Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1423/11.5TBPRD-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: DESPEJO IMEDIATO
ABUSO DE DIREITO
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RP201405191423/11.5TBPRD-A.P1
Data do Acordão: 05/19/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O incidente de despejo imediato previsto no n.º 5, do artigo 14.º, da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, visa evitar situações em que o arrendatário, demandado em juízo pelo senhorio, poderia continuar a gozar a coisa arrendada sem pagar a renda estipulada, podendo tal situação arrastar-se por vários anos, desde a instauração da acção até à execução da sentença transitada em julgado, após um ou mais recursos.
II – De acordo com esta razão de ser e finalidade, o incidente não admite outra oposição que não seja a prova do pagamento ou depósito das rendas e indemnização devidas.
III – Tratando-se de um mecanismo jurídico estabelecido na lei com vista a evitar aquelas situações indesejáveis, qualquer senhorio pode usar deste meio de tutela quando verificados os respectivos pressupostos, sem que se vislumbre, em regra, qualquer situação de abuso de direito (artigo 334.º do Código Civil).
IV – No contexto da ordem jurídica actual, a norma do n.º 5, do artigo 14.º, da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, não ofende o disposto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Tribunal da Relação do Porto – 5.ª secção.
Recurso de Apelação.
Processo n.º 1423/11.5TBPRD-A do Tribunal Judicial da Comarca de Paredes – 1.ºJuízo Cível.
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Juiz relator – Alberto Augusto Vicente Ruço.
1.º Juiz-adjunto……Joaquim Manuel de Almeida Correia Pinto.
2.º Juiz-adjunto…….Ana Paula Pereira de Amorim.
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Sumário:
I – O incidente de despejo imediato previsto no n.º 5, do artigo 14.º, da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, visa evitar situações em que o arrendatário, demandado em juízo pelo senhorio, poderia continuar a gozar a coisa arrendada sem pagar a renda estipulada, podendo tal situação arrastar-se por vários anos, desde a instauração da acção até à execução da sentença transitada em julgado, após um ou mais recursos.
II – De acordo com esta razão de ser e finalidade, o incidente não admite outra oposição que não seja a prova do pagamento ou depósito das rendas e indemnização devidas.
III – Tratando-se de um mecanismo jurídico estabelecido na lei com vista a evitar aquelas situações indesejáveis, qualquer senhorio pode usar deste meio de tutela quando verificados os respectivos pressupostos, sem que se vislumbre, em regra, qualquer situação de abuso de direito (artigo 334.º do Código Civil).
IV – No contexto da ordem jurídica actual, a norma do n.º 5, do artigo 14.º, da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, não ofende o disposto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
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Recorrentes/Réus……………B… e marido C…, residentes no, n.º .. r/c, …, ….-… Paredes.
Recorridos/Autores…………D… e esposa E…, residentes em …, n.º …. – ..º, ….-… ….
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I. Relatório.
a) O presente recurso insere-se numa acção de despejo interposta pelos Recorridos contra os ora Recorrentes e versa sobre o despacho que ordenou a notificação dos Recorrentes (Réus), para, nos termos do n.º 4, do artigo 14.º, da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, procederem ao depósito das rendas vencidas no decurso da acção.
b) É deste despacho que os Réus recorrem por entenderem que não é seu dever depositar as rendas, tendo, no final, formulado as seguintes conclusões:
«A) Os Recorrentes por motivo atinente exclusivamente aos Recorridos sofreram diminuição total do gozo do arrendado e por isso a uma diminuição total do gozo proporcionalmente só pode corresponder uma diminuição total do montante da renda, que por isso os Recorrentes não estão obrigados a pagar enquanto a situação se mantiver - artigos 1031.º, b) e 1040 n.º 1 do Código Civil - sendo, assim, legítima a recusa do pagamento de rendas, por parte dos Recorrentes. Nessa medida,
B) O incidente de despejo imediato carece de qualquer fundamento, e o Tribunal não deveria ter ordenado o cumprimento do n.º 4 do artigo 14 do NRAU. De facto,
C) Não é de decretar o despejo imediato, por falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da acção de despejo, quando ainda não se decidiu nessa acção se o locatário tinha ou não a obrigação de pagar as rendas indicadas pelo Recorridos ao fundamentar a causa. Por outro lado,
D) O incidente de despejo imediato sempre teria que improceder, uma vez que a actuação dos Recorridos, é abusiva, tendo os mesmos consciência que ao assim actuar, excedem manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelos fins sociais e económicos em causa (artigo 334.º do Código Civil).
