Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1136/18.7T8VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FÁTIMA ANDRADE
Descritores: HERANÇA INDIVISA
LEGITIMIDADE
DÍVIDA DA HERANÇA
DÍVIDAS DO FALECIDO
Nº do Documento: RP201911041136/18.7T8VFR.P1
Data do Acordão: 11/04/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Os titulares dos direitos e deveres da herança aceite mas que se mantém indivisa, em comum e sem determinação de parte, são os herdeiros/sucessores do autor daquela herança.
Não a própria herança aceite mas indivisa, a qual não é sujeito de direitos, não dispõe de personalidade judiciária e como tal não pode ser parte ativa nem passiva.
Só quem é parte pode ser condenado ou absolvido.
II - Pelos encargos da herança, incluindo as dívidas do falecido responde o património autónomo constituído pelos bens da herança indivisa.
Sendo para esse fim demandados os herdeiros/sucessores nessa qualidade.
III - Em ação na qual são RR. os herdeiros/sucessores do autor de herança indivisa e aceite, em que a A. alega ser credora da herança e demandar os herdeiros (nessa qualidade) para que possa obter a responsabilização daquela herança “R”, é de entender que o pedido formulado pela A., embora imperfeitamente expresso, é o de condenação dos RR. na qualidade em que são demandados a reconhecer a existência do crédito reclamado da responsabilidade da herança.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº. 1136/18.7T8VFR.P1
3ª Secção Cível
Relatora – Juíza Desembargadora M. Fátima Andrade
Adjunta - Juíza Desembargador Eugénia Cunha
Adjunta - Juíza Desembargador Fernanda Almeida
Tribunal de Origem do Recurso - Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Jz. Local Cível de Santa Maria da Feira
Apelante/B…
Apelados/C… e outros

Sumário (artigo 663º nº 7 do CPC):
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I- Relatório
B… instaurou ação declarativa sob a forma de processo comum contra C… e outros, em suma tendo alegado:
- Os “RR. são os únicos e universais herdeiros de D…, falecido no pretérito dia 10/08/2017.”;
- Por factos praticados pelo falecido geradores de responsabilidade civil extracontratual, ocorridos em 2015 e que deram lugar à apresentação de queixa crime contra aquele [tendo na pendência do inquérito ocorrido o falecimento com o consequente arquivamento], sofreu a A. danos patrimoniais e não patrimoniais cuja indemnização por via desta ação peticiona.
Por tanto tendo peticionado pela procedência da ação a condenação da a pagar à Autora a quantia de € 4.850,00 a título de danos morais e, bem assim, a quantia de € 1.181,91 a título de danos materiais, num total de € 6.031,91 (€4.850,00+€1.181,91,00) acrescida de juros de mora vincendos a contabilizar desde a citação até efetivo e integral pagamento.”
Os RR. contestaram, em suma tendo impugnado a versão dos factos relatada pela autora e invocado a prescrição do eventual direito indemnizatório deduzido pela autora.
Tendo concluído pela improcedência da ação.
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Findos os articulados, foi pelo tribunal a quo proferido o seguinte despacho:
“Compulsados os autos verifica-se que a Autora intenta a presente ação contra uma pluralidade de Réus, melhor identificados nos autos, comungando o facto de serem os únicos e universais herdeiros de D…, a quem imputa a autoria dos factos ilícitos alegados na petição inicial passíveis, na sua perspetiva, de responsabilidade civil.
Termina a petição inicial, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 4.850,00 a título de danos morais e, bem assim, a quantia de € 1.181,91 a título de danos materiais, num total de € 6.031,91 (€4.850,00+€1.181,91,00) acrescida de juros de mora vincendos a contabilizar desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Verifica-se, assim, que o alegado direito de crédito de que a Autora se arroga provém de um facto praticado por D…, que, por força do seu falecimento, se repercute na esfera da respetiva herança.
Daí que enquanto esta permanecer indivisa o devedor é apenas um, ou seja, é aquele património autónomo, embora devendo ser representado em juízo por todos os herdeiros, nos casos referidos no artigo 2091.º do Código Civil.
