Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2127/23.1T9VLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LÍGIA TROVÃO
Descritores: CONTRAORDENAÇÃO
PRESCRIÇÃO
PRAZO LIMITE
LEIS COVID
SUSPENSÃO EXCECIONAL DO PRAZO DE PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: RP202403062127/23.1T9VLG.P1
Data do Acordão: 03/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL / CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O art. 27º do RGCO prevê três prazos distintos de prescrição do procedimento contraordenacional, consoante o montante da coima aplicável.
II - O art. 28º nº 1 do RGCO prevê as causas de interrupção da prescrição, e depois de cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição – cfr. arts. 121º nº 2 do Cód. Penal e 32º do RGCO.
III– Por força do disposto no art. 28º nº 3 do RGCO, o procedimento extingue-se por prescrição independentemente do número de interrupções quando tiver decorrido o prazo acrescido de metade, ressalvado o tempo de suspensão. Este prazo é um prazo de segurança, ligado aos fundamentos do instituto da prescrição constituindo um prazo-limite.
IV - No decurso do prazo da prescrição (09/02/2021 + 01 ano = 09/02/2022) foi regulado o regime excecional da suspensão pela Lei nº 1-A/2020 de 19 de março (art. 7º: “O disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excecional”), com as alterações dadas pela Lei nº 4-A/2020 de 06 de abril; na Lei nº 16/2020, de 29 de maio, na Lei nº 4-B/2021, de 1 de fevereiro e na Lei nº 13-B/2021, de 05 de abril.
V - Por via dos diplomas citados, entraram em vigor dois regimes excecionais de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal. Um de 87 dias - desde o dia 9 de março de 2020 (artigo 5º da Lei n.º 4-A/2020) até ao dia 3 de junho de 2020 (artigos 8º e 10º da Lei nº 16/2020) - que no caso destes autos não releva porque a infração contraordenacional foi cometida apenas em 15/09/2020 - e outro de 74 dias – desde o dia 22 de janeiro de 2021 (artigos 4º e 6º-B nº 3 da Lei nº 4-B/2021, de 1 de fevereiro) até ao dia 5 de abril de 2021 (artigo 7º da Lei nº 13-B/2021).

(Sumário da responsabilidade da relatora)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 2127/23.1T9VLG.P1

Comarca do Porto

Juízo Local Criminal de Valongo – Juiz 2

Acordam em conferência, os Juízes na 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO

Por decisão proferida pelo Coordenador do Núcleo de Transportes, Fiscalização e Contraordenações da DRMTN, a sociedade comercial denominada “A..., Lda.” foi condenada ao pagamento da coima do montante de € 810,00 (oitocentos e dez euros), a que acrescem custas no montante de € 52,50 (cinquenta e dois euros e cinquenta cêntimos).


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Impugnada judicialmente esta decisão para o Juízo Local Criminal de Valongo – Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, foi tal impugnação apreciada por despacho-sentença cujo dispositivo tem o seguinte teor:

“Pelo exposto, e nos termos dos fundamentos de facto e de Direito invocados, julgo improcedente o recurso interposto por “A..., Lda.”, em consequência do que a condeno, pela prática de factos consubstanciadores de infracção ao disposto no art. 32.º, n.º 2 do DL n.º 257/07 de 16/07, na redacção que lhe foi dada pelos DL n.º 137/08 de 21/07 e DL n.º 136/09 de 05/06, na coima de € 810,00 (oitocentos e dez euros).

Taxa de justiça e custas pela arguida, no mínimo legal – arts. 93.º, n.º 3 e 94.º, n.º 3 do RGCO”.


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Novamente inconformada, a arguida “A..., Lda.” interpôs recurso da decisão, formulando as seguintes conclusões (transcrição):

“a) A douta decisão sub judice condenou a ora Recorrente numa coima no montante de 810,00€ (oitocentos e dez euros), considerando, ao contrário da autoridade administrativa, que a infração foi praticada a título de negligência.

b) Embora o Tribunal a quo considere, e bem, que a moldura contraordenacional aplicável é reduzida a metade nos seus limites mínimo e máximo, ficando em €625,00 (seiscentos e vinte e cinco euros) e em €1.870,00 (mil, oitocentos e setenta euros), - conforme resulta da conjugação do disposto no art.º 22º, nº 2 com a norma incriminatória do art.º 31º, n.º 2, ambos do Decreto-Lei n.º 257/2007, de 16 de julho - a verdade é que erra na aplicação do direito, porquanto, o presente procedimento contraordenacional encontra-se prescrito.

c) Como considerou a sentença a quo, a 09/02/21 – data da assinatura do respetivo AR pela Recorrente, para efeitos de exercício de direito de defesa em sede administrativa - houve lugar à interrupção do prazo em curso.

d) Os factos ocorreram em 15 de setembro de 2020.

e) A contraordenação em causa nos autos é abstratamente punível com coima de 625€ a 1870€, - como refere a douta sentença – logo, é de 1 ano o prazo para a prescrição do procedimento contraordenacional – vide artigo 27º, alínea c) RGCO.

f) Sendo que, com suspensões ou interrupções, o prazo máximo fixa-se em 18 meses.

g) Assim, os presentes autos encontram-se prescritos desde 09/08/2022.

h) Aquando da prolação da decisão administrativa – 15/06/2023 -, já há muito se mostrava verificado o decurso do prazo prescricional.

i) A douta sentença a quo não levou em consideração o facto de estarmos perante uma contraordenação praticada por negligência, não procedendo ao desconto na mediada coima aplicável, como legalmente previsto e, aliás, fundamentado, verificando-se uma contradição entre o decidido e o fundamentado – vide Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, em 07.06.2021, no âmbito do processo n.º 2967/20.3T9BRG.G1, disponível em www.dgsi.pt.

Nestes termos e nos mais que V. Exas., Meritíssimo Juiz e Venerandos Desembargadores, doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, revogada a decisão recorrida, com o que se fará a costumada Justiça! “.


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Em 23/10/2023 o recurso foi admitido.

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O Ministério Público apresentou resposta em 31/10/2023, pronunciando-se pelo não provimento do recurso, concluindo nos termos que seguem (transcrição):

“1. A Mmª Juíza ad quo pronunciou-se sobre todas as questões invocadas pela recorrente.

2. Tendo apreciado cabalmente e de forma fundamentada as questões apresentadas em sede de impugnação, a Mmª Juíza pronunciou-se sobre o que era o objeto da impugnação judicial.

