Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3513/22.0T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: TERESA FONSECA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS A CARGO DO RECORRENTE
Nº do Documento: RP202402052513/22.0T8AVR.P1
Data do Acordão: 02/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Os apelantes que impugnam matéria de facto devem identificar os pontos que pretendem ver reapreciados, ao invés de remeter, em bloco, para a generalidade dos factos cuja prova desfavorece a sua tese, já que está excluída a possibilidade de recursos genéricos contra a decisão de facto, admitindo-se a revisão de questões de facto concretas, relativamente às quais o recorrente concretize fundadas divergências.
II - Os recorrentes devem ainda identificar os meios de prova que conduziriam a solução diversa, bem como explicitar criticamente porquê, concretizando qual seria a formulação alternativa.
III - Não o fazendo, é de rejeitar a sua pretensão de reapreciação da matéria de facto.
IV - Dependendo o desenlace da matéria de direito do recurso da procedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, tendo esta sido rejeitada, fica prejudicado o conhecimento daquela.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 3513/22.0T8AVR.P1

Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I - Relatório
AA e BB propuseram a presente ação declarativa de condenação sob a forma comum contra CC e DD.
Pedem:
a) que seja declarada a anulabilidade do negócio de compra e venda celebrado entre as partes, nos termos do art. 247º ex vi art. 251º ambos do C.C. ou, se assim não se entender, a nulidade do mesmo, nos termos do disposto no art.º 879º do C.C.;
b) que os réus sejam condenados a pagar-lhes € 9.000,00, correspondentes ao preço pago e juros de mora à taxa anual de 4%, desde a citação até pagamento;
c) que os réus sejam condenados a pagar-lhes € 500,00 a título de danos não patrimoniais.
Alegam:
- que no dia 30-07-2022 adquiriram aos réus uma roulotte de marca Burstner, com a matrícula B-....-R, pelo preço de € 9.000,00, para usufruir da mesma no Parque de Campismo ..., o que os RR. sabiam;
- que no dia 15 de Agosto tomaram conhecimento de que o Parque de Campismo ... iria encerrar em 31-10-2022, tendo que ficar livre de pessoas e de bens, o que lhes tem causado muito stress e ansiedade;
- que os réus não os informaram de que o Parque de Campismo iria fechar, apesar de o saberem;
- que se tivessem conhecimento de que o parque iria encerrar, não teriam adquirido a roulotte,
- que em 15 de Agosto tomaram conhecimento de que o veículo não se encontra registado a favor de nenhum dos réus e que possui matrícula espanhola, que não se encontra legalizada em território nacional;
- que desconhecem se os réus são os proprietários da roulotte e que não poderão registá-la a seu favor, por falta de trato sucessivo.
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Os réus deduziram contestação, admitindo que nunca abordaram o eventual encerramento do parque de campismo, acrescentando que se tratava de dissídio antigo, do conhecimento dos campistas e da população em geral, pelo que os autores não o podiam desconhecer.
Acrescentam:
- que o réu marido teve conhecimento das divergências entre a Câmara e a Junta de Freguesia em 23 de Julho passado, e que, quando da celebração do contrato dos autos, foram comunicadas aos autores as notícias que andavam a circular nesse âmbito, tendo obrigação de estar ao corrente da situação;
- que antes de os contactarem, os autores tiveram vários contactos dentro do parque de campismo, onde o tema do encerramento do parque foi conversado;
- que os autores analisaram a roulotte em pormenor quando a adquiriram, que foram informados de que possuía matrícula espanhola e de que não estava registada a seu favor, não tendo colocado qualquer entrave.
Deduziram reconvenção, peticionando a condenação dos autores num pedido de desculpas público, pela situação de embaraço e mal-estar na comunidade que criaram e no pagamento de uma indemnização de € 1.000,00.
Para o efeito, alegaram que o autor marido, por telefone, os apodou de vigaristas, ladrões e falsos trafulhas, o que fez em modo “alta voz”, causando-lhes vergonha, ansiedade e stress permanente.
Os autores replicaram, pugnando pela não admissão da reconvenção e impugnando a matéria vertida na mesma.
Os réus treplicaram, tendo os autores requerido o desentranhamento da tréplica.