Só após a partilha é que esse devedor desaparece, dando lugar a uma pluralidade de devedores, tantos quantos os herdeiros, sendo que a medida da responsabilidade destes determina-se pela proporção da quota que lhes tenha cabido na herança, não sendo necessariamente solidária entre eles.
Assim sendo, importa que a Autora esclareça contra quem efetivamente deduz o pedido formulado na petição inicial.
Concretamente, se o faz contra a herança indivisa não partilhada deixada por óbito de D… – devidamente representada por todos os herdeiros - ou se o faz individualmente contra cada um dos seus herdeiros.
É que no primeiro caso os herdeiros apenas podem ser condenados a reconhecer a existência do crédito sobre a herança e a ver satisfeito esse crédito pelos bens da herança (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28 de Janeiro de 2010, processo 81/09.1TBCHV.P1, in www.dgsi.pt), devendo, consequentemente, o pedido ser feito nessa conformidade.
Enquanto no segundo caso, cada um dos herdeiros responde diretamente pelo pagamento das dívidas da herança, na proporção da sua quota hereditária e até ao limite do que recebeu. Mas, neste último caso, para que seja possível a condenação dos próprios herdeiros é fundamental que já tenha sido efetuada a partilha, circunstância em que a Autora terá necessariamente de alegar ter ocorrido a partilha para que possa pedir individualmente a condenação dos herdeiros.
Destarte, convida-se a Autora, ao abrigo do disposto no art. 590.º, n.º 2, al. b) e 4 do Novo Código de Processo Civil, a esclarecer, no prazo de dez dias, contra quem deduz o pedido, devendo corrigi-lo em conformidade com o exposto, sob pena de eventual improcedência da ação.
Notifique.”
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Notificada deste despacho respondeu a A. nos seguintes termos:
1.º
Conforme consta dos autos, efetivamente, a presente ação tem como fundamento a indemnização por factos ilícitos praticados pelo “de cujus”, D….
2.º
Por conseguinte, responsável pelos alegados danos é a herança aberta por óbito daquele.
3.º
Sendo que, tanto quanto sabemos, embora indivisa a referida herança já foi aceite pelos aqui Réus.
4.º
Como tal, estando em presença de herança não jacente, a qual carece de personalidade judiciária (cfr. artigo 12.º, al.a) do CPC e douto Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 24/02/2015), de molde a acautelar tal personalidade judiciária e, bem assim, o disposto no n.º 1 do artigo 2091.º do C.Civil, a autora intentou a ação contra todos os seus herdeiros.
Termos em que, requeremos a V.Exa. se digne admitir e ordenar em conformidade.”
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Em face do assim informado, proferiu o tribunal a quo o seguinte despacho:
“ Em face dos esclarecimentos ora prestados conclui-se que a Autora formula o pedido contra os Réus, na sua qualidade de herdeiros da herança indivisa não partilhada deixada por óbito de D….
É certo que enquanto não for efetuada a partilha – por estar em causa uma herança indivisa – a ação destinada a exigir um crédito sobre a herança tem de ser instaurada contra todos os herdeiros.
Contudo, enquanto a herança permanecer indivisa, os herdeiros não têm qualquer responsabilidade direto pelo respetivo pagamento, pelo que não podem (eles próprios) ser condenados a pagar a dívida da herança, mas apenas e só ser condenados a reconhecer a existência do crédito sobre a herança e a ver satisfeito esse crédito pelos bens da herança.
Ora, considerando que o pedido define o objeto do processo e que a sentença não pode determinar efeitos jurídicos que as partes não abordam no desenvolvimento da lide, ou seja, não pode condenar em objeto diverso do pedido, afigura-se que o pedido formulado na petição inicial poderá, desde logo, ser improcedente.
Nestes termos e ponderando o preceituado no art. 3.º, n.º 3, do Novo Código de Processo Civil, notifique as partes para, querendo, se pronunciar, desde já, sobre a eventual improcedência do pedido.”
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Em resposta, veio a A. dizer:
1.º
Conforme referiu no seu anterior requerimento, a presente ação tem como fundamento a indemnização por factos ilícitos praticados pelo “de cujus”, D…, respondendo por tais danos a herança aberta por óbito daquele.