3. Nada de novo é agora invocado pela recorrente, o que inviabiliza a sua pretensão.

4. No caso em apreço, os factos constitutivos da contra-ordenação ocorreram em 15/09/19; o prazo de prescrição respeitante ao seu procedimento, tendo em conta a moldura sancionatória que lhe é aplicável, é de 3 (três) anos; a notificação do arguido para efeitos de exercício de direito de defesa em sede administrativa data de 28/01/21 e a assinatura do respetivo AR de 09/02/21, ocorrendo, nesta data, a interrupção do prazo em curso em consonância com o disposto na al. c) do n.º 1 do art. 28.º do RGCO;

O arguido apresentou, em 17/02/21, defesa escrita, juntando documentos e arrolando uma testemunha.

5. Em suma, não se nos afigura prescrito o procedimento criminal in casu, na medida em que, o seu limite máximo - 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses - ainda não ocorreu.

6. A sentença recorrida deve ser mantida, negando-se, consequentemente, provimento ao recurso interposto.

7. Nenhuma norma se mostra ter sido violada na sentença recorrida “.


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Neste Tribunal de recurso o Exmº Procurador-Geral Adjunto no parecer que emitiu em 09/11/2023, acompanhando a resposta do Ministério Público junto da 1ª Instância, pugna pelo não provimento do recurso. referenciando o seguinte: “Como é bem salientado, de acordo com o art. 27.º do RGCO (DL n.º 433/82, de 27/10), no caso presente, por se tratar de contraordenação a que é aplicável uma coima de montante igual ou superior a € 2.493,99 e inferior a € 49.879,79 [al. b)], o prazo de prescrição é de 3 anos.

A conduta contraordenacional terá ocorrido em 15/09/2019.

Todavia, uma vez que ocorreu a notificação do arguido / recorrente para efeitos de exercício de direito de defesa em sede administrativa, reportada a 28/01/21, datando a assinatura do respetivo AR de 09/02/21, nessa data houve lugar à interrupção do prazo prescricional em curso, atento o disposto na al. c) do n.º 1 do art. 28.º do RGCO.

Daí que, ao abrigo do n.º 3 do art.º 28.º, do RGCO, por força daquela interrupção, o prazo de prescrição acresce de metade, passando então a ser de 4 anos e 6 meses.

Ora, tal como foi entendimento do Tribunal a quo, também nos parece que prazo prescricional ainda não se esgotou. Assim, Acompanhando a resposta da Ex.ma Magistrada do Ministério Público na 1ª Instância, também nós somos de parecer que o recurso interposto pela arguida “A..., Lda.” deve ser julgado totalmente improcedente, confirmando-se integralmente douta decisão recorrida”.


*

Cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do Cód. Proc. Penal, não foi apresentada resposta.

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Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.

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II – FUNDAMENTAÇÃO

No processo contraordenacional existe um ónus de alegar e de formular o pedido recursivo, sendo este que delimita inicial e essencialmente o objeto do recurso e os poderes de cognição do tribunal “ad quem” (arts. 41º nº 1 e 74º nº 4 RGCO e 412º nº 1 CPP)([1]), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no nº 2 do art. 410º do CPP – cfr. Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no D.R. Série I-A, de 28/12/95.

Assim, tendo em consideração a limitação dos poderes de cognição do tribunal de recurso no âmbito do direito de mera ordenação social, imposta pelo art. 75º nº 1 do RGCO e as conclusões apresentadas pela recorrente, a única questão submetida à apreciação deste tribunal é a de saber se no caso dos autos ocorreu, ou não, a prescrição da responsabilidade contraordenacional.


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O despacho-sentença proferido na 1ª Instância, na parte que ora releva, tem o seguinte teor (transcrição parcial):

“(…).

Das questões prévias:


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a. Da nulidade do procedimento / decisão administrativos.

(…).


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b. Da prescrição do procedimento contra-ordenacional:

Estabelecem as diversas alíneas do art. 27.º do RGCO os diferentes prazos de prescrição do procedimento contra-ordenacional por referência à moldura sancionatória prevista; assim, o mesmo será de cinco anos, quando se trate de contra-ordenação a que seja aplicável uma coima de montante máximo igual ou superior a € 49.879,79 [al. a)], de três anos, quando se trate de contra-ordenação a que seja aplicável uma coima de montante igual ou superior a € 2.493,99 e inferior a € 49.879,79 [al. b)], ou de um ano, nos restantes casos. Existem, todavia, situações em que se verifica a sua suspensão e / ou a sua interrupção. No que tange às primeiras, dispõe o n.º 1 do art. 27.º-A do mesmo diploma legal que a prescrição do procedimento por contra-ordenação suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que o procedimento (…) não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal [al. a)], estiver pendente a partir do envio do processo ao Ministério Público até à sua devolução à autoridade administrativa, nos termos do artigo 40.º [al. b)], ou estiver pendente a partir da notificação do despacho que procede ao exame preliminar do recurso da decisão da autoridade administrativa que aplica a coima, até à decisão final do recurso [al. c)], sendo que, de acordo com o seu n.º 2, nos casos previstos nas alíneas b) e c) do número anterior, a suspensão não pode ultrapassar seis meses. Já quanto às segundas, ensina o art. 28.º do RGCO que a prescrição do procedimento por contra-ordenação interrompe-se (…) com a comunicação ao arguido dos despachos, decisões ou medidas contra ele tomados ou com qualquer notificação [al. a)], com a realização de quaisquer diligências de prova, designadamente exames e buscas, ou com o pedido de auxílio às autoridades policiais ou a qualquer autoridade administrativa [al. b)], com a notificação ao arguido para exercício do direito de audição ou com as declarações por ele prestadas no exercício desse direito [al. c)], e com a decisão da autoridade administrativa que procede à aplicação da coima [al. d)]. Esclarecendo o respectivo n.º 2 que, nos casos de concurso de infracções, a interrupção da prescrição do procedimento criminal determina a interrupção da prescrição do procedimento por contra-ordenação, assume especial relevo a previsão do correspondente n.º 3, em cujos termos a prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade.


*

Transponhamos as normas legais vindas de transcrever para o caso concreto.

