Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
417/06.7TMMTS-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA CECÍLIA AGANTE
Descritores: INVENTÁRIO
DIVÓRCIO
PARTILHA DE MEAÇÕES
RECLAMAÇÃO
RELAÇÃO DE BENS
SUB-ROGAÇÃO INDIRETA
BEM COMUM
PRESUNÇÃO DE COMUNHÃO
Nº do Documento: RP20120515417/06.7TMMTS-C.P1
Data do Acordão: 05/15/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Nas relações entre cônjuges, a falta de declaração, no documento respectivo, da proveniência do dinheiro na aquisição de um bem imóvel por um dos cônjuges na constância do casamento pode ser substituída por qualquer meio de prova que afaste a presunção de comunhão.
II – São comuns os frutos dos bens próprios, naturais ou civis.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Agravo 417/06.7TMMTS-C.P1
Inventário 417/06.7TMMTS, Tribunal de Família e de Menores de Matosinhos

Acórdão

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório
Nos presentes autos de inventário para partilha de meações subsequente a divórcio em que são requerente B…, cabeça-de-casal, e requerido C…, veio este último apresentar reclamação à relação de bens, alegando a falta de relacionação de bens móveis (dentre os quais dois veículos automóveis), de um imóvel e das rendas recebidas pelo seu arrendamento, de passivo à D…, e a relacionação indevida das verbas 3 e 4.
Respondeu a cabeça-de-casal com a alegação de que o imóvel é seu bem próprio, pago integralmente com dinheiro de sua exclusiva pertença, proveniente da venda de um bem próprio. Por isso, também as rendas constituem bem próprio. Igualmente os dois veículos automóveis foram adquiridos com dinheiro próprio e vendidos, na constância do casamento, com consentimento do requerido, para amortização de um empréstimo concedido ao casal. Defendeu a manutenção da relacionação das dívidas arroladas sob as verbas 3 e 4.
Relacionou ainda bens móveis e uma dívida do casal a seus pais.
Ambos pediram reciprocamente a sua condenação como litigantes de má fé.

Produzida prova, documental e testemunhal, foi proferida decisão com o seguinte dispositivo:
“A) Devem ser relacionados todos os bens móveis referidos na reclamação como n.º3 a 58 à excepção do ferro de engomar por nenhuma prova ter sido feita relativamente a ele.
Quanto aos valores e porque a cabeça-de-casal não indicou outros, por ora, serão relacionados pelos valores indicados pelo reclamante, sem prejuízo de caber à conferência de interessados, na altura própria a deliberação final a tal respeito.
B) deve a cabeça-de-casal indicar nos autos os valores pelos quais procedeu á venda dos veículos automóveis supra id.
C) Declaro como bem próprio da cabeça-de-casal o imóvel adquirido através da escritura pública celebrada em 14 de Novembro de 1997, pelo que não deve ser relacionado (assim como as eventuais rendas).
D) Deve manter-se a verba relacionada como n.º 4 (por não ter sido efectuada qualquer prova de que tenha sido já partilhada).
E) Relativamente ao passivo, caberá á conferência de interessados, oportunamente, tomar posição.
Não se verifica que qualquer das partes tenha tido actuação processual qualificável como de má fé.
Custas por ambos, em partes iguais.”.

Inconformado recorreu C…, alegando, em síntese:
1. Não se conforma com a decisão que considerou como bem próprio da cabeça-de-casal o imóvel sito Rua …, n.º …, r/ch. esq., em …, Matosinhos, o produto das rendas desse imóvel, a manutenção da verba n.º 4, relativa ao reembolso de IRS.
2. É pertinente o facto de o mesmo ter sido adquirido na pendência do casamento, ainda que a respectiva escritura pública tenha sido outorgada apenas por ela.
3. O disposto no artigo 1723º, c), do Código Civil tem de ser articulado com o princípio do ónus da prova.
4. A agravada juntou aos autos o contrato-promessa de 24-07-1996 sem juntar comprovativo da liquidação e pagamento do Imposto de Selo.
5. Todas as declarações que juntou para prova de ter pago fraccionadamente o preço foram por si impugnadas e a agravada veio requerer prazo não inferior a 60 dias para solicitar às instituições de crédito os cheques dessas liquidações, o que nunca veio a suceder.
6. Colocou em crise a prova que lhe competia fazer, dado ter de afastar a presunção da alínea c) daquele artigo 1723º do Código Civil.
7. Os legais representantes da sociedade vendedora não compareceram em tribunal.
8. A prova carreada não foi suficientemente sustentada para se dizer que aquele imóvel é um bem próprio.
9. Também impugnou os documentos juntos relativos ao contrato-promessa de 31-10-1996, que também não foi instruído com a liquidação do Imposto de Selo, e a cabeça-de-casal não fez qualquer prova que leve a concluir pela veracidade desses documentos.