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Foi proferido despacho saneador, em que não se admitiu a reconvenção e se declarou a nulidade da tréplica apresentada pelos réus.
Foi identificado o objeto do litígio, enunciados temas da prova e teve lugar julgamento.
Foi proferida sentença que:
- anulou o contrato de compra e venda celebrado entre AA. e RR. da roulotte de marca Burstner, com a matrícula B-....-R e o respetivo avançado;
- condenou os RR. a restituir aos AA. o preço pago de € 9.000,00, acrescido de juros de mora à taxa legal para os juros civis desde a data da citação até pagamento;
- condenou os RR. a pagar ao A. marido € 300,00 a título de ressarcimento de danos morais;
- julgou prejudicada a apreciação do pedido subsidiário deduzido pelos AA., referente à declaração de nulidade do contrato, ao abrigo do regime de venda de bens alheios, face à procedência do pedido principal;
- absolveu os RR. do demais peticionado.
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Inconformados, os RR. interpuseram recurso, rematando com as seguintes conclusões.
89 - 0s Autores contactaram os Vendedores para compra da roulotte identificada nos autos. 0s vendedores aceitaram vender. O preço estabelecido para o negócio foi de 9.000,00€ (nove mil euros).
90 - O negócio teve lugar no Parque de Campismo ..., tendo o comprador afirmado ter examinado a roulotte, como refere supra.
91 - 0s vendedores esclareceram tudo o que estava a acontecer, conforme se alcança nos depoimentos do vendedor e das testemunhas que acompanharam a negociação, nos depoimentos na Audiência de Julgamento.
92 - De acordo com as palavras do comprador, referidas no seu depoimento, evidenciando, que quando saiu do parque estava feliz pela compra que tinha realizado.
93 - Ao mesmo tempo, considerando os depoimentos do Autor e da funcionária do parque senhora EE, que no parque tudo se sabia, como se releva em 65 supra, referindo “no parque tudo se sabia, o parque era uma minicidade”, não pode o Autor invocar desconhecimento da situação e exigir do declaratário comportamento diverso, como pretende e invoca.
94 - 0 negócio entre as partes, foi celebrado de boa fé, pelos intervenientes, sem qualquer subterfugio ou reserva. 0 comprador, observou, tudo o que quis, sobre o estado da roulotte, no seu depoimento antes descrito, referencia aspetos observados como normais.
95 - As particularidades do negócio foram, presencialmente esclarecidas, no dia 29/7/2022, pelas partes, sobre todos os aspetos, relativamente à entrega da roulotte, aos eletrodomésticos que os vendedores deixaram ficar na roulotte para os compradores, a seu pedido.
1. A exibição dos documentos existentes e a condição dos mesmos, que o Autor aceitou.
2. A forma de entrega, dado que a comprador ia de férias e quando chegasse o vendedor também estava de férias.
3. Por estes factos, as partes acordaram que os documentos ficavam dentro de uma “micas” ou saco plástico, dentro da roulotte, enquanto a chave ficaria na vizinha campista D. FF, que esta lhes entregaria, quando a abordassem nesse sentido.
4. Quando regressaram de férias, a D. FF entregou as chaves aos compradores, como estava acordado.
96 - No dia 30/7/2022, o Autor logo de manhã, começou a telefonar ao vendedor para que este lhe enviasse o seu IBAN para proceder ao pagamento por transferência. 0s telefonemas foram tantos que só quando lhe foi transmitido o referido IBAN, os telefonemas cessaram e de imediato a transferência foi concretizada, nos termos referidos nos autos.
97 - 0 vendedor não entendeu a insistência e a pressa do comprador em realizar a transferência.
98 - Tudo estava esclarecido no negócio celebrado no dia anterior. Não ficou acordado qualquer data precisa para os compradores proceder ao pagamento. Nas conversações entre as partes o combinado é que o pagamento seria realizado num dia da semana seguinte.
99 - Perante a insistência e pressão do comprador, foi enviado o IBAN, conforme se refere anteriormente.
100 - 0s acontecimentos que se seguirão relativamente ao parque, os vendedores quando saíram do parque não tinham conhecimento nem sabiam, nem estava afixado qualquer Edital a informar as decisões sobre o parque de campismo.