Da análise dos autos, atestamos, desde logo, que os factos constitutivos da contra-ordenação em apreço terão ocorrido em 15/09/19 e que o prazo prescricional respeitante ao seu procedimento, por via da moldura sancionatória aos mesmos aplicável, é de 3 (três) anos. Comprovamos que a notificação do arguido / recorrente para efeitos de exercício de direito de defesa em sede administrativa o foi por notificação reportada a 28/01/21, datando a assinatura do respectivo AR de 09/02/21 – pelo que, nesta data, houve lugar à interrupção do prazo em curso em consonância com o disposto na al. c) do n.º 1 do art. 28.º do RGCO; mais verificamos que, no uso de um tal direito, o arguido / recorrente apresentou, em 17/02/21, defesa escrita, em cujos termos procedeu à junção de documentos e arrolou uma testemunha. Ora, não se verificando qualquer outra causa de suspensão, constatamos que o limite prescricional para o procedimento, salvo melhor opinião, não se encontra ultrapassado, desde logo pois que o prazo de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses que configura o seu limite máximo ainda não ocorreu.

Termos em que improcede a invocada prescrição.

Sem custas, não obstante.


*

Inexistem demais nulidades ou questões obstativas ao conhecimento de mérito.

2. Dos factos

Consideram-se provados os seguintes factos:

1. Em 15/09/19, cerca das 09:32 horas, na Zona Industrial ..., Valongo, militares da GNR detectaram que o veículo da arguida, com a matrícula ..-VR-.., efectuava um transporte de mercadorias.

2. Submetido a pesagem, acusou um peso total de 44.850kg, quando o respectivo peso bruto autorizado era de apenas 32.000kg, pelo que, deduzido o EMA, o peso excessivo era de 12.340kg, representativo de uma margem de 38%.

3. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, era efectuado um transporte de mercadorias em regime de carga completa em que a arguida era a expedidora, sendo levado a cabo em seu nome e no seu interesse.

4. Sabia a arguida – ou devia saber, como podia – impender sobre si o dever de se assegurar que as mercadorias objecto do transporte que fazia não excediam o peso permitido por referência ao concreto veículo conduzido, não obstante o que agiu da forma descrita e sem os cuidados que lhe eram exigidos para evitar tal facto – o transporte de mercadorias com peso superior ao permitido.

5. Agiu de forma livre e consciente, sabendo que a lei punia essa conduta([2]).


*

Com interesse, não resultaram provados ou não provados quaisquer outros factos.

*

O Tribunal formou a sua convicção com base no conjunto da prova produzida, cotejada com as regras da experiência comum e da normalidade social, tendo sopesado o auto de contra-ordenação de fls. 2 e seguinte, o qual foi confrontado com o teor da decisão proferida pela autoridade administrativa e da impugnação judicial apresentadas – cuja análise concertada se nos revelou idónea a dar como assentes os factos narrados no auto de contra-ordenação, susceptíveis de fazer incorrer a arguida na comissão da infracção que lhe é assacada, susceptíveis de fazer incorrer a arguida / recorrente na comissão da infracção que lhe é assacada, ainda que unicamente a título negligente. Com efeito, dos autos não constam elementos probatórios que legitimem a ilação de que a conduta praticada o foi dolosamente; nomeadamente, e mercê da ausência de quaisquer inquirições, não cremos ser possível concluir que a mera qualidade de expedidor constituísse o bastante para firmar a convicção de uma actuação dolosa. Por assim ser, apenas se nos afigura legítima a ilação de que agiu de forma negligente, destituído da prudência a que estava obrigado e de que era capaz([3]).

Por outro lado, e conforme acima constatado, a decisão administrativa tomou posição expressa acerca das questões ora novamente suscitadas pela arguida / recorrente, nomeadamente, a dedução do EMA e a não aplicabilidade ao caso concreto da excepção de inimputabilidade decorrente do art. 31.º, n.º 4 do DL n.º 257/2007 de 16/07 em moldes com os quais concordamos, motivo pelo qual nos permitimos, por brevidade de exposição, remeter para o seu teor.


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3. Do Direito

Dispõe o art. 32.º, n.º 1 do DL n.º 257/07 de 16/07, na redacção que lhe foi dada pelos DL n.º 137/08 de 21/07 e DL n.º 136/09 de 05/06, que a realização de transportes com excesso de carga é punível com coima de € 500 a € 1500, sem prejuízo do disposto nos números seguintes, esclarecendo o seu n.º 2 que, sempre que o excesso de carga seja igual ou superior a 25 % do peso bruto do veículo, a infracção é punível com coima de € 1250 a € 3740. De acordo com a previsão do art. 22.º, n.º 2 do mesmo diploma legal, a tentativa e a negligência são puníveis, sendo os limites máximo e mínimo da coima reduzidos para metade.


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Compulsados os factos dados como assentes, verifica-se o preenchimento dos elementos objectivos do tipo contra-ordenacional por referência ao qual a arguida foi já condenada em sede administrativa – na verdade, apurou-se que, em transporte de mercadorias carga completa, o peso das mesmas excedia em 12.340kg o permitido; a saber, em veículo autorizado a transportar um peso bruto de 32.000kg, eram efectivamente transportadas mercadorias com o peso de 44.580kg. Assim, a única reserva que nos merece a decisão administrativa no que concerne à subsunção jurídica da factualidade demonstrada prende-se com o tipo subjectivo, já que, inexistindo nos autos qualquer elemento probatório idóneo a corroborar o dolo eventual preconizado, resta concluir – o que fazemos, convocadas as regras da experiência comum e da normalidade social – pela actuação meramente negligente, uma vez que foi inobservado o dever de cuidado que se impunha à arguida / recorrente([4]), existindo a possibilidade e o dever de agir diferentemente, ou seja, de se assegurar que o transporte que fazia não excedia o peso legalmente permitido.

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Cumpre, pois, aquilatar da justeza, equilíbrio e dosimetria da coima aplicada – in casu, a sua fixação em € 810,00 (oitocentos e dez euros) – por referência ao princípio geral plasmado no art. 18.º, n.º 1 do RGCO, de acordo com o qual a determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contra-ordenação. Concedendo tratar-se de infracção grave, na precisa medida em que é pretendida a salvaguarda da segurança rodoviária, donde, um interesse comunitário de consabido relevo, não logrou a adesão da prova que a arguida / recorrente agisse animada de dolo; no que respeita à sua situação económica ou ao benefício que retirou da prática contra-ordenacional, inexiste nos autos um qualquer elemento que permita a sua quantificação. Ora, por virtude da diferente imputação no que ao tipo subjectivo diz respeito, a moldura contra-ordenacional aplicável é reduzida a metade nos seus limites mínimo e máximo([5]), que, assim, se quedam em € 625,00 (seiscentos e vinte e cinco euros) e em € 1.870,00 (mil, oitocentos e setenta euros). Não obstante, temos como justa a medida concreta da coima aplicada, no montante de € 810,00 (oitocentos e dez euros), tendo em conta o comprovado excesso de carga; na verdade, a arguida / recorrente transportava o equivalente a 38% da carga permitida, que cumpre ter como significativo. Deste modo, e ainda que considerando ter actuado a título negligente, não nos merece censura o quantitativo por que foi condenada em sede administrativa”.

