Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
749/13.8TAPFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ PIEDADE
Descritores: CRIME DE FALSIDADE DE TESTEMUNHO
DEPOIMENTOS ANTAGÓNICOS
Nº do Documento: RP20150311749/13.8TAPFR.P1
Data do Acordão: 03/11/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Não comete o crime de falso depoimento a testemunha que presta depoimentos antagónicos no mesmo processo, não se apurando em qual deles mentiu.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. Nº 749/13.8TAPFR.P1
2º Juízo do T. J. de Paços de Ferreira

Acordam, em Conferência, os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

No T.J. de Paços de Ferreira, processo supra referido, foi julgado B…, tendo sido proferida Sentença com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, decide-se
a) condenar o arguido B… pela prática como autora material de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360.º, 1 do Código Penal, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à razão diária de 6 € (seis euros), num total de 1.080 € (mil e oitenta euros).”
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Desta Sentença recorreu o condenado B…, formulando as seguintes conclusões:
“A/ A prova produzida obrigava a uma decisão diferente da decidida;
B/ Existe erro de julgamento;
C/ Não existe prova que permita concluir que o arguido mentiu no Tribunal, aquando do Julgamento – Audiência de Discussão e Julgamento;
D/ A acusação é dúbia porque não define em que circunstância é que o arguido mentiu;
E/ Retira-se do texto da sentença (ponto 3 dos factos dados como provados) que o arguido terá prestado depoimento desconforme quando prestou depoimento em sede de audiência de discussão e julgamento;
F/ Não consta da fundamentação da decisão que o Tribunal a quo se tenha socorrido de matéria dada como provada no julgamento de 21 de Maio de 2013, para aí fundamentar a sua convicção;
G/ Há uma desconformidade entre os dois depoimentos, mas seria necessário demonstrar a realidade subjacente aos mesmos, para apurar em qual dos dois depoimentos se afastou o arguido da realidade;
H/ O Tribunal dá como provado que o arguido mentiu mas não demonstra em que ocasião o fez, o que terá que determinar a sua absolvição.
I/ Só estando fixada a verdade objectiva é que se pode saber se o depoimento é falso.
J/ Não foi produzida qualquer prova na audiência de julgamento que permita alicerçar que não corresponda à verdade versão narrada pelo ora recorrente na audiência de julgamento realizada no âmbito do proc. nº 33/11.1GCFLG do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Paços de Ferreira;
L/ Não se encontram preenchidos os elementos típicos do crime de falsidade de testemunho, pp. pelo art. 360º, nºs 1 e 3 do Código Penal;
Termos em que, requer-se a Vossas Excelências, com o douto suprimento, que seja dado provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida e, consequentemente, seja o arguido absolvido do crime de falsidade de testemunho.”
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Em 1ª Instância defendeu a improcedência do recurso.
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Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se pela procedência do recurso, escrevendo nomeadamente:
“(…)
Na verdade, é elementar que um arguido só pode ser condenado pelos factos de que vem acusado.
O arguido, aqui recorrente, vinha acusado de ter prestado falsidade de depoimento na audiência de 21/5/13, altura em que depôs contrariamente àquilo que tinha declarado em 12/4/12, perante a GNR.
Ora, da matéria de facto dada como provada, em conjugação com a matéria de facto dada como não provada, resulta que aquele facto não foi dado como provado.
Em sua substituição, foi dado como provado que o arguido, num dos dois momentos, ou seja, em 21/5/13 ou em 12/4/12, faltou à verdade.
Esta matéria dada como provada, a nosso ver traduz uma alteração substancial dos factos constantes da acusação, a qual, durante a fase de julgamento, não foi comunicada ao arguido, como era devido, nos termos do artigo 359.º do CPP.
A douta sentença sob recurso condenou, pois, o arguido, por factos de que o mesmo não vinha acusado, sendo, por isso, nula, nos termos do artigo 379.º, alínea b), do CPP.
Nos enunciados termos, somos de parecer que o recurso merece provimento.”
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Com interesse para a decisão a proferir, é o seguinte o teor da Sentença recorrida.
Factos Provados:
“1) No dia 21 de Maio de 2013, o arguido prestou declarações como testemunha na audiência de julgamento do Processo Comum Colectivo n.º 33/11.1GCFLG, do 1.º Juízo do Tribunal de Paços de Ferreira, e, sob juramento, depois de advertido da obrigatoriedade de responder com verdade à matéria dos autos, declarou que apesar de saber que o arguido C… vendia haxixe nunca lhe comprou essa substância.