101- 0 comprador refere no seu depoimento que a roulotte é dele, como se refere em 31 e 88 desta peça.
102 - Do conhecimento da situação vivida no parque considerando as declarações referidas pela funcionária do parque D. EE, que:
a) - mostrou o parque ao comprador;
b) - que no parque tudo se sabia, o parque era uma minicidade;
c) - que este visitou desde Maio desse ano o parque;
d) - que fez proposta de negociação com pleno conhecimento do que estava a passar há alguns anos;
e) a existir erro, está por este (declarante) assumido, conforme a sua conduta, antes, durante e depois do negócio;
f) - porque ele quis o negócio, no estado das coisas ao tempo, como afirmou no seu depoimento acima referenciado.
103 - A ter lugar a anulação do negócio, de acordo com a douta sentença, a que discordamos na totalidade, por isso recorremos da douta sentença, sendo decretado a anulação do negócio, deve ser este efetuado, mediante a entrega recíproca do transacionado, isto é, o comprador entrega o bem, no estado como o recebeu; o vendedor entregue o preço, sem qualquer valor adicional.
104 - 0s demandados, apresentaram todas as provas para demonstrar a sua boa fé no negócio celebrado, nomeadamente, as provas junto aos autos, as declarações em sede de Audiência e Julgamento, nos depoimentos das testemunhas por si apresentadas.
105 - Enquanto os Autores confirmaram o negócio, por si desejado e confirmado, tendo ainda encetado todas as diligências com os vendedores, tomando sempre a iniciativa e conformação do negócio.
Devendo a douta sentença ser revogada, devendo ser manter-se, como válido o negócio celebrado entre as partes;
E, se assim não for o entendimento, a manter-se a douta sentença nos autos, a anulação do negócio deve ser resolvido, mediante a reciprocidade que a Lei determina, isto é, cada um dos contraentes, devolve, no estado como se encontravam os bens na data da celebração do contrato; devendo as demais condenações aos demandados ser absolvidas.
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Os AA. contra-alegaram, finalizando da seguinte forma:
a) Dado que os factos dados como provados e os factos dados como não provados não merecem qualquer censura e
b) E que inexiste erro na aplicação do direito, conforme supra se explanou, deve manter-se a douta sentença proferida pelo tribunal “a quo”;
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II - Questões a dirimir:
a - da reapreciação da matéria de facto;
b - da matéria jurídica da causa.
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III - Fundamentação de facto (como enunciada na sentença)
A - Factos provados (da petição inicial)
1) No dia 30 de Julho de 2022 os autores compraram aos réus uma roulotte de marca Burstner, com a matrícula B-....-R, pelo preço de 9.000,00 € (nove mil euros), que pagaram mediante transferência bancária, para o IBAN fornecido por estes últimos.
2) Os autores tomaram conhecimento de que os réus pretendiam vender a roulotte e o respetivo avançado, que se encontravam no Parque de Campismo ..., através do seu vizinho GG, que era utente do mesmo.
3) No dia 30 de Julho de 2022, após a visita do autor marido, o réu marido contactou aquele, dando-lhe conta de que nesse mesmo dia, à tarde, iria ter a visita de outro casal, para ver a roulotte.
4) No dia 30 de Julho de 2022, após a concretização do negócio, o réu marido solicitou ao autor marido que lhe permitisse retirar os respetivos pertences da roulotte até ao final do mês de Agosto, ao que o autor marido anuiu.
5) No dia 8 de Agosto de 2022, o réu marido contactou telefonicamente o autor marido, para o informar que já havia retirado os seus pertences da roulotte, que tinha deixado os documentos desta no interior da mesma e que a respetiva chave tinha ficado com uma outra utente do Parque.
6) No dia 15 de Agosto de 2022, os autores deslocaram-se ao Parque de Campismo ... e, após terem obtido a chave da roulotte, verificaram que esta:
6.1) não se encontra registada a favor de nenhum dos réus,
6.2) possui matrícula espanhola, não se encontrando legalizada em território nacional.
7) De seguida, o autor marido dirigiu-se à secretaria/receção do Parque de Campismo, para se identificar e passar a constar o seu nome como utente do mesmo, tendo-lhe sido dito para se deslocar à entrada daquele, para tomar conhecimento do aviso que aí se encontrava afixado.