E) A proceder a pretensão dos Recorridos, estariam estes a beneficiar e a colher benefícios de um facto ilícito que eles próprios provocaram, isto é,
F) Incumprindo a obrigação de proporcionar aos Recorridos o locado, atingiriam o seu objectivo que é o de os despejar ­Agem, assim, os Recorridos em manifesto abuso de direito, o que aqui se invoca para todos os efeitos legais. Acresce ainda que
G) Assim, e na medida do alegado em A) destas Conclusões, enquanto a situação ali descrita se mantiver, não há vencimento de quaisquer rendas, ou seja as rendas em que os Recorridos fundam o incidente de despejo imediato não são exigíveis, pelo que os Recorrentes não têm que as pagar ou depositar, podendo os Recorrentes deduzir tal defesa.
H) Neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães – Pro 6/07.9TCGMR.G1 - "O artigo 14.º n.º 4 da Lei n.º 6/2006, de 27/02 (NRAU), é materialmente inconstitucional na interpretação segundo a qual se for requerido pelo autor o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da acção, o único meio de defesa do detentor é a apresentação de prova, até ao termo do prazo para a sua resposta de que procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora e da importância da indemnização devida".
I) Inconstitucionalidade essa que aqui também se invoca.
J) Termos em que revogando-se o despacho que ordenou o cumprimento do n.º 4 do artigo 14.º do NRAU, e proferindo-se Acórdão que julgue improcedente o pedido de despejo imediato se fará justiça».
c) Os recorridos contra-alegaram pugnando pela manutenção da decisão sob recurso.
Sustentam ainda que o recurso não é admissível devido ao facto da matéria do recurso não respeitar à apreciação da validade, a subsistência ou a cessação do contrato de arrendamento.
Argumentam ainda que o recurso deve ser liminarmente rejeitado porque o despacho que ordena a notificação para pagamento das rendas nada decide acerca do despejo imediato; que esta questão só se colocará na fase da execução para entrega de coisa certa, servindo como título executivo a certidão de onde conste que não foram pagas as rendas vencidas na pendência da acção no aludido prazo de 10 dias.
Referem, em todo o caso, que o efeito do recurso não é suspensivo, pois este está reservado, nos termos do artigo 678.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, para as acções em que seja apreciada a validade, subsistência ou cessação do contrato de arrendamento, o que não ocorre no caso dos autos.
Alegam seguidamente questões relativas ao mérito da acção que interpuseram contra os Réus, agora recorrentes, referindo, entre outros factos, que o estabelecimento comercial sempre esteve em condições de poder laborar e que nunca foi encerrado pela Câmara Municipal.
II. Objecto do recurso.
As questões relativas à recorribilidade, rejeição liminar do recurso e efeito do recurso já foram apreciadas pelo relator em sentido positivo.
Colocam-se agora as restantes questões:
Em primeiro lugar, cumpre verificar se é legalmente viável decretar o despejo imediato, por falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da acção de despejo, sendo certo que ainda não se decidiu nessa acção se o locatário tinha ou não a obrigação de pagar as rendas indicadas pelo Autores recorridos nos termos exarados na fundamentação da causa.
