Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
470/20.0T8SJM-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE SEABRA
Descritores: ARTICULADO SUPERVENIENTE
SUPERVENIÊNCIA SUBJECTIVA
SUPERVENIÊNCIA OBJECTIVA
REJEIÇÃO LIMINAR
Nº do Documento: RP20211122470/20.0T8SJM-A.P1
Data do Acordão: 11/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O articulado superveniente pode ser rejeitado em duas hipóteses: a) Quando a matéria de facto nele alegada não tenha manifesto interesse para a decisão da causa; b) Quanto o mesmo seja deduzido de forma extemporânea e essa extemporaneidade seja imputável, a título de culpa, à parte que o apresenta – cfr. artigo 588º, n.º 4, do CPC.
II - Numa situação de superveniência subjectiva, incumbe ao apresentante do articulado a apresentação das provas dessa superveniência (artigo 588º, n.º 2, parte final, do CPC).
Não existindo essa prova, o articulado é rejeitado liminarmente.
III - Em caso de superveniência subjectiva, o que releva para efeitos de admissibilidade do articulado superveniente, em termos de factor de exclusão de culpa da parte, não é a data em que a parte teve conhecimento efectivo da factualidade em causa, mas, em termos distintos, a data em que a mesma parte poderia ter tido conhecimento de tal factualidade se actuasse com a diligência e o cuidado que são exigíveis a um cidadão medianamente diligente, sagaz e atento nas mesmas circunstâncias.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 470/20.0T8SJM-A.P1- Apelação
Origem: Juízo de Competência Genérica de São João da Madeira – J2.
Relator: Des. Jorge Miguel Seabra
1º Juiz Desembargador Adjunto: Dr. Pedro Damião e Cunha
2º Juiz Desembargador Adjunto: Dr.ª Maria de Fátima Andrade

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Sumário (elaborado pelo Relator):
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO:
1. Nos presentes autos de acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, que B...e C...movem contra “ D..., Lda.”, com data de 9.02.2021 e em momento prévio à designação de data para a realização de audiência prévia, foi proferido, no que ora releva, o seguinte despacho:
“ Nos termos do nº 4 do artigo 588º do C.P.C., admite-se o articulado superveniente referente ao documento junto, sendo que foi apresentado em tempo e não ser manifesto que os factos não interessam à boa decisão da causa, tratando-se de factos essenciais que ainda se integram na causa de pedir apresentada.
Notifique-se a notificação da parte contrária para complementarmente responder em 10 dias. “
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2. Inconformada, veio a Ré interpor recurso desta decisão, apresentando alegações e aduzindo, a final, as seguintes
CONCLUSÕES
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3. Os AA., segundo os elementos constantes dos autos de recurso, não contra-alegaram.
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4. Foram observados os vistos legais.
Cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. artigos 635º, nº 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do novo Código de Processo Civil, na redacção emergente da Lei n.º 41/2013 de 26.06 [e doravante designado apenas por CPC].
Por outro lado, ainda, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o tribunal de recurso não pode conhecer de questões não antes suscitadas pelas partes em 1ª instância e, por isso, não apreciadas na decisão proferida, sendo que a instância recursiva, tal como desenhada no sistema de recursos vigente no nosso Código de Processo Civil, não se destina à prolação de novas decisões judiciais, mas ao reexame ou à reapreciação pela instância hierarquicamente superior das decisões antes proferidas, em função das questões convocadas pelas partes e dos fundamentos da própria decisão recorrida. [1]
Por conseguinte, a questão a decidir no presente recurso é a de saber se o articulado superveniente deduzido pelos AA./Recorridos deveria ter sido, ou não, admitido liminarmente, conforme decretado pelo Tribunal de 1ª instância.
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III. FUNDAMENTAÇÃO de FACTO:
Para efeitos decisórios, relevam os factos constantes do relatório que antecede e, ainda, o teor integral do articulado deduzido pelos AA. a 21.12.2020 (cujos excertos principais serão referidos em sede de fundamentação jurídica da presente decisão), articulado esse que, enquanto articulado superveniente, foi admitido pelo Tribunal de 1ª instância no despacho ora em crise e ao abrigo do preceituado no artigo 588º, n.º 4, do CPC.
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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA:
Como resulta da delimitação do objecto do recurso acima exposta, a questão que se nos coloca é apenas a que se refere à admissibilidade do referido articulado superveniente deduzido pelos AA./Recorridos e que foi admitido liminarmente nos termos do artigo 588º, n.º 4, do CPC.
