissão respeitante à vinculação subjetiva à repetição do processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão anterior”. Do regime antes mencionado, sem esquecermos também o referido a respeito da eficácia e efeitos do caso julgado, resulta desde logo resposta para o primeiro dos argumentos avançados pelo Recorrente, baseado na não verificação da tríplice identidade (partes, causa de pedir e pedido), pois que, posição que também seguimos, a autoridade do caso julgado essa não pressupõe sequer, podendo assim estender-se a outros casos.
Importa, porém, dada a relevância que tal questão pode assumir – relevância essa bem patente nos argumentos avançados num e noutro sentido respetivamente pelo Recorrente e pelos Recorridos –, que façamos de seguida algumas considerações a respeito do regime de reparação dos danos, em sede de responsabilidade civil e laboral, nos casos em que o mesmo evento chame à aplicação ambos os regimes, em particular, porque colocada à nossa apreciação, sobre a questão de saber se, tendo sido atribuída indemnização pelo designado dano biológico em pedido de indemnização cível formulado em processo criminal, nessa já foi atendido o dano que deve ser considerado em sede laboral, sendo que, assim tendo sido entendido na decisão recorrida, diverge porém o Recorrente, na consideração de que se trata de danos distintos.
Nesse sentido, e em primeiro lugar, para assinalarmos, apesar de na decisão recorrida não se fazerem especiais referências sobre o regime em causa, mas que aí se percebe que esteve subjacente – desde logo quando se refere “que os valores resultantes da Lei dos Acidentes de Trabalho devam considerar-se como valores mínimos a receber quando a indemnização é fixada nos termos gerais de direito, como é o caso”, ou, ainda, ao ter expressamente “em conta a complementariedade das indemnizações” –, que no caso de o evento ser gerador em simultâneo de responsabilidade civil e de responsabilidade laboral, as indemnizações fixadas no âmbito de cada jurisdição e em consonância com as respetivas regras, não são cumuláveis, mas complementares, sendo que, perante a natureza dual do evento, quem é chamado em 1.ª linha a responder pelo ressarcimento dos danos é o responsável pela reparação no âmbito da responsabilidade civil, ficando o responsável (ou responsáveis) pelo sinistro laboral, relativamente aos mesmos danos, desonerado do pagamento das prestações da sua responsabilidade até ao montante do valor da indemnização fixada no âmbito da responsabilidade civil, não podendo, assim, ser duplamente ressarcidos aqueles mesmos danos ao lesado – sem prejuízo de caber a este a opção pela indemnização que tiver por mais favorável.
O regime acabado de referir, já previsto em leis anteriores [10], resulta da LAT, assim no seu artigo 17.º, em que se dispõe: “1. Quando o acidente for causado por outro trabalhador ou por terceiro, o direito à reparação devida pelo empregador não prejudica o direito de ação contra aqueles, nos termos gerais. 2. Se o sinistrado em acidente receber de outro trabalhador ou de terceiro indemnização superior à devida pelo empregador, este considera-se desonerado da respetiva obrigação e tem direito a ser reembolsado pelo sinistrado das quantias que tiver pago ou despendido. 3. Se a indemnização arbitrada ao sinistrado ou aos seus representantes for de montante inferior ao dos benefícios conferidos em consequência do acidente, a exclusão da responsabilidade é limitada àquele montante. 4. O empregador ou a sua seguradora que houver pago a indemnização pelo acidente pode subrogar-se no direito do lesado contra os responsáveis referidos no n.º 1 se o sinistrado não lhes tiver exigido judicialmente a indemnização no prazo de um ano a contar da data do acidente. 5. O empregador e a sua seguradora também são titulares do direito de intervir como parte principal no processo em que o sinistrado exigir aos responsáveis a indemnização pelo acidente a que se refere este artigo.”
Como se refere no sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04 de junho de 2020 [11], em redor desse regime formou-se “forte corrente jurisprudencial no sentido da inacumulabilidade das indemnizações, mas de complementaridade, aos lesados cabendo a opção pela mais conveniente (v. jurisprudência antiga em Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, de Cruz de Carvalho, Petrony, 1980, pp. 130 e ss.)”, mais se esclarecendo que “a concorrência de responsabilidades civil e laboral, ou também chamada infortunística, origina uma obrigação solidária, mas imprópria ou imperfeita e ao contrário do que ocorre na solidariedade obrigacional (art.º 523.º do CC) o pagamento da indemnização pelo sinistro laboral não produz a extinção, ainda que parcial, da obrigação comum” – não liberando assim o responsável por esta, e se a indemnização paga por este extingue a obrigação a cargo da entidade patronal ou da respetiva seguradora, já o inverso não pode verificar-se.
Como resulta agora do Acórdão do mesmo Tribunal de 06 de maio de 2021 [12] – depois de se citar mais uma vez o Aresto antes mencionado de 04 de junho de 2020 –, em que estava em causa um caso de acidente simultaneamente de viação e laboral, quem responde em primeiro pela indemnização dos danos é o responsável civil, o que significa que, a existir duplicidade de reparação pelo mesmo dano, tal permite a desoneração do pagamento das prestações conexas com o sinistro laboral pela entidade que as liquida, até ao montante da indemnização arbitrada em que exista tal coincidência.
Ainda por direto apelo ao Acórdão de 04 de junho de 2020, que aqui temos seguido nesta parte de muito perto, diremos também, de resto com clara relevância para o caso que apreciamos, que essa duplicidade pode precisamente ocorrer quanto aos danos patrimoniais futuros (lucros cessantes) relativos à perda da capacidade de ganho da vítima, recebida como pensão (acidente de trabalho) ou como capital antecipado e recebido de uma só vez (responsabilidade civil).
Aqui chegados, precisamente por decorrência do regime que antes considerámos aplicável, vejamos então se estamos ou não perante um caso em que já ocorreu, assim por decorrência da apreciação judicial realizada no âmbito do pedido de indemnização civil formulado no processo penal, a consideração para efeitos de reparação quanto a quaisquer danos que, no âmbito desta ação laboral, devessem ser considerados.
Nesse sentido, e como primeira abordagem, para efeitos de enquadramento da questão que diretamente nos é colocada no presente recurso, começaremos por dar nota, em conformidade com aquela que nos parece ser mais uma vez a jurisprudência dos nossos tribunais, em particular do Supremo Tribunal de Justiça, de que, em tese, o designado dano biológico, enquanto lesão do direito fundamental do lesado à sua saúde e integridade física, pode afinal abarcar danos patrimoniais e não patrimoniais, sendo que, centrada a análise na sua vertente patrimonial, esta consiste numa compensação pelos designados danos futuros relacionados com os maiores esforços que o lesado terá no desenvolvimento da sua atividade, mas, diga-se, sem que consideremos que seja propriamente necessário que ocorra uma efetiva perda de capacidade de ganho/rendimentos – ou seja, verificando-se um défice funcional, não é pressuposto da atribuição do dano biológico que aquele implique perda da capacidade ganho (perdas de rendimento do trabalho).
Porque melhor não o faríamos, transcrevemos, nesse âmbito, de seguida, agora, parte do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06 de maio de 2021 [13]: «(…) O dano biológico é mencionado expressamente na Portaria 377/2008, de 26/05, em cujo preâmbulo se exara que “ainda que não tenha direito à indemnização por dano patrimonial futuro, em situação de incapacidade permanente parcial, o lesado terá direito à indemnização pelo seu dano biológico, entendido este como ofensa à integridade física e psíquica”. O dano biológico é “autonomizável, devendo ser contabilizado, um prejuízo futuro de componente mista, patrimonial e não patrimonial, enquadrado como dano biológico, e que contemple, para além do resto, a maior penosidade e esforço no exercício da atividade corrente e profissional do lesado” (ac. STJ, Rel. Souto Moura, 20/01/2011, Proc. n.º 520/04.8GAVNF.P2.S1 - 5.ª Secção).
Componente mista que também emerge da Portaria n.º 377/2008, ao subsumir o dano biológico no artigo 3.º, atinente a danos patrimoniais [preceituando na al. b) que é indemnizável o “dano pela ofensa à integridade física e psíquica (dano biológico), de que resulte ou não perda da capacidade de ganho, determinado segundo a Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil”], e no artigo 4.º, com a epígrafe danos morais complementares, concretamente na sua al. e) [referindo que “Além dos direitos indemnizatórios previstos no artigo anterior, o lesado tem ainda direito a ser indemnizado por danos morais complementares, autonomamente, nos termos previstos no anexo i da presente portaria, nas seguintes situações: (…) e) Quando resulte para o lesado uma incapacidade permanente que lhe exija esforços acrescidos no desempenho da sua atividade profissional habitual].