2) O ora arguido havia declarado, no decurso do inquérito, em 12 de Abril de 2012, no Núcleo de Investigação Criminal do Destacamento Territorial de Felgueiras, no âmbito do processo de inquérito n.º 33/11.1GCFLG, o arguido, perante o Cabo D… daquela corporação, e depois de advertido da obrigatoriedade de responder com verdade à matéria dos autos, que “Há cerca de 2/3 anos que conhece o “C1…” de o ver em Paços de Ferreira, ficando nessa altura a saber que ele vendia haxixe. Mais referiu que comprou haxixe ao “C1…”, uma ou duas vezes, tiras de cinco euros, junto da … em Paços de Ferreira, local onde sabia que podia encontra-lo.
3) Não obstante ter ficado ciente, na ocasião referida, do dever de falar verdade assumido pelo juramento legal que havia prestado, o aqui arguido quis produzir, perante o tribunal competente para as receber como meio de prova, declarações desconformes às que anteriormente havia prestado em sede de inquérito.
4) Acresce que, as declarações prestadas pelo ora arguido em sede de inquérito foram ponderadas e valoradas positivamente para a produção de prova dos factos indiciados.
5) Agiu o arguido por forma livre e deliberada, faltando, num dos dois momentos, conscientemente à verdade sobre os factos denunciados naqueles autos, bem sabendo da qualidade de testemunha que possuía no processo a que respeitavam as diligências mencionadas e que, consequentemente, estava obrigado à verdade e que o respectivo depoimento constituía meio de prova.
6) Tinha igualmente de que a sua conduta não era permitida.
7) O arguido tem registados os seguintes antecedentes criminais:
a) Por factos praticados em 07/03/2008, foi condenando, por sentença de 18/09/2008, já transitada em julgado, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 50 dias de multa à razão diária de 5,50€ (processo n.º 328/08.1GAPFR, do 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Paços de Ferreira).
b) Por factos ocorridos em 03/05/2009, foi condenado, por sentença de 12/05/2009, já transitada em julgado, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 140 dias de multa à razão diária de 5,50€ (processo n.º 349/09.7GAPFR, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Paços de Ferreira).
c) Por factos ocorridos em 13/02/2009, foi condenado, por sentença de 23/02/2009, já transitada em julgado, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 140 dias de multa à razão diária de 5€ (processo n.º 463/09.9GBGMR, do 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Guimarães).
d) Por factos ocorridos em 02/04/2010, foi condenado, por sentença de 14/03/2011, já transitada em julgado, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 210 dias de multa à razão diária de 5,50€, substituída por trabalho a favor da comunidade (processo n.º 310/10.4GAPFR, do 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Paços de Ferreira).
e) Por factos ocorridos em 26/12/2012, foi condenado, por sentença de 03/10/2012, já transitada em julgado, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena 8 meses de prisão, suspensa por um ano (processo n.º 335/12.0GMPFR, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Paços de Ferreira).”
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Enquadramento Jurídico-Penal:
“O arguido veio a julgamento publicamente acusado como autor material de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360.º, 1 e 3, do Código Penal (CP), que prevê que quem, como testemunha, perito, técnico, tradutor ou intérprete, perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento, relatório, informação ou tradução, prestar depoimento, apresentar relatório, der informações ou fizer traduções falsos, é punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias (n.º 1), certo que se tal conduta for praticada depois do agente ter prestado juramento e ter sido advertido das consequências penais a que se expõe a pena passa a ser de prisão até 5 anos ou de multa até 600 dias (n.º 3).
Do preceito legal em análise, logo resulta evidente que com este tipo legal de crime se protege prima facie o interesse do Estado na realização ou administração da Justiça, bem jurídico que requer a contribuição de todos os intervenientes processuais para o esclarecimento da factualidade relevante em ordem à correcta decisão, apenas sendo considerados de forma secundária ou indirecta os interesses particulares.
