Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3771/12.8TBVLG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ AMARAL
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
DESPESAS DO CONDOMÍNIO
LOCAÇÃO FINANCEIRA
Nº do Documento: RP201405293771/12.8TBVLG-A.P1
Data do Acordão: 05/29/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A obrigação de pagamento de despesas relativas à fracção de prédio em propriedade horizontal qualifica-se como propter rem, em função da coisa, mas não é ambulatória.
II - Impende sobre o locatário financeiro a obrigação de pagamento ao condomínio das despesas de fracção autónoma objecto da locação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº3771/12.8TBVLG.P1 – 3.ª

Relator: José Fernando Cardoso Amaral (nº163)
Des. Dr. Trajano Amador Seabra Teles de Menezes e Melo (1º Adjunto)
Des. Mário Manuel Batista Fernandes (2º Adjunto)

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO

No 2º Juízo da Comarca de Valongo, por sentença de 17-02-2014, foi julgada improcedente a oposição que a sociedade “B…, SA”, com fundamento, além do mais, em ser mera locadora financeira e não responder pelas despesas de conservação e fruição das partes comuns do prédio onde adquiriu a fracção autónoma locada, havia deduzido à execução movida pelo “Condomínio …”, com base nas actas da assembleia.

Inconformada a executada/oponente apelou para esta Relação, pedindo que a sentença seja revogada, julgada procedente a oposição e declarada extinta a execução, apresentando como “conclusões” este texto:

“1. – Radica o objecto dos presentes autos na questão da determinação de quem é responsável pelas despesas de condomínio, nos casos de locação financeira de fracção autónoma;
2. – A resposta a essa questão pressupõe, desde logo, a caracterização da realidade objectiva subjacente à locação financeira;
3. – E, relativamente à qual se constata uma evolução no sentido da tipificação que contempla uma regulamentação vincadamente bancária;
4. – Que, culmina regulada pelo DL 145/95, de 24 de Junho, com as alterações introduzidas pelo DL 265/97 de 2 de Outubro.
5. – Passando o nº 1 do artº 10º daquele diploma a estabelecer que: “São, nomeadamente, obrigações do locatário: pagar, em caso de locação de fracção autónoma, as despesas correntes necessárias à fruição das partes comuns do edifício e aos serviços de interesse comum”;
6. – Do que se conclui que tal dispositivo ancora no carácter marcadamente bancário do contrato de locação e,
7. – Segundo o qual o papel do locador financeiro passa a ser apenas o de adquirir o bem e ceder a sua fruição, funcionando a cedência do gozo como um mero instrumento de concretização do financiamento.
8. – Ao contrário do locador tradicional, o locador financeiro não adquire o bem para o locar, mas antes para dele retirar o rendimento do dinheiro investido.
9. – O especifico fim do contrato de locação financeira é proporcionar um financiamento à utilização (e eventual aquisição) de um bem,
10. – Bem esse que o locatário seleciona, escolhe e relativamente ao qual se responsabiliza relativamente à sua adequação.
11. – Assim se percebendo que sobre o locador financeiro não recaiam os deveres que normalmente recaem sobre os proprietários que dão em locação e assim se compreendendo que,
12. – O legislador tenha querido colocar a cargo do locatário da fracção autónoma o pagamento das despesas comuns do edifício, certamente em homenagem à vocação do tipo contratual, que visa o financiamento da aquisição da fracção pelo locatário financeiro;
13. – Sendo, ademais, certo que o regime legal do DL 265/97 é cogente, imperativo, por as suas normas serem gerais e abstractas, não tendo eficácia meramente obrigacional, antes se impondo a terceiros, logo, in casu, ao condomínio;
14. – Tal regime é especial em relação ao artº 1424º do C.C., afastando, por isso, a aplicação deste normativo;
15. – In casu o condomínio (Exequente e ora Recorrido) sabia bem que a fracção em apreço se encontrava dada em locação financeira, e a quem – vide facto provado nº 8.
16. – E que, por contraponto ao locador, tal locatário financeiro se assumia como proprietário económico da fracção;
17. – Em função do que assumia, como assume, a posição de condómino a quem são conferidos direitos e obrigações que resultam da dicotomia existente entre o direito de usufruir as partes comuns e a obrigação de contribuir para as despesas destas.
18. – Pretender o contrário resultaria, salvo melhor opinião, na adulteração indevida da dicotomia que a lei consagra;
19. – Apesar do locador financeiro manter alguns dos seus poderes, mesmo no que concerne à disposição do bem (não obstante as limitações legais para o fazer),
20. – A verdade é que é o locatário quem tem o direito de participar em assembleias gerais de condóminos,
21. – Nelas votar, participando desse modo na formação da vontade colectiva, nomeadamente no que tange à aprovação de despesas, receitas e orçamento,
22. – Não se compreendendo assim que o locador pudesse, nesse caso, ser compelido a suportar despesas propostas e/ou aprovadas pelo locatário,
23. – Nada justificando, em tal caso, a solidariedade das obrigações, que apenas se admitiria se voluntária;
24. – Mesmo a admitir-se a natureza propter rem das obrigações de satisfação das despesas contempladas no artº 1424º do C.C.,
25. – O certo é que, nem sempre, tais obrigações se transmitem para quem venha a adquirir o direito real,
26. – Até porque elas se apresentam como correspectivo de um uso e fruição que cabem ao locatário, devendo, em consequência, este suportar os respectivos e consequentes custos;
27. – Podendo assim afirmar-se estarmos perante uma obrigação propter rem que radica a sua existência na funcionalização do simétrico direito de gozo e fruição;
28. – E nem se contraponha o facto de, a exemplo do locatário financeiro, também o locatário tradicional gozar e fruir as partes comuns do prédio, sem que, no entanto, tenha de contribuir para as respectivas despesas, salvo se diferentemente acordado entre as partes – cfr. artº 1078º, nº 1 do Código Civil.
29. – Primum, porquanto nos encontramos perante situações jurídicas de ordem e natureza distintas;
30. – Pois que, conforme já alegado, contrariamente ao contrato de arrendamento, na locação financeira imobiliária existe um contrato de financiamento, visando, preferencialmente, um contrato de compra e venda.
31. – E, só na medida em que enquanto e se este contrato não se consumar é que a relação jurídico-negocial tem afinidade com o contrato de arrendamento.
32. – Secundum, porque diferentes são o gozo e fruição que competem a um e a outro.
33. – Com efeito, o gozo e fruição do locatário financeiro é aquele que corresponde ao do dono económico,
34. – Sobre o qual impende um conjunto de obrigações (de seguro, montagem, instalação, e outros cfr. artº 10º do DL 149/95) não comuns ao tradicional locatário.
35. – E uma responsabilidade (de escolha do bem, da sua adequação aos fins contratuais e a que advém do risco de perda ou deterioração – cfr. artº 12º e 15º do DL 149/95), que normalmente onera o comum proprietário e não o arrendatário.
36. – O locatário financeiro é tratado pela lei como quase-proprietário. Na verdade tem o gozo exclusivo do bem locado e tem o direito de adquirir a respectiva propriedade (sem que o locador se possa opor a essa aquisição).
37. – Ora, precisamente por assumir essa posição de dono económico ou quase proprietário é que o legislador quis colocar a cargo do locatário financeiro um conjunto de obrigações, das quais ressalta o pagamento das despesas de condomínio.
38. – Fazendo-o, certamente, em homenagem à vocação deste especial tipo contratual que visa, reitera-se, o financiamento à aquisição.
39. – Donde se poder afirmar que a fruição e gozo da fracção locada por parte do locatário – gozo exclusivo – ser bem mais abrangente, complexo e interessado do que a que resulta para o simples locatário.
40. – E, donde ainda, a certeza da afirmação da imputação de tais despesas a seu cargo, na medida em que a sua determinação resulta da iniciativa do locatário (maxime, por participação nas assembleias de condóminos) e porque são efectuadas em prol e benefício de um bem que, contratual e legalmente, perspectiva vir a ser seu.
41. A sentença recorrida, por errada interpretação, violou o disposto no artigo 10º do DL 265/97, de 2 de Outubro na redacção dada pelo DL 149/95, de 24 de Junho e no artº 1424º do Código Civil.”

O exequente respondeu, defendendo a confirmação.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata nos autos (apenso) e efeito meramente devolutivo.
Corridos os Vistos legais, cumpre decidir uma vez que nada a tal obsta.

