Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0417050
Nº Convencional: JTRP00038209
Relator: ÉLIA SÃO PEDRO
Descritores: BURLA PARA ACESSO A MEIOS DE TRANSPORTE
Nº do Documento: RP200506220417050
Data do Acordão: 06/22/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: .
Sumário: Quem viaja num autocarro sem título de transporte válido, com intenção de não pagar o preço da viagem, e se nega a pagar esse preço, comete o crime de burla para obtenção de serviços do artigo 220 do CP95.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
O MP junto do Tribunal Judicial de..... interpôs recurso para esta Relação do despacho proferido no processo nº ../04, que não recebeu a acusação pública deduzida contra B....., formulando as seguintes conclusões:
1. O crime de burla para obtenção de serviços, p. e p. pelo art. 220º, nº 1 al. c) do CP está numa relação de concurso aparente com a transgressão p. e p. pelo art. 3º do DL 10/78 de 24 de Maio;
2. Isto porque o referido diploma legal se encontra em vigor, dado nunca ter sido expressamente revogado por legislação penal posterior, nem se encontra tacitamente revogado, por ter um campo de aplicação distinto do crime em apreço;
3. Assim, segundo o princípio do concurso de normas lex specialis derrogat lex generalis, deve prevalecer a lei penal;
4. Encontram-se na acusação pública todos os pressupostos – elementos típicos – do crime de burla de serviços (a utilização pelo agente de um meio de transporte; o conhecimento que essa utilização supõe o pagamento de um preço; a intenção de não pagar tal preço; a recusa de solver a divida), pelo que o M.º Juiz a quo deveria havê-la recebido e designado data para julgamento;
5. Ao rejeitar a acusação pública, por a considerar manifestamente infundada, o despacho recorrido violou o disposto nos arts. 311º, nº 2 al. a) e 312º, ambos do CPP e o disposto no art. 220º, nº 1, al. c) do Cód Penal;
Conclui pedindo a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que receba a acusação e designe dia para julgamento.

O Ex.º Procurador-geral adjunto nesta Relação foi de parecer que o recurso merece provimento, nada tendo a acrescentar.

Cumprido o disposto no art. 417º, nº 2 CPP, não houve resposta.

Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência, para julgamento.

2.Fundamentação
2.1 Matéria de facto
Com interesse para a decisão do presente incidente, consideramos relevantes os seguintes factos:

- O MP junto do Tribunal Judicial de Matosinhos deduziu acusação contra o arguido B....., imputando-lhe a prática de um crime de burla para obtenção de serviços, p. e p. pelo art. 220º, nº 1 al. c) do Cód. Penal.