2.º
Razão pela qual, estando em presença de herança não jacente, a qual carece de personalidade judiciária (cfr. artigo 12.º, al.a) do CPC e douto Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 24/02/2015), de molde a acautelar tal personalidade judiciária e, bem assim, o disposto no n.º 1 do artigo 2091.º do C.Civil, a Autora intentou a ação contra todos os seus herdeiros.
3.º
Como se pode ler no douto Acórdão da Relação do Porto de 28/01/2010 “Nessa situação, os bens da herança indivisa respondem coletivamente pela satisfação dos respetivos encargos e, em conformidade com o disposto no art. 2091º, o credor da herança que pretenda exigir judicialmente o seu crédito apenas poderá fazê-lo contra todos os herdeiros.”
4.º
Porém, ao longo da petição inicial, quer a causa de pedir, quer o pedido formulado, apontam na responsabilização da herança e nunca dos seus herdeiros.
5.º
Tanto assim, que o pedido formulado e expresso na petição inicial é que seja “condenada a Ré a pagar à Autora a quantia de € 4.850,00 a título de danos morais e, bem assim, a quantia de € 1.181,91 a título de danos materiais, num total de € 6.031,91 (€4.850,00+€1.181,91,00) acrescida de juros de mora vincendos a contabilizar desde a citação até efetivo e integral pagamento”.
6.º
Por conseguinte, salvo o mui devido respeito pelo supra citado douto despacho, o pedido é de condenação da Ré (entenda-se a herança, verdadeira, responsável) e não dos herdeiros da Ré.
7.º
Ora, uma coisa é a Autora ter pedido, como efetivamente pediu, a condenação da Ré/Herança a pagar a indicada quantia, coisa bem diferente, seria a Autora ter pedido a condenação dos Réus a pagar essa mesma quantia, o que, in casu, não se verifica.
Nestes termos e nos mais de Direito doutamente supridos por V. Exa. deverá a presente ação seguir os seus legais trâmites, vindo a final a ser condenada a Ré (herança) conforme pedido efetivamente formulado pela Autora.”
Os RR., por referência a este mesmo despacho, responderam manifestando “a sua total concordância com o parecer nele contido.”

D) Tendo por base os seguintes pressupostos:
- “(…) a Autora intentou a presente ação contra uma pluralidade de Réus, melhor identificados nos autos, os quais comungam o facto de serem os únicos e universais herdeiros de D…, a quem imputa a autoria dos factos ilícitos alegados na petição inicial passíveis, na sua perspetiva, de responsabilidade civil, terminando a petição inicial pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de (…).
(…)”
- “Por requerimento datado de 26 de Junho de 2018 veio a Autor esclarecer que a presente ação tem como fundamento a indemnização por factos ilícitos praticados pelo “de cujus”, D…, sendo, por conseguinte, responsável pelos alegados danos é a herança aberta por óbito daquele.
Acrescenta que, embora indivisa, a referida herança já foi aceite pelos aqui Réus. Como tal, estando em presença de herança não jacente, a qual carece de personalidade judiciária (cfr. artigo 12.º, al. a) do CPC e douto Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 24/02/2015), de molde a acautelar tal personalidade judiciária e, bem assim, o disposto no n.º 1 do artigo 2091.º do C.Civil, a autora intentou a ação contra todos os seus herdeiros.
Perante os esclarecimentos prestados concluiu-se que a Autora formula o pedido contra os Réus, na sua qualidade de herdeiros da herança indivisa não partilhada deixada por óbito de D….”
- “a questão que se coloca está em saber se estando em causa um pretenso crédito sobre uma herança indivisa o pedido tal qual se encontra formulado nos autos tem condições para proceder.”
- “(…) os aqui Réus são demandados precisamente na qualidade de herdeiros – já que são todos eles os representantes da herança (2091.º do Código Civil) – tendo a presente ação por objeto a cobrança de encargos/dívidas da herança. Ora, o pedido ser formulado em conformidade com a pretensão que a Autora pretende fazer valer nesta ação, que se destina ao reconhecimento e cobrança de um pretenso crédito sobre a herança.
Daí que, porque se trata de uma herança indivisa não partilhada, tem que se pedir que “os herdeiros sejam condenados a reconhecer a existência do crédito sobre a herança e a ver satisfeito (ou a satisfazer) esse crédito pelos bens da herança”, e não nos termos em que a Autora o faz, pedindo a condenação da Herança Indivisa que não tem sequer suscetibilidade de ser parte no processo.”