É que entre os meios de prova ou elementos de convicção para a averiguação de facto juridicamente relevante está o testemunho, isto é, informação prestada, perante quem de direito, acerca de tal facto ou de qualquer das suas circunstâncias integrantes, por pessoa que tenha conhecimento a respeito. Muitas vezes, é mesmo o testemunho o único meio probatório que se apresenta in concreto, isto é, a ulterior decisão pela autoridade competente fica adstrita, frequentemente, a louvar-se tão só no depoimento de testemunhas, posto que o julgador não pode pronunciar-se pelo que acaso saiba fora dos autos ou pelas simples alegações dos interessados. A presunção juris da verdade do testemunho é admitida pela lei no imperioso interesse da fixação histórica de factos que, afectando a ordem jurídica, têm de ser objecto ou base de julgamento, quer na órbita judiciária, quer na esfera administrativa em geral (Nélson Hungria, Direito Penal Anotado, Volume IX, 472 e 473).
Trata-se de um crime de perigo abstracto, não sendo necessário que a declaração falsa prejudique efectivamente o esclarecimento da verdade suporte da decisão, nem sequer que, em concreto, o tenha colocado em perigo, pois que o fundamento do ilícito é a própria declaração falsa, independentemente da sua consideração da sua efectiva influência na decisão, e de um crime de mera actividade, cujo comportamento se esgota na efectivação da conduta proibida, não exigindo a lei qualquer resultado (Medina Seiça, Comentário Conimbricense do Código Penal, parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, p. 462).
Não obstante o mencionado, nem todas as declarações falsas preenchem a tipicidade, pois que, centrando no papel da testemunha, esta tem o dever apenas de declarar os factos de que tenha conhecimento directo (artigo 128.º, 1, do CPP), factos que tenham sido objecto das suas percepções, acontecimentos ou circunstâncias concretos, quer do mundo exterior, quer da via anímica, ficando fora desse dever, não preenchendo o tipo, os juízos de valor e as suposições, assim como também não estão abrangidos os factos que ficam fora do objecto da produção de prova, pois que a exigência da verdade cinge-se ao objecto do interrogatório (Medina Seiça, op. cit. p. 466 e 467).
Por outro lado, a condenação pela prática de um crime de falso testemunho resulta da prova da prestação de depoimentos antagónicos sobre a mesma realidade e não da prova de qual dos depoimentos é que foi falso. Sendo os depoimentos discrepantes entre si, em algum momento ocorreu uma contradição entre o depoimento prestado e a verdade histórica e objectiva, sendo que a falta de determinação do momento processual em que foi prestado o depoimento falso apenas releva para a determinação do momento da consumação do crime, sabendo-se que o crime foi cometido, mas não em que data (acórdão da Relação do Porto de 22/11/2006 (processo n.º 0644016), 21/12/2007 (processo n.º 0645762), 30/01/2008 (processo n.º 0712790) e de 13/03/2013 (processo n.º 169/10.6TAALJ.P1), todos consultados em www.dgsi.pt).
Façamos a ponte entre o Direito acabado de explanar e a factualidade apurada nestes autos. Ressuma do manancial fáctico provado que, no âmbito do processo comum colectivo n.º 33/11.1GCFLG, do 1º Juízo deste Tribunal, em sede de audiência de julgamento, quando depunha na qualidade de testemunha, o arguido mencionou que nunca comprara haxixe ao arguido (nesse processo), certo que em sede de inquérito dissera coisas completamente diferentes, comprometendo directamente esse arguido, de nome C…, mais conhecido por C1…, com a venda de produtos estupefacientes, já lhe tendo comprado droga.
É igualmente claro que o arguido agiu deliberadamente, tendo numa destas ocasiões mentido, sabendo que não o podia fazer, por isso resultando de forma inequívoca que a sua conduta integra o crime de falsidade de testemunho de que vem acusada, nos seus elementos objectivos e subjectivos.
No entanto, o preenchimento deste crime faz-se apenas na modalidade prevista pelo artigo 360.º, 1, do CP, e não na forma agravada que o artigo 360.º, 3, do CP prevê, isto porque não se apurou quanto ao momento em que arguido faltou à verdade, não podendo esta circunstância desfavorecê-lo.
Assim, vindo o arguido acusado pela prática do crime de falsidade de testemunho agravado, não se tendo provado em que momento terá o arguido faltado a verdade, não poderá funcionar a circunstância agravativa (prática do facto após prestação de juramento), pelo que deverá o mesmo ser condenado pelo crime de simples e não qualificado (neste sentido, Acórdão da Relação de Évora de 07/02/2012 (processo n.º 19/11.6TAFAL.E1), disponível em www.dgsi.pt).
Não há lugar à atenuação especial da pena que decorre do artigo 364.º, do CP, uma vez que a falsidade assenta sobre circunstância que tinha significado especial para a prova.”