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Apreciação do recurso

Questão prévia: da correção oficiosa de lapso de escrita da decisão recorrida.

Antes da apreciação da questão suscitada por via do recurso interposto pela arguida importa proceder à apreciação de uma questão prévia relacionada com a devida correção de um manifesto lapso de escrita de que padece a decisão recorrida.

Assim constata-se que no segmento “2. Dos factos” do despacho sentença considerou-se provado sob o nº 1 que “Em 15/09/19, cerca das 09:32 horas, na Zona Industrial ..., Valongo, militares da GNR detectaram que o veículo da arguida, com a matrícula ..-VR-.., efectuava um transporte de mercadorias”.

Todavia, a menção à data em que os Srs. militares da GNR detetaram o veículo da arguida com a matrícula ..-VR-.. a efetuar um transporte de mercadorias consubstancia referência errónea.

Na verdade, do Auto de Contraordenação nº ... de fls. 2, levantado pelo militar da GNR AA identificado como CB ... (e por este e pela testemunha assinados), constata-se que o veículo em questão foi intercetado e fiscalizado em 15/09/2020 às 09.32 horas na Zona Industrial ..., Valongo e não em 15/09/2019.

E essa mesma data – 15/09/2020 - 09.32 horas - consta também expressamente do talão de pesagem nº ... emitido pelo aparelho/instrumento de pesagem da marca CAPTELS modelo ORA 10 nº Série 1241 Aprov. CE: T6377-1, de fls. 3, para uso na fiscalização do trânsito.

Porém, verificamos que por lapso manifesto, na decisão administrativa condenatória, fez-se constar no seu segmento intitulado “13 - FACTOS PROVADOS”, o dia “15/09/2019 pelas 09.32 horas” como tendo sido a data em que o veículo pesado de mercadorias pertencente à sociedade comercial denominada “B... S.A.”, com a matrícula ..-VR-.. foi fiscalizado pela GNR na Zona Industrial ..., Valongo. 

Verifica-se ainda que referido lapso foi mantido no despacho-sentença proferido a quo em sede de elenco de factos provados, pese embora se constate que a sociedade arguida, no art. 10 da impugnação judicial que apresentou, diz expressamente que “Os factos reportam-se a 15.09.2020”([6]) (sic) e repete essa mesma data – setembro de 2020([7]) – na conclusão C) da referida impugnação judicial.

Estamos assim perante uma circunstância que configura um mero lapso de escrita, seguramente decorrente de eventual descuido por ausência de confrontação com o teor do auto de contraordenação quer com o teor do talão de pesagem emitido pelo aparelho de pesagem CAPTELS modelo ORA 10 nº Série 1241.

O art. 380º nºs 1 b) e 2 do CPP admite a correção pelo tribunal de recurso ou pelo tribunal que proferiu a decisão, de erro material (lapso, obscuridade ou ambiguidade) que não importe modificação essencial da decisão (do seu alcance ou conteúdo), ou nas palavras do Ac. do STJ de 14/07/2021([8]), “sem que a correção possa ir além ou ficar aquém daquilo que, bem ou mal, está decidido”.

Ora, no caso destes autos, bem ou mal, a Sra. Juiz a quo entendeu que o prazo de prescrição aplicável é o de 03 (três) anos previsto no art. 27º b) do RGCO considerando a data de 15/09/2019 e prazos previstos nos arts. 31º nº 2 do D.L. nº 257/07 de 16 de julho na redação dada pelos D.L. nºs 137/08 de 21/07 e 136/09 de 05/06 e 28º nºs 1 c) e 3 do RGCO, apesar de entre 2019 e 2020, mediar um intervalo de tempo de 01 (um) ano e de ter qualificado a contraordenação cometida pela arguida/recorrente como negligente.

Efetivamente, verificamos que se for considerado, tal como no despacho-sentença recorrido (cfr. fls. 4 dessa decisão),  como sendo aplicável ao caso presente o prazo de 03 (três) anos previsto no art. 27º b) do RGCO, acrescido de metade nos termos do nº 3 do art. 28º do mesmo diploma, ou seja, um total de 04 (quatro) anos e meio, contados a partir da data da assinatura do A.R. (09/02/2021) com a notificação da arguida/recorrente para fins de exercício do direito de audição e defesa previsto no art. 50º do RGCO – data da interrupção do prazo de prescrição em curso (cfr. art. 28º nº 1 c) do RGCO - é indiferente que o facto contraordenacional tenha sido praticado no dia 15/09/2019 ou no dia 15/09/2020, por tal prazo máximo (de 04 anos e meio) ainda não ter decorrido.

Nessa medida, o referido lapso de escrita é suscetível de correção oficiosa por este Tribunal de recurso.

Pelo exposto, face ao lapso de escrita acima identificado (data do cometimento da infração contraordenacional), ao abrigo do disposto no citado art. 380º nºs 1 b) e 2, corrige-se agora esse lapso, devendo do nº 1 da matéria de facto provada vertida do despacho-sentença passar a constar:

“Em 15/09/20, cerca das 09:32 horas, na Zona Industrial ..., Valongo, militares da GNR detectaram que o veículo da arguida, com a matrícula ..-VR-.., efectuava um transporte de mercadorias”.


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Do conhecimento oficioso da (eventual) insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art. 410º nº 2 a) do CPP).

O nº 2 do art. 410º do CPP dispõe que “Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova “.

O Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ, de 19-09-95, publicado no DR I Série-A, de 28-12-95, decidiu ser oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.

O art. 75º nº 1 do RGCO limitando os poderes do Tribunal da Relação ao conhecimento, em regra, a matéria de direito mas, por força do disposto no nº 4 do art. 74º, abrange também o conhecimento dos vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP bem como as nulidades não sanadas previstas no nº 3 do mesmo preceito legal, pois o Ac. de Fixação de Jurisprudência do STJ nº 3/2019 de 2 de julho([9]),ao referir-se às situações dos nºs 2 e 3 do art. 410º do CPP, concluiu que “no processo contraordenacional, em sede de recurso, o tribunal de 2ª instância pode decidir sobre questões de direito, ainda que estas não tenham sido objeto da impugnação judicial, competindo-lhe também apreciar os vícios da sentença previstos no art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal, e as nulidades (não sanadas) nos termos do art. 410º nº 3 do CPP “.