- “(…) sendo os herdeiros os cotitulares de tal património (que não tem, insiste-se, personalidade jurídica e judiciária) são ainda e sempre eles que são condenados na ação contra eles movida, embora com a dupla restrição de serem condenados como herdeiros (como cotitulares de tal património autónomo) e da condenação estar limitada a ser satisfeita pelas forças/bens de tal património autónomo.”
- “Deste modo, considerando que o pedido define o objeto do processo e que a sentença não pode determinar efeitos jurídicos que as partes não abordam no desenvolvimento da lide, ou seja, não pode condenar em objeto diverso do pedido, e não tendo a Autora, na sequência do convite que lhe foi endereçado, retificado o pedido em conformidade com o posicionamento das partes no processo, é forçoso concluir pela improcedência do pedido deduzido nestes autos.”
Concluiu o tribunal a quo julgar “a presente ação totalmente improcedente e em consequência absolve os Réus do pedido formulado nos autos.”.
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Inconformada com o assim decidido, apelou a A. apresentado motivação em que formulou as seguintes

CONCLUSÕES:
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Contra alegaram os RR. em suma tendo pugnado pela improcedência do recurso face ao bem decidido pelo tribunal a quo.
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O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Foram dispensados os vistos legais.
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II- Âmbito do recurso.
Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito nem limitado ao conhecimento das questões de que cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e 639º n.ºs 1 e 3 do CPC – resulta das formuladas pela apelante ser questão única a apreciar se a afirmada manifesta improcedência do pedido, por peticionada a “condenação da R.” “entenda-se a herança, verdadeira responsável” é correta perante o objeto processual.
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III- Fundamentação
As vicissitudes processuais relevantes para o conhecimento do objeto do recurso são as acima já elencadas.
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Do direito.
Tal como decorre do disposto no artigo 2031º do CC., ocorrido o falecimento, abre-se a sucessão com a consequente vocação sucessória, sendo chamados à titularidade das relações jurídicas do falecido aqueles que gozam de prioridade na hierarquia dos sucessíveis, desde que tenham a necessária capacidade (art.º 2032º n.º 1 do C.C.).
Sendo que a herança aberta mas ainda não aceite, se diz jacente (art.º 2046º do C.C.).
Enquanto a herança está aberta mais ainda não foi aceite – herança jacente (vide artigo 2046º do CC) - pode-se falar da existência de sucessíveis mas não de sucessores, entendendo-se por estes aqueles que já aceitaram (tácita ou implicitamente – vide 2056º do C.C.) a herança.
Não tendo os possíveis sucessores (ou “sucessíveis”), respondido à vocação, aceitando ou repudiando a herança, subsiste a jacência da herança, a quem então e excecionalmente lhe é atribuída personalidade judiciária, nos termos do art.º 12º al. a) do CPC para que nessa qualidade e enquanto parte, possa (no que ora releva) ser demandada e como tal condenada.
Uma vez determinados estes, a herança reassume a sua condição de património autónomo de que são titulares os herdeiros sucessores do autor da herança e que passa a ser representada por todos estes ou tão só pelo cabeça de casal, dependendo do tipo de exercício de direito que esteja em causa.
A aceitação da herança tem-se in casu verificada, pelo próprio modo como os herdeiros demandados contestaram. Nem aliás é questão suscitada em sede de recurso.
Os titulares dos direitos e deveres da herança aceite mas que se mantém indivisa, em comum e sem determinação de parte, são os herdeiros/sucessores do autor daquela herança.
Não a própria herança aceite mas indivisa, a qual não é sujeito de direitos, não dispõe de personalidade judiciária e como tal não pode ser parte ativa nem passiva.
Só quem é parte pode ser condenado ou absolvido.

In casu a A. instaurou, corretamente, atenta a reconhecida indivisão da herança aceite, a ação contra os herdeiros do autor de tal herança.
E nessa medida verificam-se os pressupostos processuais da personalidade e capacidade judiciária, bem como da legitimidade.
A questão – fundamento da decisão recorrida – baseou-se na entendida desadequação do pedido formulado perante as partes e causa de pedir identificados pela autora.