10. O problema colocado é de ónus da prova, permitindo à agravada provar, através de outros meios probatórios, os factos integradores da alegada sub-rogação indirecta de bens.
11. Prova que não logrou alcançar, ficando por provar que o produto da anterior venda foi canalizado para a aquisição daquele imóvel.
12. O facto de vender um bem de valor semelhante àquele que comprou não significa que haja uma afectação forçosa e necessária do produto da venda daquele.
13. Deveria o tribunal a quo ter qualificado o imóvel como bem comum.
14. A manutenção da relacionação da verba relativa ao reembolso de IRS, juntou extracto da D… do qual resultam os movimentos de determinadas quantias bem como os apontamentos pessoais no sentido de quantificar o montante de cada um. Documento que não foi impugnado pela agravada. Verba que deveria ter sido excluída.

Contra-alegou a agravada do seguinte modo:
1. O imóvel foi integralmente pago com o produto da venda de um bem próprio, em data anterior à celebração do casamento.
2. São bens próprios os adquiridos na constância do matrimónio em virtude de direito próprio anterior (artigo 1722º, 1, do Código Civil).
3. Conservam a qualidade de bens próprios os adquiridos com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges, desde que a proveniência seja mencionada em documento de aquisição ou em documento equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges.
4. Apesar de na escritura não estar exarada essa declaração, o tribunal deu por provado que o imóvel foi pago antes da celebração do casamento com o produto da venda de um bem próprio da agravada.
5. Quanto à verba de reembolso de IRS, como foi retida indevidamente pelo agravante, é de manter a sua relacionação.

II. Delimitação do objecto do recurso
O âmbito do recurso é definido pelas conclusões da alegação do recorrente (artigos 684º e 690º do Código de Processo Civil[1]). Assim, cumpre decidir:
- a natureza de bem próprio ou comum do imóvel adquirido pela cabeça-de-casal na constância do casamento e das correspectivas rendas;
- e se é de manter a relacionação da quantia relativa ao reembolso de IRS.

III. Fundamentação
1. Impugnação da decisão de facto
O agravante impugna a decisão de facto da primeira instância, desde logo, aduzindo, na sua alegação, que “… a prova carreada e produzida pela agravada não foi suficientemente sustentada para se poder dizer com convicção que aquele imóvel se reporta a um seu bem próprio, dada a sua aquisição com recurso a quantias próprias da mesma”. O tribunal a quo deu por demonstrado:
“- A ora cabeça-de-casal procedeu à venda do apartamento que detinha na Maia com o objectivo de, com o produto de tal venda, proceder à aquisição do imóvel a que se refere o contrato-promessa de 24 de Julho de 1996.
- O produto da venda do apartamento que detinha na Maia foi canalizado pela cabeça-de-casal para aquisição do imóvel a que se refere o contrato-promessa de 24 de Julho de 1996.”
Factualidade que levou o tribunal a ajuizar que o bem em causa foi adquirido com dinheiro próprio da cabeça-de-casal, proveniente da venda de um imóvel de sua propriedade exclusiva e, por isso, tem natureza de bem próprio, não relacionável nem sujeito à partilha. Daí que aquela posição do agravante só possa ser reconduzida à impugnação da decisão de facto. Contudo, como ressalta das actas, foi produzida prova testemunhal que não foi sujeita a registo através de meios magnetofónicos ou outros (fls. 322 a 323, 332, 333 e 349 – ínsitas à certidão pedida por este Tribunal da Relação). Também telefonicamente, por meio da relatora, solicitou este Tribunal à escrivã da secção de processos tais elementos, caso existissem, a fim de poder ser reapreciada a prova testemunhal produzida. Confirmado que não houve registo da prova testemunhal produzida, vejamos se estão reunidas as condições necessárias à reapreciação da matéria de facto ora impugnada pelo agravante.
O segundo grau de jurisdição em matéria de facto pressupõe: - estar documentada toda a prova que serviu de base à decisão ou ter sido impugnada decisão baseada em prova gravada; - se, no processo, houver prova irrefutável em sentido diverso; se o recorrente apresentar documento novo superveniente que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou (artigo 712º, 1, do Código de Processo Civil). Inaplicáveis estas duas últimas condições e não havendo prova gravada, vejamos se está documentada toda a prova que serviu de base à decisão.