II. QUESTÕES A RESOLVER
Caso nenhuma outra delimitação (subjectiva ou objectiva) seja especificada, pelo recorrente, são as conclusões que definem o thema decidendum e balizam os limites cognitivos deste tribunal – como era e continua a ser de lei e pacificamente entendido na jurisprudência (artºs 608º, 635º, 637º, nº 2, e 639º, do CPC).

No caso, peneirado o longo texto a tal propósito pela apelante apresentado[1], retira-se que a única questão colocada e que nos compete apreciar e decidir consiste em saber se a sociedade de leasing adquirente e proprietária de fracção autónoma de prédio constituído em propriedade horizontal que a tenha adquirido e dado em locação financeira não é responsável pelas despesas de uso e fruição das partes comuns aprovadas pela assembleia de condóminos.

III. FACTOS PROVADOS

O tribunal recorrido considerou os seguintes, não impugnados, e que ora se fixam:

“1 – O exequente “Condomínio …”, sito na Rua …, nº …, Valongo, e descrito na CRP de Valongo sob o nº 1008/19880616, apresentou, como título executivo, as actas de assembleia geral de condóminos nºs 8, 9 e 10, realizadas em 22-1-2010, 25-3-2011 e 23-1-2012, respectivamente, juntas ao requerimento executivo.
2 – Encontra-se registada, desde 23-9-2003, a aquisição, pela executada “B…, SA”, da fracção autónoma descrita na CRP sob o nº 1008/19880616-A.
3 – Encontra-se registada, desde 23-9-2003, a locação financeira efectuada sobre essa mesma fracção, a favor de “C…, Lda.”.
4 – Encontra-se registada, desde 19-4-2004, a locação financeira efectuada sobre essa mesma fracção, a favor de “D…, Lda.”.
5 – O executado exerce as actividades permitidas por lei aos bancos, aqui incluindo a locação financeira.
6 - Em 24 de Julho de 2003, o Executado celebrou o contrato de locação financeira imobiliária nº …… com “C…, LDA”, junto como doc. nº 1 à petição de oposição, tendo por objecto a referida fracção “A”, pelo prazo de 15 anos.
7 - Por interesse daquela locatária e com a aceitação do aqui Executado, aquela cedeu a sua posição contratual naquele contrato de locação financeira imobiliária nº …… à sociedade “D…, Lda” que, por sua vez, através do doc. nº 2 junto à petição de oposição, em 12 de Janeiro de 2005, a cedeu à sociedade “E…, LDA.”
8 - O Executado remeteu à exequente a carta datada de 05 de Abril de 2012, junta como doc. nº 3 à petição de oposição, dali constando o seguinte: “No seguimento da V/ comunicação datada de 21/03/2012, vimos informar que este imóvel, continua propriedade do C…, SA e o Contrato de Locação Financeira mantém-se em vigor em nome do nosso cliente “E…, Lda”, remetendo para o nosso cliente e locatário a obrigatoriedade de proceder a todas as diligências relativas com condomínio. Mais se informa, que relativamente aos registos que constam na Conservatória do Registo Predial, relatados por V. Exa, iremos averiguar o lapso ocorrido.”.
9 – As actas dadas à execução nºs 8, 9 e 10 foram remetidas, por via postal, à “E…, Lda.”.
10 – A acta dada à execução nº 10 foi remetida, por via postal, à executada “B…, SA”.
11 – Na assembleia-geral que deu origem à acta nº 8 esteve presente um representante do B…, por referência a outras fracções que não a “A”.
12 - Na assembleia-geral que deu origem à acta nº 8 não esteve presente representante da “E…, Lda.”, por referência à fracção “A”.
13 – Na assembleia-geral que deu origem à acta nº 9 esteve presente um representante do B…, por referência a outras fracções que não a “A”.
14 - Na assembleia-geral que deu origem à acta nº 9 não esteve presente representante da “E…, Lda.”, por referência à fracção “A”.
15 – A exequente remeteu à executada, em 21-3-2012, 9-4-2012, 16-4-2012, 28-5-2012, 25-6-2012, 9-5-2011, as cartas juntas como docs. nºs. 1, 2, 3, 4, 5 e 7 à contestação, tendo peticionado, nesta última, o pagamento da quantia de 5 487,20 €.
16 – A executada nunca forneceu à exequente documento comprovativo da transmissão da posição de locatário financeiro à “E…, Lda.”