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Colhidos os Vistos, efectuada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.
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Das conclusões, delimitadoras do respectivo objecto, extrai-se que o recorrente B… pretende suscitar a seguinte questão:
- Não preenchimento do tipo do crime de falsidade de testemunho.
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Questão prévia.
No seu Parecer, o Sr. Procurador-Geral Adjunto pronuncia-se pelo provimento do recurso, mas com fundamentos que o recorrente não invoca, alegando que a Sentença é “nula nos termos do art. 379º, nº 1, al. b), do CPP”.
A esse respeito, tal como temos referido noutras decisões, entendemos que as nulidades da Sentença, enunciadas no art. 379º, nº 1, do CPP, não são do conhecimento oficioso, tendo de ser arguidas pelo interessado (entendendo-se como interessado, o sujeito processual afectado pela decisão), em recurso, caso este seja interposto, ou, não existindo recurso, perante o Tribunal que proferiu a decisão – nº 2 desse art. 379º.
Sem prejuízo do referido, esclareça-se que nos autos não se verifica qualquer inclusão de factos novos de que tenha resultado a alteração do crime imputado ou dos limites da pena aplicável, pelo que nunca se poderia falar em alteração substancial dos factos.
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Em síntese, encontra-se provado que o recorrente, depondo como testemunha em Audiência, afirmou “que apesar de saber que o arguido C… vendia haxixe nunca lhe comprou essa substância”.
No decurso do Inquérito, prestara depoimento afirmando que tinha comprado “haxixe ao «C1…», uma ou duas vezes, tiras de cinco euros, junto da … em Paços de Ferreira, local onde sabia que podia encontrá-lo”.
Em ambos os actos tinha sido “advertido da obrigatoriedade de responder com verdade à matéria dos autos”.
Quis produzir, em Audiência, “declarações desconformes às que anteriormente havia prestado em sede de inquérito”, “faltando, num dos dois momentos, conscientemente à verdade sobre os factos denunciados”.
Na qualificação jurídica dos factos é considerado que o recorrente numa das ocasiões mentiu, sabendo que não o podia fazer, o que preenche o crime previsto no art. 360º, nº 1, do CP.
Não se verifica a agravante do nº 3, “porque não se apurou quanto ao momento em que arguido faltou à verdade, não podendo esta circunstância desfavorecê-lo”.
Acrescenta-se que “não se tendo provado em que momento terá o arguido faltado a verdade, não poderá funcionar a circunstância agravativa (prática do facto após prestação de juramento), pelo que deverá o mesmo ser condenado pelo crime de simples e não qualificado”.
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No recurso, ainda que de forma algo incipiente (denotando alguma confusão entre a produção da prova e a subsunção dos factos ao Direito), defende-se que «nos factos provados não se encontra fixada a verdade objectiva e sem se saber qual é essa verdade, não se pode afirmar a falsidade do depoimento do arguido prestado na qualidade de testemunha, na audiência de julgamento realizada no âmbito do proc. nº 33/11.1GCFLG do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Paços de Ferreira, por não se poder aferir se foi prestado em conformidade ou em desconformidade com o acontecimento real a que se reportou».
«Só estando fixada a verdade objectiva é que se pode saber se o depoimento é falso.»
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É a seguinte a redacção do artº 360º nº 1 do C. Penal:
“Quem, como testemunha, perito, técnico, tradutor ou intérprete, perante Tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova depoimento, relatório, informação ou tradução, prestar depoimento, apresentar relatório, der informações ou fizer traduções falsos, é punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias” (e a do nº 3: “se o facto referido no nº 1 for praticado depois de o agente ter prestado juramento e ter sido advertido das consequências penais a que se expõe, a pena é de prisão até 5 anos ou de multa até 600 dias”).
No Acórdão deste Tribunal (de que fomos relator) citado na motivação do recurso, proferido em 05/07/2006, considerámos que “a divergência entre os depoimentos prestados em dois momentos processuais distintos (Inquérito e Audiência de Julgamento), não é suficiente para que o Tribunal possa – sem fixar na matéria de facto o ocorrido – escolher a fase processual em que o arguido prestou o depoimento falso, e consumou o crime”.
Em consonância, no Comentário do Código Penal de P. P. de Albuquerque (Univ. Católica Ed., Lisboa, 2008, p. 848) surge referido que “não comete o crime a testemunha, depois de ajuramentada e advertida das consequências penais a que se expunha se mentisse, apresentou em dois momentos processuais depoimentos divergentes sobre a mesma realidade, não se apurando em qual dos mesmos ela faltou à verdade”.
