Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2486/17.5T8PNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MÁRIO FERNANDES
Descritores: ACÇÃO DE REGRESSO
ÁLCOOL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
Nº do Documento: RP202001092486/17.5T8PNF.P1
Data do Acordão: 01/09/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Aquando do exercício do direito de regresso pela seguradora na hipótese contemplada na al. c) do n.º1 do art.º 27.º do DL 291/07, de 21.08, esta está dispensada de demonstrar um concreto nexo causal entre a falta cometida pelo condutor alcoolizado no exercício da condução que veio a ocasionar o acidente e o estado de alcoolemia em que aquele se encontrava.
II – O regime normativo pretendeu fixar uma presunção legal “juris tantum”, assente nas regras máximas da experiência.
III – Pelo que está facultado ao condutor na persecução de afastar a sua responsabilidade em via de regresso, alegar e provar que a situação de alcoolemia não lhe ser imputável ou que não ocorreu qualquer nexo causal efectivo entre essa situação e a eclosão do acidente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 2486/17-18 3.ª RP
Relator: Mário Fernandes (1760)
Adjuntos: Amaral Ferreira
Deolinda Varão.

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO.

B… - S.A.”, com sede na Avenida …, n.º …, Lisboa,

veio intentar acção sob a forma comum contra

C…, residente na Rua …, n.º …, Felgueiras,

pedindo a condenação deste último a pagar-lhe a quantia de 164.462,26 €, acrescida de juros de mora vencidos no montante de 18.563,96 €, bem assim dos vincendos até integral liquidação daquele primeiro quantitativo.

Para o efeito e em síntese aduziu a Seguradora/autora ter ocorrido a 8.3.2008, em Felgueiras, um acidente de viação em que foram intervenientes duas viaturas automóveis, uma delas conduzida pelo Réu e segura na demandante, sendo que o embate entre esses veículos se ficou a dever à conduta estradal daquele último, como foi reconhecido no processo instaurado por aqueloutro interveniente contra a demandante, onde o Réu foi chamado pela aqui seguradora para intervir, por o mesmo circular no momento do acidente sob a influência do álcool;
mais adiantou que, por força do definitivamente decidido naqueloutro processo e em obediência à condenação de que foi alvo, suportou o pagamento do montante global de 164.462,26 €, cujo reembolso lhe é devido pelo Réu, atenta a circunstância do acidente se ter ficado a dever à conduta estradal do Réu, seu segurado, o qual conduzia sob influência do álcool, circunstância esta que, aliás, contribuiu para a ocorrência do embate entre as referidas viaturas.

Citado o Réu para os termos da acção, apresentou contestação em que, entre o mais, impugnou parte da alegação inicial, nomeadamente que a manobra a si imputada como causa imediata do ocorrido embate se tivesse ficado a dever à circunstância de nessa altura conduzir sob a influência do álcool, a tudo acrescendo, na base deste último pressuposto, não assistir o direito de regresso invocado pela Autora, dado ser exigível a verificação de nexo causal entre a dita ocorrência (o acidente) e a condução sob a influência do álcool.

Findos os articulados efectivou-se audiência prévia, aí se proferindo despacho saneador tabelar, fixado o objecto do litígio e enunciado os temas de prova a serem submetidos a julgamento.

Concretizada a audiência de julgamento, seguiu-se sentença a julgar a acção procedente, com a consequente condenação do Réu nos termos inicialmente peticionados.

Inconformado, interpôs o Réu recurso de apelação, tendo apresentado alegações em que concluiu nos termos que se passam a transcrever:
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- Termos em que V.ªs Exas., concedendo provimento ao presente e alterando a doutra decisão recorrida nos termos pugnados nas presentes alegações, farão a acostumada Justiça.

Contra-alegou a Autora, pugnando pela manutenção do julgado, mais procedendo à ampliação do âmbito do recurso nos termos do art. 636, n.º 1, do CPC, ao defender, contrariando o nesse aspecto explanado no sentenciado, dever operar o direito de regresso nos autos excedido, independentemente da verificação de nexo causa entre a condução sob a influência do álcool e a ocorrência do sinistro.

Corridos os vistos legais, cumpre tomar conhecimento do mérito do recurso, sendo que a instância se mantém válida.