Esta autora, não obstante ter instaurado a ação contra os herdeiros da herança indivisa – que na p.i. identificou como RR. - terminou formulando pedido condenatório contra a “R.”.
Após terem sido pedidos esclarecimentos à A., pelo tribunal a quo, sobre contra quem deduz o pedido, nomeadamente se o faz “contra a herança indivisa não partilhada deixada por óbito de (…) devidamente representada por todos os herdeiros” ou “se o faz individualmente contra cada um dos herdeiros” - esclarecendo que no último caso é fundamental que a herança tenha já sido partilhada e no primeiro caso que os herdeiros “apenas podem ser condenados a reconhecer a existência de crédito sobre a herança e a ver satisfeito esse crédito pelos bens da herança” – e consequentemente endereçado convite à correção do pedido formulado “(…) nessa conformidade” (sublinhados nossos), respondeu a A.:
- ser responsável pelos alegados danos a herança aberta por óbito de D…;
- ter a herança sido aceite e permanecer indivisa, pelo que “a autora intentou a ação contra todos os seus herdeiros”.
Não formulou a A. qualquer correção ao pedido, na sequência do por si informado, em conformidade com o que o tribunal a quo antes havia expresso ser o seu entendimento para esta última hipótese.
Certo sendo que do esclarecimento prestado ficou também claro que a A. não deduziu o pedido contra cada um dos herdeiros indicados e muito menos pretende a condenação destes a título individual [porquanto afirma a responsabilidade da herança].
Ao invés tendo demandado estes, conforme esclareceu, na qualidade de herdeiros porquanto pelos danos de que pretende ver-se ressarcida, afirma ser responsável a herança aberta por óbito de D…, herança que assim pretende ver condenada. Por tanto e para tanto tendo instaurado a ação contra todos os seus herdeiros (entende-se herdeiros do de cujus).
A pretensão da recorrente é clara: que seja o património autónomo a responder pelas dívidas da responsabilidade do de cujus.
E que é o património autónomo constituído pelos bens da herança indivisa que responde pela satisfação dos respetivos encargos incluindo as dívidas do falecido, é o que também resulta expressamente do disposto nos artigos 2068º e 2097º do CC.
Neste sentido se tendo de interpretar a sua repetida afirmação mesmo nas alegações de recurso de que pretende ver a condenação da R. herança.
Por outro lado a demanda dos herdeiros está também justificada pela autora no contexto da indivisão em que a herança se mantém.
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O tribunal a quo, porém, em face do esclarecido concluiu que:
- a A. formulou pedido “contra os Réus, na sua qualidade de herdeiros da herança indivisa não partilhada”, bem como que
- herdeiros que “não têm qualquer responsabilidade direto pelo respetivo pagamento, pelo que não podem (eles próprios) ser condenados a pagar a dívida da herança, mas apenas e só ser condenados a reconhecer a existência do crédito sobre a herança e a ver satisfeito esse crédito pelos bens da herança”.
Pelo que e por não poder o tribunal condenar em objeto diverso do pedido e afigurando-se-lhe nesta medida o pedido formulado improcedente, ordenou a notificação das partes para querendo se pronunciarem.
Pronunciou-se a A. reiterando:
- que pelos danos por si reclamados responde a “herança aberta por óbito” do autor da herança não jacente. Motivo por que intentou a ação contra todos os herdeiros do de cujus, pretendendo a responsabilização “da herança e nunca dos seus herdeiros”;
- sendo o pedido de condenação da R. “entenda-se a herança, verdadeira responsável” e “não dos herdeiros da R.”;
- ter pedido a “condenação da R./herança a pagar a indicada quantia”, não a “condenação dos Réus”.
No contexto já antes relatado, é de entender que estas afirmações visam reiterar que não pretende a A. a condenação dos herdeiros em nome individual.
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Na decisão sob recurso afirmou-se entre o mais:
- “os aqui Réus são demandados precisamente na qualidade de herdeiros – já que são todos eles os representantes da herança”;
- tem “a presente ação por objeto a cobrança de encargos/dívidas da herança.”
