Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1069/14.6JAPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA LUÍSA ARANTES
Descritores: DETENÇÃO FORA DE FLAGRANTE DELITO
MEDIDA DE COACÇÃO
RECURSO
PERIGO DE FUGA
PERIGO DE CONTINUAÇÃO DE ATIVIDADE CRIMINOSA
Nº do Documento: RP201412171069/14.6japrt-A.P1
Data do Acordão: 12/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A existência de um mandado do juiz (ou, nos casos em que for admissível prisão preventiva, do Ministério Público) não é um requisito genérico da detenção fora de flagrante delito, prevista no art. 257.º, do CPP, admitindo a Lei que as autoridades de polícia criminal ordenem a detenção em caso de fundado receio de fuga ou de continuação da atividade criminosa – al. b) do n.º 2 do cit. art.
II – É admissível recurso da decisão que não aplica medida de coação promovida pelo Ministério Público.
III – O facto de estar a decorrer uma investigação criminal não faz, só por si, presumir a existência de perigo de fuga do investigado.
IV – Já a circunstância de estarem indiciados factos que apontam para que o arguido seja autor de dois crimes de incêndio, do art. 274.º, nº 1, do Cód. Penal, praticados em dias sucessivos, justificam a invocação do perigo de continuação da atividade criminosa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: P.1069/14.6JAPRT-A.P1

Acordam, em conferência, os juízes na 1ªsecção criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO

Nos autos de inquérito n.º1069/14.6JAPRT que correm termos nos serviços do Ministério Público junto do Tribunal Judicial de Valongo, em que é arguido B…, foi proferido, em 18/6/2014, no âmbito de primeiro interrogatório de arguido detido, nos termos do disposto no art. 141.ºdo C.P.Penal, despacho judicial que aplicou a este arguido a medida de coacção de termo de identidade e residência.
Inconformado com este despacho, o Ministério Público interpôs recurso, extraindo da motivação apresentada, as seguintes conclusões [transcrição]:
I. O mandado de detenção fora de flagrante delito foi validamente emitido, pelo que não deveria ter sido julgada inválida a detenção do arguido B….
II. O mandado de detenção fora de flagrante delito foi emitido dentro do condicionalismo previsto no artigo 257.° n.º 2 do CPP, pelo que a detenção do arguido foi válida.
III. Ao não validar a detenção do arguido o Mmo J.IC. violou as normas constantes dos artigos 250.º n.º 1 e 8, 254.º nº2 e 257.° nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal.
IV. Face aos elementos constantes do processo, forçosa é a conclusão da existência de fortes indícios da participação do arguido nos factos que se investigam.
V. Ponderados todos os elementos constantes dos autos, à luz das regras da normalidade e da experiência comum, devidamente apreciados em face também da concreta personalidade do arguido, entende-se que existe também vincado perigo de continuação da actividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, o qual deveria também ter sido considerado pelo Mmo JIC aquando da aplicação da medida de coacção aos arguidos.
VI. Apenas as medidas de apresentações periódicas no posto policial da área de residência, com a periodicidade bissemanal e de proibição de aproximação e permanência em zona florestal se mostravam adequadas às exigências cautelares existente ín casu, pelo que deveria o Mmo. J.I.C. ter aplicado tais medidas e, não o fazendo, violou as normas dos artigos 193.°, 202.° e 204.° do CPP.
Termos em que, decidindo pela revogação do despacho recorrido e determinando-se a sua substituição por outro que considere válida a detenção do arguido B… e lhes aplique as medidas de coacção de apresentações periódicas no posto policial da sua área de residência, com a periodicidade bissemanal e de proibição de aproximação e permanência em zona florestal, farão V.Exas., como sempre, Justiça!
O arguido respondeu ao recurso, pugnando pela sua rejeição, por inadmissibilidade legal, no que se refere à não aplicação das medidas de coacção promovidas pelo Ministério Público e pela improcedência quanto à ilegalidade da detenção [fls.87 a 105 do presente apenso].
Remetidos os autos ao Tribunal da Relação e aberta vista para efeitos do art.416.º n.º1 do C.P.Penal, a Sra.Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer em que se pronunciou no sentido da improcedência parcial do recurso, sustentando que a detenção foi legal, contrariamente ao decidido no despacho recorrido, mas a medida de coacção aplicada – TIR – a adequada [fls.110 a 115].
Cumprido o disposto no art.417.º n.º2 do C.P.Penal, o arguido apresentou resposta ao parecer, sustentando que a detenção foi ilegal [fls.119 a 120].
Colhidos os vistos legais, foram os submetidos à conferência.

II – FUNDAMENTAÇÃO

Despacho recorrido
A decisão recorrida, na parte com relevância para o presente recurso, tem o seguinte teor:
«Iniciado o presente ato, o Mm.º Juiz de Direito, que preside ao interrogatório, advertiu o arguido de que a falta de resposta às perguntas que lhe vão ser feitas sobre a sua identidade, ou a falsidade da mesma, o pode fazer incorrer em responsabilidade penal, tendo respondido da seguinte forma:

Chamar-se: B…
filho(a) de C… e de D…
natural de: … [Valongo]; nacional de Portugal
nascido em 17-02-1992
estado civil: Solteiro,
profissão: electricista
Documento(s) de identificação: , BI - ……..
domicílio: Rua … Nº … .º Esq, ….-… Sobrado Valongo
*
Em seguida, nos termos do disposto no artº 141º, nº 4, al. a), do C. P. Penal, o Mm.º Juiz de Direito informou o arguido dos direitos referidos no art.º 61.º, n.º 1, do referido diploma legal, explicando-lhe os mesmos.
Cumpriu-se igualmente o disposto no art.º 141.º, n.º 4, al. b), do C.P.P. (consigna-se que foi o arguido advertido que de não exercendo o direito ao silêncio as declarações que prestar poderão ser utilizadas no processo, mesmo que seja julgado na ausência, ou não preste declarações em audiência de julgamento, estando sujeitas à livre apreciação da prova).
Informou-os, ainda, nos termos das al. b), c) e d) do nº 4 do citado artº 141º do C. P. Penal, dos:
1 - Motivos da detenção:
Detido fora de flagrante delito nos termos constantes do despacho de fls.29 a 33 emanado pelo Sr.Coordenador da Policia Judiciária do porto e cuja execução ocorreu pelas 23:30 horas do dia de ontem, conforme se alcança do mandado de fls.34.
*
2 - Factos que lhe são concretamente imputados, incluindo, sempre que forem conhecidas, das circunstâncias de tempo, lugar e modo, e cuja cópia de fls. 42 a 44 foi neste momento entregue à ilustre mandatária do arguido.