É, contudo, questão controversa, a natureza do dano biológico [patrimonial, não patrimonial, mista ou tertium genus, vide o ac. STJ, Rel. Souto Moura, 27/11/2014, Proc. n.º 263/03.0PTALM.L1.S1 – 5.ª Secção], o que não releva escalpelizar nesta sede, até porque, a indemnização pelo dano biológico objeto deste recurso é apenas na vertente patrimonial (a vertente não patrimonial foi incluída no valor da compensação pelos danos não patrimoniais, conforme referimos supra).
As Secções Criminais deste STJ têm afirmado, em relação ao dano biológico, que é “autonomizável, devendo ser contabilizado, um prejuízo futuro (…) enquadrado como dano biológico, e que contemple, para além do resto, a maior penosidade e esforço no exercício da atividade corrente e profissional do lesado” e que a “indemnização a arbitrar pelo dano biológico sofrido pelo lesado – consubstanciado em relevante limitação funcional – deverá compensá-lo, apesar de não imediatamente refletida no nível salarial auferido, quer da relevante e substancial restrição às possibilidades de mudança ou reconversão de emprego e do leque de oportunidades profissionais à sua disposição, enquanto fonte atual de possíveis e eventuais” (ac. STJ, Rel. Pires da Graça, 21/11/2018, Proc. n.º 1377/13.3JAPRT.P1.S1 – 3.ª Secção). “A incapacidade parcial permanente, ainda que não acarrete uma diminuição dos concretos rendimentos do lesado, constitui um dano futuro indemnizável autonomamente, correspondendo ao denominado dano biológico.” (ac. STJ, Rel. Souto Moura, 13/10/2016 Proc. n.º 965/08.4POLSB.L1. S1 – 5.ª Secção).
Também as Secções Cíveis deste STJ tem assumido que “A compensação do dano biológico tem como base e fundamento a perda ou diminuição de capacidades funcionais que, mesmo não importando perda ou redução da capacidade para o exercício profissional da atividade habitual do lesado, impliquem ainda assim um maior esforço no exercício dessa atividade e/ou a supressão ou restrição de outras oportunidades profissionais ou de índole pessoal, no decurso do tempo de vida expectável, mesmo fora do quadro da sua profissão habitual. [ac. STJ, Rel. Rosa Tching, 06/02/2020, Revista n.º 2251/12.6TBVNG.P1. S1 – 2.ª Secção (Cível)]. A afetação da integridade físico-psíquica, designada como dano biológico, pode ter como consequência danos de natureza patrimonial e de natureza não patrimonial. [ac. STJ, Rel. Nuno Pinto Oliveira, 29/10/2020, Revista n.º 2631/17.0T8LRA.C1. S1 – 7.ª Secção (Cível)]. “O conceito de “dano biológico” ou “dano existencial” visa manifestar a perceção crescente dos "multifacetados níveis de proteção que a personalidade humana reclama” e permite ao julgador tomar consciência do conjunto diversificado de danos (não absolutamente autónomos) resultantes da lesão de direitos de personalidade. O dano biológico ou dano existencial compreende ou “contém” os tradicionais danos patrimoniais futuros e os danos não patrimoniais, mas não se esgota neles. Age bem o julgador quando, para fixar o quantum indemnizatório respeitante aos danos patrimoniais futuros, parte dos factos provados e observa os casos análogos e os critérios objetivos usados na jurisprudência, mas não deixa de proferir um juízo de equidade. Age bem o julgador quando, para fixar o quantum compensatório respeitante aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, parte dos factos provados e profere o seu juízo de equidade, sem descurar o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso que resultem dos factos apurados.” [ac. STJ, Rel. Catarina Serra, 08/01/2019, Revista n.º 4378/16.6T8VCT.G1. S1 – 6.ª Secção (Cível)]
Entendemos que, efetivamente, a incapacidade parcial permanente, ainda que não acarrete uma diminuição dos concretos rendimentos do lesado, mas implique um esforço acrescido/suplementar para a realização das atividades profissionais e pessoais, constitui um dano futuro indemnizável autonomamente, correspondendo ao denominado “dano biológico”. Assim o dano corporal/dano biológico não se circunscreve às consequências sobre a capacidade de trabalho ou sobre a capacidade de obtenção de rendimentos, pelo que tem de ser entendido numa perspetiva global de ofensa à saúde e à integridade física e psíquica, enquanto direito inviolável do homem à plenitude da vida física, em todos os aspetos da sua vida e, sob este prisma, é um dano autonomamente indemnizável.
O dano biológico constitui, nesta medida, “um dano base ou dano central, um verdadeiro dano primário, sempre em caso de lesão da integridade físico-psíquica, e sempre lesivo do bem saúde”; e se, para além desse dano, se verifica um concreto dano à capacidade laboral da vítima, este já é um “dano sucessivo ou ulterior e eventual; não um dano evento mas um dano consequência” [2], representando “um ulterior coeficiente ou plus de dano a acrescentar ao dano corporal”. (…)» (fim de transcrição).
(…) Tendo pois em vista essa apreciação, começaremos por salientar que pode afinal o designado dano biológico, como se viu antes, não se circunscrever em geral às consequências sobre a capacidade de trabalho ou sobre a capacidade de obtenção de rendimentos – ao ser entendido numa perspetiva global de ofensa à saúde e à integridade física e psíquica, enquanto direito inviolável do homem à plenitude da vida física, em todos os aspetos da sua vida, sendo sob este prisma um dano autonomamente indemnizável –, mas, esclarecemos também desde já, que não será propriamente daí, ou seja na consideração do que o dano biológico possa genericamente abarcar, que pode resultar uma qualquer afirmação, quanto aos danos que foram atendidos no pedido de indemnização cível, de que estejamos, apenas por essa razão, perante danos diferentes (…) Tudo visto, provado que está ter o sinistrado recebido indemnização nos termos gerais de direito pelos danos patrimoniais decorrentes do acidente de viação e de trabalho quanto a dano emergente e futuro da perda da capacidade de ganho, tem a ora Requerente direito à desoneração da sua responsabilidade na medida do recebido pelo mesmo Requerido/Sinistrado do terceiro responsável cível, declarando a suspensão da obrigação da Requerente A... Companhia de Seguros, S.A. a pagar a pensão anual devida ao sinistrado AA até perfazer o montante de € 400.000,00 (quatrocentos mil euros)…”.
XXV. Muito bem andou o Tribunal a quo, tendo fundamentado e emitido pronuncia sobre todas as questões levantadas e não merecendo qualquer reparo, estando muito longe a decisão recorrida de ser uma decisão apressada, e sendo absolutamente desconforme a realidade, o que o Recorrente refere: “O Tribunal não apreciou devidamente quaisquer das questões elencadas no presente recurso, apesar de devidamente alegadas na contestação. Aliás omitiu, pura e simplesmente a decisão e pronúncia sobre algumas dessas questões, às quais a Ilustre Julgadora não dedicou sequer uma linha” – no que se não concede nem consente.
XXVI. Estando e resultando inequívoca, na sentença recorrida, a resposta a todas as questões levantadas nos autos, pelo que, deve improceder em absoluto e in totum o recurso a que se responde, devendo ser integralmente mantida a decisão doutamente proferida pelo Tribunal a quo.

Foi proferido despacho a mandar subir o recurso de apelação, imediatamente, nos próprios autos [este apenso], e com efeito meramente devolutivo.

Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral-Adjunto, emitiu parecer (art.º 87º, nº 3 do Código de Processo do Trabalho), pronunciando-se no sentido de ser dado parcial provimento ao recurso, essencialmente pelo seguinte:
3. Aceita o Recorrente que, no caso de acidente de viação, quando este é simultaneamente abrangido pela responsabilidade civil e pela responsabilidade infortunística laboral, a primeira tem um carácter primacial relativamente à segunda, surgindo esta última como complementar daquela, que, atento o citado regime legal vigente e aplicável, as indemnizações por acidentes que sejam, em simultâneo, de viação e de trabalho não são cumuláveis, complementando-se entre si até que o seu valor global se mostre apto a ressarcir integralmente o dano.
Reconhece também que é vedado ao lesado obter, em duplicado, o ressarcimento do mesmo dano da seguradora do risco viário e da seguradora do risco laboral.
Porém, apenas haverá cumulação/duplicação de indemnizações se estivermos perante o mesmo dano.