- “porque se trata de uma herança indivisa não partilhada, tem que se pedir que “os herdeiros sejam condenados a reconhecer a existência do crédito sobre a herança e a ver satisfeito (ou a satisfazer) esse crédito pelos bens da herança”, e não nos termos em que a Autora o faz, pedindo a condenação da Herança Indivisa que não tem sequer suscetibilidade de ser parte no processo.”
- (…) sendo os herdeiros os cotitulares de tal património (que não tem, insiste-se, personalidade jurídica e judiciária) são ainda e sempre eles que são condenados na ação contra eles movida, embora com a dupla restrição de serem condenados como herdeiros (como cotitulares de tal património autónomo) e da condenação estar limitada a ser satisfeita pelas forças/bens de tal património autónomo.”
- “Deste modo, considerando que o pedido define o objeto do processo e que a sentença não pode determinar efeitos jurídicos que as partes não abordam no desenvolvimento da lide, ou seja, não pode condenar em objeto diverso do pedido, e não tendo a Autora, na sequência do convite que lhe foi endereçado, retificado o pedido em conformidade com o posicionamento das partes no processo, é forçoso concluir pela improcedência do pedido deduzido nestes autos.”
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Em sede de recurso (vide as conclusões supra transcritas) a recorrente reitera que intentou a ação contra todos os herdeiros do de cujus para assegurar a respetiva legitimidade processual, mas não a legitimidade substantiva a qual está adstrita à herança.
Sendo esta – herança – a responsável pela dívida.
Nunca tendo sido pretensão da autora responsabilizar os herdeiros diretamente pela dívida [entende-se responsabilidade a título individual].
Motivo por que “peticionou a condenação da Ré (herança) e não dos Réus (herdeiros)”.
Tendo efetivamente pedido “a condenação da Ré (herança)” por ainda não ter ocorrido a partilha.
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Dos despachos e requerimentos a que acima fizemos alusão, incluindo conclusões de recurso, extrai-se que não obstante a A. ter corretamente intentado a presente ação contra todos os herdeiros da herança indivisa aberta por óbito de D…, repetidamente afirmou pretender a condenação da Ré herança.
Mas igualmente afirmou que demandou todos os herdeiros do de cujus na medida em que pelas dívidas da herança responde a herança.
O que é correto perante o disposto nos artigos 2068º e 2097º do CC já supra citados.

É ponto assente que a herança – indivisa mas aceite – não dispõe de personalidade judiciária e não é sujeito de direitos[1].
Herança que também é claro não foi demandada – demandados são os herdeiros do de cujus.
A demanda da herança aliás só seria possível em caso de herança jacente por via da extensão da personalidade judiciária prevista no artigo 12º do CPC. Só nesta situação sendo possível condenar a R. herança.[2].
A questão que analisamos não é de legitimidade processual, mas de procedência do pedido.
O tribunal a quo, em observância do dever de gestão processual, sobrepondo e bem o fundo à forma, esclareceu a A. sob os pressupostos condenatórios e moldes em que o pedido formulado poderia ser procedente [se demonstrados os pressupostos para tanto alegados] e convidou a A. a corrigir o seu pedido em conformidade com o que indicara antes.
A A. sem proceder a qualquer correção do pedido, alegou numa primeira resposta ser responsável pelos danos a herança e justificou por tal razão ter demandado os herdeiros do de cujus.
O assim declarado deixa margem para uma interpretação conforme à condenação dos RR. enquanto herdeiros a reconhecer a existência do crédito reclamado. Crédito este da responsabilidade da herança.
E assim entendido o pedido, ao tribunal incumbiria numa eventual procedência da ação, precisar os termos condenatórios, nomeadamente clarificando que o crédito seria satisfeito pelas forças da herança, ou seja que a satisfação daquele estaria limitado pelos bens que constituem o acervo hereditário.

O tribunal a quo, numa interpretação excessivamente rígida e formal concluiu que o pedido condenatório foi formulado - stricto sensu - contra a herança.
A qual não só não é parte, como não tem suscetibilidade de o ser [atento o facto de não ter personalidade judiciária].
E por esta via concluiu pela improcedência do pedido, porquanto ao tribunal está vedado condenar em objeto diverso do pedido.

