Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
422/22.6T8VNG-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: CUSTAS
ISENÇÃO
INSTITUIÇÃO DE SOLIDARIEDADE SOCIAL
IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO
Nº do Documento: RP20230417422/22.6T8VNG-B.P1
Data do Acordão: 04/17/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO PROCEDENTE; DECISÃO REVOGADA.
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A isenção de custas prevista no art. 4º/1 f)/5/6 Regulamento das Custas Processuais tem natureza condicional e pressupõe a verificação de requisitos de natureza subjetiva e objetiva.
II - As instituições solidariedade social sem fins lucrativos beneficiam de isenção de custas quando atuam exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições; ou, quando defendem os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respetivo estatuto ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável; tais conceitos abarcam na sua literalidade os litígios que surjam ao nível dos seus órgãos representativos, as relações de trabalho, as relações com os utentes, fornecedores de bens e serviços e o património, desde que conexos com o seu escopo social.
III - A parte isenta é responsável pelo pagamento das custas, nos termos gerais, quando se conclua pela manifesta improcedência do pedido, ou, pelos encargos a que deu origem no processo, quando a respetiva pretensão for totalmente vencida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Custas-Isenção-IPSS-422/22.6T8VNG-B.P1
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SUMÁRIO[1] (art. 663º/7 CPC):
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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)

I. Relatório
Na presente ação declarativa, que segue a forma de processo comum em que figuram como:
- AUTORA: A..., Instituição Particular de Solidariedade Social e Associação de Solidariedade Social, NIPC ..., com sede na Rua ..., União das freguesias ... e ..., concelho de Vila Nova de Gaia;
- RÉ: AA, viúva, residente na Rua ..., ... cave, ... ..., concelho de Vila Nova de Gaia;
pede a autora:
- que se reconheça que é dona e legitima proprietária do prédio identificado supra nos artigos 5º a 8º da petição inicial; e
- restituição de tal prédio à A. totalmente livre de pessoas e bens.
Alegou para o efeito, que é uma instituição particular de solidariedade social, sem finalidade lucrativa, sob a forma de associação de solidariedade social, reconhecida como pessoa coletiva de utilidade pública. Tem por objeto o apoio à família nas condicionantes, material, social e espiritual, designadamente, no apoio de bens alimentares, medicamentos, apoio na construção de habitações, entre outros.
Com vista à prossecução do seu objeto, a Junta de Freguesia ..., através de escritura pública celebrada no dia 1 Outubro de 1985 cedeu à autora, gratuita e perpetuamente, o direito de superfície do prédio, para construção urbana, sito no ..., ... com 4700 m2, omisso na matriz. Posteriormente, em 20 Junho de 2008, a Junta de Freguesia ... por escritura pública doou à aqui A. o mencionado prédio.
Tal prédio encontra-se registado na 2ª Conservatória do Registo Predial de V. N. Gaia, a favor da A., desde 02/07/2008 pela apresentação ...5, sob o n.º ....
Em 18/12/2018 a A. procedeu ao loteamento urbano do prédio doado, originando a constituição de onze lotes. Em data anterior ao loteamento referido, ou seja, pelo menos em junho de 1992 a A. na prossecução do seu objeto social, cedeu de forma gratuita à Ré e ao seu marido BB, que faleceu em .../.../2008, para habitação destes, o andar atualmente correspondente à cave do prédio existente no Lote ...0, composto de subcave, cave e rés-do-chão e que corresponde á inicialmente designada casa n.º ...3 e que a A. edificou no terreno.
Desde o óbito do seu marido, a Ré continuou a habitar gratuitamente essa cave, sem qualquer contrapartida estando ciente que tal construção pertence unicamente à A.
Tal construção encontra-se inscrita na matriz sob o artigo ...40, sendo a cave correspondente ao andar C2 CV.
A A. diligenciou junto da Ré. no sentido de lhe arrendar a cave que a mesma habita, não tendo logrado chegar a acordo, motivo pelo qual vem instaurar a presente ação.
Invoca como título de aquisição da propriedade o registo da propriedade a seu favor e ainda, a usucapião.