Os factos imputados ao arguido B…, e pelos quais o mesmo foi detido, constam da informação de fls. 2 e expediente anexo e que indiciam fortemente a prática, por este, de factos abstratamente suscetíveis de consubstanciarem 7 (sete) crimes de Incêndio florestal, p. e p. pelo disposto no artigo 274.º, n.º 1, do Código Penal.
Na verdade, resultam indiciados nos autos os seguintes factos:
1) No dia 16/06/14, cerca das 11:00h, o arguido que se fazia transportar no veículo automóvel de marca Ford …, matrícula ..-AJ-.., cor azul-escuro, ao passar junto ao arvoredo que ladeia a Rua …, no …, em …, Valongo, sem razão aparente e sem que nada o fizesse prever, com recurso a bombas de Carnaval (vulgarmente conhecidas como “bichas de rabiar”), que trazia consigo, ateou por 5 (cinco) vezes fogo ao eucaliptal aí existente, incendiando-o.
2) Na sequência da conduta do arguido, ardeu uma área total de 7Ha de floresta composta por eucaliptal.
3) No dia 17/06/14, cerca das 12:00h, o arguido que se fazia transportar no veículo automóvel de marca Ford …, matrícula ..-AJ-.., cor azul-escuro, ao passar junto ao arvoredo que ladeia a via pública, na Rua …, em …, Valongo, sem razão aparente e sem que nada o fizesse prever, com recurso a bombas de Carnaval (vulgarmente conhecidas como “bichas de rabiar”), que trazia consigo, ateou por 2 (duas) vezes fogo ao mato aí existente, incendiando-o.
4) O combate a estes incêndios, mobilizou diversas viaturas de combate a incêndios dos Bombeiros Voluntários de Valongo e dos Sapadores Florestais de Valongo.
5) O arguido, ao agir como o descrito, bem sabia que poderia provocar diversos incêndios, o que aconteceu.
6) O arguido não ignorava que a sua conduta é proibida e punida por lei penal.
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3 – Elementos do processo que indiciam os factos imputados:
a) - Informação de serviço de fls. 2
b) - Reportagem fotográfica de fls. 5 a 20
c) - Ficha de Registo Automóvel de fls. 24.
d) - C.R.C. de fls. 39
e) - o depoimento de E…
f) - o depoimento de F…
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O arguido foi devidamente advertido nos termos do disposto no artigo 141º, n.º 4, al. b) do CPP, ou seja, de que não exercendo o direito ao silêncio, as declarações que prestar podem ser utilizadas no processo, mesmo que julgado na ausência, ou não preste declarações em audiência de julgamento, estando sujeitas à livre apreciação da prova.
Pelo arguido foi dito que não desejava prestar declarações.
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Seguidamente, foi dada a palavra à Digna Magistrada do Ministério Público, que no seu uso disse:
Promovo se valide a detenção nos termos já solicitados
Em face dos elementos já constantes do processo, mostra-se suficientemente indiciada nos autos a prática pelo arguido de 7 (sete) crimes de incêndio florestal, p.p. artigo 274.°, n.° 1, do C.P com pena de prisão de 1 a 8 anos.
Ora, nos termos do art. 191.º do C.P.P a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coacção e de garantia patrimonial previstas na lei.
Considerando o tipo de crime cometido e a época do ano em que nos encontramos, temos de concluir que existe perigo de continuação da actividade criminosa e que as condições em que os factos ocorreram são susceptíveis de fazer perigar completamente a ordem e a tranquilidade públicas.
De facto, os factos indiciados nos autos, enquadráveis no tipo legal de crime de incêndio florestal, causam alarme social, têm grande repercussão social e relevância jurídico-criminal e exigem especiais necessidades de prevenção geral.
Nestes termos, considera-se que, desde logo, os perigos de continuação da actividade criminosa e de alarme social que as situações como a dos autos sempre causam, exigem a aplicação de medida de coacção para além do TIR já prestado.
Face a todo o exposto, entendemos que as medidas de coacção capazes de afastar os enunciados perigos e que são adequadas as exigências cautelares envolvidas no caso concreto e proporcionais à gravidade do crime indiciado e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas, face à ausência de antecedentes criminais e à inserção social e familiar do arguido são:
- obrigação de apresentação periódica na GNR da área de residência, com uma periodicidade bissemanal;
- proibição de se aproximar e de permanecer em zona florestal.
cuja aplicação se promove, ao abrigo dos art. 191.° a 193.º, 196.°, 198 e 204, al. c) todos do C.P.Penal.
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Após, foi dada a palavra à ilustre mandatária do arguido, a qual no seu uso disse:
Face aos elementos constantes dos autos e à parca prova existente, a defesa considera que a aplicação de TIR é suficiente e adequada para acutelar as finalidades da punição.
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Seguidamente, o Mm.º Juiz de Direito proferiu o seguinte:
DESPACHO

(…) Visto o regime legal que preside ao instituto da detenção, finalidades do mesmo e requisitos para a detenção fora de flagrante delito apreciemos o caso dos autos.
O arguido foi detido com os fundamentos constantes no despacho proferido a fls. 29 e ss.
Após se ter consignado a imputação ao arguido de, pelo menos, sete crimes de incendio na forma consumada, pp pelo artº 274º, nº 1, do CP, fundamentou-se que “... dado o adiantado da hora ( o despacho terá sido proferido após as 21.45 horas- cfr. Fls. 26), a situação de urgência e perigo na demora, não é possível esperar pela intervenção da autoridade judiciária, bem como pelo facto de que existe um fundado receio de que o arguido, a partir de agora, se pretenda eximir ao control das autoridades, policiais e judiciárias, constituindo um foco de insegurança e instabilidade social , bem como perturbando os ulteriores termos processuais, no que tange á aquisição e conservação da prova, sendo óbvio que ainda acresce o perigo de continuação da “actividade criminosa”. Ora, tratando-se de detenção fora de flagrante delito, quando não for possível, dada a urgência e de perigo na demora, devidamente comprovados nos autos, esperar pela intervenção da autoridade judiciária, a detenção pode ser determinada pela autoridade de polícia criminal desde que reunidos os seguintes pressupostos cumulativos:
- Indícios da prática de crime em que for admissível a prisão preventiva - arts. 193º e 202º do CPP;
- existirem elementos que tornem fundados o receio de fuga ou de continuação de continuação da actividade criminosa;
- e não for possível, dada a situação de urgência e de perigo de demora, esperar pela intervenção da autoridade judiciária;
- Indícios especificados da existência de fundadas razões para considerar que o visado se não apresentaria espontaneamente perante autoridade judiciária no prazo que lhe fosse fixado.