A motivação da decisão de facto expõe que “[A] convicção do tribunal fundamentou-se na análise dos documentos juntos aos autos e nos depoimentos das testemunhas: E… … F… … G… … H… … I… …”. E concretizou que, “relativamente à aquisição do bem imóvel em discussão”, se ateve aos depoimentos das testemunhas E… e F…, irmão e mãe da cabeça-de-casal, e G…, amiga da cabeça-de-casal. E, como deixou antever, sobre a matéria considerou irrelevantes os depoimentos das testemunhas arroladas pelo reclamante, ora agravante, por desconhecerem o assunto.
Estando a matéria de facto apurada fundada nos documentos e na prova testemunhal produzida, que se não encontra registada, é inviável a sua reapreciação por este Tribunal, pelo que não estão reunidas as condições processuais para alterar a decisão de facto, como defende o agravante.
No incidente de reclamação contra a relação de bens as provas são indicadas com o requerimento de dedução e com a resposta (artigos 1349º, 3, e 1344º, 2, do Código de Processo Civil). O reclamante/agravante, ao acusar a falta de relacionação de bens, para além da junção de diversos documentos, requereu depoimento de parte da cabeça-de-casal e arrolou uma testemunha, mas não requereu a gravação dos depoimentos (fls. 58 a 69). Nos incidentes de instância, como é o incidente em apreço, quando sejam prestados no tribunal da causa, os depoimentos produzidos que não devam ser instruídos e julgados conjuntamente com a matéria daquela são gravados se, comportando a decisão a proferir no incidente recurso ordinário, alguma das partes tiver requerido gravação (artigo 304º, 3, do Código de Processo Civil). Na resposta, também a cabeça-de-casal se limitou a arrolar três testemunhas, sem que tivesse requerido a gravação dos seus depoimentos (fls. 99 a 104). Donde, não tendo sido requerida nem ordenada oficiosamente a gravação da prova, esteja vedado a este Tribunal da Relação sindicar a motivação probatória do tribunal a quo e, consequentemente, alcançar diversa convicção acerca dos factos controvertidos, o que nos conduz a manter a decisão de facto.

2. Factos provados
Com interesse para a questão recursiva, a primeira instância deu por provados os seguintes factos:
2.1. Requerente, B…, e requerido, C…, contraíram casamento entre si em 17-09-1997 sem convenção antenupcial.
2.2. Esse casamento foi dissolvido por sentença de divórcio de 10-01-2007, transitada em julgado em 22-01-2007, cuja petição inicial entrou em juízo em 14-11-2006.
2.3. Em 31-1-0-1996, a requerente B… promete vender a J… e esta promete comprar-lhe duas fracções autónomas designadas pelas letras “J” e “T”, referentes à habitação e garagem do prédio urbano sito na Rua …, ..-.., freguesia e concelho da Maia, pelo valor de 11.000.000$00.
2.4. Por escritura pública de 19-03-1997 foi concretizado o contrato de compre e venda prometido em 3.
2.5. Em 24-07-1996, requerente B… promete comprar a K…, Lda. e esta promete vender-lhe, pelo preço de 10.800.000$00, a fracção autónoma “AJ” do prédio a construir no lote de terreno sito na Rua …, freguesia de …, concelho de Matosinhos.
2.6. Por escritura pública de 14-11-1997 foi formalizado o contrato prometido referido em 5., mediante o qual a requerente B… declarou comprar àquela sociedade K…, Lda. e esta declarou vender-lhe, pelo preço de 10.800.000$00, a fracção autónoma “AJ” do prédio a construir no lote de terreno sito na Rua …, freguesia de …, concelho de Matosinhos.
2.7. Por referência ao contrato-promessa identificado em 5. A promitente vendedora declarou ter recebido da promitente compradora, B…, em 2-01-1997, a quantia de 2.000.000$00 relativo a primeiro reforço de sinal.
2.7.1. Em 5-04-1997 declarou ter recebido a quantia de 1.000.000$00 como segundo reforço de sinal.
2.7.2. Com datas de Junho e Julho de 1997, declarou ter recebido quantias pecuniárias relativas à execução de trabalhos extra.
2.8. A ora cabeça-de-casal procedeu à venda do apartamento que detinha na Maia com o objectivo de, com o produto de tal venda, proceder á aquisição do imóvel a que se refere o contrato-promessa de 24 de Julho de 1996.
2.9. O produto da venda do apartamento que detinha na Maia foi canalizado pela cabeça-de-casal para aquisição do imóvel a que se refere o contrato-promessa de 24 de Julho de 1996.