4. Quanto ao terceiro argumento, entende-se que não sendo a pensão remível, como não é, atento o seu valor e grau de incapacidade atribuída ao sinistrado, não parece possível, também, ficcionar a sua remição, calcular o capital, para depois tomar em conta o seu valor até perfazer o montante de € 400.000,00, pago pelo responsável pelo acidente.
A pensão é vitalícia, paga mensalmente, sem prejuízo de remição parcial, sendo obrigatória esta forma de pagamento.
5. Quanto ao dano, previsto no acórdão que condena a responsável pelo acidente, entende-se, salvo melhor opinião, que se está perante o mesmo a que se refere a decisão proferida no processo de acidente de trabalho.
Prevê-se com a reparação, o restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado e a sua recuperação para a vida ativa – art.º 23º da Lei 98/2009, de 04/09.
Não sendo possível a total recuperação deverá o sinistrado ser indemnizado por isso, o que aconteceu.
6. É sabido também que processo de acidente de trabalho, subsiste até falecimento do Sinistrado.
E, esgotado o valor da indemnização, neste caso de € 400.000,00, é reposta a obrigatoriedade de a Autora/Recorrida pagar ao Recorrente a pensão a que tiver direito, devidamente atualizada, nessa data.
Neste caso deu como provado o douto acórdão do STJ que o Sinistrado, “auferia à data do sinistro o vencimento base de € 545,50 x 14 meses, acrescido de subsidio de refeição no valor mensal de € 129,95 x 11 meses, sendo que ao menos em grande parte dos meses do ano recebia um vencimento maior, sob a denominação de prémio de produtividade, num valor entre os 200 e os 300 euros e/ou ajudas de custo, ainda no valor mensal entre os 300 e os 500 euros – UUU).
E que as sobreditas “ajudas de custo” não se destinavam a fazer face a despesas que o Autor tivesse de suportar por virtude do seu trabalho – VVV).
Demonstrados estes factos, aparentemente a retribuição a ter em conta para cálculo da pensão devida ao Recorrente, deveria ter considerado estes valores uma vez que não se destinavam a suportar despesas decorrentes do trabalho e eram pagas com regularidade, o que, em princípio faria aumentar o valor da pensão.
E, sendo maior o valor da pensão devida ao Recorrente mais rápido alcançaria o referido valor de € 400.000,00, e mais rápido seria reposto o pagamento da pensão por acidente de trabalho.
Considerando que o valor da retribuição considerado para cálculo do valor da pensão fixada ao Sinistrado, é inferior ao valor considerado para cálculo da indemnização civil que lhe foi arbitrada, deveria também este valor da indemnização de € 400.000,00 ser reduzido proporcionalmente, como requer o Sinistrado.
Neste particular, salvo melhor opinião, assiste alguma razão ao Recorrente. E, sendo assim considerado, deveria a exoneração ser apenas parcial e proporcional aos valores considerados para cálculo da pensão e indemnização civil.

Procedeu-se a exame preliminar, foram colhidos os vistos, após o que o processo foi submetido à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
*
FUNDAMENTAÇÃO
Conforme vem sendo entendimento uniforme, e como se extrai do nº 3 do art.º 635º do Código de Processo Civil (cfr. também os art.ºs 637º, nº 2, 1ª parte, 639º, nºs 1 a 3, e 635º, nº 4 do Código de Processo Civil – todos aplicáveis por força do art.º 87º, nº 1 do Código de Processo do Trabalho), o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação apresentada[2], sem prejuízo, naturalmente, das questões de conhecimento oficioso.
Analisadas as conclusões do recurso, aquilo que importa apreciar e decidir neste caso é saber se a indemnização fixada no processo referente ao acidente ocorrido enquanto acidente de viação a título de dano biológico (na vertente patrimonial), no valor de € 400.000,00, constitui indemnização pelo mesmo dano concreto reparado pelas prestações fixadas no processo apenso por via da LAT no processo apenso (referente ao acidente enquanto acidente de trabalho), seja totalmente seja parcialmente.
*
Porque tem interesse para a decisão do recurso, desde já se consignam os factos dados como PROVADOS na sentença de 1ª instância, objeto de recurso, que são os seguintes, que se reproduzem:
1. A Requerente dedica-se à atividade seguradora.
2. No âmbito da sua atividade, a Requerente “A... – Companhia de Seguros, S.A.” celebrou com a sociedade “B..., Lda.” –, um contrato de seguro do ramo Acidentes de Trabalho, na modalidade de prémio variável, titulado pela apólice n.º ..., cuja cópia se encontra junta aos autos principais.
3. Mediante tal contrato de seguro, a Requerente aceitou garantir os riscos de acidente de trabalho, que pudessem advir aos beneficiários de tal seguro, o qual, no caso, era o trabalhador da entidade tomadora do seguro.
4. O acidente foi considerado como acidente de trabalho, tendo dado origem aos autos principais.
5. No decurso da fase conciliatória, conforme Auto de conciliação de 26/09/2018, as partes viriam a conciliar-se, tudo conforme constante a fls. do processo principal.
6. Tendo a aqui Autora, “A... – Companhia de Seguros, S.A.”, em virtude de acidente de trabalho ocorrido a 30/09/2013, assumido a responsabilidade de proceder ao pagamento, entre outros, da pensão anual, vitalícia e atualizável ao aqui Réu, AA, no valor de € 8.967,98, acrescida do valor de € 2.241,99, relativos a familiares a cargo (nomeadamente CC, DN .../.../2003 e DD, DN ...) a serem pagas mensalmente até ao 3.º dia de cada mês, no domicílio do Réu, devidas desde 31/03/2016, correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão anual, bem como o subsídio de férias e de Natal, cada um, igualmente no valor de 1/14 da pensão anual, a serem pagos nos meses de junho e novembro de cada ano, respetivamente, conforme o disposto nos artos 48º, nº 3 alínea a), 49º, nº 1, alínea c), 60º, nº 1 e 72º, nº 2 da Lei 98/2009 de 04/09 e o subsídio de elevada incapacidade permanente no valor de € 5.533,70.
7. A Requerente tem vindo a assumir as obrigações decorrentes da mencionada conciliação, e a pagar ao Requerido, mensalmente, o valor a que o mesmo tem direito, a título de pensão anual e vitalícia.
8. Em consequência do aludido acidente, e em cumprimento das suas obrigações, a Requerente, a título de pensões, vem pagando ao Requerido desde tal data até à presente pensão anual e vitalícia.
9. O acidente dos autos foi para o Requerido Sinistrado, simultaneamente de trabalho e de viação.
10. Em consequência do acidente em questão, o Requerido AA intentou contra “C... – Companhia de Seguros, S.A.”, ação judicial que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Juízo Central Cível de Penafiel, Juiz 2, sob o Processo n.º 2712/18.3T8PNF, no âmbito do qual demandou tal seguradora em consequência dos danos que sofreu no âmbito do referido acidente de viação, e na qual peticionou o pagamento de uma indemnização, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais.
11. Tal ação culminou com o douto Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ), e já transitado em julgado em 03/03/2022, e decidiu tal Tribunal que relativamente à quantificação da indemnização devida a título de compensação dos danos de natureza patrimonial futuros, decorrentes da incapacidade permanente geral para o trabalho (IPG), também denominado défice-funcional permanente o seguinte: “Tudo em conjunto, entende o tribunal que o valor justo da indemnização deve ser na ordem dos € 400.000,00, valor ao qual tem de ser subtraídas as verbas recebidas da ISS e da Interveniente pelo dano em causa”.
12. Ora, a interveniente em tais autos foi a aqui Autora.
13. Em tais autos 2712/18.3T8PNF foi condenada a aí Ré, “C... – Companhia de Seguros, S.A.”, a pagar ao aqui Requerido AA, sinistrado, o valor total de € 475.000,00, respeitante à compensação pelos seguintes danos:
− € 400.000,00, a título de dano patrimonial futuro;
− € 75.000,00 a título de danos não patrimoniais.
14. Tudo conforme decisão transitada em julgado a 03/03/2022, constante de certidão judicial, com o código de acesso .......
15. As quantias referidas em 13. já foram pagas pela “C... – Companhia de Seguros, S.A.” ao ora Requerido/Sinistrado.
16. Nos referidos autos de proc. 2712/18.3T8PNF, realizado o julgamento, foi proferida sentença em sede de 1ª Instância, na qual se decidiu, julgando a ação parcialmente procedente, condenar a Ré:
a) A satisfazer ao Autor a quantia global de € 762,014,83, acrescida de juros vencidos e vincendos, à taxa legal, a contar da citação até efetivo e integral pagamento;
b) A satisfazer ao ISS, IP, a quantia reclamada de € 4.938,06;
c) A satisfazer à interveniente principal [ora Requerente] a quantia global de € 81.560,88, também acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar da notificação da dedução da pretensão e da ampliação do pedido;
d) absolver a Ré do demais pedido.