Nos presentes autos, e conforme se alcança desde logo do despacho de fls. 29 verifica-se, atento o tipo de crime em causa, que é admissível prisão preventiva nos termos do art.202.°, n.º 1, al. a), do C.P.P.
No que concerne à existência de elementos que tornem fundados receios de fuga ou de continuação de actividade criminosa (cfr. Art. 257°, n° 2, al. b), do CPP) no despacho em causa apenas se referiu “... bem como pelo facto de que existe um fundado receio de que o arguido, a partir de agora, se pretenda eximir ao control das autoridades, policiais e judiciárias, constituindo um foco de insegurança e instabilidade social, bem como perturbando os ulteriores termos processuais, no que tange á aquisição e conservação da prova, sendo óbvio que ainda acresce o perigo de continuação da actividade criminosa”.
No que concerne ao perigo de fuga, desde já se diga que não existem elementos nos autos que tornem fundado tal perigo, sendo que da gravidade dos crimes imputados (moldura penal, concurso de crimes) não se pode inferir o perigo de fuga.
O perigo de fuga há-de ser conclusão a extrair de facto concretos evidenciados no processo que, sem prejuizo da consideração conjugada com a gravidade dos factos e correspondente moldura penal abstrata e com real situação pessoal, familiar, sócioeconómica do arguido indiciem uma preparação para a concretização de tal intento. Não existe qualquer presunção de perigo de fuga e, designadamente por alguém ter conhecimento de ser arguido num processo, de poder vir a ser, por via disso, condenado a pena de prisão ou de - o que de todo não se evidência nos autos - ter meios económicos superiores ao cidadão comum ou, ainda, ter possibilidade de num qualquer outro ponto do país ou no estrangeiro recomeçar a sua vida. (neste sentido veja-se Acordão, da Relação do Porto, datado de 16.11.2011, processo 828/ 10.3JAPRT cujo relator é o Exm.° Desembargador Ernesto Nascimento).
O perigo de fuga deve ser real e eminente e não meramente hipotético, virtual ou longínquo, ponderando-se a idade, saúde, situação económica e profissional do arguido, bem como a sua inserção no contexto social e familiar, factores que não são referidos no despacho que ordena a detenção fora de flagrante delito.
Conforme supra se referiu, o perigo de fuga não deve ser invocado de forma genérica, mas com detalhe, levando em linha de conta a natureza e gravidade do ilícito em causa, a eventual perspectiva ou mesmo tentativa de fuga sentida após o cometimento do crime, o paradeiro errático do visado, nomeadamente por falta de residência fixa/ou de laços familiares enraizados, a hipótese de acolhimento fácil em país estrangeiro ....
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No que concerne ao pressuposto alternativo (cfr. Artº 257°, nº 2, al b), do CPP) de existirem elementos que tornem fundado o receio de continuação da actividade criminosa também o despacho é genérico referido somente “--- sendo óbvio que ainda acresce o perigo de continuação da actividade criminosa”.
Pese embora no despacho se tenha referido que o arguido não tem explicação para os factos e que “é viciado” em foguetes e bombas de carnaval e dos factos se possa inferior desde logo, atenta a natureza do crime e sua repetição, que o arguido possa repetir identicas condutas, sendo certo que o comportamento imputado ao arguido revela um comportamento desviante a nivel da sua personalidade com uma propensão para actos idênticos (piromania), certo é que o despacho, á semelhança do invocado perigo de fuga, não invocou qualquer factos que conduza á existência de perigo de continuação por parte do arguido.
O perigo de continuação da actividade criminosa não deve ser genérico, hipotético ou virtual mas concretizado com a situação pessoal, sócio-profissional, personalidade do arguido e contexto em que os factos foram praticados, todos devidamente concretizados, a revelarem e demonstrarem o concreto perigo de continuação da actividade criminosa.
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Acresce que a detenção fora de flagrante delito nos termos já supra referidos exige para além dos supra referidos requisitos o requisito previsto na al. c ou seja, não for possivel dada a situação de urgência e perigo na demora, esperar pela intervenção da autoridade judiciária.
Ora, tal requisito quanto a nós não se verifica. O facto de o despacho que ordenou a detenção do arguido ter sido proferido após o horário de funcionamentos do tribunais (após a hora em que se procedeu ao interrogatório de arguido, pelas 21.45 horas - cfr. Fls. 26), nos termos supra referidos, por si só, não legitimava, desde logo, a detenção do arguido nos termos em que ocorreu, porquanto tal impossibilidade não pode se uma impossibilidade presumida ou meramente baseada no horário de funcionamento das secretarias ou dos serviços do Ministério Público.
Com efeito, nos casos em que a detenção pode ser perspectivada como o resultado possível de diligências programadas, ficará arredada a intervenção subsidiária das autoridades de polícia criminal.
Já haviam sido realizadas diligências de investigação e, salvaguardando-se a natureza estritamente excepcional da detenção fora de flagrante delito pelos autoridades de policia criminal, deveria ter sido equacionada junto do MP (ainda que por telefone ou outro meio de comunicação, nos termos do artº 258°, nº 2, do CPP, a detenção do arguido em consonância, sobretudo, com o postulado da direcção da investigação por parte do Ministério Público
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Acresce que, além dos referidos requisitos, nos termos supra referidos, haverá de exigir-se a verificação de indícios especificados da existência de fundadas razões para considerar que o visado se não apresentaria voluntariamente perante autoridade judiciária no prazo em que fosse fixado.
Ora, nos presentes autos, conforme supra referido, não foi invocado, em concreto, qualquer factor que torne fundado o perigo de fuga, nem sequer existem elementos que nos permita concluir que o arguido não se apresentaria voluntariamente perante autoridade judiciária no prazo que lhe fosse fixado.
Assim sendo, falece desde logo também esse requisito porquanto nada nos autos indicia ou cria fundadas razões para que se possa considerar que o visado não se apresentaria voluntariamente perante autoridade judiciária no prazo que lhes fosse fixado.
Por todo o exposto, e por não se verificarem os pressupostos cumulativos previstos no art.º 257, n.º 2, do C.P.P. e bem assim o requisito genérico comum a esse requisitos, ou seja, a verificação de fundadas razões para se considerar que o visado não se apresentaria voluntariamente perante autoridade judiciária no prazo que lhes fosse fixado, julgo ilegal a detenção do arguido B….