Em segundo lugar, avaliar-se-á se ocorre abuso de direito por parte dos Autores ao lançarem mão do incidente de despejo imediato, pois a proceder a pretensão dos Recorridos, estes estariam a beneficiar e a colher benefícios de um facto ilícito que eles terão provocado.
Por fim, na hipótese de se considerar que o incidente não admite qualquer outro meio de defesa a não ser o pagamento ou depósito das rendas, cumpre apreciar a constitucionalidade do incidente assim configurado.
III. Fundamentação.
a) Factos processuais a considerar.
Na acção principal foi pedida a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre Autores e Réus, sendo estes últimos os arrendatários, com base em encerramento do locado por mais de um ano e por falta de pagamento de rendas.
b) Apreciação da questão objecto do recurso.
1 – Vejamos se é legalmente viável decretar o despejo imediato, por falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da acção de despejo, quando ainda não se decidiu nessa acção se o locatário tinha ou não tinha a obrigação de pagar as rendas pedidas pelo Autores, com base no incumprimento que eles imputam ao senhorio relativamente à prestação contratual a cargo deste.
A resposta a esta questão é afirmativa, pelas razões a seguir indicadas.
a) Nos termos dos n.º 3, 4 e 5, do artigo 14.º, da Lei n.º 6/2006 (na redacção introduzida pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, já em vigor à data do requerimento dos Recorridos, «…3 - Na pendência da ação de despejo, as rendas que se forem vencendo devem ser pagas ou depositadas, nos termos gerais.
4 - Se as rendas, encargos ou despesas, vencidos por um período igual ou superior a dois meses, não forem pagos ou depositados, o arrendatário é notificado para, em 10 dias, proceder ao seu pagamento ou depósito e ainda da importância da indemnização devida, juntando prova aos autos, sendo, no entanto, condenado nas custas do incidente e nas despesas de levantamento do depósito, que são contadas a final.
5 - Em caso de incumprimento pelo arrendatário do disposto no número anterior, o senhorio pode requerer o despejo imediato, aplicando-se, em caso de deferimento do requerimento, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 7 do artigo 15.º e nos artigos 15.º - J, 15.º - L e 15.º - M a 15.º- O».
O despejo imediato previsto no n.º 5, do artigo 14.º, da Lei n.º 6/2006, acabado de transcrever, é um mecanismo antigo, já previsto no Decreto n.º 22:661, de 13 de Junho de 1933, que passou depois para o primitivo artigo 979.º do Código de Processo Civil de 1939 [1], e, mais tarde, para artigo 58.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, revogado pela Lei n.º 6/2006.
b) A razão de ser ou o fundamento jurídico do despejo imediato consistiu e consiste em evitar situações em que o arrendatário, demandado em juízo pelo senhorio, poderia continuar a gozar da coisa arrendada sem pagar a renda estipulada, podendo tal situação arrastar-se por vários anos, desde a instauração da acção até à execução da sentença transitada em julgado, após um ou mais recursos.
A forma de pôr termo a tais acções abusivas dos arrendatários e de evitar uma disseminação de tal comportamento, consistiu precisamente na possibilidade de ser obtido o despejo imediato por falta de pagamento das rendas vencidas durante a pendência do processo.
Face aos interesses em causa e à finalidade do incidente, os fundamentos da acção passam a ser secundários, pelo que, seja qual for o fundamento invocado na acção para a resolução do contrato de arrendamento, o senhorio, após a instauração da acção, poderá sempre obter o despejo com fundamento na falta de pagamento das rendas vencidas durante a acção, caso estas não sejam pagas ou depositadas.
E isto é assim mesmo nos casos em que o fundamento da acção, ou um dos fundamentos, é justamente a falta de pagamento de rendas.
O que melhor se compreende se se tiver em consideração que este incidente está configurado como uma nova causa; como uma nova acção; como uma outra causa de pedir, diversa da causa de pedir invocada na acção em curso [2].