Vejamos.
O citado artigo 588º, do CPC, prevê, no que releva ao caso, o seguinte:
“ 1 – Os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que forem supervenientes podem ser deduzidos em articulado posterior ou em novo articulado, pela parte a quem aproveitam, até ao encerramento da discussão.
2 – Dizem-se supervenientes tanto os factos ocorridos posteriormente ao termo dos prazos marcados nos artigos precedentes como os factos anteriores de que a parte só tenha tido conhecimento depois de findarem esses prazos, devendo neste caso produzir-se prova da superveniência.
3 – O novo articulado em que se aleguem factos supervenientes é oferecido:
a) Na audiência prévia, quando os factos hajam ocorrido ou sido conhecidos até ao respectivo encerramento;
(…)
4 – O juiz profere despacho liminar sobre a admissão do articulado superveniente, rejeitando-o quando, por culpa da parte, for apresentado fora de tempo, ou quando for manifesto que os factos não interessam à boa decisão da causa; ou ordenando a notificação da parte contrária para responder em 10 dias, observando-se, quanto à resposta, o disposto no artigo anterior.
5 – As provas são oferecidas com o articulado e com a resposta. “
Como é consabido, o artigo 611º, n.º 1, do CPC, prescreve que a sentença deve tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à instauração da acção, de modo que a decisão final corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão.
Naturalmente, o modo «normal» de o tribunal aceder a tais factos é o de as partes os alegarem, sendo que, por princípio, o momento temporal da alegação é o da apresentação dos articulados. Portanto, por princípio, todos os factos constitutivos do direito do autor têm de ser invocados na petição inicial e todos os factos impeditivos, modificativos ou extintivos do seu direito têm de ser invocados pelo réu na contestação, em conformidade, aliás, com o princípio da auto-responsabilidade das partes, da preclusão e da concentração da defesa na contestação e, em última instância, em conformidade com o princípio do dispositivo, no sentido de que é às partes que incumbe o ónus de trazer ao processo o quadro factual essencial à decisão do litígio.
Pode, porém, suceder que determinados factos constitutivos do direito ocorram depois de oferecida a petição inicial, assim como é possível que determinados factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor só ocorram depois de oferecida a contestação (superveniência objectiva); por outro lado, é ainda possível que determinados factos constitutivos do direito, apesar de ocorridos antes da propositura da acção, venham ao conhecimento do autor após aquele articulado inicial, assim como é possível que determinados factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor, apesar de ocorridos antes da contestação, apenas venham ao conhecimento do réu já após o oferecimento de tal articulado de defesa (superveniência subjectiva).
Face ao prescrito no já citado artigo 611º, impõe-se, assim, neste contexto, à parte interessada carrear para o processo tais factos (objectiva ou subjectivamente supervenientes), sendo essa, precisamente, a função do articulado superveniente, como decorre do consignado no n.º 1 do citado artigo 588º.
Importa, todavia, distinguir os vários momentos processuais fixados na lei para a admissibilidade do articulado superveniente.
Assim, se o processo admitir o articulado réplica (como ora sucede, pois que a Ré deduziu pedido reconvencional – cfr. artigo 584º, n.º 1, do CPC) e os factos constitutivos do direito ocorrerem ou chegarem ao conhecimento do autor depois de apresentada a petição inicial, mas ainda a tempo de serem incluídos na réplica, é em tal peça que essa alegação deve ter lugar, valendo a réplica como o articulado posterior a que se refere o n.º 1 do artigo 588º.
Por seu turno, se o processo não comportar réplica (como sucede hoje, como regra geral) ou, mesmo admitindo-a, os factos constitutivos ocorrerem ou chegarem ao conhecimento da parte depois de oferecida a réplica, no caso do autor, ou se os factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito feito valer em juízo ocorrerem ou chegarem ao conhecimento do réu depois de apresentada a contestação, a alegação de tais factos supervenientes deve fazer-se em novo articulado, nos termos consignados no artigo 588º, n.º 3, ou seja:
a) Se houver lugar à audiência prévia e os factos ocorrerem ou chegarem ao conhecimento da parte até ao seu encerramento, será nesta diligência judicial que o novo articulado deve ser apresentado;
b) Se não houver lugar à audiência prévia, o novo articulado deve ser apresentado nos 10 dias contados da notificação da data designada para a realização da audiência de julgamento;
c) Se houver audiência prévia e os factos ocorrerem ou chegarem ao conhecimento da parte após o respectivo encerramento, será no início da audiência de julgamento que o novo articulado deve ser deduzido;
d) No caso previsto em b), se os factos ocorrerem ou chegarem ao conhecimento da parte depois de decorrido o prazo ali indicado (10 dias após a notificação da data do julgamento), será também no início da audiência que o novo articulado deve ser oferecido;
e) Por último, se os factos ocorrerem ou chegarem ao conhecimento da parte interessada depois de iniciada a audiência de julgamento será no decurso desta (e até ao encerramento da discussão) que deverá ser deduzido o novo articulado.