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Entendemos, contudo, que uma detenção ilegal não obsta à aplicação de uma medida de coacção, nomeadamente da prisão preventiva, como sempre defendemos em situações análogas - no mesmo sentido vejam-se:

Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto:
Relator: António Cabral
Data do Acórdão: 06-01-93
Votação: Unanimidade
Sumário: É ilegal a detenção do arguido pela Polícia Judiciária, fora de flagrante delito, sem a emissão de mandados de detenção, pelo que, apresentado aquele a interrogatório, o juiz de instrução criminal não deve validar a detenção, embora possa ordenar que o arguido aguarde os ulteriores termos do processo em prisão preventiva se considerar verificados os respectivos pressupostos.
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Relator: Fonseca Guimarães
Data do Acórdão: 22-02-95
Votação: Unanimidade
Sumário: Os requisitos previstos no n° 2 do artº 257º do C.P.P. para a detenção fora de flagrante delito têm de verificar-se cumulativamente. A falta de um deles leva à ilegalidade da detenção; Mas mesmo em tal caso, sempre o juiz pode ordenar a prisão preventiva desde que presente o condicionalismo previsto, em termos gerais, nos artigos 196 a 202, 204 e 205 daquele diploma, para aplicação das medidas de coacção e verificada a inadequação ou insuficiência de qualquer outra.
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Relator: Castro Ribeiro
Data do Acórdão: 11-12-91
Votação: Unanimidade
Sumário: apesar de a detenção levada a cabo pela GNR ter sido considerada ilegal, por não ter ocorrido em flagrante delito, nada impede, designadamente o n. 1 do Art. 261 do C.P.P., que o juiz, no mesmo despacho determine a prisão preventiva.
Havendo indícios de que os arguidos cometeram um crime de homicídio p. e p. pelo Art. 131, do C.P., devem aguardar os ulteriores termos do processo sob prisão preventiva porque:
a) o Art. 209 do C.P.P. estabelece “como que uma presunção de insuficiência de qualquer medida de liberdade provisória”;e
b) a indiciada falta de verdade das versões que os arguidos apresentaram permite concluir pelo concreto perigo de, postos em liberdade, procurarem dificultar a obtenção de provas no sentido do apuramento da verdade.
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Relator: Vaz dos Santos
Data do Acórdão: 30-10-91
Votação: Unanimidade
Sumário: o actual C.P.P. diferencia os conceitos de detenção e de prisão preventiva atenta a sua finalidade, o período de duração e a qualidade processual dos sujeitos passivos.
A detenção é a privação da liberdade para, no prazo de 48 horas, o detido ser submetido a julgamento sob a forma sumária ou ser presente ao juiz competente para o primeiro interrogatório ou para assegurar a sua presença imediata perante o juiz em acto processual ...
Em caso de ilegalidade do acto de detenção por essa ter tido lugar fora de flagrante delito por ordem da autoridade de polícia criminal sem ocorrerem os requisitos do artigo 257 do Código de Processo penal, o juiz, não obstante, pode manter a privação da liberdade do detido impondo-lhe a sujeição a prisão preventiva se estiver verificado o respectivo condicionalismo.
Flagrante delito por extensão ou presumido quando o agente é perseguido imediatamente a seguir à prática do crime ou encontrado com objectos ou sinais claramente demonstrativos de que acabou de o cometer ou de nele participar.
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2 - Factos que lhe são concretamente imputados, incluindo, sempre que forem conhecidas, das circunstâncias de tempo, lugar e modo:
Factualidade fortemente indiciada:
No dia 16 de junho de 2014, ocorreram cinco fogos no eucaliptal no …, …, Valongo, tendo ardido uma area total de 7HA de floresta (eucaliptal).
No dia 17 de junho de 2014, ocorreu incêndio no arvoredo que ladeia a via pública, na Rua …, …, Valongo.
O combate aos incendios mobilizou diversas viaturas de combate a incêndios dos Bombeiros Voluntários de Valongo.
Factualidade não indiciada:
Não se indicia a demais factualidade supra referida e que determinou a apresentação do arguido a juízo.
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3- Motivação:
No que concerne á motivação dos factos indiciados e não indiciados cumpre desde logo referir que o arguido usou do direito a não prestar declarações, sendo certo que a informação de serviço de fls. 2 a 4 não constitui qualquer meio de prova, antes recolha prévia de informação criminal, a reportagem fotográfica inócua quanto à imputação ao arguido dos factos pelos quais o MP considerou indiciados.
As “informações de serviço” só por si e desde que não sejam obtidas mediante métodos ofensivos da dignidade humana, tal como decorre do art. 25° da CRP e se precisa no art. 126° do CPP, não se podem considerar um método proibido de prova. Aliás, tais informações de serviço nem se podem considerar um meio de prova, já que não visam a demonstração de factos criminalmente relevantes (art.124°), correspondendo antes ao tratamento policial de noticias de crime que normalmente se situam numa fase propedêutica da investigação policial. Acórdão da Relação do Porto Recurso n.º 451/09.5JAPRT-Al.
No que concerne aos depoimentos de fls. 21, 22 e ss, pese embora se possa inferior ter sido o condutor do veículo ..-AJ-.. (pela circunstância de os fogos terem ocorrido quando o referido veículo passou nos locais) e segundo a testemunha E…, o veículo passou por diversas vezes, nos dois sentidos da estrada o que levou a que apontassem a matricula e que os focos de incêndio tenham ocorrido pouco depois da viatura passar na estrada e um outro foco ocorreu no loca e que junto se encontrava uma viatura com características idênticas à viatura suspeita, certo é que o arguido usou do direito a não prestar declarações.
Acresce que não foi inquirido o pai do arguido, nem sequer as pessoas Assim sendo e á mingua de quaisquer outros elementos probatórios não se considera fortemente indiciado ter sido o arguido o autor dos factos que lhe são imputados.
Com efeito a prova até então recolhida não nos permite, neste momento, concluir pela existência dos incontornáveis fortes indícios da prática de crime doloso.
Que deve ser entendido como “fortes indícios”?
A este propósito, para compreendermos, primeiro, qual a noção de indício, nada melhor do que citar o Acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra, de 10/12/2008, Processo n.º 645/08.5PBFIG-A.C, relatado pelo Exmo. Desembargador Gabriel Catarino, onde consta o seguinte: “A nossa lei, à semelhança da lei italiana - cfr. artigo 2730 do Codice di Procedura Penale -, estabelece dois momentos de qualificação indiciária no percurso processual da averiguação da responsabilização ou inculpação penal do arguido: um primeiro na alínea a) do n° 1 do artigo 202º do Código de Processo Penal quando exige que para decretamento da medida de coacção de prisão preventiva se torna necessária a existência de “fortes indícios”; e um segundo no nº 1 do artigo 283 do mesmo diploma quando exige que, para dedução da acusação, se torna necessário que durante o inquérito se haja reunido ou recolhido “indícios suficientes”.