A questão convoca as regras da interpretação definidas no CC, de acordo com as quais a declaração vale com o sentido que um declaratário normal colocado na posição do real declaratário poderá deduzir do comportamento do declarante (art.º 236º do C.C.).
“A normalidade do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante”[3].
No contexto acima já especificado quer quanto à pretensão concreta expressa pela autora, isto é, qual o fim último visado com a ação instaurada; quer quanto aos esclarecimentos que a autora e recorrente foi prestando no processo a solicitação do tribunal, ficou claro que a mesma não pretendia a condenação dos herdeiros a título individual. Ainda que a demanda dos mesmos resultou justificada pelo facto de serem os herdeiros do de cujus, pretendendo a responsabilização de toda a herança.
Resultando a demanda dos herdeiros portanto do facto de serem estes os titulares do direito à herança, em comum e sem determinação de parte
Tendo presente:
- que os RR. são efetivamente os herdeiros do de cujus, e de tal não há dúvida porquanto foram os demandados e citados para os termos da ação, que aliás contestaram sem que a qualidade em que foram demandados lhes tenha suscitado dúvidas, atentos os termos em que contestaram.
- que é certo ter a A. reafirmado pretender a condenação da “R” herança o que também explicou no contexto de responsabilidade da herança pelas dívidas do falecido nos termos legais já supra citados;
- que a herança não é parte por não ser sujeito de direitos e assim não podendo ser condenada, sendo antes os RR. quem são os titulares do direito à herança nos termos também já referidos;
- que a A. expressou de forma clara qual era o sentido das suas declarações e por tanto qual a pretensão jurídica deduzida;
justificava-se a nosso ver, numa sobreposição do fundo sob a forma, que o tribunal a quo tivesse considerado precisamente que o pedido formulado pela autora era o de condenação dos RR. – pois são estes os demandados - a reconhecer a existência do crédito reclamado da responsabilidade da herança.
Note-se que o assim determinado não viola o princípio do dispositivo de acordo com o qual está o tribunal vinculado a resolver o conflito que as partes sujeitam à sua apreciação – delimitado pela causa de pedir e pedido formulados, os quais definem o objeto do processo – porquanto embora imperfeitamente expresso, é claro o sentido do pedido formulado pela autora.

Nesta perspetiva, entende-se assistir razão à recorrente, implicando a revogação da decisão a qual deverá ser substituída por outra que – após considerar que o pedido formulado pela autora é o de condenação dos RR. enquanto herdeiros na herança aberta por óbito de D…, a reconhecer a existência do crédito reclamado pela autora e da responsabilidade da herança – determine o prosseguimento dos autos para apreciação das demais questões suscitadas.
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IV. Decisão.
Pelo exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente procedente o recurso interposto, consequentemente e revogando a decisão recorrida se determinando que o tribunal a quo considere que o pedido formulado pela autora é o de condenação dos RR., enquanto herdeiros na herança aberta por óbito de D…, a reconhecer a existência do crédito reclamado pela autora e da responsabilidade da herança.
Após prosseguindo os autos para apreciação das demais questões suscitadas.

Custas pelos recorridos.

Porto, 2019-11-04
Fátima Andrade
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
______________
[1] Vide Ac. TRL de 17/03/2011, nº processo 57/10.6TBVPT.L1-2 in www.dgsi.pt
[2] Cfr. Ac. TRG de 02/06/2016, nº processo 72/15.3T8VPA.G1, em cujo sumário se pode ler:
“2. A herança indivisa e não partilhada apenas goza de personalidade judiciária enquanto se mantiver na situação (tendencialmente transitória) de jacente.
3. A partir da cessação desta situação, operada mediante a sua aceitação por parte dos sucessíveis chamados, passa a não dispor de tal prerrogativa processual pelo que não poderá, em seu próprio nome, desempenhar o papel de parte processual em lide forense, demandar e ser demandada.”: ainda Ac. TRG de 07/12/2016, nº processo 74/15.0T8CHV-A.G1; Ac. TRP de 19/10/2015, nº processo 443/14.2T8PVZ-A.P1; Ac. TRC 24/09/2019, nº processo 348/18.8T8FND-A.C1, todos in www.dgsi.pt
[3] Ant. Varela in C.C.Anot., 4ª ed. P. 223 – nota 4.