Mais alega que assiste à A. o direito de exigir junto da Ré a restituição do imóvel, supra identificado, uma vez que não foi convencionado prazo para a sua restituição. Artigo 1137º n.º 2 e 3 do Código Civil e à A. pertence a propriedade sobre a totalidade do seu prédio.
Declarou que não procedeu ao pagamento da taxa de justiça, por beneficiar da isenção prevista no art. 4º/1 f) Regulamento das Custas Processuais.
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O processo prosseguiu os ulteriores termos, com a citação da ré, apresentação de contestação, resposta à reconvenção e realização de audiência prévia, diligência onde se determinou a apresentação do processo para proferir despacho saneador.
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Apresentados os autos com conclusão, proferiu-se o despacho que se transcreve:
Encontram-se os autos conclusos a fim de ser proferido despacho saneador
Acontece que melhor compulsados os autos verifica-se que a A. invoca, a nosso ver sem razão, a isenção do pagamento de custas ao abrigo do artigo 4.º, n.º 1, al. f) do RCP.
Prevê esta disposição legal que “estão isentos de custas as pessoas coletivas privadas sem fins lucrativos quando atuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respetivo estatuto ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável”.
Sucede, porém, que a A. reivindica nos presentes autos a propriedade de um imóvel.
Como salienta Salvador da Costa, in Custas Processuais, 7.º Edição, pág. 109, a isenção invocada “é uma isenção de custas restrita, na medida em que só funciona nos processos concernentes às suas atribuições ou para defesa dos interesses conferidos pelo respetivo estatuto ou pela própria lei coincidentes com o bem comum.”
Acrescentando ainda que “esta isenção não abrange as ações cujo fim direto não seja a defesa dos interesses especialmente confiados às referidas pessoas coletivas pela lei ou pelos estatutos, ou seja, não envolve litígios derivados de contratos que celebram a fim de obterem meios para o exercício das suas atribuições”.
Assim, atendendo à causa de pedir e pedido, não se circunscreve está na isenção contemplada no artigo suprarreferido (no mesmo sentido cfr. o Ac. do TRP de 27.06.2018 – Relator Carlos Gil, disponível em www.dgsi.pt), notifique a A. para proceder ao pagamento da taxa de justiça em conformidade, no prazo de 10 dias”.
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A Autora veio interpor recurso do despacho.
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Nas alegações que apresentou a apelante formulou as seguintes conclusões:
I - Na decisão recorrida entendeu-se que a isenção de pagamento de custas ao abrigo do artigo 4º n.º 1-f do RCP não abrange a situação plasmada nos autos- ação de reivindicação da propriedade- e, em consequência, notificou-se a A. para proceder ao pagamento da taxa de justiça.
II – Salvo o devido respeito, que é muito, a decisão recorrida não observou o Estatutos desta Associação, o qual, dispõe, lapidarmente, que:,
III- A Associação é uma instituição particular de solidariedade social sem finalidade lucrativa (artigo 1 dos Estatutos) e que,
IV- Constituem atribuições desta Associação “Um serviço de apoio na construção, reparação e conservação de habitações próprias, arrendadas ou em comodato a quem competirá a legalização dos terrenos, a elaboração e legalização dos respectivos projetos, o fornecimento de materiais, a orientação na execução das obras e sua fiscalização”, conforme se constata da análise do número três do artigo três dos Estatutos;
V- Ora, a ação proposta visa, por conseguinte, prosseguir, diretamente, as atribuições e interesses constitutivos da A e de acordo com o seus fins estatutários, mormente, reivindicar a propriedade supra, tendo em vista a sua conservação e remodelação para, posteriormente, arrendá-la ou dá-la de comodato.
VI- De igual modo, é indubitável que a A é uma pessoa coletiva privada, sem fins lucrativos, razão, pelo qual, preenche os pressupostos contemplados na isenção sub judice a saber:
-Que estejamos na presença de uma pessoa coletiva privada, sem fins lucrativos.
Que essa pessoa coletiva privada atue no processo exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou;
Para defender os interesses que lhes estão especialmente conferidos pelo respetivo estatuto ou nos termos da legislação que lhes seja aplicável”.