II. FUNDAMENTAÇÃO.

1 - A Autora, anteriormente denominada “Companhia de Seguros D…, S.A.”, incorporou, por fusão, as sociedades “E…, S.A.” (NIPC ………), “F…, S.A.” (NIPC ………) e “G…, Companhia de Seguros, S.A.” (NIPC ………), passando, na sequência da mencionada incorporação, a denominar-se “B…, S.A.”;

2 - A Autora é uma sociedade comercial que tem por objecto a actividade seguradora;

3 - A Autora celebrou um contrato de seguro do ramo automóvel, titulado pela apólice n.º ..-………., com o Réu, mediante o qual garantiu a responsabilidade civil inerente à circulação do veículo ligeiro de passageiros com a matrícula “..-CO-..”, em vigor à data do sinistro;

4 - No dia 8.3.2008, pelas 7 horas, ocorreu um embate na Rua …, Felgueiras, no qual foram intervenientes o veículo de mercadorias de matrícula “..-..-EO”, conduzido por H…, seu proprietário, e o veículo de matrícula “..-CO-..”, conduzido pelo Réu;

5 - Na sequência do sinistro, em 11.07.2008, o referido H…, condutor do veículo “EO”, requereu contra a ora Autora o decretamento de providência cautelar de arbitramento de reparação provisória, a qual correu os seus termos no 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Felgueiras, sob o n.º 1694/08.4TBFLG;

6 - Por via de tal providência cautelar, o mencionado condutor do veículo “EO”, então Requerente, peticionou o arbitramento da quantia mensal de 1.850 €, para reparação provisória do dano sofrido;

7 - Por sentença proferida em 10.10.2008, foi a providência requerida julgada parcialmente procedente e, consequentemente, a Autora, então Requerida, condenada a pagar ao condutor do veículo “EO”, a quantia mensal de 650 €;

8 - Em 7.11.2008, o condutor do veículo “EO” intentou acção declarativa de condenação contra a aqui Autora, a qual correu os seus termos no 1.º Juízo do então Tribunal Judicial de Felgueiras, sob o n.º 2700/08.8TBFLG, peticionando a condenação desta, então Ré, na quantia total de 121.939,96 €, discriminada da seguinte forma:

. 11.125 €, correspondente ao “… prejuízo decorrente dos rendimentos que deixou de auferir durante o período em que esteve sem poder trabalhar (diferença entre 57.000 € que deixou de ganhar e 45.875 € que recebeu da Ré em cumprimento do determinado nos autos de procedimento cautelar apensos)”;

. 50.541,30 €, “… a título de perda da capacidade de ganho futuro, decorrente da IPP de 10% de que ficou a padecer em consequência do acidente”;

. 1.750 €, correspondente ao “… valor do veículo que conduzia, destruído no acidente”;

. 613,02€, “… a título de gastos médicos, meios de diagnóstico e transportes”;

. 32.910,64 €, correspondentes aos “… prejuízos resultantes do incumprimento, por força das lesões que sobrevieram ao acidente, dos compromissos que tinha na sua actividade comercial”;

. 25.000 €, a título de danos não patrimoniais;

9 - Citada para o efeito, a ora Autora, então Ré, apresentou a respectiva contestação, tendo suscitado o incidente de intervenção provocada de C…, aqui Réu e condutor do veículo segurado, o qual, apesar de regularmente citado, não contestou a acção;

10 - Em 15.6.2012 foi proferida sentença que julgou o pedido formulado pelo então Autor e condutor do veículo “EO”, H…, parcialmente procedente, condenando a ora Autora, Ré em tais autos, no pagamento da quantia total de 86.721,74 €, acrescida de juros de mora contados à taxa legal, vencidos e vincendos, sobre a quantia de 71.721,74 €, desde a data da citação, e vincendos sobre a quantia de 15.000 €, desde a data da prolação da mesma, em ambos os casos até efectivo e integral pagamento;

11 - Inconformada com a decisão condenatória proferida no âmbito da acção principal, a ora Autora, então Ré, dela interpôs recurso para o TRG, sendo que, por acórdão datado de 31.1.2013, já transitado em julgado, foi negado provimento ao sobredito recurso, tendo sido confirmada a sentença recorrida;

12 - Resultou provado na aludida sentença que:

«1.º - No dia 8 de Março de 2008, pelas 7 h, ocorreu um acidente de viação na Rua …, Felgueiras, no qual foram intervenientes o veículo de mercadorias de matrícula ‘..-..-EO’, conduzido pelo seu proprietário, o Autor, e o veículo de matrícula ‘..-CO-..’, conduzido pelo seu proprietário, C…;

2.º - O veículo de mercadorias de matrícula ‘..-01-..’ circulava pela referida rua no sentido … - …, pela metade direita da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha;

3.º - O veículo de matrícula ‘..-CO-..’ circulava no sentido … - …, a uma velocidade superior a 60 Km/hora;

4.º - O condutor do veículo ‘..-CO-..’, ao descrever uma curva para a sua direita, invadiu a metade esquerda da faixa de rodagem por onde circulava o veículo de mercadorias de matrícula ‘..-..-EO’;