8) Quando se deslocou à entrada do Parque de Campismo, o autor verificou que estava afixado um aviso da Câmara Municipal ..., datado de 01-08-2022, com o seguinte teor:
«Encerramento do Parque de Campismo ...
No seguimento da deliberação da Câmara Municipal ... (de 21JUL22) e da Assembleia Municipal ... (de 29JUL22), comunica-se publicamente e em especial aos Utentes e Prestadores de Serviços do Parque de Campismo ..., que a Câmara Municipal ... (CM...) vai proceder ao encerramento do Parque de Campismo ... (….).
A Junta de Freguesia ... deverá garantir, até ao dia 31 de Outubro de 2022, a plena desocupação do Parque de Campismo (de pessoas, autocaravanas, roulottes, tendas, qualquer outro tipo de estruturas fixas privadas, seus concessionários e outros).
A CM... assume a gestão do Parque de Campismo ... no dia 1 de Novembro de 2022, procedendo nesse mesmo dia ao seu encerramento e providenciando de imediato a execução de uma operação de limpeza e remoção total de materiais que estejam no referido Parques.
A CM... está desde já a promover a execução do projeto de reabilitação profunda e licenciamento do Parque de Campismo ..., para proceder à realização de obras, visando a reabertura do referido Parque logo que tudo esteja nas devidas condições, com novas regras de acesso e utilização, e uma nova gestão.».
9) Quando do referido em 1), os réus sabiam que o parque de campismo ia encerrar, o que não comunicaram aos autores.
10) Os autores compraram a roulotte referida em 1) para usufruir da mesma no Parque de Campismo ..., o que comunicaram aos réus.
11) A utilização da roulotte no Parque de Campismo ... implicaria o pagamento, pelos autores, da quantia mensal de 70,00 € (setenta euros).
12) Por força do encerramento do Parque de Campismo ..., os autores não poderão utilizar a roulotte e o respetivo avançado nesse local, conforme pretendiam.
13) Desconhece-se por quanto tempo irão perdurar as obras do Parque de Campismo, se e quando o mesmo irá reabrir e quais serão as condições da respetiva utilização.
14) O avançado da roulotte referida em 1) não é passível de ser desmontado e novamente montado, por se tratar de uma estrutura fixa.
15) Por força do referido em 6.2) e do mau estado em que se encontra (visível nas fotografias juntas com o requerimento com a ref.ª 130604557), a roulotte não pode circular.
16) Se os autores tivessem conhecimento de que o Parque de Campismo ... ia encerrar, não teriam celebrado o negócio referido em 1).
17) Os réus não foram com os autores à receção, para comunicar a transmissão da roulotte referida em 1) e da inerente qualidade de utente, conforme era procedimento habitual do Parque de Campismo ....
18) Ao tomar conhecimento do referido em 8), o Autor marido ficou desorientado, nervoso e sentiu-se enganado pelos réus.
19) Desde que tomou conhecimento de que o parque de campismo ia encerrar, o autor marido tem sentido ansiedade, palpitações e perturbações do sono.
(da contestação)
20) Os autores e os réus nunca falaram sobre o eventual encerramento do Parque de Campismo, por parte dos órgãos autárquicos que superintendem a gestão do mesmo.
21) No dia 23 de Julho de 2022, os réus tiveram conhecimento, através da rede social facebook, das divergências entre a Junta de Freguesia ... e a Câmara Municipal ..., sobre o Parque de Campismo ....
22) Antes do referido em 1), em data não apurada, os autores deslocaram-se ao parque de campismo por três vezes, com vista à aquisição de uma roulotte.
23) Na sequência do referido em 3), os autores insistiram com os réus pelo envio do seu IBAN, para efetuarem a transferência referida em 1).
24) Os réus deixaram o Parque de Campismo ... no dia 8 de Agosto de 2022.