VII- O despacho recorrido violou o disposto no artigo 4º n.º 1, f) do RCP, motivo porque deverá ser revogado e substituído por douta decisão que reconheça que a A. tem direito à isenção aí contemplada na dispensa do pagamento de custas e taxa de justiça.
VIII- Vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11-05-2020 (P.4999/17.0T8CBR.C1) e Acórdão da Relação do Porto de 29/6/2015 (Pº 356/11.8TTPRT-D.P1).
IX- Finalmente, dir-se-á que o despacho subjudice enferma de nulidade, porquanto não especifica os fundamentos, quer de facto, quer de direito que justificaram a respetiva decisão. Alínea b do nº 1 do art.º 615 do CPC.
X- A fundamentação explanada é, meramente, conclusiva, não respaldada em factos e contraditória!
Termina por pedir a procedência do recurso e a revogação da decisão recorrida, sendo a mesma substituída por decisão que reconheça e mantenha a isenção concedida à A. atento o disposto no artigo 4º n.º 1, f) do RCP.
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Não foi apresentada resposta ao recurso.
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O recurso não foi admitido e a autora veio reclamar de tal despacho, ao abrigo do art. 643º CPC.
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Remetidos os autos de reclamação para o Tribunal da Relação, proferiu-se despacho que deferiu a reclamação e admitiu o recurso, ordenando a subida do recurso em separado, com efeito meramente devolutivo.
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Instruído o competente apenso foi remetido ao Tribunal da Relação.
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No Tribunal da Relação, dispensaram-se os vistos legais.
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Cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
As questões a decidir:
- nulidade do despacho, com fundamento no art. 615º/1 b) CPC;
- se para a instauração da concreta ação beneficia a autora da isenção de pagamento de custas, prevista no art. 4º/ 1 f) RCP.
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2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os termos do relatório.
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3. O direito
- Nulidade do despacho -
Nas conclusões de recurso, sob os pontos IX e X, suscita a apelante a nulidade do despacho, com fundamento no art. 615º/1 b) CPC.
A sentença na sua formulação pode conter vícios de essência, vícios de formação, vícios de conteúdo, vícios de forma, vícios de limites[2].
As nulidades da sentença incluem-se nos “vícios de limites“ considerando que nestas circunstâncias, face ao regime do art. 615º CPC, a sentença não contém tudo o que devia, ou contém mais do que devia[3].
Argumenta a apelante que o despacho não especifica os fundamento de facto, quer de direito que justificaram a decisão, sendo por isso, nulo nos termos do art. 615º/1 b) CPC.
Nos termos do art. 615º/1 b) CPC, a sentença é nula, quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Este regime aplica-se aos despachos, como determina o art. 613º/3 CPC.
A nulidade ocorre desde que se verifique a falta absoluta de fundamentação, que pode referir-se só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito.
A irregularidade está diretamente relacionada com o dever imposto ao juiz de motivar as suas decisões, conforme resulta do disposto no art. 607 conjugado com o art. 154º CPC.
Para que haja falta de fundamentação, como causa de nulidade da sentença, torna-se necessário que o juiz não concretize os factos que considera provados e coloca na base da decisão, bem como, a fundamentação de direito que sustenta a decisão.
Na situação concreta, o despacho enuncia os factos que considera relevantes ao reportar-se ao pedido e seus fundamentos e por outro lado, indica os fundamentos de direito que sustentam a decisão.
Questão diferente consiste em saber se a interpretação que se faz do regime de isenção deve ser mantida, matéria que se prende com o mérito da decisão, mas não configura o vício que vem apontado.
Desta forma, a sentença não se mostra ferida de nulidade por falta de fundamentação de facto e de direito.
Improcedem, nesta parte, as conclusões de recurso sob os pontos IX e X.
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- Da isenção de custas -
Nas conclusões de recurso, sob os pontos I a VIII, a apelante insurge-se contra a decisão, pretendendo a sua alteração, por considerar face aos seus Estatutos que na presente ação beneficia da isenção prevista no art. 4º/1 f) Regulamento das Custas Processuais, porque a ação visa a prossecução do seu fim social.