5.º - O veículo de matrícula ‘..-CO-..’ embateu com a sua parte da frente do lado esquerdo na parte da frente esquerda e lateral esquerda, sobre a roda da frente, do veículo de mercadorias de matrícula ‘..-..-EO’;

6.º - Projectando este para fora da estrada e de encontro ao muro aí existente»;

13 - Ficou ainda provado que, no momento em que ocorreu o acidente em análise, o condutor do veículo segurado na Autora, ora Réu, conduzia com uma taxa de álcool no sangue (TAS) de 0,94 g/l;

14 - A quantidade de álcool que o Réu tinha no sangue diminuiu a capacidade de concentração e coordenação do Réu, provocou a perda de vigilância em relação ao meio envolvente e perturbou as suas capacidades perceptivas;

15 - Em face disso, o Réu não conseguiu ter os reflexos necessários para manobrar o veículo dentro da via em que se encontrava a circular, invadindo, sem que a isso fosse obrigado, a faixa de rodagem contrária, o que foi a causa do embate no “EO”;

16 - Resultou também provado no aludido processo que:

«7.º - Em consequência do embate, o veículo de mercadorias de matrícula “..-..-EO” ficou totalmente destruído e sua reparação não é economicamente viável;

8.º - Em consequência do acidente, o demandante sofreu: traumatismo crânio-encefálico, com hemorragia sub-dural tentorial cerebelosa direita, perda do conhecimento e amnésia para o sucedido; traumatismo do membro inferior esquerdo, com fractura cominutiva da diáfise proximal do fémur e contusão do joelho;

9.º - Do local do acidente, o Autor foi transportado para o “S.U. do Centro Hospitalar ..., E.P.E. - Penafiel”, onde foi submetido a estudo radiológico e a TAC cerebral;

10.º - À entrada no “S.U.”, o Autor apresentava: Glasgow 15/15; discurso repetitivo; ligeira desorientação espacial;

11.º - Posteriormente, o Autor foi transferido para o “S.U. do Hospital I… - Braga”, para avaliação por Neurocirurgia, uma vez que apresentava hemorragia subaracnoideia, após o que foi transferido para o “S.U. do Centro Hospitalar J… – Guimarães” para tratamento em Ortopedia, mantendo vigilância relativamente ao traumatismo crânioencefálico;

12.º - No “Centro Hospitalar J…”, o Autor veio a ser submetido a uma intervenção cirúrgica, por Ortopedia, ao membro inferior esquerdo, para redução da fractura do fémur, seguido de osteossíntese com encavilhamento endomedular com vareta metálica;

13.º - Durante o internamento, o Autor sofreu uma infecção respiratória que foi tratada em conformidade, com evolução favorável;

14.º - No dia 20.3.2008, o Autor teve alta hospitalar, recolhendo a sua casa, onde se manteve em repouso cerca de dois meses;

15.º - Passou depois a ser seguido na consulta externa de ortopedia naquele “Centro Hospitalar J…”, onde se manteve até ao dia 9.10.2008;

16.º - No dia 23.10.2008, o Autor foi recuperado na “K…” para extracção do parafuso metálico, a cargo da demandada;

17.º - Posteriormente, o Autor passou a ser assistido nos Serviços Clínicos a cargo da demandada, na “L…”;

18.º - Tendo, entretanto, realizado tratamento fisiátrico na “M…” (…), durante 30 sessões;

19.º - Em 20.10.2008, o Autor foi submetido a uma intervenção cirúrgica de dinamização do encavilhamento do fémur esquerdo por atraso na consolidação;

20.º - Depois das intervenções cirúrgicas a que foi submetido, o Autor deslocou-se, durante algum tempo, com o auxílio de canadianas;

21.º - No dia 7.4.2009, o Autor foi internado no “Hospital N…”, por apresentar pseudartrose do fémur esquerdo;

22.º - Foi-lhe retirado o anterior material de osteossíntese e introduzida, por cirurgia, nova vareta aparafusada;

23.º - Permaneceu ali internado durante 8 dias, após o que teve alta hospitalar, recolhendo a sua casa, onde se manteve em repouso durante um mês;

24.º - Efectuou novo ciclo de tratamento fisiátrico na “M…”;

25.º - No dia 6.7.2010, o Autor foi submetido, pela quarta vez, a uma intervenção cirúrgica para extracção do material de osteossíntese, apresentando-se a fractura do fémur esquerdo consolidada;

26.º - O Autor teve alta no dia 7.7.2010, recolhendo a sua casa, onde se manteve em repouso durante cerca de duas semanas;

27.º - No dia 3.9.2010, o Autor teve alta definitiva dos serviços clínicos a cargo da demandada, na “L…”;