Estando o incidente de despejo imediato construído desta forma, a consequência lógica implica que não possam ser invocados quaisquer outros argumentos destinados a neutralizar o pedido de despejo imediato além do pagamento ou depósito das rendas vencidas na pendência da causa e indemnização devida.
Com efeito, se este incidente não tivesse esta morfologia, então não se distinguiria de uma acção declarativa típica e não passaria de uma duplicação de acções numa só acção.
Se se admitissem outros fundamentos de oposição, o incidente apenas produziria uma maior complexidade processual e o seu objectivo (impedimento do gozo da coisa pelo arrendatário sem dispêndio de dinheiro por parte deste durante largo tempo, inclusive anos), não seria alcançado.
Mas se um objectivo não é susceptível de ser alcançado através de um certo processo, então tal processo carece de justificação e não deve ser sequer implementado.
Por conseguinte, e finalizando esta primeira questão, tem de se concluir que este incidente, de acordo com a sua razão de ser ou não admite outra oposição que não seja a prova do pagamento ou depósito das rendas e indemnização devidas [3] ou, caso contrário, não deveria sequer existir.
Conclui-se, pelo exposto, que o incidente apenas admite como fundamento de oposição a alegação e prova de que as rendas em causa foram pagas ou depositadas.
2 – A questão seguinte respeita à alegação de que ocorre abuso de direito por parte dos Autores ao lançarem mão do incidente de despejo imediato, pois, procedendo a pretensão dos Autores, estes estariam a beneficiar e a colher benefícios de um facto ilícito que eles próprios provocaram.
Face ao que ficou referido no número anterior, a propósito da razão de ser do incidente do despejo imediato, não ocorrerá, em regra, abuso de direito quando o senhorio vem usar deste meio processual.
Aliás, dados os termos em que se encontra configurado este incidente, o qual não admite outra oposição que não seja a já apontada, a verificação de uma situação abusiva é inviável, pois implicaria, por norma, a produção de extensos meios de prova o que contraria a finalidade apontada ao incidente.
Por conseguinte, tratando-se de um mecanismo jurídico estabelecido na lei com vista a evitar situações indesejáveis como as já assinaladas supra, qualquer senhorio pode usar deste meio de tutela quando verificados os respectivos pressupostos, sem que se vislumbre, em regra, como ocorre no caso dos autos, qualquer situação de abuso de direito.
A situação de abuso de direito a ter existido será conhecida na acção.
O incidente destina-se apenas a obrigar o arrendatário a pagar ou então a depositar as rendas prevista no contrato à medida que se vão vencendo.
Como se disse, se se admitisse outro tipo de oposição, então o incidente perderia a sua razão de ser.
Improcede, por conseguinte, este argumento dos recorrentes.
3 - Cumpre apreciar, por fim, a constitucionalidade do incidente na hipótese de se considerar, como se considerou, que o mesmo não admite qualquer outro meio de defesa a não ser o pagamento ou o depósito das rendas.
O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre esta matéria pelo menos uma vez, tendo concluído pela inconstitucionalidade da norma.
Com efeito, no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 673/2005 decidiu-se o seguinte:
«Julgar inconstitucional, por violação do princípio da proibição da indefesa, ínsito no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 58.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto Lei n.º 321-B/90 de 15 de Outubro, na interpretação segundo a qual mesmo que na acção de despejo persista controvérsia, quer quanto à identidade do arrendatário quer quanto à existência de acordo, diverso do arrendamento, que legitimaria a ocupação do local pela interveniente processual, se for requerido pelo autor o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da acção, o início meio de defesa do detentor do local é a apresentação de prova, até ao termo do prazo para a resposta, de que procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora e da importância da indemnização devida» [4].
Considerou-se na fundamentação deste acórdão que a limitação dos meios de defesa do demandado à prova do pagamento ou depósito da renda surgia de forma ostensiva, como uma restrição constitucionalmente intolerável do direito de defesa no incidente de despejo imediato (por falta de pagamento de rendas na pendência de acção de despejo).