A questão que cumpre apreciar consiste em saber se na presente ação a autora beneficia da isenção de custas previstas no art. 4º/1 f) Regulamento das Custas Processuais.
Conforme decorre do art. 1º do Regulamento das Custas Processuais todos os processos estão sujeitos a custas, nos termos fixados no Regulamento.
As custas processuais abrangem a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte – art. 3º/1 do Regulamento das Custas Processuais.
A taxa de justiça corresponde ao montante devido pelo impulso processual do interessado e é fixada em função do valor e complexidade da causa de acordo com o regulamento, aplicando-se, na falta de disposição especial, os valores constantes da tabela I-A, que faz parte do Regulamento (art. 6º do Regulamento das Custas Processuais).
Conforme determina o art. 13º do Regulamento das Custas Processuais, a taxa de justiça é paga nos termos fixados no Código de Processo Civil, sendo paga integralmente e de uma só vez por cada parte ou sujeito processual, salvo disposição em contrário resultante da legislação relativa ao apoio judiciário.
O pagamento da taxa de justiça faz-se até ao momento da prática do ato processual a ela sujeito, devendo o interessado entregar o documento comprovativo do pagamento ou realizar a comprovação desse pagamento, juntamente com o articulado ou requerimento, em conformidade com o disposto no art. 14º do Regulamento das Custas Processuais.
Contudo, em certas circunstâncias a lei concede a isenção do pagamento de custas, encontrando-se nessa situação as Instituições Particulares de Solidariedade Social, nos termos do art. 4º/1 f) Regulamento das Custas Processuais.
No sistema do Código de Custas Judiciais que antecedeu o atual Regulamento de Custas Processuais, as instituições particulares de solidariedade social gozavam de isenção de custas, sem quaisquer limitações.
Com efeito, o artigo 2.º, n.º 1, alínea c), do Código das Custas Judiciais (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de novembro, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de dezembro de 2003) dispunha que:
“1- Sem prejuízo do disposto em lei especial, são unicamente isentos de custas: […]
c) As instituições particulares de solidariedade social;[…]”.
Tratava-se de uma isenção subjetiva, pois bastava que a instituição fosse parte processual para gozar de isenção de custas.
O Regulamento de Custas Processuais veio estabelecer um novo regime de isenções de custas relativas aos processos cível, criminal, de natureza administrativa e tributária com o objetivo de proceder, como se refere no preâmbulo:”[…] a uma drástica redução das isenções, identificando-se os vários casos de normas dispersas que atribuem o benefício da isenção de custas para, mediante uma rigorosa avaliação da necessidade de manutenção do mesmo, passar a regular-se de modo unificado todos os casos de isenções”.
A maioria das isenções subjetivas previstas no preceito”não obstante o seu caráter de pessoalidade, é motivada por um elemento objetivo consubstanciado no interesse público prosseguido pelas pessoas ou entidades a quem são concedidas”[4].
Em relação às instituições particulares de solidariedade social o legislador manteve a isenção de custas de que gozavam as pessoas coletivas privadas sem fins lucrativos, nos termos do art. 4º/1 f) do Regulamento de Custas Processuais, que passou a prever:
“1- Estão isentos de custas:
[…]
f) As pessoas coletivas privadas sem fins lucrativos, quando atuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respetivo estatuto ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável”.
A isenção não é absoluta, pois como decorre dos n.º 5 e 6 do mesmo artigo 4.º do Regulamento de Custas Processuais:
“5 - Nos casos previstos nas alíneas b), f) e x) do n.º 1 e na alínea b) do n.º 2, a parte isenta é responsável pelo pagamento das custas, nos termos gerais, quando se conclua pela manifesta improcedência do pedido.
6 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, nos casos previstos nas alíneas b), f), g), h), s), t) e x) do n.º 1 e na alínea b) do n.º 2, a parte isenta é responsável, a final, pelos encargos a que deu origem no processo, quando a respetiva pretensão for totalmente vencida.
A isenção prevista na alínea f) pressupõe a verificação de um conjunto de requisitos de natureza subjetiva e objetiva e que se podem enunciar da seguinte forma:
- apenas beneficiam da isenção as pessoas coletivas privadas sem fins lucrativos; e
- o objeto do litígio deve integrar-se na previsão da norma:
(I) Quando a pessoa coletiva atua exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições; ou
(II) Quando defende os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respetivo estatuto ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável.