17. Inconformadas, a ali Ré e a interveniente interpuseram recurso para o Tribunal da Relação do Porto.
18. Entretanto, e uma vez retificada a sentença – em termos de passar a atender também ao valor de € 15.693,70 a título de pensões reclamado pela interveniente – foi declarada extinta a instância, por inutilidade superveniente, relativamente ao recurso interposto pela ali interveniente e, parcialmente, ao recurso interposto pela Ré.
19. O Tribunal da Relação do Porto veio a conhecer da apelação – na parte subsistente – e proferiu acórdão em que decidiu:
“Acorda-se, em face do exposto, e julgando parcialmente procedente a apelação, em:
− condenar a Ré a pagar ao Autor, a título de indemnização, a quantia global de € 308.149,19 (trezentos e oito mil, cento e quarenta e nove euros e dezanove cêntimos);
− absolver a Ré do pagamento da quantia de € 4.938,06, reclamada pelo ISS, IP;
− confirmando-se, no mais, a sentença recorrida – com a retificação constante do despacho de 25/05/2021.
Custas por Autor e Ré, atento o respetivo decaimento.”
20. Desde acórdão do Tribunal da Relação do Porto veio a ser interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, ainda tendo sido proferido douto acórdão no qual se pode ler:
“No que respeita à primeira questão do recurso – quantum indemnizatório por danos patrimoniais futuros – na sentença o valor apurado ascendeu a € 650.000,00 o valor da indemnização pela perda da capacidade de ganho decorrente da incapacidade permanente geral de que o Autor ficou a padecer – dano biológico, na sua vertente patrimonial.
O Tribunal da Relação veio a reduzir, na apelação, o valor devido, que fixou em € 225.000,00, com a seguinte justificação:
“No caso, e de relevante, apurou-se que o Autor, em consequência das lesões sofridas, ficou com uma incapacidade permanente absoluta para o trabalho jamais poderá exercer a sua profissão habitual de condutor-manobrador de máquinas, bem como qualquer outra dentro da sua área de preparação profissional – e com uma incapacidade permanente geral – Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica – de 34 pontos; tinha 41 anos de idade à data da alta; auferia, à data do sinistro, o vencimento base de € 545,50 x 14, acrescido de subsídio de refeição no valor mensal de € 129,00 x 11, sendo que, ao menos em grande parte dos meses do ano recebia prémios de produtividade, num valor entre 200 e 300 euros, e/ou ajudas de custo, no valor mensal entre 300 e 500 euros.
Assim, extraindo todas as consequências da incapacidade permanente de que o Autor ficou a padecer devido ao acidente, com reflexos na sua capacidade de ganho durante a vida ativa, ou seja, até aos 66 anos, mas refletindo-se também na sua capacidade de auferir rendimentos para além daquela idade, ou seja, até cerca dos 80 anos, e ponderando tudo em termos de equidade, entende-se ajustada, a título de indemnização, a quantia de € 225.000,00.”
O Autor não se conforma e entende que a indemnização arbitrada viola as disposições legais relativas ao calcula da indemnização devida pelo dano em causa.
Vejamos.
Na situação dos autos:
i) por força da lei, deve observar-se o princípio geral da reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação – art.º 562º do C.Civil. Havendo que considerar não só o prejuízo causado, como os lucros cessantes – art.º 564º, nº 1, do C.Civil. Além disso, na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que previsíveis – art.º 564º, nº 2, do C.Civil. Não sendo possível a reconstituição natural, a indemnização é fixada em dinheiro – art.º 566º, nº 1, do C.Civil.
ii) sabendo que está em causa o dano resultante da incapacidade permanente para o trabalho, também por força do art.º 566º, nº 3, do C.Civil: “se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”.
21.
iii) não há dúvidas de que o Autor ficou impossibilitado do exercício da sua profissão habitual e de outra compatível com os seus níveis de conhecimento/formação, atento o facto provado AAA) Quanto à Repercussão Permanente na Atividade Profissional, neste caso, as sequelas são impeditivas do exercício da atividade profissional habitual do Autor, bem assim como de qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional.
iv) Também vem provado que:
EEE) O Autor nasceu em .../.../1976, pelo que tinha 37 anos, à data do acidente.
FFF) Na altura do acidente o Autor exercia a profissão de ... e trabalhava para a sociedade F..., Lda.
UUU) Auferia à data do sinistro o vencimento base de € 545,50 x 14 meses, acrescido de subsídio de refeição no valor mensal de € 129,95 x 11 meses, sendo que ao menos em grande parte dos meses dos ano recebia um vencimento maior, sob a denominação de prémio de produtividade, num valor entre os 200 e os 300 EUR e/ou de ajudas de custo, ainda no valor mensal entre os 300 e os 500 EUR.
VVV) As sobreditas “ajudas de custo” não se destinavam a fazer face a despesas que o Autor tivesse de suportar por virtude do seu trabalho.
v) o dano sofrido pelo autor não deve limitar-se ao período de vida ativa, mas abranger a sua esperança de vida, que se estima poder ser os 80 anos.
Admitindo-se que o Autor recebia anualmente o valor indicado nos pontos UUU) e VVV) dos factos provados, tendo à data do acidente 37 anos e sendo a esperança de vida até aos 80, o A. receberia, se continuasse a exercer a sua profissão habitual, mais de 780.000,00 se usamos os valores máximos aí indicados ou cerca de 650.000,00 se usados os valores definidos nos intervalos, não se contabilizando aqui a progressão salarial, nem quaisquer outros fatores.
Na sentença a decisão ponderou estes elementos e decidiu que a indemnização justa seria, na vertente de dano patrimonial futuro, no montante de 650.000,00, relativa ao dano biológico – “A compensação do dano biológico tem como base e fundamento a absoluta restrição, no caso, às possibilidades exercício de uma profissão e de futura mudança, desenvolvimento ou reconversão de emprego pelo lesado, implicando flagrante perda de capacidade de angariação de salários: na verdade, a perda de capacidades funcionais, no caso, vai imediata e totalmente reconduzida ao valor dos rendimentos pecuniários auferidos e a auferir previsivelmente pelo lesado.”
Foi assim justificado:
“E assim, tendo em conta a idade do Autor à data do acidente; a privação total da capacidade para o exercício da profissão habitual ou outra da sua área de preparação, considerado o rendimento anual estimado a partir da matéria de facto assente (em UUU) (que se calcula em 14.074 EUR), decide-se arbitrar-lhe com referência ao dano apreciando a quantia global de 650.000 EUR, sem prejuízo do que resultará infra quanto à necessidade de subtrair as quantias recebidas com vista a indemnizar o mesmo dano do reclamante ISS e da interveniente…”
Também se disse:
“Sendo certo que ao caso dos autos é impossível a reparação natural, a mesma deverá ser feita em dinheiro (art. 562º e 566º, n.º 1 do Código Civil).
Ora, só com base na equidade é que se pode liquidar o dano decorrente da Incapacidade Funcional do demandante, na medida em que o tribunal dispõe dos elementos para determinar tal dano, mas não o seu valor exato (art.º 566º, n.º 3 do Código Civil).
É, finalmente, ainda caso de aplicação ou consideração da jurisprudência adotada pelos Acórdãos da Relação do Porto de 06/12/2007 e do STJ de 22/10/2009, ambos acessíveis em www.dgsi.pt, nos termos da qual é em relação à profissão habitual exercida pelo lesado e às consequências do acidente – e não em função de uma incapacidade laboral indiferenciada – que o tribunal deve atender para calcular a perda da capacidade de ganho, como relevante dano direto e futuro.
É que na situação decidenda, não obstante a IPP da qual ficou o Autor a padecer não o seja de 100%, nos termos assentes, é-o total e absolutamente incapacitante quanto à profissão habitual exercida pelo lesado e para qualquer outra da sua área de preparação.
Sempre a tarefa de quantificação, em dinheiro, do dano não é fácil, pois o recurso à equidade permite sempre uma certa margem de discricionariedade, dando azo a que se possam julgar de modo desigual situações idênticas ou equiparáveis.
Tem-se procurado diminuir esse risco através da utilização de exemplos jurisprudenciais versando situações em que sejam aproximadas as respetivas circunstâncias concretas. Todavia, face à multiplicidade de fatores que influenciam cada caso e ao peso relativo que cada um deles pode representar no cômputo indemnizatório, esse exercício não dispensa uma avaliação própria e específica.