28.º - Apesar dos tratamentos a que se submeteu, o demandante ficou a padecer definitivamente:

1. Traumatismo do membro inferior esquerdo com:
a/ consolidação do fémur esquerdo em posição viciosa, com rotação externa do membro superior a 10°;
b/ encurtamento do membro inferior esquerdo de 13 mm;
c/ joelho doloroso ao nível do compartimento interno, com aparente lesão osteocondral do prato tibial interno;

2. sequelas do foro psiquiátrico, compatíveis com o quadro de perturbação de stress pós-traumático, caracterizado por:
a/ ansiedade e revolta pelo sucedido, pelo tratamento prolongado e as várias cirurgias a que foi submetido;
b/ irritabilidade exacerbada;
c/ perturbações do sono, com dificuldade em adormecer, e dormindo por curtos períodos;
d/ dismnesia, mantendo amnesia para o sucedido;
e/ condutas de evitamento e medos e receios exagerados e desproporcionados com a causa;

29.º - As sequelas referidas na anterior alínea determinaram ao Autor:
. uma incapacidade temporária profissional total de 545 dias;
. uma incapacidade parcial permanente para o trabalho de 10 pontos;
. um “quantum doloris” de grau 5, numa escala de 1 a 7;
. um grau estético de grau 2, numa escala de 1 a 7;

30.º - As referidas sequelas de que o demandante ficou a padecer definitivamente, em termos de rebate profissional, permitem-lhe continuar a exercer a sua actividade profissional, mas com esforços acrescidos;

31.º - Por causa das lesões sofridas e dos tratamentos a que se teve de submeter, o Autor esteve sem poder trabalhar até ao dia 3.9.2010;

32.º - À data do acidente, o Autor exercia a profissão de padeiro/pasteleiro por conta própria, auferindo um rendimento mensal não inferior a 1.900 €, doze meses por ano;

33.º - Com o seu rendimento mensal, referido na anterior resposta, o Autor liquidava:

. a prestação mensal do trespasse da pastelaria/padaria que explora, no valor mensal de 500 €;
. a prestação mensal do crédito bancário que contraiu para aquisição de casa própria, no valor de 540,99 €;
. a renda mensal da sua loja, no valor de 588,99 €
e
. a sua alimentação e do seu agregado familiar, água, luz, gás, despesas domésticas e pessoais, de valor mensal não inferior a 46,00 €;

34.º - Desde a data do acidente que o Autor nunca mais exerceu a sua profissão;

35.º - O Autor vai continuar a precisar de cuidados médicos e medicamentosos, de realizar exames médicos, de efectuar tratamentos de fisioterapia, de pagar taxas moderadoras e de utilizar os meios de transporte para receber esses tratamentos;

36.º - As lesões sofridas provocaram ao Autor dores físicas intensas, tanto no momento do acidente, como no decurso do tratamento;

37.º - As sequelas de que ficou a padecer definitivamente causam ao Autor incómodo e mal-estar;

38.º - O Autor era dinâmico, trabalhador, fisicamente bem constituído e saudável;

39.º - As intervenções cirúrgicas a que o Autor foi submetido, os tempos de internamento e os tratamentos a que se sujeitou causaram ao Autor desgosto e ansiedade;

40.º - O Autor acabou por ser despejado por não conseguir suportar as despesas mensais fixas relativas ao trespasse e a renda do seu estabelecimento;

41.º - A título das despesas referidas no número anterior, encontra-se em dívida pelo Autor o montante de 32.910,64 €;

42.º - Devido às lesões sofridas com o acidente, o Autor gastou:

. 213 € em meios de diagnóstico;
. 100,74 € em transportes para receber tratamentos;

46.º - Por decisão proferida na providência cautelar apensa, já transitada em julgado, a Ré foi condenada a pagar ao Autor a prestação alimentícia no montante mensal de 650 €;

47.º - O Autor recebeu da demandada, por força dos autos de procedimento cautelar apensos, a quantia de 45.875 € até ao mês de Novembro de 2011, a título de perdas salariais»;

17 - Em cumprimento da obrigação de reparar os danos resultantes do sinistro em apreço, a Autora despendeu a quantia global de 164.462,26 €, pelos valores, nas datas e às entidades/pessoas que vêm indicados no artigo 31.º da p.i. (assim enunciado por brevidade de exposição);

18 - A Autora interpelou o Réu para pagamento da quantia global de 164.462,26 € por carta, no dia 6.11.2014;

19 - O Réu foi sócio-gerente da sociedade comercial unipessoal por quotas “O…, Ld.ª”;

20 - No dia do acidente, o Réu esteve no “O1…”, explorado pela sociedade “O… - Unipessoal, Ld.ª”, onde, pelo menos no início da noite, ingeriu bebidas alcoólicas.