2.10. B… instaurou acção de divórcio litigioso, contra C… (artigos 659º, 3, e 713º, 2, do Código de Processo Civil).
2.10.1. Em 10-01-2007, os cônjuges converteram o divórcio litigioso em divórcio por mútuo consentimento e declararam como bens comuns, além do mais:
- uma fracção autónoma, designada pela letra “I”, sita na Rua …, …, na freguesia de …, Matosinhos;
- a casa de morada de família, sita na …, ../.., em …, Matosinhos (artigos 659º, 3, e 713º, 2, do Código de Processo Civil).

3. Enquadramento jurídico
3.1. O agravante refuta a natureza de bem próprio da agravada, cabeça-de-casal, do imóvel sito na Rua …, n.º …, r/ch. Esq., em …, Matosinhos. Defende que constitui bem comum do casal, por ter sido adquirido na constância do casamento, através de escritura pública celebrada em 14-11-1997.
Vejamos.
A requerente e o requerido contraíram casamento entre si em 14-09-1997, sem convenção antenupcial, a significar que o casamento se considera celebrado sob o regime de comunhão de adquiridos (artigo 1717º do Código Civil). Com efeito, sempre que faltar convenção antenupcial ou falhar, por qualquer razão, aquela que os esposos outorgaram, vigora o regime matrimonial de bens supletivo, a comunhão de adquiridos. Regime que conserva separados os bens que cada cônjuge levou para o casal ou que, posteriormente, adquiriu a título gratuito, obstando a indesejáveis transferências de bens da família de um cônjuge para a do outro[2].
Assim, fazem parte da comunhão o produto do trabalho dos cônjuges e os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam exceptuados por lei (artigo 1724º do Código Civil). Preserva-se a ideia geral de que integram o património comum todos os bens adquiridos com o produto dos rendimentos e do trabalho dos cônjuges. Através de duas notas, uma positiva e outra negativa, o artigo 1724º fornece o diapasão jurídico para o apuramento dos bens comuns. Por um lado, deve tratar-se de bens adquiridos na constância do casamento; por outro, é necessário não se tratar de bens adquiridos e considerados pela lei como próprios[3].
Está provado que, na vigência do casamento, por escritura pública de 14-11-1997, a requerente mulher declarou comprar a K…, Lda. a fracção “AJ” do prédio sito na Rua …, n.º …, r/ch. Esq., em …, Matosinhos. Tal aquisição, porque onerosa e feita na constância do matrimónio, que havia sido celebrado em 14-09-1997, prima facie, determina à integração do bem no património comum – nota positiva assinalada. Por isso, para lhe atribuir a natureza de bem próprio, é necessário demonstrar que não se trata de bem comum – nota negativa, cujo ónus da prova impende sobre a requerente mulher, que defende a qualidade de bem próprio do imóvel, não obstante a sua aquisição na constância do matrimónio.
São bens próprios dos cônjuges, além do mais, os bens sub-rogados no lugar de bens próprios (artigo 1723º do Código Civil). Na explicitação deste princípio, a norma consagra que conservam a qualidade de bens próprios os bens sub-rogados no lugar de bens próprios de um dos cônjuges por meio de troca directa, o preço dos próprios bens alienados e os bens adquiridos ou as benfeitorias feitas com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges, desde que a proveniência do dinheiro ou valores seja devidamente mencionada no documento de aquisição, ou em documento equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges. Regulam-se as situações em que, na pendência do casamento, os cônjuges adquiram certos bens à custa de bens próprios. “Seria manifestamente injusto que, a pretexto de os bens terem sido adquiridos na vigência do casamento e a título oneroso, a lei os considerasse comuns, mediante uma aplicação cega e indiscriminada da regra que, dentro do esquema fundamental da comunhão de adquiridos, manda incluir no património comum os bens adquiridos por qualquer dos cônjuges a título oneroso”[4].
Nesta linha de pensamento, vem a cônjuge mulher defender que, embora adquirido na constância do casamento, aquele imóvel foi pago com o dinheiro proveniente da venda de duas fracções autónomas de sua pertença, designadas pelas letras “J” e “T”, referentes à habitação e garagem do prédio urbano sito na Rua …, ..-.., freguesia e concelho da Maia, através de escritura pública outorgada em 19-03-1997. Independentemente da avaliação dos factos dados por provados, a verdade é que o cônjuge marido não questionou o direito de propriedade da cônjuge mulher sobre aquelas duas fracções e a sua venda seis meses antes do casamento. Venda que foi declarada por 11.000.000$00, em valor muito próximo do declarado para a aquisição que ela veio a realizar já na vigência do casamento, em 14-11-1997 – 10.800.000$00. Daí que toda a problemática que opõe os cônjuges se reconduza à pesquisa da origem do meio de pagamento do prédio adquirido pela cônjuge mulher na constância do matrimónio, o que corresponde a indagar se o bem foi adquirido com dinheiro próprio seu, porque o documento de aquisição, em que ela interveio desacompanhada do marido, não faz semelhante menção. E, como referenciámos, a predita alínea c) do artigo 1723º, in fine, parece impor que o documento de aquisição ou documento equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges, indique que a mesma provem de dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges. É o que a doutrina apelida de sub-rogação indirecta, em que os bens são adquiridos mediante o emprego de bens próprios ou com o produto da alienação de bens próprios[5].