Contudo, em abstrato uma pessoa coletiva privada sem fins lucrativos que goze de isenção, pagará custas quando a sua pretensão se revele manifestamente improcedente e será sempre responsável pela parte das custas relativa a “encargos” a que tenha dado origem quando a respetiva pretensão for totalmente vencida.
Como refere SALVADOR DA COSTA: “[…] a isenção é motivada pela ideia de estímulo ao exercício de funções públicas por particulares que, sem espírito de lucro, realizam tarefas em prol do bem comum, que aproveitam à comunidade e que incumbe ao Estado facilitar, pelo que lhe subjaz o desiderato de tutela do interesse público”[5].
A jurisprudência não tem adotado uma interpretação uniforme dos requisitos de natureza objetiva previstos na lei para conceder a isenção.
Dando nota dessa diferença e sem ser exaustivo, o Ac. Rel. Coimbra 21 de janeiro de 2020, Proc. 6031/18.7T8CBR-A.C1 (acessível em www.dgsi.pt) enuncia a jurisprudência que se identifica com a posição mais restritiva e ainda, jurisprudência que adota uma interpretação mais ampla dos conceitos.
Numa posição mais restrita, apela-se ao teor literal da norma e defende-se que que a isenção só existe: quando a instituição atua exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições; ou, quando defende os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respetivo estatuto ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável.
Neste sentido se pronunciou SALVADOR DA COSTA, quando defende:”[é] uma isenção de custas restrita, na medida em que só funciona em relação aos processos concernentes às suas especiais atribuições ou para defesa dos interesses conferidos pelo respetivo estatuto, ou pela própria lei, que coincidam com o bem comum” e prosseguindo na análise do âmbito da isenção, considera” […] que esta isenção não abrange as ações que não tenham por fim direto a defesa dos interesses que lhe estão especialmente confiados pela lei ou pelos seus estatutos”[6].
Num outro segmento, a jurisprudência vem defendendo, e aqui seguimos de perto o Ac. Rel. Coimbra 21 de janeiro de 2020, Proc. 6031/18.7T8CBR-A.C1 (acessível em www.dgsi.pt), que cumpre ter em consideração que, nos termos dos n.º 1 e 2 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de fevereiro, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 172-A/2014, de 14 de novembro as instituições particulares de solidariedade social, são “[…]pessoas coletivas, sem finalidade lucrativa, constituídas exclusivamente por iniciativa de particulares, com o propósito de dar expressão organizada ao dever moral de justiça e de solidariedade, contribuindo para a efetivação dos direitos sociais dos cidadãos, desde que não sejam administradas pelo Estado ou por outro organismo público. 2 - A atuação das instituições pauta-se pelos princípios orientadores da economia social, definidos na Lei n.º 30/2013, de 8 de maio, bem como pelo regime previsto no presente Estatuto”.
Estas instituições existem e são apoiadas pelo Estado porque asseguram serviços relevantes à sociedade, ao conjunto das pessoas que se encontram no espaço territorial do país, serviços que sendo necessários ou altamente vantajosas para a coesão social, o Estado, através das suas estruturas, não tem capacidade para os prestar.
Daí que o Estado apoie estas estruturas sociais e nessa medida estas instituições sejam “credoras” da ajuda que o Estado lhes possa proporcionar para o bom desempenho das suas finalidades.
Entre essas ajudas que o Estado pode atribuir encontra-se a isenção de custas quando estas instituições são partes nos processos que correm nos tribunais, que são órgãos do Estado, mas que só se justifica quando as instituições atuam na promoção ou na defesa dos seus fins estatutários, quando está em causa ação conexionada com o seu objeto social, as suas atribuições e interesses sociais.
Nesta perspetiva, fazendo apelo ao elemento histórico e teleológico na interpretação da norma, defende-se que a isenção de custas deve abranger os litígios que tenham a ver diretamente com os diferendos que surjam ao nível dos seus órgãos representativos, às relações de trabalho, aos utentes, fornecedores de bens e serviços e ao seu património, desde que conexos com o seu escopo social, pois todas estas relações fazem parte do substrato material que torna possível a existência da instituição e a sua atividade.