Dito isto, importa, ainda, relativamente ao autor, ter em consideração que, segundo a posição da maioria da doutrina e se mostra aceite pela própria Recorrente, os factos constitutivos cuja alegação superveniente se prevê no artigo 588º tanto podem destinar-se a completar a causa de pedir inicial, como podem implicar uma efectiva alteração ou modificação da causa de pedir inicial (ampliação da causa de pedir), o que vem a significar que, demonstrada pela parte interessada a superveniência (objectiva ou subjectiva), a mesma é o bastante para afastar as restrições fixadas pelo artigo 265º, do CPC ao nível da alteração da causa de pedir.
Neste sentido, pode o autor, neste específico condicionalismo, através dos novos factos supervenientes completar ou alterar a causa de pedir inicial, nomeadamente, ampliando-a mediante a alegação de outra causa de pedir, sem carecer, para tal, do acordo do réu ou, ainda, independentemente de a mesma resultar de confissão feita pelo réu e aceite pelo autor, nas condições do citado artigo 265º, n.º 1, do CPC. [2]
Dito isto, importa, no entanto, ter presente que é sempre suposto que o articulado superveniente seja admissível, no sentido de estarem reunidas as condições legais para a sua admissibilidade e, em particular, é suposto que a parte interessada faça prova da superveniência objectiva ou subjectiva dos factos em causa e de que o articulado foi oferecido nos momentos processuais fixados na lei. Em suma, dir-se-á, como refere Francisco Ferreira de Almeida, “ Direito Processual Civil “, II volume, 2015, pág. 168, “ Supervenientes são, não só os factos que tenham ocorrido em datas posteriores às previstas para a apresentação dos articulados normais (ou eventual) – superveniência objectiva -, como também os factos ocorridos anteriormente a essas datas, mas nesta segunda hipótese, de que a parte só tenha tomado conhecimento depois de expirados esses prazos – superveniência subjectiva (nesta segunda hipótese, exige a lei prova da superveniência – cfr. n.º 2 do artigo 588º).”
Aqui chegados, vejamos o caso dos autos e, em particular, o requerimento deduzido pelos AA. com data de 21.12.2020, sendo certo que, em nosso ver, o Tribunal a quo não fez a melhor análise de tal requerimento e, em particular, não distinguiu o que nele atina com a junção de documentos, em que regem os artigos 423º a 451º, do CPC e, ainda, o que nele atina com a alegação de novos factos, sujeita, por seu turno, ao regime dos articulados supervenientes e nos termos consignados no artigo 588º, do mesmo Código, antes explicitado.
Distinguindo.
Com o dito requerimento de 21.12.2020, os AA. procederam à junção de dois documentos, sendo um a certidão do registo automóvel atinente ao veículo em discussão nos autos (documento 1) e outro a certidão comprovativa do pagamento do imposto único de circulação do mesmo veículo por parte do Autor B... (documento 2), sendo que o documento 1 não tem sequer data de emissão e o documento 2 tem data de, pelo menos, 29.08.2020, correspondente à data do pagamento do dito imposto.
Por outro lado, a presente acção foi proposta a 1.09.2020, como resulta dos autos principais.
Da conjugação destes elementos objectivos resulta, à evidência, que ambos os documentos podiam ter sido juntos com a petição inicial deduzida em juízo, pois que ambos os documentos existiam e eram, nessa data (data de entrada da petição inicial) acessíveis para os AA.. [3]
Destarte, os ditos documentos, ainda que admissíveis em tese geral, uma vez que os AA. não fizeram qualquer prova de que não os podiam ter junto com a respectiva petição inicial, só poderão ser efectivamente admitidos no processo mediante o pagamento de multa, como decorre do preceituado no artigo 423º, n.º 2, do CPC, multa esta que, no caso dos autos, se fixa em 1 UC (artigo 27º, n.º 1, do RCP).