IV. APRECIAÇÃO/SUBSUNÇÃO JURÍDICA

Como bem começou por se assinalar na, aliás douta, decisão recorrida, a questão vem sendo objecto de debate nos tribunais superiores, sem resposta unânime. Todavia, nota-se que o curso do tempo tem conduzido à formação, na jurisprudência e na doutrina, de uma orientação que se nos afigura predominante, contrária à perfilhada no tribunal a quo e que, por juridicamente mais correcta e consentânea com a realidade sócio-económica tida em vista pelo legislador, julgamos ser de perfilhar.

Daí que, apesar do mérito e denodo com que está sustentada, entendemos não dever manter-se a decisão.

Vejamos porquê.

Nos termos do artº 1424º, nº 1, do Código Civil, as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e ao pagamentos de serviços de interesse comum são pagas pelos condóminos em proporção do valor das suas fracções – salvo disposições em contrário.

A ressalva visa estipulações de natureza negocial, sejam as estabelecidas pelos interessados logo no título constitutivo, sejam as deliberadas sob qualquer outra forma adequada. Assim como as previstas em disposições legais.

E contempla não só o critério proporcional de determinação do valor a pagar mas também da imputação subjectiva da obrigação de pagamento.

Assim, se é certo que ao modo de repartição supletivamente fixado se deve recorrer apenas na falta de outro de origem e natureza negocial, não o é menos que à desresponsabilização de certos condóminos não fecha a lei as portas, como decorre, desde logo, dos nºs 2 e 3 do mesmo artigo (despesas relativas aos diversos lanços de escadas ou às partes comuns do prédio ou dos ascensores que sirvam apenas alguns deles) e, bem assim, nos casos de usufruto e de uso e habitação (artºs 1472º e 1489º).

Tal significa que, tratando-se embora de obrigação em função da coisa (propter rem), ela nem sempre se conserva no titular do direito real sobre ela ou acompanha a mudança dessa titularidade. Daí que esta não possa servir de critério absoluto de imputação. Como se disse no Acórdão do STJ, de 10-07-2008[2], “Estão neste caso, entre outras, precisamente as obrigações dos condóminos de um edifício em propriedade horizontal no que tange ao pagamento das despesas”, isto porque, valendo-se de citado ensinamento de Henrique Mesquita[3], que as indica como exemplo, elas devem considerar-se como não ambulatórias, pois ”verifica-se que a dívida propter rem representa, em muitos casos, o correspectivo de um uso ou fruição que couberam ao alienante, devendo ser este, por conseguinte a suportar o custo do gozo que a coisa lhe proporcionou (cuius commoda, eius incommoda)”. A dívida propter rem mantém-se, assim, na esfera jurídica do seu causador e não se desloca em função da titularidade coisa.

Em caso de locação financeira de fracção autónoma, dispõe o artº 10º, nº 1, alínea b), do Decreto-Lei 149/95, de 24 de Junho, que é obrigação do locatário pagar as despesas correntes necessárias à fruição das partes comuns do edifício e aos serviços de interesse comum, e, o nº 2, alínea e), que a este assiste, em especial, o direito de exercer os direitos próprios do locador (salvo os que, pela sua natureza, só por este possam ser exercidos).

O primitivo diploma que introduziu entre nós tal contrato típico – Decreto-Lei nº 171/79, de 6 de Junho –, apesar de incluir no seu objecto imóveis afectados ou a afectar à indústria, agricultura ou comércio, nada referia quanto à matéria.

Foi o Decreto-Lei nº 10/91, de 9 de Janeiro, que, com o fim de alargar a locação financeira ao domínio dos imóveis para habitação e certamente motivado pela perspectiva da sua vasta incidência na propriedade horizontal, previu, no seu artigo 9º:

“1 – Nas situações de propriedade horizontal, o locatário assume, em nome próprio, todos os direitos e obrigações do locador relativos às partes comuns do edifício suportando as despesas de administração, participando e votando nas assembleias de condóminos e podendo, nelas, ser eleito para os diversos cargos.
2 – Exceptua-se do disposto no número anterior tudo aquilo que implique a disposição de partes comuns ou a alteração do título constitutivo.”