Considera-se, assim, que estas instituições beneficiam de isenção de custas quando atuam exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições; ou, quando defendem os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respetivo estatuto ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável. Porém, tais conceitos abarcam na sua literalidade os litígios que surjam ao nível dos seus órgãos representativos, as relações de trabalho, as relações com os utentes, fornecedores de bens e serviços e o património, desde que conexos com o seu escopo social.
Como se refere no Ac. Rel. Guimarães 28 de junho de 2018, Proc. 988/17.2T8FAF.G1, acessível em www.dgsi.pt :“[a]quela isenção deve abranger as ações em que o respetivo objeto contenda exclusivamente com a satisfação dos fins especiais que, em função dos respetivos estatutos, incumbe à pessoa coletiva particular, sem fins lucrativos, prosseguir, ou em que esta prossegue a defesa dos interesses especiais que lhe são atribuídos por lei ou por esses estatutos, ainda que esses interesses e/ou fins sejam prosseguidos na ação por via instrumental, esta entendida nos termos que se passam a enunciar.
A apreciação dessa instrumentalidade carece de ser feita por referência ao objeto da concreta ação em que aquela pessoa coletiva seja demandante ou demandada, com vista a verificar se o assunto em discussão nessa ação tem por objeto relações jurídicas estabelecidas por essa pessoa coletiva com terceiro (demandante ou demandado), com vista à prossecução das atribuições (fins) especiais que lhe são fixados pelos respetivos estatutos e/ou à defesa dos interesses especiais que lhe são conferidos por lei ou pelos respetivos estatutos, por serem uma decorrência natural do seu atuar na concretização desses fins e/ou interesses, quer por serem a concretização destes fins e/ou interesses, quer por serem necessários à concretização dos mesmos”.
Seguindo o mesmo entendimento no Ac. Rel. Coimbra 19 de dezembro de 2019, Proc. 1817/19.8T8CBR.C1, acessível em www.dgsi.pt, observa-se: “[i]senção essa que abrange as ações das quais delas resulte em concreto que tais pessoas coletivas visam através delas, quer por via direta, quer por via indireta ou conexa instrumental, a defesa dos interesses que lhe estão especialmente conferidos pela lei ou pelos seus estatutos e particularmente garantir/assegurar, por uma dessas vias, a prossecução dos fins que nortearam a sua criação”.
Não nos repugna que as ações enunciadas beneficiem da referida isenção, desde que conexas com o fim e objeto da instituição, sendo certo que por se tratar de um regime de isenção de natureza condicional, a concessão da isenção ficará dependente do êxito total das pretensões.
Contudo, será sempre a aplicação casuística do preceito que determinará as situações em que a instituição goza ou não de isenção.
Neste sentido também se pronunciou o Ac. Rel. Porto 23 de janeiro de 2020, Proc. 133199/18.3YIPRT-A.P1 e o Ac. Rel. Coimbra 11 de maio de 2020, Proc. 4999/17.0T8CBR.C1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
Retomando o caso concreto tendo presente o exposto, somos levados a considerar que a apelante goza da isenção, porque a concreta ação se enquadra na defesa dos interesses que lhe estão especialmente conferidos pelos respetivos estatutos.
Decorre dos documentos juntos com a petição, cujo teor não foi posto em causa pela ré, entre os quais se inclui os Estatutos da Associação (documento n.º 1), que a autora tem a natureza de “instituição particular de solidariedade social, sem finalidade lucrativa”.
Está, assim, preenchido o primeiro requisito, de natureza subjetiva, porque a autora tem a natureza de uma instituição particular de solidariedade social, sem finalidade lucrativa.
De acordo com o art.3º n.º 2 dos Estatutos prevê-se que “especificamente procurará apoiar as famílias na resolução de carências de habitação de famílias desprovidas de recursos próprios para por si sós, a conseguirem obter”.