Desde logo, julgamos inteiramente pertinentes as considerações do Acórdão do STJ de 22/05/2019, acessível na base de dados da dgsi, quanto à necessidade de não considerar direta e imediatamente os resultados das tabelas de cálculo disponíveis, que outrossim se constituem como teto máximo, hoc sensu
De acordo agora com a síntese feita pelo Ac. do STJ de 19/06/2019, na mesma base de dados, com recurso ao elenco pertinente de arestos relevantes, a atribuição de indemnização por perda de capacidade de ganho/dano biológico patrimonial, segundo um juízo equitativo, tem-se baseado em função dos seguintes fatores principais: a idade do lesado; o seu grau de incapacidade geral permanente; as suas potencialidades de aumento de ganho, antes da lesão, tanto na profissão habitual, ou previsível profissão habitual, como em profissão ou atividade económica alternativas, aferidas, em regra, pelas suas qualificações; a conexão entre as lesões físico-psíquicas sofridas e as exigências próprias da atividade profissional habitual do lesado, ou da previsível atividade profissional habitual do lesado, assim como de atividades profissionais ou económicas alternativas, tendo em consideração as competências do lesado.
Na mesma decisão do STJ, reitera-se o que há muito se refere na jurisprudência: a indemnização para reparação da perda da capacidade futura de ganho deve apresentar como conteúdo pecuniário “um capital produtor do rendimento que o lesado deixará de perceber em razão da perda da capacidade aquisitiva futura e que se extingue no termo do período de vida, atendendo-se, para o efeito, à esperança média de vida do lesado”, sem deixar de “considerar a natural evolução dos salários”. Neste âmbito, será de entender como relevante o valor líquido da remuneração auferida pelo lesado, uma vez que tal corresponde em rigor à aplicação da teoria da diferença consagrada no art.º 566º, 2, do CCiv. e “não deve prescindir do que é normal acontecer (id quod plerumque accidit) no que se refere à expectativa média de vida (…) e ao período de vida ativa (em regra, até aos 75 anos), bem como à natural progressão na carreira e ao previsível impacto na massa salarial a receber”.
Por fim, é ainda de registar que, “ponderando-se o facto de a indemnização ser paga de uma só vez, o que permitirá ao seu beneficiário rentabilizá-la em termos financeiros”, importa “introduzir um desconto no valor achado, condizente ao rendimento de uma aplicação financeira sem risco, e que, necessariamente, deverá ser tida em consideração pelo tribunal que julgará equitativamente”. No entanto, como se advertiu no Ac. do STJ de 19/04/2018, “o recebimento de uma só vez do montante indemnizatório não releva atualmente como em tempos não muito recuados já relevou, tendo em conta que a taxa de juro remuneratório dos depósitos pago pelas entidades bancárias é muito reduzido (…), o que implica, por si só, a elevação do capital necessário para garantir o mesmo nível de rendimento”.
Desde logo, quanto ao recurso ao apelidado método comparativo com outras decisões semelhantes de tribunais superiores para a fixação do valor da indemnização pelo dano biológico com recurso à equidade, cumpre-nos pois referir aqui algumas decisões que podem ter para o caso concreto, relevo: os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26/01/2017, Processo n.º 1862/13.7TBGDM.P1.S1; de 19/04/2018, Processo n.º 196/11.6TCGMR.G2.S1; de 19/09/2019, Processo n.º 2706/17.6T8BRG.G1.S1 e de 30/05/2019, todos na base de dados da dgsi.”
A situação colocada no presente recurso no que respeita à quantificação da indemnização devida pelo dano biológico sofrido pelo Autor, incluindo a determinação do dano futuro por perda da capacidade de ganho, teve soluções muito diversas nas instâncias.
Na sentença a indemnização foi fixada atendendo a um valor de salário de € 14.074,00/ano, considerando-se o autor com uma esperança média de vida até aos 83 anos e sem que o défice funcional permanente de incapacidade de 34 pontos influísse negativamente no apuramento. Chegou-se aqui ao valor de 650.000 euros.
No acórdão, a situação foi revertida por se considerar que o valor objetivo do salário anual multiplicado pelos anos de vida possível (até 80 anos) só devia ser fixado com a ponderação do défice funcional permanente de incapacidade de 34 pontos. Chegou-se aqui ao valor de 225.000 euros.
Em ambas as decisões o montante indemnizatório foi fixado com recurso à equidade, por não se conseguir determinar o montante exato do dano, mas vindo este por provado – art.º 566.º, n.º 3 do CC.
Em ambas as decisões as considerações sobre como se calcula o valor do dano apontam para critérios idênticos, à exceção do modo como o DFPIFP (défice funcional permanente de Integridade físico-psíquica) deve refletir-se no apuramento.
Foram usados ainda os critérios habituais na fixação deste tipo de dano: idade do lesado à data do acidente; esperança de vida; idade de vida ativa; necessidade de encontrar um valor justo, que se esgote no fim do período de vida ativa; potencialidade de evolução na profissão, etc.
Porque a fixação do quantum indemnizatório segundo juízos de equidade não envolve uma “questão de direito”, mas já a verificação sobre se os critérios utilizados nesse juízo podem ser entendidos como integrando o problema jurídico e não apenas o fáctico, o STJ tem procedido nos seus arestos à verificação da conformidade dos critérios concretamente usados com os critérios habituais na jurisprudência e procedido a uma comparação de situações, com vista a adaptar as soluções ao princípio da igualdade e proporcionalidade e, quando necessário, – por via dessa análise crítica – definir ele próprio o valor que considera equitativo, iremos adotar, no presente caso, o mesmo método.
Olhando para as decisões em confronto, parece deduzir-se delas que na sentença se considerou irrelevante o DFPIFP, porque se valorizou o facto provado de a lesão sofrida ter conduzido a uma repercussão permanente na atividade profissional, em que as sequelas são impeditivas do exercício da atividade profissional habitual do A. e bem assim de qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional – facto AAA – o que equivaleria a haver um incapacidade total e permanente para o exercício da profissão, a compensar. Diversamente, a 2ª instância, ainda que reproduzindo o facto provado AAA, operou um desconto no montante devido, considerando que os valores objetivos usados pela 1ª instância, só deviam ser considerados na proporção de 34% (retirada dos 34 pontos do DFPIFP).
A questão que se coloca a este STJ é de enorme dificuldade. Pede-se que meça o valor do dano do Autor numa situação em que as instâncias se pronunciaram por valores tão dispares, ambas indicando que o fazem segundo critérios de equidade – ou de justiça do caso concreto.
Ora, entre as duas posições assumidas pelas instâncias pode tentar-se encontrar uma solução intermédia, mais conforme com os contornos do caso concreto e com a ideia de justiça proporcional e comparativa com situações já submetidas a julgamento. Solução que passe por uma ponderação dos elementos objetivos do caso concreto – a idade do lesado à data do acidente; a sua situação de pessoa saudável; a sua remuneração habitual antes do acidente; a sua esperança de vida; a sua qualidade de vida; o valor do salário mínimo nacional; as suas qualificações e possibilidades de reconversão profissional dentro da profissão e no local onde reside e tem o seu centro de vida; o facto de o mesmo não ser nem velho nem jovem para a reconversão profissional mas não dever assumir-se que ficará inativo até à idade de reforma; as sequelas do acidente na sua pessoa como um todo – integrando a componente física e psíquica e sem esquecer que esta não pode ser desvalorizada, nem comporta uma reação igual em todo o ser humano perante idênticas consequências do acidente.
É, em face deste conjunto de elementos, que a indemnização deve ser fixada e no esforço de a determinar este STJ considera que são de relevar as considerações que se seguem:
− O Autor nasceu em .../.../1976, tendo 37 anos à data do acidente (30 de setembro de 2013); a alta médica confirmada pela seguradora ocorreu em 06/02/2018, tendo recebido parte (declarada) da sua remuneração até essa data da seguradora do acidente de trabalho (70%) e da Ré (30%) – factos EEE, FFF, GGG, III, MMM (valor total da interveniente anual = € 8.967,98 + € 2.241,99 + € 5.533,70 = € 16 743,67).
− Na data do acidente auferia 545,50 euros de vencimento base, pago 14 meses por ano, acrescido de subsídio de refeição de € 129,95 (onze meses), valores apurados como efetivos.
O valor do vencimento base situa-se em montante inferior ao salário mínimo nacional do ano – 485 euros[1]. Mas o valor percebido situar-se acima do valor mínimo, por via do recebimento de ajudas de custos e prémio de produtividade, não se tendo apurado se estes pagamentos eram mensais e regulares no sentido de serem pagos 12 meses por ano (facto não provado 1.)