O subsequente Decreto-Lei nº 149/95,de 24 de Junho, que visou conformar ao novo Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, e actualizar os diplomas que disciplinavam contratos que constituíam o objecto da actividade daquelas sociedades, nomeadamente o contrato de locação financeira, introduzindo neste significativas alterações ao respectivo regime jurídico, visando adaptá-lo às exigências de um mercado caracterizado pela crescente internacionalização da economia portuguesa e pela sua integração no mercado único europeu e harmonizá-lo com as normas dos países comunitários, afastando a concorrência desigual com empresas desses países e a consequente extradição de actividades que é vantajoso que se mantenham no âmbito da economia nacional e, além de inovações, pretendeu simplificar a forma do contrato e enunciar mais completamente os direitos e deveres do locador e do locatário, de modo a assegurar uma maior certeza dos seus direitos e, portanto, a justiça da relação, apenas revogou expressamente o Decreto-Lei 171/79 e não tocou no referido Decreto-Lei nº 10/91, mormente no específico domínio por este tratado no citado artº 9º.

Por isso e desde então, como se dá conta no preâmbulo do Decreto-Lei nº 265/97, de 2 de Outubro, entendeu-se tal diploma como constituinte de direito especial e, assim, inalterado pelo Decreto-Lei 149/95.

Infelizmente, como tantas vezes sucede em obra legislativa, complicou-se e obscureceu-se o que era simples e claro.

Com efeito, querendo-se declaradamente uniformizar e, para tal, incluir no regime geral da locação financeira os contratos visados pelo Decreto-Lei nº 10/91, por se entender injustificado mantê-lo como especial e alterar o Decreto-Lei 149/95 “designadamente prevendo situações de propriedade horizontal, por forma que o regime melhor acomode os contratos que tenham aquele objecto”, disseminou-se pelas duas citadas alíneas [a b), do nº 1, e a e), do nº 2] do referido artigo 10º deste último diploma, a matéria que, antes, constava, do artº 9º, daquele (revogando-o), mas aparentemente, em contra-ciclo com o incremento e importância de tal espécie negocial e até em contradição com os seus propósitos no que ao condomínio respeita, reduzindo o seu âmbito normativo.

Na verdade, embora se tenha expressamente incluído e consagrado como especial direito que “assiste” ao locatário financeiro o de exercer, no caso de a locação ter por objecto fracção autónoma, os direitos próprios do locador (exceptuando os que, pela sua natureza, somente por este podem ser exercidos) e, em contrapartida, a obrigação de pagar as despesas correntes necessárias à fruição das partes comuns do edifício e aos serviços de interesse comum, trocou-se por aquela a antes utilizada expressão (“o locatário assume, em nome próprio, todos o direitos e obrigações do locador relativos às partes comuns”) e abandonou-se a mais radical “participando e votando nas assembleias de condóminos e podendo, nelas, ser eleito para os diversos cargos”.

Como, todavia, afincadamente se sustenta no já citado Acórdão do STJ, nada quis o legislador alterar na substância do regime anterior, mormente no campo da locação financeira de imóveis de prédios em propriedade horizontal. “Vistas bem as cousas, este artigo 10º [nº 1, alínea b) e nº 2, alínea e)] nada mais representa do que uma verdadeira transposição do regime inicial para o regime unificador”.

Desvalorizada, assim, a letra do preceito, visto em termos mais dinâmicos e consentâneos com a realidade hodierna o regime do artº 1424º, do Código Civil, e refutada, nos termos apontados, a independência e autonomia ínsitas à natureza de obrigação propter rem da obrigação em causa, desligando-a da titularidade do domínio entendido nos termos típicos e taxativos que a disciplina dos direitos reais lhe confere mas em harmonia sistemática e coerência diacrónica com o tipo moderno da locação financeira e, antes, conexionando-a funcionalmente com o sujeito do gozo temporário da coisa a este referindo a característica não ambulatoriedade, consolida-se o entendimento de que a responsabilidade pelo pagamento das despesas em causa impende sobre o locatário financeiro e perante o condomínio.