Ainda que não atinando com o tema que versa o thema decidendum, convirá conferir o que na doutrina se sugere dever entender-se por indícios, graves indícios e indícios suficientes.
“O indício em sentido técnico, é uma circunstância certa, um dato objectivo, um traço sensível que, apesar de não representado directamente no thema probandi, consente que se chegue a ele por via inferencial. Diversamente da prova representativa (dita também 'histórica' ou 'directa'), que tem por objecto próprio o facto-crime descrito na acusação, a prova indiciária (dita também “critica” ou “lógica” ou “indirecta”, versa sobre um facto diverso, do qual mediante um procedimento lógico, se pode alcançar ao ilícito penal imputado ao arguido. “Quando (ao juiz) é requerida uma confirmação do libelo acusatório, para pronunciar, não deve dispor, certamente, de uma prova certa de culpabilidade do sujeito, mas deve estar em posição de formular um juízo cautamente e seriamente probabilístico em ordem à culpabilidade. Os elementos de que dispõe devem ser de tal modo a consentir, pela sua consistência, prever que, através da futura aquisição de ulteriores elementos, serão idóneos a demonstrar a responsabilidade e a fundar, no entretanto, uma qualificada probabilidade de culpabilidade.
Os indícios distinguem-se, quanto à espécie: a) - pela força probatória, em indícios manifestos, próximos ou remotos; b) - pela sua extensão, em indícios comuns ou gerais e indícios próprios ou especiais; c) - do ponto de vista cronológico, em antecedentes, concomitantes e subsequentes; d) - situando-se unicamente no ponto de vista das circunstâncias probatórias.
O autor italiano Pietro Ellero, intentou um estudo metódico dos principais indícios, tendo fornecido, deles, uma classificação lógica de acordo como seu papel incriminador, em três grupos: 1° - as condições morais e fisicas que tornaram possível o delito da parte do acusado e que comprovam, por assim dizer, o delito virtual: são elas a capacidade de cometer o delito investigado, a oportunidade em cometê-lo e o móbil delitivo;2° os rastos materiais deixados pela execução do delito; 3° as manifestações do culpado e de terceiros, seja antes seja depois do acta.
“(Prova)indiciária é uma prova mediante uma pluralidade mais ou menos grande de indícios: está dirigida - diz Rittler - para (ou em direcção) a uma pluralidade de coisas indiciárias”. “Ellero estabelece como princípio que, se vários indícios se relacionam com uma só causa, o seu concurso vale como indício necessário; porque indica assim, necessariamente, o facto em questão. Por isso, a prova indiciária é perfeita quando os indícios assinalam necessariamente o facto como causa de quanto se haja manifestado. Os indícios isolados são “contingentes”, quer dizer, não aportam senão indicações ou suspeitas; no entanto, os indícios diferentes e concordes valem como necessários, quer dizer, proporcionam uma verdadeira prova”, - François Gorphe, Apreciación Judicial de las Pruebas, pago 281- que, mais adiante, - op.1oc. cito 286 - refere, que o valor da prova indiciária, mais que qualquer outra, depende do juiz “por ser sua incumbência, no momento em que constitui a operação mental de interpretação dos factos e de reconstrução do acordo com os dados fragmentários. Este trabalho requer por sua vez uma sólida lógica, psicologia penetrante, bastante experiência da vida e extensos conhecimentos sobre os diferentes problemas que possam plantear-se no processo”. - op. loco cito Pago 286.
A jurisprudência com variações semânticas pouco dissonantes tem vindo a definir indícios suficientes como aquele conjunto de elementos lógico-materiais, que socavados de verificações e percepções sensoriais objectivas, se congraçam, de acordo com as regras da experiência comum, numa convicção alicerçada quanto à existência e ocorrência de um determinado facto histórico.
Por indicios suficientes entendem-se vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer da existência de um facto jurídico-penalmente relevante e de que deve ser imputável a alguém determinado, devendo ou podendo ser previsível que, num juízo de prognose, solidamente estruturado a escorado, a manterem-se em julgamento, ocorrerão fundadas e sérias probabilidades de conduzir a uma condenação do arguido pelos factos típicos que lhe são imputados.
Na indiciação em fase de inquérito, ou seja numa fase em que os elementos colectados ainda não foram objecto de contraditório, o grau de convencimento do juiz e de ponderação de imputação causal de determinado agir ao um concreto sujeito está dependente das regras de experiência e do sentido lógico representativo com que uma dada realidade percepcionada se prefigura ao discernimento e compreensibilidade do julgador. O juiz pode, nesta fase, socorrer-se das inferências permitidas por um conjunto de elementos que soem ocorrer em situações ou casos similares, observando sempre que as máximas de experiência atinam com factores de aleatoriedade que podem conduzir a juízos erróneos ou de defeituosa avaliação.”
Fortes indícios e indícios suficientes reportam-se a realidades diversas, por isso são juízos distintos em momentos processuais diversos.
Sobre o que se entende por “fortes indícios”, escrevem Simas Santos e Manuel Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, I Volume, pág. 995: “Quando a lei fala em fortes indícios há que ter em conta a compreensão ou abrangência exacta dessa realidade, pois que o legislador se não limitou a falar em indícios, mas em fortes indícios, o que inculca a ideia da necessidade de que a suspeita sobre a autoria ou participação no crime tenha uma base de sustentação segura. Isto é: não basta que essa suspeita assente não haja indícios seguros de que com toda a probabilidade venha a ser condenado pelo crime imputado” ...)”
Concluindo, o traço impressivo que o legislador quis deixar ao aplicador foi o de que os indícios têm que ser sólidos e inequívocos ou na terminoligia italiana, indícios certos, precisos e concordantes, como se exprime o artigo 192º, n. °2 do Código de Processo Penal italiano.