Por sua vez, foi dado como não apurada a seguinte realidade:

A/ A execução da manobra pelo Réu deveu-se ao facto de, no momento que precedeu à ocorrência do acidente, o Réu estar a sintonizar o rádio do seu veículo automóvel, da marca “Mercedes …”, atendendo à curva muito acentuada e a faixa de rodagem estreita, por segundos perdeu o controlo da viatura, acabando, assim, por embater no “..-..-EO”;

B/ O Réu estava em condições de efectuar uma condução com segurança.

Em face do concluído pelo apelante/réu, bem assim da contra-alegação produzida pela Autora (ampliação do âmbito do recurso), as questões a solucionar nesta sede podem resumir-se ao seguinte:

. Erro de julgamento quanto a dois Pontos da decisão da matéria de facto (factos provados e não provados);

. Verificação dos pressupostos de que depende o reconhecimento do direito de regresso exercido na acção pela seguradora/autora.

No âmbito da primeira problemática pretende o recorrente/réu seja afastada do elenco dos factos provados os Pontos 14/ e 15/ supra, devendo antes dar-se como apurada a realidade constante das als. A/ e B/ atrás referidas.

Contextualizando a pretensão do recorrente, visa este demonstrar que o facto de conduzir a sua viatura sob a influência do álcool, no momento do acidente relatado nos autos, não contribuiu, como causa imediata ou mediata, para a prática da manobra de invasão da faixa de rodagem destinada à circulação do outro veículo, onde ocorreu o embate entre ambas as viaturas, assim colocando em causa o que, em sentido oposto, decorre do vertido nos Pontos 14/ e 15/ dos factos provados.

Por outro lado, devia dar-se como apurado que aquela manobra de invasão da faixa contrária se ficou a dever ao facto de, imediatamente antes, o recorrente se encontrar a sintonizar o rádio da sua viatura, quando descrevia uma curva acentuada em local da via com faixa estreita, tendo perdido por segundos o controlo daquela viatura, mas, apesar disso, dispondo de condições para efectuar uma condução com segurança (matéria aludida nas ditas als. A/ e B/ supra).

Visa, pois, o recorrente afastar a materialidade sustentadora da verificação de um nexo de causalidade entre a falha cometida pelo condutor/réu alcoolizado, que despoletou o acidente, e a sua condução com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, tudo na defesa da tese de que o exercício do direito de regresso previsto no art. 27, n.º 1, al. c/, do DL n.º 291/07, de 21.8 (seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel - LSO) depende da verificação desse nexo causal – tese igualmente seguida na sentença impugnada, apesar de vir demonstrado que o aludido embate se ficou a dever a actuação culposa do recorrente e que o mesmo conduzia a sua viatura com taxa de alcoolemia superior à admitida, algo que o mesmo não coloca em causa em sede do seu recurso de apelação.

Independentemente da posição de que se parta quanto aos requisitos exigíveis para o reconhecimento do direito de regresso na acção exercido – necessidade ou não, entre o mais, da verificação do falado nexo causal – não deixaremos de tomar posição quanto à justeza da alteração pretendida aos Pontos de facto acima enunciados, isto no pressuposto de que, no âmbito da falada problemática, se nos afigura plausível defender-se que ao condutor interveniente em acidente que dirija veículo com a dita taxa de alcoolemia é facultado ilidir a presunção legal (presunção “juris tantum”) de que a falha por si cometida, a consubstanciar responsabilidade subjectiva na ocorrência (acidente), não se ficou a dever à taxa de alcoolemia verificada objectivamente (trata-se de posição que, não sendo unânime na jurisprudência, nomeadamente do STJ, a ela nos referiremos adiante, caso necessário).

Feito este breve enquadramento, analisemos a pertinência do objectado pelo recorrente à decisão da matéria de facto, no que respeita aos assinalados Pontos.

Fazendo uma síntese do aduzido nesse âmbito pelo impugnante, defende o mesmo que os elementos probatórios convocados pelo tribunal “a quo” – nomeadamente o depoimento prestado pela testemunha P…, arrolada pela Autora – evidenciam-se insuficientes para consolidar a questionada factualidade dada como apurada, desde logo por daquele depoimento apenas se poder extrair uma referência genérica quanto à influência que o álcool causa no comportamento humano, designadamente a sua repercussão em quem conduz veículos automóveis, mas sem que daí seja legítimo constatar que esses índices genéricos sejam aplicáveis à pessoa do Réu, que o depoente, como reconheceu, não conhecia, assim desconhecendo o tipo de reação manifestada pelo condutor/réu, quando portador de alcoolemia no sangue, com taxa superior à permitida legalmente.