− Na sentença o valor da indemnização por dano biológico com perda da capacidade de ganho (dano futuro) foi obtido considerando-se um valor de vencimento anual de € 14.074,00 e considerados 46 anos de remuneração, subentendendo-se que a esperança média de vida considerada foi até aos 83 anos de vida do Autor.
Contudo, a esperança média de vida – segundo dados da pordata [2] – para o sexo masculino não ultrapassa os 78 anos, devendo atender-se a esse elemento por ser mais objetivo.
− Já no que respeita à remuneração, atendendo aos elementos indicados e aos factos provados e não provados, consideramos que deve atender-se ao valor 574,70 euros mensais x 14 meses.
O valor indicado corresponde à média do salário mínimo entre 2013 e 2022, ano em que o valor de referência está fixado em 705,00, o que significa que anualmente o Autor deixou de receber, por via de salário na sua profissão habitual, 9 475,25 (incluindo o subsídio de refeição).
− Esse montante deve ser acrescido de algum valor a título de ajudas de custos/prémios de produtividade, que, por não haver prova definitiva do seu valor anual, se deve considerar poder ser um valor de, pelo menos, metade do valor indicado, considerando que o receberia seis vezes por ano.
Assim, e tomando por referência os valores indicados pelo Autor e dados por assentes (agora no intervalo superior) (cerca de 800 euros), isto significaria no conjunto acrescentar 4 800,00 (tudo somado a conduzir ao valor anual de € 14.275,25) – cenário 1 – ou em alternativa poder-se-ia admitir a ponderação da remuneração não regular pelo valor mínimo (500 euros), em seis meses do ano, a acrescentar ao valor de € 9.475,25, o que redundaria num vencimento de € 12.475,25 – cenário 2.
Uma vez que se apurou o valor anual e se sabe que o Autor tem uma esperança de vida até aos 78 anos, tendo ficado sem condições para o exercício da sua atividade profissional e para outras compatíveis com os seus conhecimentos, pode estimar-se que a indemnização devida poderia rondar entre os € 585.000,00, valor global ao qual seriam subtraídos os montantes recebidos da ISS e da interveniente, por conta de remunerações não percebidas na sua função habitual – cenário 1 – ou em alternativa poder-se-ia admitir a ponderação da remuneração não regular pelo valor mínimo (500 euros), em seis meses do ano, a acrescentar ao valor de € 9.475,25, o que redundaria num vencimento de € 12. 475,25, reportado à esperança média de vida do lesado (78 anos), tudo perfazendo € 511.000,00, valor global ao qual seriam subtraídos os montantes recebidos da ISS e da interveniente, por conta de remunerações não percebidas na sua função habitual – cenário 2.
Porque os valores indicados não devem ser arbitrados apenas com base nos elementos objetivos indicados, não totalmente provados, e por não se conseguir apurar o valor exato do dano, determinando a lei que o juiz se socorra da equidade, não pode deixar de se tomar em consideração que o acidente provocou ao Autor uma incapacidade para a sua profissão habitual e para outras compatíveis com os seus conhecimentos, mas sem que existam elementos nos autos relativos a esse ponto; que o Autor tinha 37 anos à data do acidente e hoje terá 46; que não sendo velho para efeitos de reconversão profissional não é jovem e não se afigura fácil obter emprego [3], mas não é de todo impossível que se dedique a alguma atividade profissional da qual possam provir proventos económicos [4]; que a situação do Autor não é equivalente à de alguém que ficou paraplégico ou acamado e sem alternativas; que as indemnizações arbitradas pelos tribunais superiores em Portugal procuram a justiça e equidade mas a mesma só se obtém se os parâmetros decisórios tomarem em consideração casos “paralelos” (na medida em que esse paralelismo se possa identificar em situações tão casuísticas); que há um dever de proporcionalidade e igualdade no recurso à equidade – tudo em conjunto, entende o tribunal que o valor justo da indemnização deve ser na ordem dos € 400.000,00, valor ao qual tem de ser subtraídas as verbas recebidas da ISS e da Interveniente pelo dano em causa.
Este valor é acima do valor da remuneração anual de € 9.475,25 x 41 anos (= € 388.475,00), o que permite acomodar a diferença de valores entre os montantes acima apresentados, calculados por via da consideração da remuneração não permanente, seja reportado ao valor máximo, seja ao mínimo, seja ao número de meses do seu pagamento, o que se afigura mais equitativo em face do facto não provado 1, sem desconsiderar a dimensão humana do dano sofrido pelo Autor e da revolução que o mesmo introduziu na sua vida pessoal, com inúmeras referências nos autos (por especialista médicos) à sua situação psíquica e anímica, que não pode ser desconsiderada no contexto global e no recurso à equidade.”
**
Vistos os factos, apreciemos a questão supra enunciada.
Dispõe o nº 2 do art.º 17º da LAT[3] que se o sinistrado em acidente receber de terceiro indemnização superior à devida pelo empregador [paga pela seguradora, porque contratado o seguro obrigatório] este [ou a seguradora] considera-se desonerado da respetiva obrigação e tem direito a ser reembolsado pelo sinistrado das quantias que tiver pago ou despendido.
Acrescenta o nº 3 do mesmo art.º 17º, que se a indemnização arbitrada ao sinistrado for de montante inferior ao dos benefícios conferidos em consequência do acidente, a exclusão da responsabilidade é limitada àquele montante.
O texto da lei é muito claro, mas ainda assim transcreve-se o que referiu a este propósito Carlos Alegre[4]:
Nas situações de confluência de responsabilidades pela eclosão do acidente … o sinistrado não fica titular de dois ou mais direitos a indemnização surgidos de outras tantas fontes diferentes de reparação.
Por outras palavras, concorrendo mais do que um direito a indemnização, por virtude do mesmo acidente, em relação ao mesmo dano concreto, a sua concretização, através da reparação respetiva, não é cumulável.
Todavia, quanto ao tipo de responsabilidade em causa não é, apenas, a objetiva, mas também a subjetiva, concorrendo ambas as formas, o sinistrado fica titular de dois direitos a reparação, cada um dos quais por razões ou motivos diferentes.
No fundo, o que se encontra em confronto é a prevalência indemnizatória resultante de responsabilidade objetiva em relação à responsabilidade subjetiva de quem pratica o facto ilícito.
Porque elucidativo, refere-se também o sumariado no acórdão desta Secção Social do TRP de 03/06/2019[5], que foi o seguinte:
I) O fim/objetivo que se pretende alcançar com a Lei n.º 98/2009, de 04 de setembro (LAT), é o de que o sinistrado, em caso de ocorrência de acidente de trabalho, seja totalmente ressarcido do prejuízo que sofreu – prejuízo esse em relação ao qual a própria lei prevê o modo/forma como deve ser ressarcido –, do que decorre que, em caso de ressarcimento por terceiro estranho à relação laboral – ou seja, estranho ao núcleo de responsabilidade prevista na LAT para a reparação do acidente –, se esse ressarcimento tiver visado reparar o mesmo dano acautelado pela LAT, não pode então o sinistrado, assim ressarcido, voltar a sê-lo, agora pelo empregador, sob pena de se verificar um seu enriquecimento injustificado, pois que seria neste caso o lesado duplamente indemnizado/ressarcido pelo mesmo dano – artigo 17.º, nos 2 e 3, da LAT.
II) É que, ainda que assentem em critérios distintos e tenham uma funcionalidade própria, essas indemnizações não são cumuláveis, mas antes complementares até ao ressarcimento total do prejuízo causado ao sinistrado, pelo que não deverá tal concurso de responsabilidades conduzir a que esse possa acumular no seu património um duplo ressarcimento pelo mesmo dano concreto.
Tem ainda pertinência trazer aqui o sumário do acórdão do STJ de 29/10/2020 (Secção Cível)[6], que é o seguinte:
I. De acordo com jurisprudência consolidada do STJ, consideram-se reparáveis como danos patrimoniais as consequências danosas resultantes da incapacidade geral permanente (ou vertente patrimonial do denominado “dano biológico”), ainda que esta incapacidade não tenha tido repercussão direta no exercício da profissão habitual.
II. Equívoco muito comum na prática judiciária nacional consiste em perspetivar o défice funcional por perda de capacidade geral como se correspondesse a um índice de incapacidade parcial para o exercício da profissão habitual, com perda da remuneração na proporção de tal índice.