O nº 3 do mesmo artigo, determina que para a realização de tais objetivos procurará criar e manter:
c) “Um serviço de apoio na construção, reparação e conservação de habitações próprias, arrendadas ou em comodato a quem competirá a legalização dos terrenos, a elaboração e legalização dos respetivos projetos, o fornecimento de materiais, a orientação na execução das obras e sua fiscalização”.
d) “Um serviço de gestão corrente das habitações que são propriedade da Associação, provendo pela sua manutenção e reparação e arrecadando os proveitos que possam resultar do seu uso”.
Dispõe, ainda, a escritura pública de constituição de direito de superfície a favor da Autora, de 1 Outubro de 1985, e junta aos autos como documento n.º 2 e cujo teor também não foi posto em causa pela ré, que:
Primeiro – A Junta cede, gratuita e perpetuamente, o direito de construir sobre o prédio habitações destinadas a famílias carenciadas, preferencialmente, residentes na freguesia ...”.
Segundo – É da responsabilidade do superficiário elaborar o projeto de urbanização, apresentá-lo à Câmara Municipal de Vila Nova Gaia, proceder às obras de infra estruturas que venham a ser exigíveis, requerer o respectivo alvará de construção e todas as licenças necessárias ao processo de construção
Quarto – Compete, única e exclusivamente ao superficiário proceder à seleção, de entre os vários pretendentes, das famílias a quem serão atribuídas as habitações”.
Através da presente ação visa a autora a reivindicação e a entrega de uma habitação sobre a qual tem o direito de propriedade e que está afeta ao objeto que prossegue: atribuição de casa a pessoas carenciadas. Alegou que a casa em causa está a ser ocupada pela ré, que não dispõe de título, impedindo que faça uso da mesma para conceder habitação a pessoas carenciadas.
Atendendo aos fins que a concreta instituição prossegue tal como resulta dos seus Estatutos em confronto com o pedido e seus fundamentos, resultam preenchidos os requisitos objetivos de que depende a concessão da isenção, na medida em que a ação visa a defesa dos interesses que lhe estão especialmente conferidos pelos respetivos estatutos.
A ação visa a guarda e defesa do património da autora, constituindo tal atuação uma obrigação como forma de gestão do mesmo, pois, só dessa forma poderá ceder as habitações a famílias carenciadas no cumprimento estrito dos seus fins estatutários.
Acresce que acolhendo a interpretação mais ampla do preceito – art. 4º/1/f) RCP - sempre seria de considerar que a autora beneficiava da isenção, porque com a ação visa a defesa dos interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respetivo estatuto e tal conceito abarca ainda os litígios em que está em causa a defesa do património, desde que conexos com o seu escopo social, como ocorre no caso presente.
Questão diferente e relacionada com o mérito da causa, consiste em saber se existe fundamento para obter a restituição da habitação. A improceder a sua pretensão, será a Autora-apelante responsável pelo pagamento das custas, como determina o art. 4º/5/6 RCP.
Pelo exposto, procedem as conclusões de recurso, com a consequente revogação do despacho.
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Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas pela parte vencida a final, sem prejuízo da isenção de que goza a autora e de apoio judiciário concedido à ré.
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e revogar o despacho e nessa conformidade, julgar que a autora goza da isenção de custas prevista no art. 4º/1 f)/5 /6 do Regulamento das Custas Processuais, estando por isso, dispensada do prévio pagamento de taxa de justiça.
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Custas pela parte vencida a final, sem prejuízo da isenção de que goza a autora e do apoio judiciário concedido à ré.
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Porto, 17 de abril de 2023
(processei e revi – art. 131º/6 CPC)
Assinado de forma digital por
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
_________________
[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
[2] JOÃO DE CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, vol. III, Lisboa, Associação Académica da Faculdade de Direito, 1982, pag. 297.
[3] JOÃO DE CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, ob. cit., pag. 308.
[4] SALVADOR DA COSTA Regulamento das Custas Processuais – Anotado, 5ª edição, Almedina, Coimbra, 2013, pag. 150
[5] SALVADOR DA COSTA Regulamento das Custas Processuais – Anotado , ob. cit., pag.159.
[6] SALVADOR DA COSTA Regulamento das Custas Processuais – Anotado, ob. cit., pag. 159-160