A doutrina e a jurisprudência têm divergido acerca do alcance da referida normação, havendo quem entenda que, na falta de menção no documento de aquisição do bem, ou outro equivalente, da proveniência do dinheiro com que o bem foi adquirido e na ausência de intervenção de ambos os cônjuges, o bem tem de ser qualificado como comum. Constitui uma presunção juris et jure de que esse bem é comum, não só para efeito de qualificação do bem adquirido, mas também para o acerto das relações entre o património comum e o património próprio de cada cônjuge[6]. A esta posição se contrapõe a daqueles que afirmam que aquela exigência só ocorre quando estiverem em causa os interesses de terceiros, ou seja, nas relações entre os cônjuges e terceiros, mas não nas relações dos cônjuges entre si[7].
À distinção, no património conjugal, entre bens próprios e bens comuns está subjacente o princípio de que o casamento, fugindo ao regime geral do negócio jurídico, deve preservar o equilíbrio patrimonial, obstando a que um dos cônjuges enriqueça à custa do outro. Por isso, quando os cônjuges fazem essa opção, aderindo ao regime de bens supletivo, os bens que eram próprios antes do casamento, ou aqueles que os sub-rogarem, devem continuar a sê-lo, mesmo depois do casamento. Não vemos, naquela exigência legal de intervenção na escritura dos dois cônjuges e de menção da proveniência do dinheiro, quaisquer interesses de ordem pública que justifiquem tais formalidades para a sub-rogação indirecta. Não assim, quando estão em jogo as relações patrimoniais dos cônjuges com terceiros que, nas relações com o casal, hão-de contar com a garantia representada por todo o seu património. Por tal razão, se estiverem em jogo apenas interesses dos cônjuges, não há especial fundamento para os proteger, pois cada um bem sabe os bens que integram a comunhão ou os bens próprios, sem que justifique que o título de aquisição expresse a declaração de exclusividade. Declaração exigida somente quando estão em causa interesses de terceiros, cujo relacionamento negocial é feito na base da confiança que lhe dá a massa patrimonial aparentemente comum. Destarte, questionando-se apenas os interesses dos cônjuges, aquela norma apenas constitui uma presunção juris tantum, podendo o cônjuge adquirente socorrer-se de quaisquer meios de prova tendentes a afastar tal presunção e a obter a qualificação como próprio do bem adquirido na constância do casamento[8]. “Sendo uma ideia de protecção de terceiros que justifica a especial exigênciado artigo 1723º, c), cremos que tal só deverá aceitar-se onde o interesse de terceiros o exigir. Não estando em causa o interesse de terceiros mas única e simplesmente o dos cônjuges, nada parece impedir que a conexão entre os valores próprios e o bem adquirido seja provado por quaisquer meios”[9].
Evidentemente que o texto da norma e a circunstância da questão ser já controvertida e debatida no domínio do Código de Seabra nos suscitam dúvidas quanto à solução pretendida pelo legislador. À luz do velho brocardo latino ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus, optaríamos pela posição jurisprudencial minoritária, no sentido da interpretação literal da alínea c) do artigo 1723º do Código Civil, por forma a defender que a mesma contém uma presunção juris et jure de comunhão dos bens adquiridos na constância do matrimónio, sem a intervenção dos dois cônjuges e sem a expressa menção de proveniência do dinheiro que serviu de meio de pagamento. Contudo, sufragamos a posição maioritária do nosso mais alto Tribunal, por considerarmos que não subjazem à norma quaisquer interesses de ordem pública, quando convocada para as relações patrimoniais dos cônjuges. Interpretação que não afecta a natureza imperativa da norma, mas que se limita a afastá-la quando não está presente a ratio que a justifica[10]. Logo, não estando em jogo interesses de terceiros, nas relações entre cônjuges a falta da declaração em referência, com intervenção dos dois cônjuges, pode ser substituída por qualquer meio de prova que demonstre o pagamento só por um deles, afastando, por essa via, a presunção de comunhão[11]. Interpretação da lei mais consentânea com a ratio legis e que rejeita uma orientação formalista, literalista ou conceptualista e que nos leva a adoptar uma interpretação restritiva da norma no sentido de que a presunção nelaestabelecida tem natureza juris tantum e não juris et jure[12].