Relativamente ao valor probatório de tais documentos o mesmo há-de ser afirmado na sentença que vier a ser proferida a final e se os mesmos assumirem, de facto, no contexto dessa sentença relevo para a decisão final da causa.
Mas, além de no dito requerimento de 21.12.2020 os AA. terem procedido à junção dos referidos documentos, vieram, ainda, os mesmos alegar um conjunto de novos factos atinentes à situação do veículo em apreço nos autos (que lhes foi vendido pela Ré) e, em particular, vieram alegar que o dito veículo foi, antes ainda da venda efectuada em seu favor, utilizado por vários locadores durante cerca de três anos e meio - pois que o proprietário anterior à aqui Ré/vendedora era uma empresa de aluguer de veículos, “ E..., SA “, o que terá contribuído e acentuado o seu desgaste e agravado as avarias do veículo em causa, sendo certo, ainda, que este outro elemento atinente à anterior proprietária do veículo, nunca lhes foi dado a conhecer por parte da Ré e de que, se os mesmos dele tivessem conhecimento, jamais teriam aceite celebrar o contrato de aquisição do veículo.
Por conseguinte, segundo os AA., a aqui Ré sonegou-lhes a referida informação sobre a situação anterior do veículo – que só veio ao seu conhecimento através do acesso ao documento em apreço (certidão do registo automóvel) e apuramento do anterior proprietário do veículo em causa -, sabendo que a mesma era essencial para a formação da sua vontade de contratar, impondo-se, assim, a anulação do negócio em apreço, o que requerem.
Neste enquadramento, como é consabido e resulta do artigo 588º, n.º 4, do CPC, o articulado superveniente está sujeito a despacho liminar, podendo ser rejeitado em duas hipóteses: a) se for apresentado fora de tempo, por culpa da parte; b) se for manifesto que os factos não interessam à boa decisão da causa.
No caso em apreço, está apenas em discussão saber-se se o articulado superveniente ora em causa é intempestivo e se esta intempestividade é imputável aos AA., a título de culpa.
Nesta sede é de referir, ainda, que, no caso concreto, está apenas em causa, nos termos sobreditos, a superveniência subjectiva, ou seja, saber se os AA. só tiveram conhecimento dos factos em apreço após a propositura da presente acção, como alegam, ou, ao invés, se à data em que foi proposta a acção estavam já os AA. em condições, segundo um juízo de razoabilidade e à luz de um padrão de normal diligência e cuidado – próprio de um «bonus pater familias» - de conhecer dos factos constantes dos referidos documentos, sendo que, como já antes se referiu, os factos nele documentados são objectivamente anteriores à data da petição inicial.
Com efeito, recorde-se, neste conspecto, por um lado, que o pagamento do imposto de circulação ocorreu, pelo menos, a 29.08.2020 e o registo da propriedade do veículo em causa em favor da aludida “ E…, SA “ figura no registo desde 7.12.2013, sendo certo, ainda, que os AA. adquiriram o veículo a 30.10.2018 e o registo da reserva de propriedade a favor da sua respectiva financiadora (“ F…, SA “) data de 12.12.2018.
Ora, tendo isto presente, é, em nosso ver e com o devido respeito, manifesto que o articulado superveniente deduzido pelos AA. é intempestivo e essa intempestividade é-lhes imputável a título de culpa, não podendo, pois, manter-se o despacho recorrido.
Desde logo, o dito articulado é inadmissível pois que, estando em causa uma situação de superveniência subjectiva, não basta ao apresentante do articulado alegar o conhecimento posterior dos factos; é preciso, ainda, além dessa alegação, a prova de tal conhecimento subsequente, o que supõe o oferecimento da respectiva prova, nos termos do artigo 588º, n.º 2, parte final, do CPC.
Ora, no caso, nem no próprio articulado, nem, ainda, na resposta subsequente (após requerimento da Ré a defender a inadmissibilidade do articulado), os AA. apresentaram qualquer meio de prova susceptível de demonstrar essa alegada superveniência subjectiva, condição essencial à admissão do articulado superveniente.
Sendo assim, desde logo, por esta evidente razão o articulado não deveria ter sido admitido.