É o que se fará de seguida.

Os vícios decisórios previstos no art. 410º nº 2 do CPP (sendo concretamente: a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) o erro notório na apreciação da prova), que consagra um sistema de reexame da matéria de facto por via alargada, mas de âmbito restrito consistem em defeitos estruturais da decisão penal e não do julgamento e, por isso, a sua evidenciação, como dispõe a lei, circunscreve-se ao texto da decisão recorrida por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, não havendo possibilidade de atender a outros elementos estranhos ao texto da decisão mesmo que constem do processo ou resultem do julgamento e este recurso é considerado como sendo ainda em matéria de direito.

Os referidos vícios decisórios, são falhas que devem ser patentes, evidentes, imediatamente percetíveis à sua leitura por qualquer cidadão médio, sem qualquer esforço de interpretação.

Concretizando, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – art. 410º nº 2 a) do CPP – é um vício que ocorre quando a matéria de facto provada é insuficiente para a decisão de direito proferida (no caso presente, da condenação da recorrente como autora material de uma contraordenação a título negligente p. e p. pelos nºs 2 e 4 do art. 31º do D.L. nº 257/2007 de 16 de julho, sem prejuízo da eventual aplicação das sanções acessórias previstas no art. 34º nº 1 do mesmo diploma), o que se verifica quando o tribunal recorrido deixou de apurar matéria de facto que lhe cabia apurar dentro do objeto do processo, tal como está circunscrito pela acusação e pela defesa ([10]), ou, dito de outro modo, quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição([11]), ou ainda quando, após o julgamento, os factos colhidos não consentem, quer na sua objetividade, quer na sua subjetividade, dar o ilícito como provado([12]).

O vício decisório em questão não se confunde com a insuficiência de prova para a matéria de facto provada, que é questão  do âmbito do princípio da livre apreciação da prova (cfr. art. 127º): “com efeito, aqui, e num momento logicamente anterior, é a prova

produzida que é insuficiente para suportar a decisão de facto; ali, no vício, é a decisão de facto que é insuficiente para suportar a decisão de direito “([13]).

Não ocorre esse vício quando o tribunal investigou tudo o que podia e devia investigar e os factos dados como provados na decisão impugnada são suficientes para proferir a decisão jurídico-penal situada a jusante da mesma

O art. 8º nº 1 do RGCO dispõe que “Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência “.

No caso destes autos, a infração contraordenacional cometida pela recorrente é também punível a título de negligência – cfr. art. 22º nº 2 do D.L. nº 257/07 de 16 de julho.

Sucede que o nº 4 dos factos considerados como assentes na decisão recorrida tem o seguinte teor: “4. Sabia a arguida – ou devia saber, como podia – impender sobre si o dever de se assegurar que as mercadorias objecto do transporte que fazia não excediam o peso permitido por referência ao concreto veículo conduzido, não obstante o que agiu da forma descrita e sem os cuidados que lhe eram exigidos para evitar tal facto – o transporte de mercadorias com peso superior ao permitido “.

Por sua vez o nº 5 dos factos provados tem a seguinte redação: “Agiu de forma livre e consciente, sabendo que a lei punia essa conduta “.

Conforme se observa no Ac. da R.C. de 17/09/2014([14]), “VI- Enquanto na negligência consciente o agente representou como possível o resultado ocorrido, mas confiou, não devendo confiar, que ele não se verificaria, na negligência inconsciente o agente infringe o dever de cuidado imposto pelas circunstâncias, não pensando sequer na possibilidade do preenchimento do tipo pela sua conduta.

Cremos que atendendo ao texto do nº 5 dos factos provados, no segmento «agiu de forma livre e consciente» a Sra. Juiz a quo quis dizer que a aqui recorrente representou como possível que o peso das mercadorias objeto do transporte que fazia, poderia exceder o peso permitido por referência ao concreto veículo conduzido, o que a verificar-se, preencheria a prática de contraordenação («sabendo que a lei punia essa conduta»), mas confiando, embora não devesse confiar, atentas as suas capacidades e experiência, que esse facto (excesso de peso) não se produziria.

A redação dos factos atinentes ao elemento subjetivo da infração (tipo de culpa negligente) está incompleta e nessa medida poderíamos aqui antever uma possível insuficiência para a decisão de direito proferida da matéria de facto provada – art. 410º nº 2 a) do CPP (como se disse, a condenação da arguida pela autoria material de uma contraordenação negligente p. e p. pelos nºs 2 e 4 do art. 31º do D.L. nº 257/2007 de 16 de julho, sem prejuízo da eventual aplicação das sanções acessórias previstas no art. 34º nº 1 do mesmo diploma).

Na verdade, faltou ao Tribunal a quo acrescentar um nº 4 A aos factos provados onde fizesse constar que a arguida e recorrente “por não ter procedido com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigada e de que era capaz, representou como possível o excesso de carga, atendendo ao P.B. autorizado para as características do veículo ..-VR-.. que fazia o transporte (32.000Kg), mas confiando que tal resultado não se produziria e, portanto, sem se conformar com a realização desse facto”.

Todavia, em local que não é o próprio, isto é, no segmento correspondente à motivação da decisão de facto o Tribunal recorrido afastou a comissão da contraordenação a título de dolo eventual (cfr. arts. 8º nº 1 e 32º do RGCO e 14º nº 3 do Cód. Penal), dizendo o seguinte: “O Tribunal formou a sua convicção com base no conjunto da prova produzida, cotejada com as regras da experiência comum e da normalidade social, tendo sopesado o auto de contra-ordenação de fls. 2 e seguinte, o qual foi confrontado com o teor da decisão proferida pela autoridade administrativa e da impugnação judicial apresentadascuja análise concertada se nos revelou idónea a dar como assentes os factos narrados no auto de contra-ordenação, susceptíveis de fazer incorrer a arguida na comissão da infracção que lhe é assacada, susceptíveis de fazer incorrer a arguida / recorrente na comissão da infracção que lhe é assacada, ainda que unicamente a título negligente. Com efeito, dos autos não constam elementos probatórios que legitimem a ilação de que a conduta praticada o foi dolosamente; nomeadamente, e mercê da ausência de quaisquer inquirições, não cremos ser possível concluir que a mera qualidade de expedidor constituísse o bastante para firmar a convicção de uma actuação dolosa. Por assim ser, apenas se nos afigura legítima a ilação de que agiu de forma negligente, destituído da prudência a que estava obrigado e de que era capaz “.