Revertidos ao caso em apreço, estando em causa somente os interesses da cônjuge mulher em provar a natureza de bem próprio do prédio por si adquirido na constância do matrimónio, entretanto, dissolvido por divórcio, admitimos, tal como a primeira instância, que ela demonstre, por qualquer meio, a proveniência, como bem próprio, do dinheiro utilizado na compra do imóvel aqui em discussão. Portanto, relevando apenas os interesses da agravada em excluir da partilha dos bens do casal um bem próprio, não há obstáculos a que ela prove, por qualquer meio, a proveniência, como bem próprio, do dinheiro que utilizou na compra do imóvel e, por isso, é neutral a referência do agravante de que essa solução pode prejudicar terceiros, pois carece de legitimidade defender os interesses destes.
Comprovou a cabeça-de-casal a celebração do respectivo contrato-promessa de compra e venda antes do casamento, em 24-07-1996, e que foi ela que pagou fraccionadamente o acordado preço de 10.800.000$00. Aliás, foram juntos aos autos documentos comprovativos desses pagamentos, mas opõe o cônjuge recorrente que impugnou esses documentos e que, por isso, as declarações deles constantes não poderiam ser dadas por comprovadas. É certo, como alega o agravante, face à sua impugnação, ter a cabeça-de-casal requerido a concessão de prazo não inferior a 60 dias para obter junto das instituições de crédito os cheques relativos àqueles pagamentos, o que não chegou a ser feito, tal como não foram inquiridos os legais representantes da sociedade vendedora para confirmarem os documentos por ela emitidos. Contudo, como vimos, a convicção probatória do tribunal não se alicerçou apenas nesses documentos, mas na globalidade da prova produzida, designadamente testemunhal e, não sendo sindicável por este Tribunal da Relação a convicção probatória do tribunal de primeira instância, soçobra tal argumento.
Acresce que a cabeça-de-casal juntou ainda um contrato-promessa datado de 31-10-1996, com vista a demonstrar que negociou esse apartamento, de tipologia T1, para permitir a compra do apartamento em causa, de tipologia T2, o qual esteve na base da escritura de compra e venda que foi outorgada em 19-03-1997. E, perante isso, em contrapõe o agravante que ficou por demonstrar que o preço da venda desse imóvel T1 foi canalizado para a compra do T2, já que a mera circunstância de ter ocorrido a venda não significa que haja uma afectação forçosa do valor dela proveniente à nova aquisição. Conclui que, não estando feita essa prova, ela não ilidiu a presunção de comunhão. Proposição que não tem qualquer sustentáculo na factualidade provada, pois está mesmo apurado que a cabeça-de-casal procedeu à venda do apartamento que detinha na Maia com o objectivo de, com o produto de tal venda, proceder à aquisição do imóvel agora em causa. E foi o produto da venda desse apartamento que foi canalizado pela cabeça-de-casal para aquisição deste imóvel que o cônjuge agravante pretende considerar comum. Matéria de facto cujo epílogo só pode ser o de reputar verificada a invocada sub-rogação real, de modo a que àquele imóvel tenha de ser conferida a natureza de bem próprio da cônjuge mulher, com a ilisão da presunção legal decorrente daquela alínea c) do artigo 1723º do Código Civil.
Irrelevante é também a evocação do agravante de não terem sido cumpridas pela agravada as suas obrigações fiscais, uma vez que qualquer eventual violação apenas daria lugar às correspondentes comunicações legais, as quais não serão efectuadas por, a ter existido, estar já atingida pela prescrição.

3.2. Partindo desta asserção, a decisão posta em crise considerou igualmente como bem próprio as rendas auferidas pela cabeça-de-casal do arrendamento do imóvel estimado como bem próprio. Solução que o agravante igualmente impugna, embora atendo-se apenas à pretendida qualificação daquele imóvel como bem comum.
O artigo 1724º do Código Civil integra na comunhão o produto do trabalho dos cônjuges e os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam exceptuados por lei. O legislador faz comuns todos os bens cuja aquisição resulta ou pode resultar da acção comungada de ambos os cônjuges e, nas rendas do imóvel recebidas na pendência do casamento, o cônjuge não titular delas comunga directa ou indirectamente.