B) Factos Não provados
Não se provou que:
a) o valor da roulotte seja residual e o preço pago pelos autores tivesse incidido sobretudo no valor do avançado;
b) os réus se tivessem limitado a deixar no interior da roulotte um requerimento de registo automóvel no qual consta como vendedor HH e como comprador o réu marido;
c) quando do referido em 1) e da propositura da presente ação, a data de validade dos documentos de identificação dos intervenientes do documento referido em b) estivesse expirada;
d) os autores não pudessem registar a roulotte referida em 1) a seu favor;
e) o referido em 19) e 20) seja sentido, também, pela autora mulher;
f) quando do referido em 1), os autores soubessem que o parque de campismo podia vir a encerrar;
g) os dissídios referidos em 21) fossem do conhecimento da população em geral;
h) quando do referido em 1), os réus tivessem comunicado aos autores o referido em 6);
i) quando do referido em 1), os réus tivessem comunicado aos autores as notícias que andavam a circular sobre o diferendo entre os órgãos autárquicos;
j) nos contactos referidos em 23), tivesse havido conversações acerca do encerramento do parque de campismo;
k) os réus não tivessem visto e tomado conhecimento do edital referido em 9);
l) no dia 15-08-2022 o autor marido tivesse dito ao réu marido, telefonicamente, concretamente, que já estava na posse da roulotte, que estava a proceder ao seu registo na receção do Parque e que estava tudo normal.
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IV - Subsunção jurídica
a - Da reapreciação da matéria de facto da causa
O art.º 640.º do C.P.C. estabelece um ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto. Assim, do seu n.º 1 consta que quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
O n.º 2 do mesmo art.º 640.º acrescenta:
a) quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Visando o recurso a impugnação da matéria de facto, cabe ao tribunal de recurso proceder a um novo julgamento, limitado à matéria de facto impugnada, para o que deverá reapreciar a prova produzida, considerando os meios de prova indicados no recurso e outros que entenda relevantes.
Para tanto, o legislador impõe ao recorrente o cumprimento de regras de conteúdo e forma, de molde a evitar uma completa ou parcial repetição do julgamento. Está excluída a possibilidade de recursos genéricos contra a decisão de facto. Admite-se a revisão de questões de facto concretas, relativamente às quais o recorrente concretize fundadas divergências.
Embora não se exija a transcrição dos excertos da gravação que se considerem importantes, é imperioso que o apelante indique com precisão as passagens da gravação que tem como significativas e relevantes para que o tribunal de recurso aprecie a sua pretensão.
Ana Luísa Geraldes (“Impugnação e reapreciação da decisão da matéria de facto” http://www.cjlp.org/materias/Ana_Luisa_Geraldes_Impugnacao_e_Reapreciacao_da_Decisao_da_Materia_de_Facto.pdf) discorre sobre esta temática: “(…) tal como se impõe que o Tribunal faça a análise crítica das provas (de todas as provas que se tenham revelado decisivas), (…), também o recorrente, ao enunciar os concretos meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa, deve fundar tal pretensão numa análise (crítica) dos meios de prova, não bastando reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos.
Como é sabido, a prova de um facto não resulta, regra geral, de um só depoimento ou parte dele, mas da conjugação de todos os meios de prova carreados para os autos.
E ainda que não existam obstáculos formais a que um determinado facto seja julgado provado pelo Tribunal mediante o recurso a um único depoimento a que seja atribuída suficiente credibilidade, não deve perder-se de vista a falibilidade da prova testemunhal quotidianamente comprovada pela existência de depoimentos testemunhais imprecisos, contraditórios ou, mais grave ainda, afetados por perjúrio.
Neste contexto, é facilmente compreensível que se reclame da parte do recorrente a explicitação da sua discordância fundada nos concretos meios probatórios ou pontos de facto que considera incorretamente julgados, ónus que não se compadece com a mera alusão a depoimentos parcelares e sincopados, sem indicação concreta das insuficiências, discrepâncias ou deficiências de apreciação da prova produzida, em confronto com o resultado que pelo Tribunal foi declarado.
Exige-se, pois, o confronto desses elementos com os restantes que serviram de suporte para a formulação da convicção do Tribunal (e que ficaram expressos na decisão), com recurso, se necessário, às restantes provas, v.g., documentais, relatórios periciais, etc., apontando as eventuais disparidades e contradições que infirmem a decisão impugnada.”
Os AA. omitem nas conclusões das alegações a referência aos factos que pretendem ver reapreciados, aos meios probatórios que conduzem a tal desiderato e à decisão que deve ser proferida em sua substituição.