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Na decisão sob reexame segue-se um entendimento contrário perfilhado no Acórdão da Relação de Évora, de 07/01/2012 (publicado em www.dgsi.pt), considerando-se que “elemento típico do crime de falsidade de testemunho é que alguém, numa das qualidades enunciadas no art. 360º, nº 1, do CP, preste depoimento (…) falso”, dúvidas não havendo em que quando alguém presta, em sede de Inquérito e em sede de Julgamento, dois depoimentos contraditórios entre si, se verifica esse elemento típico.
Saber em que momento processual foi produzido o falso testemunho “é algo de absolutamente irrelevante, a não ser para efeitos prescricionais”.
Também no Acórdão deste Tribunal, proferido em 30/01/2008 (publicado em www.dgsi.pt), se considera que a prestação, em fases distintas, de dois depoimentos antagónicos implica que um deles seja falso, pelo que o saber-se “qual é o depoimento falso” não constitui “requisito necessário ao preenchimento do tipo do art. 360º, nº 1, do CP”.
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Falso é aquilo que não é verdadeiro; que é contrário à realidade; em que há mentira.
É evidente que não se pode ter como termo de aferição a verdade absoluta, mas a verdade tal como ela foi apurada e se encontra descrita no processo em que os depoimentos (ou declarações) foram produzidos (a denominada verdade processual).
Assim, a falsidade do depoimento tem de se aferir pela sua conformidade com o acontecimento real a que se reporta, tal como ele se encontra descrito na Sentença do processo em que tal depoimento (ou declaração) foi produzido.
É para essa concepção que aponta A. Medina de Seiça, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III – Parte Especial, Coimbra Editora, p. 477: “caso a narração do declarante se afaste do acontecido, isto é, daquilo que o tribunal, em face da produção da prova, tenha dado por acontecido, ela é falsa”.
É, também, evidente que nem toda a divergência da realidade descrita na Sentença representa uma falsidade; tem de se provar, em face das suas circunstâncias, que essa divergência é dolosa, ou seja, que foi produzida uma afirmação contrária à verdade, com intenção de enganar, de mentir (mentindo-se).
Sendo o bem jurídico protegido a realização da Justiça, pressupondo a realização desta a descoberta da verdade, o que se pretende punir é o depoimento (ou declaração) contrário à verdade, com intenção de enganar, mentindo-se e procurando-se impedir o Julgador de chegar à verdade.
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No caso, o Julgador prescindiu por completo da aferição dos dois divergentes depoimentos com os factos considerados provados após a Audiência, na Sentença do processo em causa, não os incluindo – com a respectiva referência – na matéria provada (destinando-se estes factos a completar o núcleo essencial dos vertidos na acusação, e sendo resultantes da prova documental constituída pela certidão da Sentença ali proferida, tal não constituiria uma “alteração substancial” ou sequer “não substancial” dos factos; e ainda que se considerasse integrar este último conceito, seria sempre possível cumprir o estabelecido no art. 358º do CPP).
Bastou-se com a consideração de que “numa das ocasiões mentiu”, não importando em qual, nem sendo necessário fixar em que momento se consumou o crime, o que o “obrigou” a não considerar verificada a previsão típica constante da acusação, na sua totalidade (art. 360º, nºs 1 e 3).
Essa decisão, pelas razões expostas, mostra-se errónea e baseia-se numa interpretação da previsão típica que contende – a nosso ver – com os princípios da legalidade, que impõe a descrição da conduta proibida e de todos os requisitos de que dependa em concreto a punição tem de ser efectuada de modo a que se tornem objectivamente determináveis os comportamentos proibidos e sancionados e, consequentemente, se torne objectivamente motivável e dirigível a conduta dos cidadãos; e da tipicidade, o qual implica que a lei deve especificar suficientemente os factos que constituem o tipo legal de crime e impede as formas vagas ou incertas.
Contenderá, também, segundo P. P. de Albuquerque (obra supra citada, p. 848) com o princípio da presunção de inocência.
Em conclusão, o recurso merece provimento.
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Nos termos relatados, decide-se julgar procedente o recurso, revogando-se a Sentença recorrida e absolvendo-se o recorrente da prática do crime de falsidade de testemunho de que vinha acusado.
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Sem custas.
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Porto, 11/03/2015
José Piedade
Airisa Caldinho