- O Sr. Juiz decidiu rejeitar a acusação, nos termos do art. 311º, nº 2 al. a) e nº 3 al. d) do CPP, através de despacho do seguinte teor:
“ (…) O n°.3 do art. 311 ° do CPP preceitua que se deve considerar a acusação manifestamente infundada, e, portanto, não devendo ser recebida, se os factos não constituírem crime (cfr. al. d).
O arguido vem acusado da prática de um crime de burla para obtenção de serviços, p. e p. pelo art. 220° do CP. Isto porque, de acordo com o libelo acusatório, o arguido entrou num autocarro, fez determinado percurso, não pagou a tarifa em vigor e não liquidou tal importância posteriormente, em prazo que lhe foi dado.
Saber se este tipo de factos constitui crime é questão que tem vindo a ser debatida na jurisprudência há longo tempo, não se podendo dizer com segurança qual a posição prevalecente. Assim, para uns, estes factos consubstanciarão apenas um ilícito contravencional (agora contra-ordenacional), enquanto que para outros haverá um ilícito criminal, qual seja o do art. 220° do CP.
Dando aqui por reproduzidos os argumentos de cada uma das posições referidas, temos que para nós os factos constantes da acusação não constituem crime, antes contra-ordenação. Com efeito, o DL 108/78, de 24/05, entrou em vigor pela necessidade sentida de regulamentar o direito e a forma de exercer a fiscalização nos serviços de transportes colectivos, em função da infracção cometida; ou seja, em 1978 construiu-se um "edifício legislativo" que visou garantir o respeito da obrigação legal de pagar o preço do transporte. E isto porque não havia, à data, nenhuma norma incriminadora deste tipo de condutas (designadamente no CP 1886).
A entrada em vigor do CP de 1982 acarretou o problema da eventual sobreposição da (agora) norma do art. 220° do CP com as disposições do DL 108/78 - daí nascendo a aludida - divergência jurisprudencial. Vários arestos têm defendido que a partir da entrada em vigor do CP de 1982 se verificou uma revogação (ainda que tácita) das normas do DL 108/78. Salvo o devido respeito, não subscrevemos os respectivos argumentos. Antes sufragamos os daqueles que defendem que se uma conduta preencher em simultâneo os elementos constitutivos do art. 220º do CP e dos arts. 3° a 5° do DL 108/78, deve prevalecer a infracção deste último diploma, uma vez que contém um elemento especializador. E esta relação de especialidade reclama o afastamento do disposto no art. 220° do CP.
Ou seja, subsiste meramente um ilícito contra-ordenacional.
O art. 220° configura um tipo de burla irregular; e sua consagração (no CP/82 através do art. 316°) surgiu da necessidade de punir situações que a lei, até aí, não punia (sendo que o CP 1886 era totalmente omisso nessa matéria). Só que, ao que cremos, a nova punição (a nova criminalização) não teve como intuito primeiro interferir no plano das disposições especiais já em vigor (através de legislação extravagante) para alguns meios de transporte; visou, isso sim, as situações que ainda não eram contempladas por legislação (p. ex. táxis, barcos, etc.) - não se vislumbrando que, historicamente, tenha havido necessidade de alterar 1 modificar o já aludido "edifício legislativo".
Com efeito, não se vislumbra razão que justifique o volver de uma contra-ordenação, como esta, em crime. O direito penal é um direito de última ratio; só deve intervir nos casos em que o desvalor da acção é, em termos ético-sociais, insuportável. O que não será o caso do uso de transportes colectivos, em que o não pagamento de uma viagem acarretará sempre, mesmo na perspectiva empresarial, um prejuízo diminuto. Se, em algum momento histórico, se tivessem produzido circunstâncias que coenvolvessem um aumento da censura ético-scial (p. ex. porque o sistema em vigor não desse resposta adequada ao numero de infracções), então o legislador teria, em 1982 (ou posteriormente), revogado expressamente as disposições do DL 108/78. Mas tal jamais sucedeu. Aliás, veja-se que os STCP continuam a aplicar coimas em casos subsumíveis ao DL 108/78; e se recebem o valor em divida e o produto da coima nada dizem ao MP. Se nada recebem, já comunicam os factos mas ao abrigo do disposto no art. 5º, nº 5 do DL 108/78 (quando, obviamente, esta norma se refere à cobrança coerciva do valor em dívida e da coima.)
Por isso julgamos que não operou em momento algum a conversão de ilícito contra-ordenacional em criminal. Os factos, tal qual descritos na acusação, não constituem crime (neste sentido, Acs. RL de 07/11/84 e 30/01/85, in BMJ, 368, pág. 463 e 350, pág. 386, respectivamente, RC de 15/02/89, in CJ XIV, tomo I, pág. 77; RP de 27/02/89).
Pelo exposto, decide-se rejeitar a acusação (…)” – despacho recorrido

2.2 Matéria de direito
A única questão a decidir no presente recurso é a de saber se os factos descritos na acusação integram a previsão do tipo de crime previsto e punido pelo art. 220º do Cód. Penal – burla para obtenção de alimentos, bebidas ou serviços.

Os factos constantes da acusação são os seguintes: o arguido fazia-se transportar com um título de transporte não válido para aquela zona e, nem no momento, nem posteriormente, procedeu ao pagamento da tarifa respectiva. O arguido havia já entrado no dito autocarro com a intenção de não pagar o serviço que pretendia utilizar.

O despacho recorrido, depois de dizer que a questão tem vindo a ser debatida na nossa jurisprudência, optou pela posição segundo a qual os factos acima descritos não integram o crime previsto e punido pelo art. 220º do Cód. Penal e, consequentemente, decidiu rejeitar a acusação, por a considerar manifestamente infundada (art. 311º, nº 3 al. d) CPP).