Nos termos já referidos, a prisão preventiva ou a promovida proibição e imposição de condutas [artº 2000 do CPP) exige a existências de “fortes indicios da prática de crime doloso” ou seja, “fumus comissi delicti” - arts. 192.º, n.º 2, e 200.°, n.º 1, e 202°, nº 1, do Código Processo Penal: É sempre necessário que se encontre indiciada a prática de um crime pelo arguido (a indiciação do crime necessária para aplicação de uma medida de coacção significa “probatio leuior”, isto é, a convicção da existência dos pressupostos de que depende
a aplicação ao agente de uma pena ou medida de segurança criminais, mas em grau inferior à que é necessária para a condenação. (...) não pode exigir-se uma comprovação categórica da existência dos referidos pressupostos, mas tão-só, face ao estado dos autos, a convicção de que o arguido virá a ser condenado pela prática de determinado crime” (Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, II, 1993, p. 209 e 210);
Para a aplicação da prisão preventiva a lei exige que estes indícios sejam fortes (embora não seja ainda de exigir a comprovação categórica, sem qualquer dúvida razoável, é pelo menos necessário que face aos elementos da prova disponíveis seja possível formar a convicção sobre a maior probabilidade de condenação do que de absolvição» - Germano Marques da Silva, ob. cit., p. 210).
Vistos, o que se entende por fortes indicios, conforme já referido, entendemos que da prova até então recolhida não resultam fortes indícios da prática dos factos invocados no despacho que determinou apresentação do arguido a juízo.
Note-se que o arguido não prestou declarações, não foi inquirido o pai do arguido nem as pessoas que terão estado com o arguido na altura dos incêndios, nem foi apreendido ao arguido qualquer fonte de combustão, nomeadamente as “bichas de rabiar”.
Apenas se indicia que alguém, que não propriamente o arguido (note-se que o pai do arguido não foi inquirido, nem as pessoas indicadas pelo arguido como tendo estado com ele na altura dos incêndios) se fazia transportar no veículo ..-AJ-.. nos locais onde ocorreram os incêndios e de uma forma suspeita, o que levou a que Senhor Adjunto do Comando dos Bombeiro Voluntários de Valongo tenha achado estranho e tenham apontado a matricula dessa viatura.
Como quer que seja, estando há muito ultrapassada a velha teria do “dolus in re ipsa”, inexistindo em processo penal qualquer ónus de prova que recaia sobre o arguido, ou qualquer presunção de culpabilidade [recordam-se, a propósito, estas belas palavras do Prof. Figueiredo Dias: “(...) la presomption d 'innocence mêne à considerer comme illégitime toute presomption de culpabilité, de dol ou de négligence (faute). Il s`agit en effet, d'elements dont la preuve (comme celle de toute autre élement nécessaire à la décision) doit être présenté par l'accusatiion, ou, de toute façon, obtenue par le tribunal" (La Protection des Droits de L'Homme dans la procédure pénale portugaise, B. M. J. n.º 291, pág. 174), na ausência de prova, ao tribunal nada mais resta, neste momento, face aos elementos probatórios constantes dos auto, do que dar por não indiciados os factos que o MP imputou ao arguido e que determinaram a apresentação deste ajuízo.
4-: Incriminação e aplicação da medida de coacção
Os factos indiciados não permitem, neste momento, concluir pela imputação ao arguido dos factos que o MP considerou indiciados, razão pela qual determino que o arguido B… fique sujeito a TIR nos termos do disposto nos art.ºs 191.° e 196.° ambos do C.P.P.»

Apreciação
De harmonia com o disposto no art.412.º n.º1 do C.P.Penal o âmbito do recurso é delimitado pelo teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só podendo o tribunal ad quem apreciar as questões dessa forma sintetizadas, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso.
Atentando nas conclusões apresentadas, as questões trazidas à apreciação deste tribunal são as seguintes:
-deve, ou não, ser considerada ilegal a detenção do arguido B… pela autoridade policial;
- a medida de coacção aplicada.
Por sua vez, o recorrido suscita, como questão prévia, a inadmissibilidade de recurso quanto à decisão que não aplicar as medidas de coacção promovidas pelo Ministério Público.
Começaremos, assim, por apreciar esta questão prévia.
Dispõe o art.219.º do C.P.Penal, na versão introduzida pela Lei n.º26/2010, de 30/8:
«1- Da decisão que aplicar, substituir ou mantiver medidas previstas no presente título, cabe recurso a interpor pelo arguido ou pelo Ministério Público, a julgar no prazo máximo de 30 dias a contar do momento em que os autos forem recebidos.
2- Não existe relação de litispendência ou de caso julgado entre o recurso previsto no número anterior e a providência de habeas corpus, independentemente dos respectivos fundamentos.»
Esta redacção substituiu a introduzida pela Lei n.º48/2007, de 29/8, que estabelecia:
«1- Só o arguido e o Ministério Público em benefício do arguido podem interpor recurso da decisão que aplicar, mantiver ou substituir medidas previstas no presente título.
2- [Actual redacção]
3- A decisão que indeferir a aplicação, revogar ou declarar extintas as medidas previstas no presente título é irrecorrível.
4- O recurso é julgado no prazo máximo de 30 dias a partir do momento em que os autos forem recebidos».
A Lei n.º26/2010, retoma genericamente o regime originário, que preceituava «Sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes, da decisão que aplicar ou mantiver medidas previstas no presente título há recurso, a julgar no prazo máximo de 30 dias a partir do momento em que os autos forem recebidos».
Face à redacção originária, colocou-se a dúvida se era recorrível a decisão que não aplicasse, revogasse ou declarasse extinta uma medida de coacção, tendo a doutrina tomado posições divergentes. Assim, Germano Marques da Silva pronunciou-se em sentido negativo[1], enquanto Maia Gonçalves[2] e Nuno Brandão defenderam que o recurso era admissível[3]. Como afirmava Maia Gonçalves, «Baseando-se na referência que o texto legal deste artigo faz a decisão que aplicar ou mantiver medidas previstas no presente título vêm alguns autores sustentando que é irrecorrível a decisão que não aplique ou que revogue uma medida de coacção. Cremos no entanto que esta asserção deve ser rejeitada, pois contraria frontalmente o disposto no art.399.° e a regra favorabilia amplianda, que norteia a admissibilidade dos recursos. Na verdade, nada mais existe na lei que contrarie a admissibilidade de recurso nos apontados casos e este artigo não tem o alcance que os aludidos autores dele querem extrair, mas tão somente o de significar que os recursos de decisões que aplicam medidas de coacção têm uma tramitação mais rápida e expedita, como aqui se prevê. Os restantes recursos interpostos de decisões que não apliquem ou que revoguem medidas de coacção têm a tramitação normal, do título I do Livro IX.»