Nos termos do acórdão, «Tal meio de defesa é manifestamente desajustado em todos os casos em que justamente se questiona o próprio dever de pagamento de determinada renda, seja por que fundamento for (inexistência de contrato de arrendamento válido, não se­rem au­tor e/ou réu os verdadeiros locador e/ou locatário, dissídio quanto ao montante da renda ou da sua imediata exigibilidade, invocação de diverso título para justificar a ocupação do local). No presente caso, em que, para além da controvérsia sobre a qualidade de locatária da primitiva ré, a interveniente (ora recorrente) sustenta o seu direito de ocupação do local em contrato-promessa de compra e venda que teria celebrado com o autor, com consequente inexistência do dever de pagamento de rendas, sendo as entregas de valor feitas imputadas no pagamento do preço de compra, questão que se encontrava ainda pendente quando foram pro­feridas as decisões das instâncias ora em causa, é óbvia a desadequação e inefectividade do único meio de defesa que foi reconhecido à recorrente: a prova do pagamento ou depósito das rendas pretensamente em falta, acompanhada da indemnização devida» [5].
Como se tem vindo a referir, ou se admite o incidente tal como está desenhado quanto à sua simplicidade, rapidez e eficácia ou, então, a sua admissibilidade não logra justificação.
Com efeito, se forem dados ao arrendatário meios processuais para discutir, por exemplo, a validade do contrato de arrendamento ou o montante da renda, o incidente perde simplicidade e torna-se complexo; perde rapidez e torna-se moroso; perde eficácia e torna-se inócuo, pois quando a questão se encontrar definitivamente julgada já não evita os prejuízos que, entretanto foram causados.
Daí que, tendo em consideração a questão jurídica a resolver, haja de fazer opções: ou se limitam os meios de defesa e se admite o incidente; se se admitem meios de defesa sem restrições, o incidente torna-se imprestável.
Já se viu que a lei procura combater as situações em que o arrendatário permanece na posse do local arrendado durante um, dois ou mais anos, sem pagar renda e quando finalmente o senhorio recupera o local, este corre o risco de nada receber porque nada consegue cobrar do arrendatário (veja-se o caso de uma empresa arrendatária que entretanto foi declarada insolvente).
Se a ordem jurídica permitir a existência desta prática, muitos arrendatários encontrarão neste mecanismo um meio fácil de usufruir de bens sem nada despenderem e o êxito de tais procedimentos tenderá sempre a angariar cada vez mais aderentes.
Por conseguinte, ou a lei sacrifica eventuais direitos do arrendatário ou do senhorio.
Trata-se de uma questão de ponderação de interesses: quais são os interesses que devem prevalecer?
Afigura-se que, presentemente, deve prevalecer o do senhorio, pelas seguintes razões:
(1) O arrendatário pode depositar a renda e este acto não implica a transferência do dinheiro para a esfera jurídica do senhorio, pois fica à ordem do tribunal, não existindo aqui um benefício imediato para o senhorio.
Porém, o uso do local arrendado pelo arrendatário, sem pagamento de renda, traduz-se num benefício imediato para este e, ao mesmo tempo, pode tratar-se de um prejuízo definitivo para o senhorio, o qual fica privado da posse do local, não dispondo dele para si próprio, nem para facultar a outrem.
(2) Actualmente, nos termos do artigo 1069.º do Código Civil, os contratos de arrendamento estão obrigatoriamente sujeitos à forma escrita.
Nestas condições, as acções de despejo que sejam interpostas, nas quais se enxerta o incidente de despejo imediato, têm como pressuposto um contrato de arrendamento escrito, do qual consta a identidade das partes e as prestações recíprocas (locado e montante da renda).
Por conseguinte, o Autor ao pedir o despejo ou junta o contrato de arrendamento ou, então, não havendo contrato de arrendamento escrito a acção a instaurar será outra, mas não a de despejo [6].