Na vigência do Código de Seabra vigorava a ideia geral de que o património comum enquadrava todos os bens adquiridos com o produto dos rendimentos e do trabalho dos cônjuges. Hoje, entre os bens comuns, figuram os frutos dos bens comuns e também dos bens próprios[13]. Asserção que se depreende do n.º 1 do artigo 1728º do Código Civil, quando atribui a natureza de bens próprios aos bens adquiridos por virtude da titularidade de bens próprios, que não possam considerar-se frutos destes (sublinhado nosso). Texto que exclui deste núcleo especial dos bens privativos de um dos cônjuges, a despeito da sua ligação material ou jurídica com outros bens, os frutos dos bens próprios. Frutos, quer dos bens comuns quer dos bens próprios, cuja principal característica reside na periodicidade, que são incluídos, no regime da comunhão de adquiridos, na massa dos bens comuns[14]. Aliás, embora a respeito da incomunicabilidade de bens no regime da comunhão geral, está expressamente estatuído que a incomunicabilidade dos bens não abrange os respectivos frutos nem o valor das benfeitorias úteis (artigo 1733º, 2, do Código Civil). Assim, consideram-se comuns, os frutos dos bens próprios, naturais ou civis.
O fruto de uma coisa é o que ela produz periodicamente, sem prejuízo da substância. Os frutos naturais são os que provêm directamente da coisa e os civis são as rendas ou interesses que a coisa produz em consequência de uma relação jurídica (artigo 212º, 1 e 2, do Código Civil). Donde se considere que o aforro de frutos de bens próprios, como sejam as rendas de imóveis, são valores comuns e não podem ser sub-rogados por bens próprios. Os frutos dos bens foram a base tradicional da sustentação da família e, ao lado do trabalho dos cônjuges, os frutos, mesmo dos bens próprios, continuam a pertencer a ambos os cônjuges e a desempenhar a sua função económica[15].
O reclamante agravante alegou que o prédio está arrendado pelo valor mensal de 400,00 euros, a que acresce 50,00 euros de despesas de condomínio e que a cabeça-de-casal arrecadou esses valores desde Novembro de 2005 até à data da reclamação, pedindo a relacionação de metade. Sobre essa matéria, limitou-se a cabeça-de-casal a declinar o direito do reclamante às rendas atenta a natureza de bem próprio do imóvel arrendado (artigo 12º), sem impugnar os valores aduzidos pelo reclamante. Nessa base, por falta de impugnação, aceita a cabeça-de-casal que a renda mensal do imóvel era de 400,00 euros, pelo que se impõe a sua relacionação, atenta a sua natureza de bem comum.
Não assim quanto às despesas de condomínio. Embora o reclamante não seja claro sobre a matéria, parece querer referir que a cabeça-de-casal recebe mensalmente do arrendatário 50,00 euros destinados ao pagamento das despesas de condomínio. Tais despesas reportam-se aos encargos de conservação e fruição das partes comuns do edifício e ao pagamento dos serviços de interesse comum, a suportar pelo condómino na proporção do valor da sua fracção (artigo 1424º do Código Civil). Por tal razão, esse valor está longe de corresponder a um fruto da fracção. Traduz apenas um encargo que a cabeça-de-casal sempre teria de suportar, estivesse ou não arrendada a fracção. Daí que tal valor não tenha de ser considerado para aferir o valor dos frutos arrecadados exclusivamente pela cabeça-de-casal.
Como essa questão não foi afrontada pela primeira instância, são escassos os dados disponíveis para aferir o período temporal a que se referirá essa partilha. Embora o reclamante aluda a “Novembro de 2005 até à presente data”, ignoramos a data a partir da qual o extinto casal deixou de partilhar esses rendimentos, já que o reclamante não aduz o fundamento para situar o termo inicial do pedido naquela data nem especifica o motivo pelo qual o liquida até à data da reclamação. Elementos que o tribunal de primeira instância estaria em condições de apurar e que não constam das decisão recorrida, decerto pela assertiva afirmação que as rendas do imóvel são bens próprios da cabeça-de-casal.
Sabemos que com a dissolução do casamento cessam as relações patrimoniais entre os cônjuges e pode proceder-se à partilha (artigo 1788º do Código Civil). Produzem-se a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença, retrotraindo-se à data da propositura da acção quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges Podem ainda retrotrair-se à data em que a coabitação tenha cessado por culpa exclusiva ou predominante de um dos cônjuges, contanto que a falta de coabitação esteja provada no processo e o outro o requeira (artigos 1789º, 1 e 2, do Código Civil[16]).