Ficando assim completada a descrição do elemento subjetivo da infração contraordenacional a título negligente, fica afastada qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (prevista no art. 410º nº 2 a) do CPP ex vi do art. 41º nº 1 do RGCO) no despacho-sentença recorrido, só por si considerado, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam estranhos ou extrínsecos, nos termos e para os efeitos do art. 410º nº 2 a) do CPP.

Em consequência, não se mostra correta a afirmação contida na pág. 5 do despacho-sentença do teor “Com interesse, não resultaram provados ou não provados quaisquer outros factos”.   

Com efeito, deveria o Tribunal a quo, já que afastou a prática da contraordenação a título doloso, ter inserido no despacho-sentença num segmento referente a “Factos Não Provados”, um facto que afirme a falta de prova dessa modalidade de culpa na prática da infração em causa, do seguinte teor:

“Sendo do conhecimento público que os veículos não podem circular na via pública com excesso de carga, que a arguida, ao transportar mercadoria em regime de carga completa, representou como possível a circulação do ..-VR-.. com infração às regras relativas ao limite legal de peso admissível para as características do veículo (tendo como P.B. autorizado o valor de 32000kg), conformando-se com esse resultado”.

De modo que por reporte ao disposto no art. 426º nº 1 primeira parte, a contrario sensu, do CPP aplicável ex vi do nº 1 do art. 41º do RGCO, este Tribunal de recurso decide:

- acrescentar um número 4-A à matéria de facto assente, com o seguinte teor: “Todavia, por não ter procedido com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigada e de que era capaz, a arguida representou como possível o excesso de carga, atendendo ao P.B. autorizado para as características do veículo ..-VR-.. que fazia o transporte (32.000Kg),  mas confiando que tal resultado não se produziria e, portanto, sem se conformar com a realização desse facto“.

- inserir no despacho-sentença em sede de elenco de «Factos Não Provados», o facto único com o seguinte teor:” Sendo do conhecimento público que os veículos não podem circular na via pública com excesso de carga, a arguida, ao transportar mercadoria em regime de carga completa, representou como possível a circulação do ..-VR-.. com infração às regras relativas ao limite legal de peso admissível para as características do veículo conformando-se com esse resultado”.


*

Questão única: de saber se ocorreu a prescrição da responsabilidade contraordenacional.

Com relevo para a decisão, resultam ainda dos autos as seguintes ocorrências processuais:

6) a notificação da recorrente (com informação dos factos relatados no auto de contraordenação e da infração que lhe vinha imputada e correspondentes sanções aplicáveis) para exercer o direito de audição e de defesa a que alude o art. 50º do RGCO, datada de 28/01/2021, foi expedida por carta com aviso de receção;

7) o A.R. encontra-se assinado em 09/02/2021;

8) Em 16/02/2021 (data do registo postal) a arguida apresentou defesa escrita, arrolando prova documental e testemunhal;

9) A decisão administrativa condenatória, foi proferida em 14/06/2023;

10) a recorrente em 29/06/2023 (referência 36280255) apresentou impugnação judicial;

11) em 19/09/2023 a Sra. Juiz a quo proferiu despacho que procedeu ao exame preliminar do recurso de impugnação, entendendo não ser necessária a realização de audiência de julgamento e ser a decisão suscetível de ser proferida por simples despacho;

12) a arguida e o MºPº não se opuseram à prolação da decisão mediante simples despacho (referências 36280255 e 452065569) – cfr. art. 64º nº 2 do RGCO.


*

A recorrente alega que da conjugação do disposto nos arts. 22º nº 2 e 31º nº 2, ambos do D.L. nº 257/2007 de 16 de julho, relativamente à contraordenação por que vem aqui condenada existe disposição legal expressa a prever a punição da negligência, com o seguinte teor: “A tentativa e a negligência são puníveis, sendo os limites máximo e mínimo da coima reduzidos para metade” – nº 2 do art.º 22º do referido diploma legal.

Daí decorre que a contraordenação cometida pela arguida é abstratamente punível com coima de € 625,00 a € 1.870,00 pelo que tendo em conta o disposto no art. 27º c) do RGCO, é de 1 (um) ano o prazo para a prescrição do procedimento contraordenacional, contando-se tal prazo a partir de 09/02/2021, data em que se interrompeu o prazo prescricional que se encontrava em curso (contado desde a prática da infração) com a assinatura pela recorrente do AR com a notificação para efeitos do exercício do direito de defesa em sede administrativa.

Defende a recorrente que, com suspensões ou interrupções, o prazo máximo de prescrição fixa-se em 18 meses pelo que o procedimento contraordenacional se encontra prescrito desde 09/08/2022, o que quer dizer que na data da prolação da decisão administrativa (15/06/2023) já há muito se mostrava verificado o decurso do prazo prescricional.

Apreciando.

Desde já se deixa aqui como nota prévia, que o prazo de prescrição a considerar é o previsto no RGCO e não o previsto no art. 188º do Cód. da Estrada, pese embora esteja em causa nos autos a circulação, na via pública, de um veículo que transportava mercadorias em regime de carga completa e ao transporte rodoviário de mercadorias aplica-se o regime sancionatório especial previsto no D.L. nº 257/2007, Capítulo IV, sendo o procedimento da competência  do IMTT, I.P.; da GNR e da PSP (cfr. art. 21º nº 1) e não da Autoridade Nacional da Segurança Rodoviária (como sucede com as infrações ao Código da Estrada).

A realização de transportes com excesso de carga constitui contraordenação imputável em comparticipação ao expedidor (a aqui arguida e recorrente) e ao transportador, punível com coima.

O referido diploma não dá uma noção de contraordenação rodoviária nem remete para o conceito estabelecido no art. 131º do Código da Estrada, norma que define como contraordenação rodoviária “todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal correspondente à violação de norma do Código da Estrada ou de legislação complementar e legislação especial cuja aplicação esteja cometida à ANSR, e para o qual se comine uma coima “.

Como se escreveu no Ac. da R.C. de 17/03/2022([15]), aqui seguido, “Para todos os efeitos legais, nomeadamente para a questão da prescrição do procedimento contraordenacional, não constitui contraordenação rodoviária a contraordenação p. e p. pelo artigo 22º nº 2, e 31º nº 2 do DL n.º 257/2007, de 16-07”, que é exatamente o que sucede no caso destes autos e para cuja fundamentação se remete.

Prosseguindo.