Mas, ainda, mais: - resulta do já antes exposto, que, actuando os AA., adquirentes do veículo em causa, com a diligência e cuidado de um cidadão médio nas mesmas circunstâncias, ao menos na data dessa aquisição (em 30.10.2018) poderiam (e deveriam) os mesmos consultar o registo automóvel – publicamente acessível -, no mínimo por forma a assegurarem-se, como qualquer cidadão medianamente diligente e cuidadoso, que a Ré/vendedora do veículo era, de facto, a proprietária registada do mesmo veículo (assegurando-se assim que quem vendia o veículo tinha título substantivo para o fazer), sendo que, se assim o tivessem feito, logo teriam também ficado a conhecer, através de tal certidão do registo automóvel, que antes da Ré “ D..., Lda. “ a proprietária do veículo tinha sido a referida “ E…, SA “ e desde Outubro de 2013 a Abril de 2017, ou seja, durante cerca de três anos e meio.
Com efeito, importa ter presente que o que releva para efeitos de admissibilidade do articulado superveniente à luz do artigo 588º, n.ºs 2 e 4, do CPC, não é, em caso de superveniência subjectiva, como ora sucede, a data em que a parte teve conhecimento efectivo da factualidade que se mostra demonstrada no documento ou de outra factualidade que dele decorre, mas, em termos radicalmente distintos, a data em que a mesma parte poderia ter tido conhecimento de tal factualidade se actuasse com a diligência e o cuidado que são exigíveis a um cidadão medianamente diligente, sagaz e atento nas mesmas circunstâncias.
Ora, repetindo, pelo menos, a partir da data de aquisição do veículo em causa, em Outubro de 2018, os AA., se tivessem actuado de forma diligente e cuidadosa, sempre poderiam ter tido conhecimento de que a proprietária do veículo entre 2013 e 2017 tinha sido a sociedade “ E..., SA “ e, portanto, toda a factualidade que os mesmos alegam no seu articulado superveniente de 21.12.2020 a partir deste outro facto, podia e devia ter sido alegada na sua petição inicial, que data, recorde-se, de 1.09.2020.
Digamos que, entre Outubro de 2018 e Agosto de 2020 os AA. poderiam ter indagado e conhecido, em termos absolutamente razoáveis, da factualidade de que alegadamente só vieram a ter conhecimento já após Setembro de 2020…
O que vem a significar, em conclusão, em sentido oposto ao decidido e no seguimento da tese defendida pela Recorrente, que o articulado superveniente de 21.12.2020, não é admissível, não podendo ser tida em conta a factualidade ali alegada, sem prejuízo da admissibilidade dos documentos juntos (certidão do registo automóvel e certidão do pagamento do imposto único automóvel), que, ainda que apresentados fora do contexto do articulado em que deveriam ter sido juntos (petição inicial), são admissíveis, ainda que com o pagamento da multa já antes referida.
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V. DECISÃO:
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao recurso de apelação interposto, revogando o despacho recorrido que é substituído por outro com o seguinte teor:
a) Admitem-se, ao abrigo do disposto no artigo 423º, n.ºs 1 e 2, do CPC, os dois documentos juntos pelos AA. com o requerimento de 21.12.2020, ficando, no entanto, a sua apreciação dependente do pagamento de um multa que se fixa em 1 UC.
b) Não se admite o articulado superveniente dos AA. datado de 21.12.2020.
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Custas pela parte vencida a final e na respectiva proporção – artigo 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
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Porto, 22.11.2021
Jorge Seabra
Pedro Damião e Cunha
Fátima Andrade

(O presente acórdão não segue na sua redacção o novo acordo ortográfico)
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[1] Vide, neste sentido, F. AMÂNCIO FERREIRA, “ Manual dos Recursos em Processo Civil ”, 8ª edição, pág. 147, A. ABRANTES GERALDES, “ Recursos no Novo Código de Processo Civil ”, 2ª edição, pág. 92-93.
[2] Vide, neste sentido, por todos, MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, “ Estudos Sobre o Novo Código de Processo Civil ”, 2ª edição, 1997, pág. 299-300, A. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA, L. FILIPE PIRES de SOUSA, “ CPC Anotado ”, I volume, 2ª edição, pág. 696 e J. LEBRE de FREITAS, ISABEL ALEXANDRE, “ CPC Anotado “, II volume, 3ª edição, pág. 615-616.
[3] A certidão de pagamento era acessível pois que, tendo o Autor B… procedido ao pagamento do dito imposto, bastar-lhe-ia proceder à impressão de tal comprovativo de pagamento.
Por seu turno, a certidão do registo automóvel também lhe era acessível, na estrita em medida em que essa certidão é publicamente acessível através da respectiva base de dados do site www.automovelonline.mj.pt , bastando para tanto nele colocar a matrícula do veículo em causa e o n.º de cartão de cidadão.