Face à actual redacção do n.º1 do art.219.º, afigura-se-nos que também é admissível o recurso de decisão que não aplicar medida de coacção promovida pelo Ministério Público. «A versão actual do art.219.º n.º1 do C.P.Penal, que revogou a redacção que expressamente vedava a o recurso, conjugada com a regra do art.399.º do C.P.Penal, que prevê o princípio geral da recorribilidade de todas as decisões, leva a concluir pela posição que admite o recurso das decisões em referência.»[4]
Com efeito, da alteração da redacção do art.219.º cabe retirar as devidas ilações, pois não é indiferente que deste dispositivo tenha sido expurgada a referência à inadmissibilidade do recurso relativamente a decisão que indeferir a aplicação, revogar ou declarar extintas as medidas de coacção. Embora o legislador não refira expressamente que o n.º 3 do art.219.º foi revogado – cfr. art.4º da Lei n.º26/2010 -, não se compreende que tenha sido outro o entendimento do legislador ao alterar a redacção do art.219.º.
Aderindo à argumentação expendida pelo Conselheiro Maia Costa, entendemos que in casu é admissível recurso da decisão que não aplicou as medidas de coacção promovidas pelo Ministério Público.
Decidida esta questão, cabe agora atentar nas questões suscitadas no recurso.
1ªquestão: O despacho recorrido considerou ilegal a detenção do arguido B… por não se verificarem os requisitos previstos no art.257.º n.º2 do C.P.Penal nem «o requisito genérico comum a esses requisitos, ou seja, a verificação de fundadas razões para se considerar que o visado não se apresentaria voluntariamente perante autoridade judiciária no prazo que lhe fosse fixado».
Dispõe o art.257.º n.º2 do C.P.Penal:
«As autoridades de policia criminal podem também ordenar a detenção fora de flagrante delito, por iniciativa própria, quando:
a) Se tratar de caso em que é admissível a prisão preventiva;
b) Existirem elementos que tornem fundados os receios de fuga ou de continuação da actividade criminosa; e
c) Não for possível, dada a situação de urgência e de perigo na demora, esperar pela intervenção da autoridade judiciária.»
Conforme resulta da conjunção «e» os requisitos previstos nas três alíneas deste dispositivo legal são cumulativos.
Refere o Sr.Juiz a quo que, para além destes requisitos, há um requisito genérico comum para a detenção fora de flagrante delito, seja o mandado emitido pelo Juiz, pelo Ministério Público ou pela autoridade policial, requisito esse que se traduz em haver sérias razões para crer que o visado não se apresentaria voluntariamente perante a autoridade judiciária.
Este requisito mais não é do que o perigo de fuga[5], a que se faz referência expressamente na al.b) do n.º2 do preceito em análise, pelo que se nos afigura não se tratar de requisito que acresce aos previstos no n.º2, pois já aí está previsto.
Atentemos se, na situação em apreço, estes requisitos se verificam ou se não estão preenchidos, como sustentado no despacho recorrido.
No caso vertente, os crimes indiciados são de incêndio florestal p. e p. pelo art.274.º n.º1 do C.Penal com pena de prisão de 1 a 8 anos, ou seja, crimes que admitem a prisão preventiva.
Já quanto ao requisito do perigo de fuga, analisados os elementos constantes dos autos não há elementos factuais que permitam extrair tal conclusão. Na verdade, embora o Sr. Coordenador de Investigação Criminal, a fls.32, refira que «existe um fundado receio de que o arguido, a partir de agora, se pretenda eximir ao controlo das Autoridades, Policiais e Judiciárias, constituindo um foco de insegurança e instabilidade social, bem como perturbando os ulteriores termos processuais, no que tange à aquisição e conservação da prova (…)», o certo é que não há dados no processo que permitam fundadamente afirmar que há perigo de fuga.
Na verdade, o arguido tem residência fixa, família e exerce a profissão de electricista, pelo que não se vislumbra em que razões concretas o Sr. Coordenador da Investigação Criminal se baseou para afirmar que o arguido, a partir do momento em que foi ouvido pela Policia Judiciária, não se apresentaria voluntariamente perante às autoridades judiciárias quando notificado para o efeito. Na perspectiva daquele Sr. Coordenador, sempre que correr uma investigação criminal contra determinada pessoa, é de presumir o perigo de fuga por parte desta, raciocínio que é de arredar completamente uma vez que o perigo de fuga tem de se fundar em razões concretas, tais como, pessoa que tem laços familiares no estrangeiro ou não estar inserida profissionalmente, o que facilita a sua deslocação para lugares distantes.
Porém, se não existe o concreto perigo de fuga, entendemos, compulsados os elementos dos autos, que há efectivo perigo de continuação da actividade criminosa. Os incêndios ocorreram nos dias 16/6/2014 e 17/6/2014, sendo que, nos referidos dois dias, foi visto nas proximidades dos locais onde deflagraram os incêndios um carro com idênticas características e que a Policia Judiciária identificou como pertencendo ao pai do arguido, o qual afirmou que tal veículo era conduzido pelo seu filho. Se os incêndios foram ateados em dias seguidos, era muito provável que o autor dos crimes, repetisse a sua actuação e ateasse outros fogos.
Pese embora, o Sr. Coordenador de Investigação Criminal, não tenha explicitado as razões do perigo de continuação da actividade criminosa, bastando-se com a afirmação genérica de que «sendo óbvio que ainda acresce o perigo de continuação da actividade criminosa», o relato que faz das diligências levadas a cabo, permite concluir pelo fundado perigo de continuação da actividade criminosa.
Por último, cabe atentar se está preenchido o requisito previsto na al.c) do n.º2 do art.257.º do C.P.Penal.
Compulsados os autos, constata-se que foram inquiridas duas testemunhas, inquirições que tiveram lugar ao longo da tarde, após o que se procedeu a diligências no sentido de apurar quem era o dono do veículo que foi visto a circular junto aos locais onde deflagraram os incêndios e só perante a informação por parte dele, é que foi possível contactar com o suspeito, o qual veio a ser constituído arguido e interrogado nessa qualidade, interrogatório que teve lugar pelas 21h 45m. Só após estas diligências, foi possível avaliar da existência dos fortes indícios dos crimes de incêndio florestal, ou seja, quando os serviços do Ministério Público já estavam encerrados. A afirmação do Sr.Juiz a quo de que «nos casos em que a detenção pode ser perspectivada como o resultado possível de diligências programadas, ficará arredada a intervenção subsidiária das autoridades de polícia criminal» não pode ser tomada em termos absolutos, pois, na maioria das vezes, há necessidade de aguardar pela conclusão das diligências, para concatenar os vários indícios recolhidos e apenas em face da sua conjugação, determinar a detenção.