Assiste razão à recorrente quanto ao prazo de prescrição da responsabilidade contraordenacional (que abrange o procedimento contraordenacional e o processo contraordenacional), que no caso presente é o de 1 (um) ano uma vez que, nos termos da decisão recorrida, a arguida vem condenada pela prática de contraordenação a título negligente e, em consequência, ao disposto nos arts. 22º nº 2 (“A tentativa e a negligência são puníveis, sendo os limites máximo e mínimo da coima reduzidos para metade”) e 31º nº 2 do D.L. nº 257/2007 de 16 de julho (“Sempre que o excesso de carga seja igual ou superior a 25 % do peso bruto do veículo, a infracção é punível com coima de (euro) 1250 a (euro) 3740”, logo, metade, corresponde a uma coima entre € 625,00 e € 1.870,00, valores estes a considerar para efeitos dos diferentes prazos de prescrição previstos no art. 27º do RGCO) e 27º alínea c) do RGCO, se não existirem causas de interrupção e de suspensão.

Com efeito, o art. 27º do RGCO prevê três prazos distintos de prescrição do procedimento contraordenacional, consoante o montante da coima aplicável:
a) Cinco anos, quando se trate de contra-ordenação a que seja aplicável uma coima de montante máximo igual ou superior a € 49 879,79; (como no caso destes autos o valor da coima é de € 625,00 e € 1.870,00, não se aplica);
b) Três anos, quando se trate de contra-ordenação a que seja aplicável uma coima de montante igual ou superior a € 2 493,99 e inferior a € 49 879,79; (como no caso destes autos o valor da coima é de € 625,00 e € 1.870,00, também não se aplica);
c) Um ano, nos restantes casos.

Resulta, pois, do explanado, que por ser abstratamente aplicável ao caso dos autos uma coima de € 625,00 e € 1.870,00, o prazo de prescrição a ter em conta é o previsto na alínea c).

O prazo de prescrição inicia-se no dia seguinte à prática da contraordenação de modo que tendo esta sido praticada em 15/09/2020 (execução do ato que preenche o tipo legal – circulação do veículo ..-VR-.. com excesso de carga para as suas características – que se mantém enquanto a arguida, expedidora da mercadoria, por sua vontade,  não fizer cessar a situação ilícita, mas que no caso dos autos, por via da sua interceção e fiscalização pela GNR, se restringiu ao próprio dia 15/09/2020, cfr. art. 119º nºs 1 e 2 a) do Cód. Penal por força do disposto no art. 32º do RGCO), aquele prazo iniciou-se em 16/09/2020 e teria terminado em 15/09/2021 se não existissem causas de interrupção e de suspensão.

O art. 28º do RGCO prevê as causas de interrupção da prescrição, estabelecendo:

1 - A prescrição do procedimento por contra-ordenação interrompe-se:
a) Com a comunicação ao arguido dos despachos, decisões ou medidas contra ele tomados ou com qualquer notificação;
b) Com a realização de quaisquer diligências de prova, designadamente exames e buscas, ou com o pedido de auxílio às autoridades policiais ou a qualquer autoridade administrativa;
c)
Com a notificação ao arguido para exercício do direito de audição ou com as declarações por ele prestadas no exercício desse direito;
d) Com a decisão da autoridade administrativa que procede à aplicação da coima”.
Depois de cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição – cfr. arts. 121º nº 2 do Cód. Penal e 32º do RGCO.
Aplicando estas normas ao caso dos autos, temos que o prazo de prescrição da contraordenação por que vem a arguida condenada, de 01 ano, começou a correr no dia 16/09/2020, mas interrompeu-se em 09/02/2021 (data da assinatura do AR com a notificação para efeitos de exercício do direito de defesa a que se reporta o art. 50º do RGCO), o que projetou a prescrição para 9/2/2022 (09/02/2021+1 ano = 09/02/2022).
Ora, despacho judicial que procedeu ao exame preliminar do recurso da decisão administrativa foi proferido apenas em 18/09/2023.
Precisamente por esta razão, no caso presente, não ocorreu a causa de suspensão da prescrição a que alude o art. 27º-A c), a qual, nos termos do nº 2 do mesmo preceito, não pode ultrapassar seis meses.
Mas será que não ocorreram outras causas de suspensão do procedimento?
Nos termos do art. 27º-A nº 1 do RGCO, “1 - A prescrição do procedimento por contra-ordenação suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que o procedimento: a) Não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal”.
A interrupção da prescrição tem como efeito a inutilização do prazo que se iniciou com a prática da infração, começando a correr um novo prazo de prescrição no dia em que se produz o ato interruptivo; já a suspensão da prescrição não inutiliza o prazo que estava em curso até à ocorrência de uma causa de suspensão; neste caso, o prazo deixa de
correr durante o período fixado ou até ao desaparecimento do obstáculo legalmente previsto, voltando a partir daí a correr([16]); como se exarou no Ac. de Fixação de Jurisprudência do STJ nº 4/2011([17]), a suspensão da prescrição impede o decurso do prazo da prescrição; significa que, consoante as causas, se paralisam o começo e o decurso do prazo de prescrição.
No caso destes autos, no decurso do prazo da prescrição (09/02/2021 + 01 ano = 09/02/2022) foi regulado o regime excecional da suspensão pela Lei nº 1-A/2020 de 19 de março (art. 7º, “O disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excecional”), com as alterações dadas pela Lei nº 4-A/2020 de 06 de abril; na Lei nº 16/2020, de 29 de maio, na Lei nº 4-B/2021, de 1 de fevereiro e na Lei nº 13-B/2021, de 05 de abril.
Por via dos diplomas citados, entraram em vigor dois regimes excecionais de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal. Um de 87 dias - desde o dia 9 de março de 2020 (artigo 5º da Lei n.º 4-A/2020) até ao dia 3 de junho de 2020 (artigos 8º e 10º da Lei nº 16/2020) – que no caso destes autos não releva porque a infração contraordenacional foi cometida apenas em 15/09/2020 - e outro de 74 dias – desde o dia 22 de janeiro de 2021 (artigos 4º e 6º-B nº 3 da Lei nº 4-B/2021, de 1 de fevereiro) até ao dia 5 de abril de 2021 (artigo 7º da Lei nº 13-B/2021).
Assim, das referidas Leis nºs 4-B/2021 de 01/02 e 13-B/2021, resulta que ao prazo de prescrição de 01 ano (art. 27º c) do RGCO) acrescem 74 dias, ou seja, 09/02/2021+ 1 ano = 09/02/2022 + 74 dias = 24/04/2022.
Por outras palavras, em 9/2/2021 o prazo prescricional interrompeu-se com a notificação do artº 50º do RGIT para efeitos de exercício de direito de defesa o que projetou a prescrição para 9/2/2022 e, por força da suspensão de 74 dias prevista na Lei 4-B/2021, para 24 de Abril de 2022.
O que quer dizer que o termo do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional consolidou-se, na presente situação, ressalvado o referido período de suspensão (74 dias), muito antes da ocorrência de outra causa de interrupção ou suspensão, como seria a prolação da decisão administrativa que aplicou a coima, proferida apenas em 14/6/2023 ( cfr. artº 28º nº1 al. a) do RGCO) e da notificação do despacho que procedeu ao exame preliminar que apenas foi proferido em 18/9/2023 (cfr. artº 27º-A nº1 alínea c) do RGCO) e sem necessidade de recorrer ao prazo máximo do artº 28º nº 3 do mesmo diploma legal.
Porém se assim não fosse, então, o prazo máximo de prescrição previsto no artº 28º nº 3 do RGCO, terá de ser contado desde a data da consumação do facto (iniciando-se a sua contagem no dia seguinte), por força do disposto no artº 119º 1 do CP ex vi artº 32º do RGI, no caso 15/9/2020, nos seguintes termos:
16/9/2020 +1 ano + 6 meses, acrescido de 74 dias de suspensão, pelo que se verifica que não obstante as interrupções ocorridas a prescrição teve lugar, necessariamente, decorridos, ou seja, em 30/5/2022, apenas podendo nesta contagem acrescer o prazo de suspensão nos termos daquele nº 3 do artº 28º do RGCO.
Este prazo, é um prazo de segurança, ligado aos fundamentos do instituto da prescrição, sendo que nas palavras do Prof. Figueiredo Dias([18]), “Deste modo, como se vê, a lei marca um prazo-limite, findo o qual, o procedimento prescreverá independentemente de todas as interrupções que possam ter tido lugar” - sublinhado da nossa autoria.
Em consequência de tudo quanto vem exposto, o termo do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional consolidou-se, na presente situação, ressalvado o referido período de suspensão, em 24/04/2022.
Concluindo, deve o recurso proceder.