Nada sustenta que o âmbito de eficácia da norma do artº 10º se confine às relações entre locador e locatário, ao arrepio do sentido, natureza, conteúdo, regime e fins da locação financeira, que envolve precisamente para garantir o seu conhecimento público e efeitos perante terceiros, o registo predial obrigatório (artº 3º, nº 5), nem colhe o argumento de que o condomínio credor fica mais desprotegido, uma vez que a garantia perante o locatário é, como em relação ao locador, a do seu património e este não deixa de estar exposto às mesmas vicissitudes do daquele.

Aqui chegados mais não é necessário senão, por economia e celeridade, remeter para, entre outros, o já referido Acórdão do STJ de 10-07-2008, bem como para os de 06-11-2008[4] e 02-03-2010[5], e, ainda, para os desta Relação do Porto[6] e da Relação de Lisboa[7], onde, mais e melhor, com recurso a vasta Jurisprudência e Doutrina neles profusamente citada e em sustento de amplos e sólidos fundamentos e mais sábios argumentos, se conclui – contrapondo os traços próprios do regime da propriedade horizontal com os mais marcantes do da locação financeira, sobretudo relevando o especial regime jurídico e consequentes peculiaridades e efeitos deste tipo contratual que conferem ao locatário um “quase direito de propriedade” ou “uma propriedade económica”, e as específicas necessidades comunitárias a que visa prover – de modo a justificar a solução que abraçamos, única que responde com realismo às actuais exigências dos agentes do mercado financeiro actual que nele operam (dando crédito) ou que a ele recorrem (financiando as suas necessidades de bens), considerando procedente e merecedora de reconhecimento a tese da apelante e de afastar a do apelado.

Nestes termos, deve revogar-se a sentença recorrida e, substituindo-a, ao abrigo do artº 816º, do CPC, julgar-se extinta a execução contra a apelante.

V. DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente o recurso e, em consequência, dando provimento à apelação, revogam a decisão recorrida e declaram extinta a execução contra a apelante.

Custas (na 1ª e nesta instância) pelo apelado – (artºs 527º, nºs 1 e 2, e 529º, do novo CPC, e 1º, nºs 1 e 2, 3º, nº 1, 6º, nº 2, referido à Tabela anexa I-B, 7º, nº 2, 12º, nº 2, 13º, nº 1 e 16º, do RCP).

Notifique.

Porto, 29-05-2014
José Amaral
Teles de Menezes
Mário Fernandes
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[1] Lamentavelmente, apesar da importância da tarefa de concluir e das exigências legais, persiste o mau hábito de, na prática, em vez de proposições sintéticas que se limitem a indicar, em termos claros e concisos, os fundamentos da pretendida alteração, se repetir o texto das alegações antecedendo cada parágrafo de numeração. Como a experiência mostra que de pouco ou nada adianta (pelo contrário) o convite à correcção, parecendo-nos perceptível o problema, opta-se, a bem dos interesses gerais de realização da justiça, e por complacência ante o incumprimento dos deveres das partes e seus mandatários, nomeadamente de cooperação, por avançar, sem mais, no espírito do Acórdão do STJ, de 06-12-2012, relatado pelo Consº. Lopes do Rego.
[2] Relator: Consº Urbano Dias.
[3] Obrigações Reais e Ónus Reais, Colecção Teses, Almedina, 1997, reimpressão, páginas 336 a 340.
[4] Relator: Consº Santos Bernardino.
[5] Relator: Consº Fonseca Ramos.
[6] De 14-03-2005 (Desemb. Fonseca Ramos), 05-11-2007 (Desemb. Anabela Luna de Carvalho), de 06-03-2014 (Deolinda Varão) e de 13-03-2014 (relatado pelo 1º Adjunto deste, Dr. Teles de Menezes e subscrito pelo 2º Adjunto, Dr. Mário Fernandes).
[7] De 03-11-2011 (Olindo Geraldes) e 27-02-2014 (Tomé Ramião).
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Sumário:
I) A obrigação de pagamento de despesas relativas à fracção de prédio em propriedade horizontal qualifica-se como propter rem, em função da coisa, mas não é ambulatória.
II) Impende sobre o locatário financeiro a obrigação de pagamento ao condomínio das despesas de fracção autónoma objecto da locação.

José Amaral