Estando em causa o divórcio por mútuo consentimento, a cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges ocorreu na data da propositura da acção, ou seja, em 14-11-2006. Daí que, a partir de então, não tenha o cônjuge reclamante direito a partilhar das rendas do imóvel próprio da cabeça-de-casal. E também não lhe assiste direito à sua partilha em período anterior, porque não está apurada no processo a data da separação de facto, então só fixável no divórcio litigioso, presumindo-se que, até à cessação dos efeitos patrimoniais do casamento, os cônjuges participaram no património comum. Ao princípio da paridade dos cônjuges no património comum, ínsito ao artigo 1730º, 1, do Código Civil, subjaz a ideia de mútua colaboração no esforço patrimonial do casamento e se um dos cônjuges tem mais rendimentos é porque o outro se encarrega de tarefas indispensáveis e não remuneradas[17]. Nessa medida, as rendas do imóvel percebidas na constância do casamento, constituindo um bem comum do casal, ter-se-ão consumido na sustentação da sociedade conjugal. Nada tendo o reclamante alegado em sentido diverso, não há fundamento para a relacionação de qualquer montante relativo às rendas do imóvel próprio da reclamada.

3.3. Impugna também o agravante a manutenção da relacionação da verba 4, relativa ao reembolso de IRS do ano de 2005. Não nega que a mesma tem de ser partilhada, mas defende que ocorreu partilha extrajudicial desse valor de 1.126,02 euros, juntando aos autos um extracto da D… e apontamentos pessoais para quantificar o montante de cada um dos cônjuges. Alega, para tanto, que a agravada não impugnou tais documentos, o que traduz a confissão de dívida.
Sobre essa concreta questão entendeu a decisão agravada que o reclamante não fez prova da partilha extrajudicial e que os documentos apresentados não têm a virtualidade de demonstrar tal facto. Dos elementos, entretanto, solicitados por este tribunal não conseguimos intuir quais os documentos a que poderá referir-se o reclamante, mas o certo é que a decisão impugnada deu por não provado esse facto. Como dissemos, não podendo este Tribunal da Relação reavaliar a prova produzida, face à factualidade dada por provada pelo tribunal a quo, temos de manter esse concreto vector da decisão impugnada. Incumbindo sobre o reclamante o ónus da prova da sua alegação, não o tendo feito, sobre ele recaem as desvantagens da ausência de prova de tal facto (artigo 342º do Código Civil).

IV. Decisão
Na defluência do exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao agravo e, ainda que por fundamentos não inteiramente coincidentes, manter a decisão recorrida.

Custas do agravo a cargo do agravante (artigo 446º, 1, do Código de Processo Civil).
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Porto, 15 de Maio de 2012
Maria Cecília de Oliveira Agante dos Reis Pancas
José Bernardino de Carvalho
Eduardo Manuel B. Martins Rodrigues Pires
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[1] Na redacção imperante até à vigência do Decreto-Lei 303/2007, de 24 de Agosto, a que se reportarão todas as normas que, desse Código, por esse diploma foram alteradas.
[2] Pires de Lima e Antunes Varela, citando Braga da Cruz, “Código Civil”, Anotado, IV, 2ª ed., pág. 411.
[3] Pires de Lima e Antunes Varela, ibidem, pág. 428.
[4] Pires de Lima e Antunes Varela, ibidem, pág. 424.
[5] Pires de Lima e Antunes Varela, ibidem, pág. 426.
[6] Pires de Lima e Antunes Varela, ibidem, pág. 427; Acs. SJ de 15-10-1998, in BMJ 480, pág. 466; 25-5-2000, in CJSTJ, ano VIII, tomo II, pág. 76.
[7] Pereira Coelho/Guilherme Oliveira “in” Curso de Direito de Família, 2ª edição, volume I, página 519¸Acs. STJ 13-07-2010, 1047/06-9TVPTR.P1.S1; 6-03-2007, ref. 06A4619; 24-10-2006, ref. 06A2720; 15-05-2001, in CJ, ano IX, tomo II, pág. 75; 24-09-96, in BMJ 459, pág. 535; 14-12-1995, in CJ online, processo 87322.
[8] Ac. STJ de 1-07-2010, in CJ online, processo 478/08.4TVLSB.L1.S1
[9] Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, “Curso de Direito de Família”, Volume I, 4ª ed., pág. 520.
[10] Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, ibidem, pág. 521.
[11] Ac. STJ de 6-03-2007, in www.dgsi.pt, ref. 06A4619.
[12] Ac. STJ de 24-10-2006, in CJSTJ, ano XIV, Tomo III, pág. 92.
[13] Pires de Lima e Antunes Varela, ibidem, pág. 428; Eduardo dos Santos, “Direito da Família”, 1999, pág. 332.
[14] Pires de Lima e Antunes Varela, ibidem, pág. 433.
[15] Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, ibidem, págs. 518 e 546.
[16] Na versão anterior à introduzida pela Lei 61/2008, de 31 de Outubro.
[17] Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, ibidem, pág. 511.