III. Estando em causa duas dimensões distintas, são também distintos os critérios para avaliar cada uma das incapacidades, assim como os critérios para fixar a correspondente indemnização, a saber: (i) a afetação da capacidade para o exercício de profissão habitual é aferida em função dos índices previstos na Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais e, na medida em que tal afetação se traduza na perda, total ou parcial, da remuneração percebida no exercício dessa mesma profissão, é suscetível de ser calculada de acordo com a fórmula da diferença prevista no nº 2 do art.º 566º do CC[7]; (ii) enquanto a afetação da capacidade geral é aferida em função dos índices da Tabela de Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil e, na medida em que a afetação em causa se traduza em danos patrimoniais futuros previsíveis, a indemnização deve ser fixada segundo juízos de equidade, dentro dos limites que o tribunal tiver como provados, conforme previsto no nº 3 do art.º 566.º do CC[8].
IV. Recorde-se que os índices de Incapacidade Geral Permanente não se confundem com os índices de Incapacidade Profissional Permanente, correspondendo a duas tabelas distintas, aprovadas pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de outubro.
V. Sublinhe-se a relevância teórica e prática do reconhecimento legal da incapacidade geral permanente, assim como da orientação consolidada da jurisprudência do STJ de lhe atribuir, à luz do princípio geral do ressarcimento de danos, efeitos indemnizatórios. É através da reparabilidade das consequências patrimoniais da afetação da capacidade geral que se contribui para um tratamento mais igualitário das vítimas, não serão indemnizadas com base na remuneração laboral, mais ou menos elevada, percebida à data da lesão.
(…)
VII. De acordo com a jurisprudência do STJ, a atribuição de indemnização por perda de capacidade geral de ganho, segundo um juízo equitativo, tem variado, essencialmente, em função dos seguintes fatores: a idade do lesado; o seu grau de incapacidade geral permanente; as suas potencialidades de aumento de ganho – antes da lesão –, tanto na profissão habitual, como em profissão ou atividade económica alternativas, aferidas, em regra, pelas suas qualificações e competências. A que acresce um outro fator: a conexão entre as lesões físico-psíquicas sofridas e as exigências próprias da atividade profissional habitual do lesado, assim como de atividades profissionais ou económicas alternativas (tendo em conta as qualificações e competências do lesado).
Podemos, então, dizer que o chamado dano biológico pode abarcar algo mais do que a perda da capacidade de ganho do acidentado, podendo contemplar a diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com substancial e notória repercussão na sua vida, não só profissional como pessoal, como se deduz do escrito no acórdão do STJ de 21/06/2022 (Secção Cível)[9]:
IV- Entre os danos indemnizáveis encontra-se, na moderna terminologia, o chamado dano biológico, que costuma ser definido como um estado de danosidade físico-psíquico em que ficou a pessoa lesada, com repercussões negativas na sua vida.
V- Dano esse que tanto pode ser ressarcido enquanto dano patrimonial futuro, como compensado a título de dano não patrimonial, o que resultará de uma a avaliação casuística, e que normalmente resultará da verificação/conclusão se a lesão originou no futuro, e só por si, uma perda da capacidade de ganho do lesado ou se traduz, apenas, numa afetação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, para além do agravamento natural resultante da idade.
VI- Nessa sua dimensão/vertente patrimonial (que decorre, em regra, de uma limitação ou défice funcional), esse dano abrange ou inclui em si um espetro/leque alargado de prejuízos que se refletem na esfera patrimonial do lesado, e que vão desde a perda do rendimento total ou parcial auferido no exercício da sua atividade profissional habitual até à frustração de previsíveis possibilidades de desempenho de quaisquer outras atividades ou tarefas de cariz económico (traduzidas em perdas de chance ou oportunidades profissionais), passando ainda pelos custos de limitações ou de maior onerosidade/esforço no exercício ou no incremento de quaisquer dessas atividades ou tarefas, com a consequente repercussão de maiores despesas daí advenientes ou no malogro do nível de rendimentos normalmente expectáveis, assumindo neste último a caso a indemnização como uma adição ou complemento compensatórios.
VII- Dano patrimonial futuro (vg. na vertente de lucro cessante) esse cuja indemnização, quando decorra da perda ou diminuição da capacidade aquisitiva, motivada pelo défice funcional de que o lesado ficou afetado, deve, como regra, ser calculada em atenção ao tempo provável de vida do lesado, ou seja, à esperança média da sua vida, e não apenas em função da duração da sua vida profissional ativa (vg. prevista até à sua reforma), de forma a representar um capital produtor de rendimento que cubra a diferença entre a situação anterior e a atual até final desse período.
VIII - Consabidas que são as dificuldades que existem em tal domínio, devido à ausência de regras legais que concretamente enunciem objetivamente os critérios a seguir e não podendo ser averiguado o valor exato dos danos – sendo certo que aqueles constantes das Portaria nº. 377/2008, de 26/05, com ou sem as alterações introduzidas pela Portaria nº. 679/2009, de 25/06, não vinculam os tribunais, não derrogando, a esse respeito os princípios insertos nos Código Civil, pois que apenas visam facilitar e acelerar a regularização extrajudicial do sinistros em matéria de acidentes rodoviários -, devem os mesmos ser sempre, em última instância, apurados à luz da equidade, emergente caso concreto, devendo o recurso as quaisquer tabelas matemáticas ou financeiras servir, quando muito, como meios auxiliares de orientação com vista a atingir a tal desiderato equitativo da indemnização do dano.
IX- Porém, na determinação equitativa desse dano patrimonial futuro do lesado, há uma panóplia de tópicos ou elementos referenciais que poderão/deverão ainda ser considerados, tais como:
- A idade do autor lesado à data do acidente;
- A remuneração mensal auferida pelo lesado à data do acidente e/ou outros rendimentos por si usufruídos;
- A evolução profissional perspetival, ou não, e os reflexos a nível remuneratório, quer se trabalhe por conta própria ou de outrem, ou até em simultâneo;
- A taxa média de inflação e a taxa de rentabilidade do capital, baseadas num juízo de previsibilidade.
- A gravidade das lesões e as suas consequências, e a atribuição do grau de incapacidade ou de défice funcional.
- O recebimento de uma só vez do todo capital/rendimento futuro que é antecipado.
Em face disto, não nos podemos quedar por uma comparação teórica entre o que seja o dano biológico e a reparação por acidente de trabalho, interessando, sabido que a pensão atribuída no âmbito da reparação de acidente de trabalho visa indemnizar a perda ou diminuição da capacidade de ganho do sinistrado[10], ver em concreto que dano foi ressarcido quando foi atribuída ao Sinistrado a quantia de € 400.000,00 no processo que apreciou o acidente na vertente de acidente de viação, de modo a assim ver se está em causa indemnização pelo mesmo dano concreto que foi reparado no processo apenso (que apreciou o acidente na vertente de acidente de trabalho).
Quanto a ónus da prova, deixa-se consignado que ao responsável pela reparação dos danos decorrentes do acidente de trabalho cabe demonstrar que o dano resultante da redução da capacidade de trabalho sofrida pelo sinistrado foi englobado no quantitativo indemnizatório recebido do terceiro responsável, bem como o valor (ou parcela do valor) que foi afetado a essa reparação[11].
Vejamos então que dano concreto foi indemnizado quando foi fixada a quantia de € 400.000,00.
Vistas as decisões proferidas no processo em que esteve em apreciação do acidente na vertente de acidente de viação, temos que:
− em 1ª instância a seguradora foi condenada a:
a) satisfazer ao Autor a quantia global de € 762.014,83 [incluindo € 650.000,00 a título de dano biológico ou dano patrimonial futuro];
b) satisfazer ao ISS, IP a quantia reclamada de € 4.938,06 [reembolso do pago pela Segurança Social];
c) satisfazer à interveniente principal [seguradora do trabalho] a quantia global de € 81.560,88 [reembolso do pago como prestação a terceira pessoa, indemnização por elevada incapacidade e pensões].
− o TRP, por acórdão de 20/09/2021, decidiu;
a) condenar a Ré Seguradora a pagar ao Autor a título de indemnização, a quantia global de € 308.149,19 [sendo € 225.000,00 a título de dano biológico na sua vertente patrimonial ou perda da capacidade de ganho decorrente da incapacidade geral de que o Autor ficou a padecer];
b) absolver a Ré Seguradora do pagamento da quantia de € 4.938,06 reclamada pelo ISS, IP;
c) manter, no mais, o decidido em 1ª instância.