Já, por sua vez, e do conjunto dos depoimentos prestados pelas testemunhas Q…, S…, T… e U… decorreria o relato de circunstancialismo a permitir a constatação que a dita manobra levada a cabo pelo recorrente e que despoletou o embate entre as viaturas nada teve a ver com a taxa de alcoolemia de que era portador, como sejam as referências feitas quanto a comportamentos do impugnante antes e após o acidente, tendo um discurso normal, contactado alguns desses depoentes por telemóvel, dando notícia do sucedido e que se encontrava no hospital, mas sem lesões graves, ter realizado com normalidade o trabalho que exercia antes de ocorrer o acidente, demonstrando no fundo uma actuação incompatível com a apresentada por pessoa alcoolizada.

O próprio recorrente nas declarações que prestou em sede de audiência de julgamento esclareceu que havia bebido apenas um “copo” ao jantar e tomado um digestivo, nada mais tendo ingerido de álcool ao longo da noite que antecedeu o acidente, tenho desempenhado com normalidade todas as tarefas inerentes à gerência do “Bar” onde passou nessa noite, sendo que o choque da sua viatura com aqueloutra interveniente no acidente, com invasão da faixa de rodagem a este última destinada, se ficou a dever ao facto de ter momentaneamente perdido o controlo do seu veículo quando “mexia” no rádio do mesmo, para “baixar o volume do som”.

Contraria, assim, o impugnante o expendido pelo tribunal “a quo”, ao motivar a decisão tomada quanto aos Pontos e alíneas pelo recorrente convocados, sendo oportuno destacar o que de mais significativo nesse aspecto foi adiantado, a saber:

«… Em declarações de parte, o Réu admitiu ter estado a beber bebidas alcoólicas antes da condução (como o referiram outras testemunhas, daí também o facto provado sob o n.º 20), tentando fazer crer ao tribunal que estaria em condições para conduzir e que também fez ‘o fecho da caixa’ nesse dia.

Contudo, considerando o teor de álcool no sangue que lhe foi encontrado, não há dúvidas que a sua condução foi afectada por tal estado de alcoolemia (0,94 g/l no sangue), o que acontece ainda que a pessoa (e as pessoas à sua volta) possa pensar que está em condições para conduzir (acresce que àquela hora da manhã, depois de ter estado a beber, antes de tomar o pequeno almoço e sem dormir, seria fácil a afectação pelo teor de álcool no sangue que lhe foi encontrado).

Por outro lado, também não conseguiu convencer o tribunal, e não existe qualquer prova quanto a isso, que se estaria a desviar de uma tampa de saneamento e que estaria apenas distraído a sintonizar o rádio, o que teria causado o acidente.

Concluiu-se antes que, não fora o estado de alcoolemia, o Réu não teria invadido a faixa de rodagem contrária (até porque aquela já era uma estrada conhecida do Réu) e embatido no veículo “EO”.

Além da prova testemunhal idónea para prova dessa matéria (álcool e seus efeitos na condução) … também são conhecidos os estudos sobre a matéria, nomeadamente um efectuado pela “Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária”, onde se conclui desde logo que com uma taxa de álcool no sangue semelhante à dos autos, tal implica, designadamente, uma “audácia incontrolada, a perda de vigilância em relação ao meio envolvente, uma perturbação das capacidades sensoriais, particularmente as visuais e uma perturbação das capacidades perceptivas – que inclui o aumento do tempo de reacção, lentidão de resposta reflexa e diminuição da resistência à fadiga” …».

E, invocando a prova testemunhal produzida, no que respeita à influência do álcool na condução, destacou-se o seguinte:

«… A testemunha P…, médico de cirurgia geral, serviu para o tribunal formar a sua convicção, nomeadamente em relação aos factos 14/ e 15/ dados como provados, pois relatou os efeitos do álcool na condução, mormente daquela taxa de álcool encontrada ao sinistrado, referindo que está provado cientificamente que tal taxa de álcool no sangue condiciona e inibe a condução adequada, que leva a perda de vigilância, fadiga, alongar das distâncias de travagem, havendo grande dificuldade de concentração e captação do exterior, euforia de atitude e diminuição de acção e de capacidade de resposta.

Perante estas conclusões científicas só podemos afirmar que tais reacções produziram-se no organismo do Réu, sendo a causa do acidente, sob pena de “deitarmos por terra” as avaliações científicas realizadas durante anos e que fazem a ligação inequívoca de uma taxa de álcool a determinado comportamento humano.