Desta forma, tendo de existir contrato de arrendamento escrito, desde a entrada em vigor da nova redacção do artigo 1069.º do Código Civil, introduzida pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, sob pena de não ser possível instaurar acção de despejo, então serão residuais e, por isso, desprezíveis, os casos em que surgirão arrendatários a invocar a «inexistência de um contrato de arrendamento válido» acompanhada de recusa de entrega do local ocupado, ou de «não se­rem au­tor e/ou réu os verdadeiros locador e/ou locatário», ou algum dissídio quanto ao montante da renda ou da sua imediata exigibilidade» [7], ou, ainda, «invocação de diverso título para justificar a ocupação do local», hipóteses estas mencionadas no citado acórdão do Tribunal Constitucional.
Afigura-se, por conseguinte, que no contexto da actual ordem jurídica, devido à exigência de contrato escrito, sob pena de não existir arrendamento válido, embora existindo uma limitação dos direitos de defesa do arrendatário, tal limitação é socialmente justificada, não ofendendo por isso, salvo melhor entendimento, os preceitos exarados no artigo 20.º (Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva) da Constituição.
Cumpre, pelo exposto, julgar o recurso improcedente
IV. Decisão.
Pelo exposto julga-se o recurso improcedente. Custas pelos recorrentes.
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Porto, 19 de Maio de 2014.
Alberto Ruço
Correia Pinto
Ana Paula Amorim
______________
[1] Ver Alberto dos Reis. Depósito das Rendas, em R.L.J. ano 78 (1945), pág. 51-52.
[2] Como referiu Alberto dos Reis, «E esta nova acção segue trâmites muito simples e expeditos: tudo se limita à petição do senhorio, à audiência do arrendatário e à decisão» - ob. cit., pág. 52.
[3] Ac. do STJ de 09-10-2007, no processo 07A2681 (Mário Cruz), «I. O incidente da acção de despejo imediato por falta de pagamento de rendas na pendência da acção (previsto no art. 58.º do RAU) admite apenas como forma de oposição relevante a prova do pagamento das rendas ou o seu depósito, nos termos gerais previstos no RAU.
II. A não oposição ao incidente acarreta a confissão dos factos aí enunciados (art. 303.º n.ºs 1 e 3 do CC), pelo que, se não for provado o pagamento das rendas vencidas ou efectuado o seu depósito nos termos exoneratórios, o despejo imediato será decretado.
III. Enquanto não houver decisão a respeito da verificação da existência defeitos da coisa locada que não tenham sido previstas ou salvaguardadas no contrato e que possam legitimar a redução de renda, o único meio ao dispor do arrendatário para evitar o despejo por falta de pagamento de rendas no decurso da acção é o do pagamento ou depósito nos termos previstos no art. 58.º do RAU.
Bem como o acórdão do STJ de 05-12-2006, no processo 06A2299 (João Camilo), com factualidade próxima da constante dos presentes autos, «I. O incidente da acção de despejo previsto no art. 58º do RAU, de despejo imediato por falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da acção apenas admite como oposição relevante a prova do pagamento ou do depósito das rendas em falta.
II. Não releva para tal a alegação por parte do inquilino de excepção de incumprimento por parte do senhorio ou o direito de retenção do locado para garantir direito a indemnização por benfeitorias realizadas naquele».
No mesmo sentido ver ainda o acórdão do STJ de 15-12-2005, no processo 05B3974 (Salvador da Costa), todos em www.dgsi.pt.
[4] Publicado no Diário da República, II Série, n.º 25, de 3 de Fevereiro de 2006, pág. 1626.
[5] Idem, pág. 1632.
[6] Se o Autor não juntar o contrato de arrendamento a acção não será de despejo, mas eventualmente de reivindicação, na qual, claro está, já não se coloca qualquer hipótese de despejo imediato.
[7] Para efeitos de despejo imediato sempre terá de se atender à renda fixada no contrato exibido nos autos.