− o STJ, por acórdão de 17/02/2022[12], na decisão da questão da quantificação da indemnização devida a título de compensação dos danos de natureza patrimonial futuros, decorrentes da incapacidade permanente geral para o trabalho (IPG), também denominado défice funcional permanente[13], fixou o valor da mesma em € 400.000,00 (pág. 26), sendo tal valor fixado com recurso à equidade [como já tinha acontecido em 1ª instância e na Relação], como está expresso no acórdão, destacando-se os seguintes trechos que se transcrevem (sem notas de rodapé):
Em ambas as decisões [sentença de 1ª instância e acórdão da Relação] o montante indemnizatório foi fixado com recurso à equidade, por não se conseguir determinar o montante exato do dano, mas vindo este por provado – art.º 566º, nº 3 do CC.
(…)
A questão que se coloca a este STJ é de enorme dificuldade. Pede-se que meça o valor do dano do Autor numa situação em que as instâncias se pronunciaram poer valores tão díspares, ambas indicando que o fazem segundo critérios de equidade – ou de justiça do caso concreto.
(…)
Porque os valores indicados não devem ser arbitrados apenas com base nos elementos objetivos indicados, não totalmente provados, e por não se conseguir apurar o valor exato do dano, determinando a lei que o juiz se socorra da equidade, não pode deixar de se tomar em consideração que o acidente provocou ao Autor uma incapacidade para a sua profissão habitual e para outras compatíveis com os seus conhecimentos, mas sem que existam elementos nos autos relativos a esse ponto; que o Autor tinha 37 anos à data do acidente e hoje terá 46; que não sendo velho para efeitos de reconversão profissional não é jovem e não se afigura fácil obter emprego, mas não é de todo impossível que se dedique a alguma atividade profissional da qual possam provir proventos económicos; que a situação do Autor não é equivalente à de alguém que ficou paraplégico ou acamado e sem alternativas; que as indemnizações arbitradas pelos tribunais superiores em Portugal procuram a justiça e equidade mas a mesma só se obtém se os parâmetros decisórios tomarem em consideração casos “paralelos” (na medida em que esse paralelismo se possa identificar em situações tão casuísticas); que há um dever de proporcionalidade e igualdade no recurso à equidade,
– Tudo em conjunto, entende o tribunal que o valor justo da indemnização deve ser na ordem dos € 400.000,00, valor ao qual tem de ser subtraídas as verbas recebidas da ISS e da Interveniente pelo dano em causa [sublinhou-se].
Este valor é acima do valor da remuneração anual de € 9.475,25 x 41 anos (= € 388.475,00), o que permite acomodar a diferença de valores entre os montantes acima apresentados, calculados por via da consideração da remuneração não permanente, seja reportado ao valor máximo, seja ao mínimo, seja ao número de meses do seu pagamento, o que se afigura mais equitativo em face do facto não provado 1, sem desconsiderar a dimensão humana do dano sofrido pelo Autor e da revolução que o mesmo introduziu na sua vida pessoal, com inúmeras referências nos autos (por especialista médicos) à sua situação psíquica e anímica, que não pode ser desconsiderada no contexto global e no recurso à equidade.
Como se vê, o STJ considerou no acórdão proferido haver sobreposição nas compensações, donde não alterar a decidida dedução das quantias que o Sinistrado recebeu da “seguradora do trabalho” (interveniente no processo).
Mas cabe ver se na realidade está em causa, em ambas as situações, indemnização pelo mesmo dano concreto, o que passa por saber se no referido montante de € 400.000,00 foi englobado, total ou parcialmente, aquilo que o Sinistrado tem direito por via da LAT, fixado no processo apenso, em que foi apreciado o acidente na vertente de acidente de trabalho.
Ora, lendo o acórdão do STJ proferido no processo que apreciou o acidente enquanto acidente de viação constatamos que com aquele montante foi ressarcido dano patrimonial, o dano futuro por perda da capacidade de ganho, estando ponderada essencialmente a capacidade produtiva do sinistrado (cfr. parte transcrita nos “fatos provados” supra), havendo por isso ressarcibilidade do mesmo dano em causa na LAT.
Todavia, embora tenha sido feita essa ponderação, não se pode dizer que a indemnização ali fixada engloba mais do que aquilo que o Sinistrado tem direito por via da LAT, argumentando que o valor da retribuição considerado para calcular as prestações da LAT é diferente [mais baixo] daquele que o STJ considerou para encontrar o valor de € 400.000,00, pois este valor foi obtido em resultado da equidade ainda que, perante as dificuldades em arbitrar um valor, fossem ponderados alguns elementos objetivos referenciais, entre eles a retribuição anual auferida pelo Sinistrado e os anos esperados de remuneração (tendo como referência a esperança média de vida).
Ou seja, não se pode teorizar sobre qual seria o valor da indemnização que o STJ teria arbitrado se considerasse o valor da retribuição que foi considerado para fixar as prestações devidas por aplicação da LAT [mais baixo], pois o critério utilizado pelo STJ foi claramente a equidade [não qualquer fórmula de cálculo], e é com o valor fixado que raciocinamos (e não outro hipotético).
Assim, porque houve recurso à equidade, não acompanhamos a argumentação do Recorrente de que parte dos € 400.000,00 se destinaram ao ressarcimento da perda de rendimentos do prémio de produtividade e das ajudas de custo.
De resto, ser o valor da indemnização arbitrada pelos danos resultantes do acidente enquanto acidente de viação mais alto ou mais baixo, só significa que, ao suspender o pagamento, se demora mais ou menos a alcançar o valor arbitrado, não que estejam em causa danos diversos.
Isto é, tem fundamento a suspensão da obrigação da Requerente “A... - Companhia de Seguros, S.A.” a pagar a pensão anual devida ao sinistrado AA até perfazer o montante de € 400.000,00 (quatrocentos mil euros), sendo certo que para essa contabilização é considerado, como está dito no acórdão, o valor que foi reembolsado à “seguradora do trabalho” (pago a título de pensões).
Pelo exposto, sem necessidade de considerações mais desenvolvidas, improcede o recurso.
*
Quanto a custas, havendo improcedência do recurso, as custas do mesmo ficam a cargo do Recorrente (art.º 527º do Código de Processo Civil), tendo presente que o apoio judiciário foi cancelado (cfr. despacho 25/05/2023).
***
DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desembargadores da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto em julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Custas pelo Recorrente, com taxa de justiça conforme tabela I-B anexa ao RCP (cfr. art.º 7º, nº 2 do RCP).
Valor do recurso: o da ação (art.º 12º, nº 2 do RCP).
Notifique e registe.
(texto processado e revisto pelo relator, assinado eletronicamente)

Porto, 18 de setembro de 2023
António Luís Carvalhão
Jerónimo Freitas
Teresa Sá Lopes
________________
[1] As transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo correção de gralhas evidentes e realces/sublinhados que no geral não se mantêm (porque interessa o texto em si), consignando-se que quanto à ortografia utilizada se adota o Novo Acordo Ortográfico.
[2] Vd. António Santos Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 5ª edição, pág. 156 e págs. 545/546 (estas no apêndice I: “recursos no processo do trabalho”).
[3] Lei dos Acidentes de Trabalho, o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais aprovado pela Lei nº 98/2009, de 04 de setembro, aquele a considerar no caso sub judice dada a data da ocorrência do acidente (30/09/2013).
[4] In “Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais – Regime Jurídico Anotado”, 2ª ed., Almedina, pág. 150, a propósito do regime aprovado pela Lei nº 100/97, de 13 de setembro, entretanto revogado pela atual LAT, mas que tem pleno cabimento dada a similitude do atual art.º 17º com o art.º 31º daquele regime.
[5] Consultável em www.dgsi.pt, processo nº 448/15.6Y2MTS.P1.
[6] Consultável em www.dgsi.pt, processo nº 111/17.3T8MAC.G1.S1.
[7] Que dispõe o seguinte: sem prejuízo do preceituado noutras disposições, a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos.
[8] Que dispõe o seguinte: se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.
[9] Consultável em www.dgsi.pt, processo nº 1633/18.4T8GMR.G1.S1.
[10] Cfr. acórdão do TRE de 12/09/2018, consultável em www.dgsi.pt, processo nº 314/14.2TTABT-A.E1.
[11] Cfr. acórdão do STJ de 20/09/2006, consultável em www.dgsi.pt, processo nº 06S1200.
[12] Junto por certidão ao processo e transcrito em parte nos “factos provados” supra, mas também consultável em www.dgsi.pt, processo nº 2712/18.3T8PNF.P1.S1.
[13] Assim está enunciada a questão na pág. 15, sendo na pág. 21 dito que está em causa a quantificação da indemnização devida pelo dano biológico sofrido pelo Autor, incluindo a determinação do dano futuro por perda da capacidade de ganho.