Julgamos, todavia, que o fez sem razão.

O art. 220, nº1 al. c) do Cód. Penal considera que comete o crime de “burla para obtenção de serviços” quem, com intenção de não pagar, utilizar meio de transporte sabendo que tal supõe o pagamento de um preço e se negar a solver a dívida contraída.

Consta da acusação pública (fls. 10) que “O arguido havia já entrado no dito autocarro com a intenção de não pagar o serviço que pretendia utilizar. O arguido agiu de modo livre voluntário e consciente com o propósito de alcançar um benefício que sabia não ser legítimo, equivalente ao preço do bilhete que sabia dever pagar pelo serviço que usou, valor esse com o qual o arguido, ao negar saldar a dívida assim contraída, se locupletou à custa da ofendida”.

Na acusação deduzida, foi assim imputada ao arguido a utilização de um meio de transporte (autocarro), a intenção de não pagar o serviço respectivo, sabendo que tal supõe o pagamento de um preço e, ainda, que o mesmo se negou a saldar a dívida contraída.

Como se vê, constam da acusação factos suficientes para o preenchimento de todos os elementos típicos do crime.

É verdade que, no domínio do Código Penal de 1886, a utilização de um meio de transporte, nestas circunstâncias, não constituía crime de burla.

Tal comportamento era contudo previsto em leis especiais. No Dec. Lei 39780, de 21 de Agosto de 1954, regulava-se a utilização abusiva dos caminhos-de-ferro, prevendo-se transgressões para as respectivas infracções (art. 43º do referido diploma). No Dec. Lei 108/78, de 24 de Maio, regulou-se a fiscalização do uso noutros transportes públicos, como as carreiras de passageiros em autocarros, troleicarros e carros eléctricos e fixou-se (art. 3º do citado DL) o pagamento de multas a acrescer ao preço do bilhete, para os passageiros que utilizassem, sem pagar, os respectivos meios de transporte.

Com a entrada em vigor do Código Penal de 1982 e a tipificação de um crime de burla para obtenção de serviços, através da utilização de meio de transporte, nos termos acima enunciados, não nos parecem legítimas as dúvidas suscitadas no despacho recorrido. Como referem Leal Henriques e Simas Santos, “hoje, porém, implica a subsunção a este normativo, a utilização de qualquer meio de transporte que deva ser pago, sem que esse pagamento tenha lugar” – Código Penal anotado, pág. 575.

Julgamos indubitável tal entendimento.

O argumento do despacho de recorrido, segundo o qual, havendo um comportamento previsto na lei como transgressão e previsto na lei como crime, deve prevalecer a lei especial, não é relevante, por não haver identidade dos elementos do tipo. Só há burla, se o agente “se negar a solver a dívida contraída”, ou seja, o preço do bilhete. Há transgressão, mesmo que o preço seja pago - art. 5º do Dec. Lei 108/78, de 24 de Maio, referindo-se ao pagamento “da multa e do preço de transporte”. Não havendo uma total sobreposição, não faz sentido a invocação da lei especial e da lei geral.

Por outro lado, as razões invocadas no despacho recorrido, sobre a incompreensível transformação da contra-ordenação em crime, são irrelevantes e deslocadas. A questão que se coloca ao juiz não é a de saber se havia ou não razões para criminalizar uma conduta que antes era punida apenas como contra-ordenação, mas sim averiguar se os factos descritos na acusação deduzida pelo M.P. cabem ou não no tipo de ilícito previamente recortado pelo legislador.
Dado que o art. 220º do Cód. Penal tipifica como crime de burla para obtenção de serviços, os factos constantes da acusação deduzida nos autos contra o arguido, não poderia o M. juiz rejeitar a acusação.

Nestes termos, deve conceder-se provimento ao recurso interposto pelo MP.

3. Decisão
Face ao exposto, os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, revogar a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que, se nada mais obstar, receba a acusação e designe dia para julgamento.
Sem custas.
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Porto, 22 de Junho de 2005
Élia Costa de Mendonça São Pedro
José Henriques Marques Salgueiro
Manuel Joaquim Braz