Do corpo das alegações consta o seguinte:
Do expendido dos factos dados como provados pelo Tribunal nos números de 9 a 21, a fls. ..., da douta sentença, não podem ser aceites e por isso contestados pelos demandados, porque evidenciam a incapacidade, a imprecisão do normal funcionamento dos negócios mais elementares do dia a dia.
Recorde-se quais sejam os factos dados como assentes nos pontos 9 a 21:
9) Quando do referido em 1), os réus sabiam que o parque de campismo ia encerrar, o que não comunicaram aos autores.
10) Os autores compraram a roulotte referida em 1) para usufruir da mesma no Parque de Campismo ..., o que comunicaram aos réus.
11) A utilização da roulotte no Parque de Campismo ... implicaria o pagamento, pelos autores, da quantia mensal de 70,00 € (setenta euros).
12) Por força do encerramento do Parque de Campismo ..., os autores não poderão utilizar a roulotte e o respetivo avançado nesse local, conforme pretendiam.
13) Desconhece-se por quanto tempo irão perdurar as obras do Parque de Campismo, se e quando o mesmo irá reabrir e quais serão as condições da respetiva utilização.
14) O avançado da roulotte referida em 1) não é passível de ser desmontado e novamente montado, por se tratar de uma estrutura fixa.
15) Por força do referido em 6.2) e do mau estado em que se encontra (visível nas fotografias juntas com o requerimento com a ref.ª 130604557), a roulotte não pode circular.
16) Se os autores tivessem conhecimento de que o Parque de Campismo ... ia encerrar, não teriam celebrado o negócio referido em 1).
17) Os réus não foram com os autores à receção, para comunicar a transmissão da roulotte referida em 1) e da inerente qualidade de utente, conforme era procedimento habitual do Parque de Campismo ....
18) Ao tomar conhecimento do referido em 8), o Autor marido ficou desorientado, nervoso e sentiu-se enganado pelos réus.
19) Desde que tomou conhecimento de que o parque de campismo ia encerrar, o autor marido tem sentido ansiedade, palpitações e perturbações do sono.
(da contestação)
20) Os autores e os réus nunca falaram sobre o eventual encerramento do Parque de Campismo, por parte dos órgãos autárquicos que superintendem a gestão do mesmo.
21) No dia 23 de Julho de 2022, os réus tiveram conhecimento, através da rede social facebook, das divergências entre a Junta de Freguesia ... e a Câmara Municipal ..., sobre o Parque de Campismo ....
Os factos que, segundo consta do corpo das alegações, os recorrentes pretendem pôr em crise integram toda a factualidade relevante que permitiu aferir dos pressupostos da procedência da ação. Não são sugeridas alternativas concretas, nem tampouco identificados elementos probatórios que possam demonstrar o oposto do que foi dado como assente ou algo diverso, a ser essa a pretensão dos apelantes. A impugnação da matéria de facto é sincopada, conclusiva e não obedece, ainda que de forma incompleta ou incipiente, aos ónus previstos nos n.ºs 1 e 2 do art.º 640.º do C.P.C..
Cumpre, pois, rejeitar a impugnação.
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b - Da reapreciação jurídica da causa
Com a impugnação da matéria de facto visavam os apelantes a reformulação da matéria jurídica da causa, que do acolhimento da primeira estava inteiramente dependente.
Inalterada que ficou a matéria de facto, mostram-se demonstrados os pressupostos da anulação do contrato com fundamento em erro sobre o objeto do negócio, que era do conhecimento dos declaratários (arts. 251.º e 247.º do C.C.).
Em suma, dependendo a reapreciação da matéria de direito do recurso da procedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, mantendo-se esta, fica prejudicado o conhecimento daquela (art.º 608.º/2, ex vi parte final do n.º 2 do art.º 663.º, ambos do C.P.C.).
A sentença recorrida é, assim, de manter na sua integralidade.
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V - Dispositivo
Nos termos sobreditos, acorda-se em julgar o recurso totalmente improcedente, mantendo-se a sentença recorrida.
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Custas pelos apelantes, por terem decaído na sua pretensão (art.º 527.º/1/2 do C.P.C.).
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Porto, 5-2-2024
Teresa Fonseca
Eugénia Cunha
José Eusébio Almeida