E, não se tendo provado em concreto que a reacção do Réu se ficou a dever a outra causa, resulta claro, pelas circunstâncias factuais do acidente em si, pelas regras da experiência comum e pelas evidências científicas, que tal só aconteceu devido ao teor elevado de álcool no sangue que o Réu possuía, de 0,94 g/l no sangue (muito superior ao mínimo legal de 0,5 g/l, sendo certo que actualmente existem estudos em curso para a diminuição deste mínimo legal, pois entende-se que pelo menos com 0,3 g/l de álcool no sangue já existem efeitos nocivos pra a condução).

A testemunha não teve dúvidas em responder afirmativamente à questão sobre se a taxa de álcool em causa teve influência no acidente, referindo que, em “qualquer cidadão com essa taxa, o risco de ter alterações sensoriais é grande, estaria afectado na sua condução”, pelo que o tribunal não teve dúvidas em concluir que também para o Réu a referida taxa de álcool foi causadora dos efeitos nocivos supra citados em relação à condução e foi causal do sinistro dos autos …».

Tendo-se procedido à audição de todos os depoimentos, cremos ser criteriosa e assertiva a análise crítica avançada pelo tribunal “a quo”, por forma a confirmar a realidade vertida nos questionados Pontos 14/ e 15/ supra, afastando o que sentido oposto consta das faladas als. A/ e B/ dadas como não apuradas.

Com efeito, tendo como referência os depoimentos prestados pelas testemunhas V…, Q…, S…, T… e U…, as quais não presenciaram realidade atinente à dinâmica do acidente, limitaram-se, no essencial e como acima se deixou sumariamente referido, a mencionar que o apelante/réu aparentava, quer antes, quer após a dita ocorrência, ter um comportamento normal, sem revelar sinais de quem tivesse ingerido álcool em excesso.

Assim, a testemunha V… apenas referiu ter estado até cerca das 3 horas no “Bar” mencionado nos Pontos 19/ e 20/ supra, gerido pelo Réu e onde este também se encontrava, aí tendo bebido “um copo” com o mesmo (o réu), vindo a saber do acidente cerca das 10 horas, altura em que o Réu lhe comunicou por telefone o sucedido, mas sem lhe ter revelado pormenores quanto a essa ocorrência.

O depoente Q…, tendo estado no dito “Bar”, mencionou ter-se deslocado ao Hospital W…, onde o Réu foi assistido após o acidente, com queixas dum pé, não tendo revelado qualquer pormenor quanto ao sucedido, referindo apenas que o Réu, no breve período que esteve com ele (cerca de 10 a 15 m), manteve um discurso coerente.

A testemunha S…, referindo ter estado a trabalhar no aludido “Bar” até cerca da 6 h, aludiu ter sido o Réu a telefonar-lhe do hospital J…., para onde foi transferido para receber cuidados médicos, aí se tendo deslocado no intuito de ir “buscá-lo”, aparentando estar o Réu com um discurso “normal” e “coerente”, apenas revelando preocupação com o sucedido.

O depoente T… referiu, do que se recordava, ter-se deslocado ao local do acidente como bombeiro/socorrista, tendo reparado que o Réu estava “preocupado” com o acidente e a telefonar, nada mais relatando de significativo quanto a circunstâncias relacionadas com a ocorrência.

Por sua vez, a testemunha U…, irmã do Réu, mencionou que havia estado na dita noite a ajudar o seu irmão na prestação de serviços no falado “Bar”, o que fazia ocasionalmente, que ele “estava bem”, aparentando não ter ingerido bebidas alcoólicas, tanto mais que era ele que ao fim da noite de trabalho fazia o “caixa”, algo que, tanto quanto se recordava, sucedeu naquela noite e, após o fecho o estabelecimento, foi levá-la a casa, só depois tendo ocorrido o acidente, do qual teve conhecimento por um telefonema feito pelo seu irmão.

Sendo este o sentido dos depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas pelo Réu, necessário será constatar a sua reduzida valia em ordem a demonstrar, desde logo, a tese factual defendida pelo Réu quanto à realidade dada como não provada – invocada distração momentânea por parte do Réu na condução do seu veículo, a originar a invasão da faixa contrária destinada ao outro condutor, bem assim a circunstância, aliás conclusiva, de que estava em condições de efetuar condução com segurança – ficando antes de pé, por forma a confirmar-se aqueloutra realidade dada como apurada (Pontos 14/ e 15/), a valia do depoimento prestado pela testemunha P…, em conjugação com o estado do conhecimento quanto aos efeitos decorrentes da condução sob a influência do álcool, tudo isto tendo em conta os termos em que ocorreu o assinalado acidente, cuja responsabilidade subjectiva é de atribuir ao Réu, sem que isso venha nos autos questionado.