In casu, como a conclusão de todas as diligências de recolha de indícios da prática dos crimes de incêndio ocorreu já depois do encerramento dos serviços do Ministério Público e a demora da detenção levava ao perigo de continuação da actividade criminosa pelas razões supra apontadas, afigura-se-nos que estão verificados os requisitos de legalidade da detenção por autoridade policial fora de flagrante delito constantes das al.a), b) e c) do n.º 2 do art. 257.º do C.P.Penal.
2ªquestão: medida de coacção aplicada
O recorrente insurge-se por não ter sido aplicada ao arguido outra medida de coacção para além de TIR, sustentando que existe perigo de continuação da actividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, pelo que só as medidas de obrigação de apresentação periódica no posto policial, com a periodicidade bissemanal e de proibição de aproximação e de permanência em zona florestal se mostravam adequadas às exigências cautelares existentes in casu.
As medidas de coacção são meios processuais que limitam a liberdade pessoal do arguido, tendo em vista assegurar a eficácia da administração da justiça penal.
Na escolha da medida de coacção, o juiz tem de atender aos critérios que decorrem dos princípios da legalidade (art.191.º do C.Penal), da necessidade, adequação e proporcionalidade (art.193.º n.º1 do C.P.Penal).
O princípio da legalidade exprime-se no art.191.º do C.P.Penal pela circunstância da liberdade das pessoas só poder ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coacção e de natureza patrimonial previstas na lei.
Por sua vez, os princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade estão consagrados no art.º 193.º do C.P.Penal que estabelece:
«1 - As medidas de coacção e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
2 - A prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção.
3 - Quando couber ao caso medida de coacção privativa da liberdade nos termos do número anterior, deve ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação sempre que ela se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares.
4 - A execução das medidas de coacção e de garantia patrimonial não deve prejudicar o exercício de direitos fundamentais que não forem incompatíveis com as exigências cautelares que o caso requerer.»
Em conformidade com estes princípios, dentro do elenco das medidas de coacção previstas na lei, o juiz deve escolher, em cada caso concreto, a medida de coacção adequada e proporcionada.
O art.204.º do C.P.Penal estabelece os requisitos gerais para aplicação de qualquer medida de coacção, à excepção do termo de identidade e residência:
-fuga ou perigo de fuga;
-perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou
-perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e tranquilidade públicas.
No caso vertente, atentos os elementos de prova recolhidos nos autos, designadamente os depoimentos das duas testemunhas inquiridas, que afirmaram ter visto um veículo com determinadas características junto aos locais onde deflagraram os incêndios e momentos antes de tal acontecer, veículo que veio a ser identificado como pertencente ao pai do arguido, o qual o havia emprestado ao filho, é de concluir pela existência de indícios suficientes de que o arguido incorreu na prática de sete crimes de incêndio florestal, p. e p. pelo art.274.º n.º1 do C.Penal, com pena de prisão de um a oito anos, não obstante ser necessária uma investigação mais aprofundada no sentido de se esclarecerem alguns aspectos, designadamente, quais as pessoas com quem o arguido afirmou ter estado quando deflagraram os incêndios e onde se encontravam, desde quando o arguido circulava com o veículo do seu pai.
A decisão recorrida andou mal ao não atender minimamente à informação de serviço constante dos autos, baseada em actos cautelares de recolha de prova e que apontam no sentido de indícios de que o arguido fez deflagrar os incêndios em causa.
E face aos indícios recolhidos, temos de concluir pela existência de perigo de continuação da actividade criminosa, pois os factos ocorreram em dias seguidos, o que aponta para um agente que tem satisfação nas condutas que leva a cabo e consequentemente sentir-se-à tentado a repeti-las.
De acordo com os princípios de adequação e proporcionalidade, a obrigação de apresentação semanal, ao Sábado, no posto da autoridade policial da área da sua residência afigura-se adequada e suficiente, sendo que a aplicação de outra medida é demasiado gravosa face às exigências cautelares que o caso em concreto requer.
Quanto à promovida medida de proibição de aproximação e de permanência em zona florestal, tem como requisito específico, a existência de fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos, quando é certo que no caso presente há indícios da pratica dos crimes de incêndio por parte do arguido, mas não se pode falar ainda de fortes indícios. Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica, 3ªedição, pág.330, “indícios fortes” são «as “razões” que sustentam e revelam uma convicção indubitável de que, de acordo com os elementos conhecidos no momento de prolação de uma decisão interlocutória, um facto se verifica. Este grau de convicção é o mesmo que levaria à condenação se os elementos conhecidos no final do processo fossem os mesmos do momento da decisão interlocutória». In casu, é necessário proceder a várias diligências de recolha de prova, designadamente à inquirição das testemunhas com as quais o arguido afirmou ter estado aquando da deflagração dos incêndios, para se poder concluir, ou não, pela forte indiciação de que é o autor dos incêndios.
Tudo ponderado, tendo em atenção a gravidade dos crimes indiciados e afigurando-se necessário evitar que o arguido prossiga a actividade criminosa e de forma a evitar perturbação da tranquilidade pública, pelo alarme social que os incendiários provocam, entende-se como medida adequada e suficiente, a obrigação do arguido se apresentar uma vez por semana, ao Sábado, entre as 8h e as 21 horas, no posto da autoridade policial da área da sua residência [art.198.º do C.P.Penal].

III - DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, os juízes na 1ªsecção criminal do Tribunal da Relação do Porto concedem parcial provimento ao recurso e em consequência:
1-revogam o despacho recorrido, declarando legal a detenção do arguido B… ordenada pelo coordenador da investigação criminal,
2-aplicam ao arguido B…, para além do TIR, já prestado, a medida de obrigação de comparecer, uma vez por semana, ao sábado, entre as 8h e as 21h, no posto da autoridade policial da área da sua residência.
Sem custas.
[texto elaborado em computador pela relatora e revisto por ambas as signatárias]

Porto, 17/12/2014
Maria Luísa Arantes
Ana Luísa Bacelar
____________
[1] Cfr. Curso de Processo Penal, tomo II, 3ªedição, pág.320
[2] CPPenal Anotado, 12ª edição, pág.473
[3] “Medidas de coacção: o procedimento de aplicação na revisão do Código de Processo Penal”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 18, n.º1, pág.105/106
[4] Código de Processo Penal Comentado, 2014, anotação do Conselheiro Maia Costa ao art.219.º, pag.902/903
[5] V. Código de Processo Penal Comentado, 2014, pág.947, anotação 3, efectuada pelo Conselheiro Maia Costa