*
III – DECISÃO
Pelo exposto, o Tribunal da Relação do Porto decide:
I – Nos termos do art. 380º nºs 1 b) e 2 do CPP e 41º nº 1 do RGCO, corrigir o lapso de escrita, quanto à data da prática da contraordenação, verificado no nº 1 dos factos provados, o qual passará a ler-se: “1.  Em 15/09/20, cerca das 09:32 horas, na Zona Industrial ..., Valongo, militares da GNR detectaram que o veículo da arguida, com a matrícula ..-VR-.., efectuava um transporte de mercadorias”;
II – Nos termos dos arts. 426º nº 1 primeira parte, a contrario sensu e 41º nº 1 do RGCO,
aditar ao elenco dos factos provados vertidos no despacho-sentença, o seguinte facto:

“4-A. Todavia, por não ter procedido com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigada e de que era capaz, a arguida representou como possível o excesso de carga, atendendo ao P.B. autorizado para as características do veículo ..-VR-.. que fazia o transporte (32.000Kg), mas confiando que tal resultado não se produziria e, portanto, sem se conformar com a realização desse facto”;

III – Nos termos dos arts. 426º nº 1 primeira parte, a contrario sensu e 41º nº 1 do RGCO, inserir no despacho-sentença um segmento de “Factos Não Provados” do qual constará o facto único com o seguinte teor:
Sendo do conhecimento público que os veículos não podem circular na via pública com excesso de carga, a arguida, ao transportar mercadoria em regime de carga completa, representou como possível a circulação do ..-VR-.. em infração às regras relativas ao limite legal de peso admissível para as características do veículo conformando-se com esse resultado".
IV - Em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar o despacho recorrido, declarando-se a prescrição da responsabilidade contraordenacional da arguida “A..., Lda.” e do correspondente processo de contraordenação contra ela instaurado.

Sem custas – cfr. arts 513º nº 1 do CPP a contrario, ex vi do art. 41º nº 1 do RGCO.

Porto, 06/03/2024
Lígia Trovão
Paula Natércia Rocha
Lígia Figueiredo
_____________
[1] Cfr. Ac. da R.P. de 11/04/2012, proc. nº 2122/11.3TBPVZ.P1, relatado por Joaquim Gomes, acedido in www.dgsi.pt
[2] Destacado e sublinhado da nossa autoria.
[3] Destacado e sublinhado da nossa autoria.
[4] Destacado e sublinhado da nossa autoria.
[5] Destacado e sublinhado da nossa autoria.
[6] Negrito e sublinhado da nossa autoria.
[7] Negrito e sublinhado da nossa autoria.
[8] Cfr. proc. nº 128/19.3JAFAR.E1.S1, relatado por Nuno Gonçalves, acedido in www.dgsi.pt
[9] Publicado no D.R. nº 124/2019, Série I, de 02/07/2019.
[10] Cfr. Ac. do STJ de 07/01/1999, no proc. nº 1055/98 da 3ª Secção, relatado por Hugo Lopes, in Sumários dos Acs. do STJ, www.dgsi.pt
[11] Cfr. Ac. do STJ de 05/12/2007 no proc. nº 07P3406, relatado por Raúl Borges, disponível in www.dgsi.pt
[12] Cfr. Ac. do STJ de 25-03-1998, BMJ 475º pág. 502, apud, Ac. do STJ de 05/12/2007.
[13] Cfr. Ac. da R.C. de 10/12/2014 no proc. nº 155/13.4PBLMG.C1, relatado por Vasques Osório, disponível in www.dgsi.pt
[14] Cfr. proc. nº 150/12.0EACBR.C1, relatado por Orlando Gonçalves, acedido in www.dgsi.pt
[15] Cfr. proc. nº 681/21.1T9PBL.C1, relatado por Alcina da Costa Ribeiro; no mesmo sentido, cfr. o Ac. da R.P. de 06/04/2022 no proc. nº 384/21.7Y9PRT.P1, relatado por Cláudia Rodrigues, ambos acedidos in www.dgsi.pt
[16] Cfr. Ac. da R.C. de 21/02/2018 no proc. nº 266/17.7T8CDN.C1, relatado por Vasques Osório, disponível in www.dgsi.pt
[17] Publicado no D.R. I Série, nº 30, de 11 de fevereiro de 2011.
[18] Cfr. “Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime”, Aequitas, 1993, § 1148, pág.711,