Ora, sendo de acolher os esclarecimentos prestados pelo referido médico no aspecto em último referido (dita influência do álcool), nos termos reflectidos na motivação acima transcrita e que, por brevidade, nos dispensamos aqui de repetir, a que acresce o facto de a taxa de alcoolemia com que o Réu conduzia, de valor com algum significado (0,94 g/l), potenciar reflexos mais lentos e, entre o mais, uma capacidade de coordenação psicomotora defeituosa, sem esquecer que a manobra por parte do Réu, originadora do embate entre viaturas, ocorreu quando aquele descrevia uma curva à direita, atento o seu sentido de marcha, legítimo se nos afigura formular um juízo de prognose conducente a atribuir à condução sob a influência do álcool praticada pelo apelante/réu a causa efectiva para a prática daquela manobra e, consequentemente, do descrito acidente.

Por via de tudo quanto se acaba de expender fica sem sustentáculo a censura que o recorrente aponta à decisão a matéria de facto, devendo a mesma manter-se nos moldes fixados pelo tribunal “a quo”.

Será na base factual acima elencada que deve ser apreciada a segunda problemática trazida a esta instância para apreciação, a contender no essencial com a verificação dos requisitos para ser reconhecido o direito de regresso numa situação de condutor causador de acidente, a dirigir o seu veículo com uma taxa de alcoolémia superior à permitida, com maior incidência importando saber se o reconhecimento desse direito tem como pressuposto a demonstração por parte do peticionante (a seguradora) da comprovação do nexo de causalidade entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.
Em causa está, pois, o condicionalismo em que é possível o exercício do direito de regresso pela seguradora, na hipótese contemplada na al. c/, do n.º 1, do art. 27, do DL n.º 291/07, de 21.8 (SORCA).

Na senda da posição que se apresenta maioritária na jurisprudência do STJ, tendo por base a apontada legislação, cremos que a seguradora está dispensada de demonstrar um concreto nexo causal entre o erro ou falta cometida pelo condutor alcoolizado no exercício da condução, que veio a ocasionar o acidente, e o estado de alcoolemia em que aquele conduzia – v., a propósito, os acs. do STJ de 28.11.2013, de 9.1.0.2014, de 7.2.2017, de 6.4.2017, 7.3.2019 e de 9.4.2019, todos disponíveis na base de dados do MJ.

Ainda assim e no seguimento da posição assumida no citado ac. do STJ de 6.4.2017, cremos que o falado regime normativo visou estabelecer uma presunção legal (juris tantum), assente nas regras ou máximas da experiência, segundo a qual o concreto erro ou falta cometidos pelo condutor alcoolizado, a consubstanciar a responsabilidade subjectiva por facto ilício ao mesmo imputável, se ficou a dever causalmente à taxa de alcoolemia de que era portador.

O alcance assim atribuído ao citado normativo permite sustentar que facultado está ao condutor, na persecução de afastar a sua responsabilidade em via de regresso, alegar e provar que a situação de alcoolemia não lhe é imputável ou que não ocorreu qualquer nexo causal efectivo entre essa situação e a eclosão do acidente – v. ainda neste sentido, M. Miranda Barbosa, in CPP, n.º 50, págs. 43 a 45, o que afasta a posição de se estar perante uma presunção “juris et de jure”, que parece transparecer naqueloutros acs. do STJ acima referidos, com excepção do dito ac. de 6.4.2017.

De toda a forma, seja qual for o exacto alcance que deva dar-se ao aludido preceito legal, a regular o exercício o questionado direito de regresso pela seguradora, a verdade é que, no caso em apreço, esse nexo causal vem dado como apurado, como transparece do vertido nos analisados Pontos de facto 14/ e 15/ supra, sendo que o circunstancialismo oposto e com a eventual potencialidade de ilidir a falada presunção não obteve comprovação (o reclamado nas faldas als. A/ e B/ supra enunciadas).

Tendo por base estes considerandos, constata-se, no caso, estarem reunidos os pressupostos para reconhecer o direito de regresso exercido pela seguradora/autora, ou seja, imputabilidade do acidente, a título de culpa, ao Réu, condutor com taxa de alcoolemia superior à permitida, acidente esse gerador de danos que foram ressarcidos pela Autora, sendo os mesmos (os danos) decorrentes, em termos de causalidade adequada, do comportamento culposo por parte do apelante/réu, o que deixa sem sustento a tese do recorrente de ver denegado aquele direito na acção exercido.

III. CONCLUSÃO.

Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, nessa medida se confirmando a condenação de que foi alvo o Réu no sentenciado.

Sem custas, dado o recorrente beneficiar de apoio judiciário.

Porto, 9 de Janeiro de 2020
Mário Fernandes
Amaral Ferreira
Deolinda Varão