Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
82/11.0TAALJ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOAQUIM GOMES
Descritores: CRIME DE FALSIDADE DE DEPOIMENTO OU DECLARAÇÃO
ANTECEDENTES CRIMINAIS
Nº do Documento: RP2012-12-1282/11.0TAALJ.P1
Data do Acordão: 12/12/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: A acção típica do crime de falsidade de declarações em que o arguido seja seu agente, quando para o efeito é instado e advertido no início da audiência de julgamento, apenas compreende as falsas declarações por si prestadas relativamente à sua identidade e aos seus antecedentes criminais, não abrangendo a indicação dos processos que contra si tem pendentes.
Reclamações:
Decisão Texto Integral:
Recurso n.º 82/11.0TAALJ.P1
Relator: Joaquim Correia Gomes; Adjunta: Paula Guerreiro
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO

1. No PC n.º 82/11.0TAALJ do Tribunal de Alijó, em que são:

Recorrente: Ministério Público

Recorrido/Arguido: B…..

foi proferida sentença em 2012/Mai./17 a fls. 144-151 que absolveu o arguido da prática, como autor material, de um crime de falsidade de declarações da previsão do artigo 359.º, n.º 1 e 2, II parte do Código Penal.
2. O Ministério Público interpôs recurso dessa sentença em 2012/Jun./06, a fls. 155-173, pretendendo a sua revogação e subsequente condenação do arguido pelo referenciado crime, apresentando, no essencial, as seguintes conclusões:
1.º) A sentença padece de erro notório na apreciação da prova e de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, previstos como vícios no artigo 410.º, n.º 2, alínea c) e a) do C. P. Penal (a-e);
2.º) O bem jurídico protegido pela incriminação no crime de falsidade de depoimento ou declaração é a realização da justiça. Para esse efeito, a disposição protege a veracidade do depoimento das partes ou sujeitos do processo (f);
3.º) A pergunta ao arguido pelos seus antecedentes criminais feita na audiência de julgamento foi censurada pelo Acórdão do Tribunal Constitucional nº 695/95. A Lei nº 48/2007, vem introduzir a obrigação do arguido responder com verdade à pergunta sobre a existência de “processos pendentes”, sob ameaça de responsabilidade penal nos termos do artigo 359º, nº 2, do Código Penal. Portanto, o Código Penal alargou o conceito de identidade do arguido, nele fazendo entrar a informação sobre “processos pendentes” (g);
4.º) A Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, introduziu o dever de o arguido responder com verdade à pergunta sobre a “existência de processos pendentes”, pelo que existe a necessidade de fazer uma interpretação desta nova norma do artigo 342º, do Código de Processo Penal e a sua integração no elenco de crimes tipificados no Código Penal, uma vez que o legislador, não compatibilizou a previsão do Código de Processo Penal com a tipificação do crime no Código Penal (h-j);
5.º) Certamente que o legislador não quis que tal actuação por parte do agente (não responder com verdade quanto aos processos pendentes) passasse impune (k);
6.º) A interpretação actualista, através da qual se procede à interpretação da lei tendo em conta as realidades actuais, vigentes ao tempo da sua aplicação, mostra-se particularmente importante, enquanto forma de renovação interna do sistema jurídico. A interpretação actualista deve ser aplicada com a necessária prudência, estando, logo à partida, condicionada pelos factores hermenêuticos, designadamente pela ratio da norma interpretanda e pelos elementos gramatical e sistemático (l);
7.º) Atendendo, desde logo à data da última norma introduzida (o artigo 342º, do Código de Processo Penal), facilmente se compreende que a intenção do legislador foi a de penalizar aquela conduta por parte do arguido, pelo que se deveria ter considerado que tal conduta se integrava na prática do crime em questão e, consequentemente ter condenado o arguido pela prática do mesmo (m, n);
3. O arguido respondeu em 2012/Jun./27 a fls. 176-185, sustentando, após percorrer detalhadamente os trabalhos parlamentares, mais propriamente os projectos de lei, que conduziram à aprovação da Lei n.º 48/2007, de 29/Ago. e rejeitando qualquer interpretação actualista, que se deve negar provimento ao recurso.
4. Recebidos os autos nesta Relação, onde foram autuados em 2012/Out./15 e indo com vista ao Ministério Público, foi por este emitido parecer em 2012/Out./23 a fls. 192-195, onde se considerou a existência de uma lacuna e rejeitando qualquer representação que exceda o “sentido possível” do texto da lei, por via da inadmissibilidade do recurso à analogia para a qualificação de um facto como crime (29.º Constituição e 1.º, n.º 3 Código Penal), sustenta que o recurso não merece provimento.
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Muito embora o Ministério Público sustente a existência de vícios do artigo 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, o certo é que o mesmo não aponta, em concreto, qualquer um dos mesmos, antes revelando que a sentença recorrida incorreu num erro de qualificação jurídica ao absolver o arguido da prática de um crime de falsidade de declarações da previsão do artigo 359.º, n.º 1 e 2, II parte do Código Penal, sendo este o objecto do seu recurso.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
1. A sentença recorrida
Desta e com relevo transcrevemos o seguinte:
“Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos com interesse para a decisão a proferir:
1º - No dia 17 de Maio de 2011, pelas 9h40, no âmbito do processo nº 21/10.5GAALJ, o aqui arguido, que também ali assumia tal posição processual pela prática de factos susceptíveis de integrarem um crime de ofensa à integridade física simples em concurso efectivo com um crime de falsidade de declaração, foi identificado.
2º - Para o efeito, e nesse momento, foi o arguido devidamente advertido e ficou ciente de que era obrigado a responder e responder com verdade às perguntas sobre a sua identidade e sobre a existência de processos que tenha pendentes, sob pena de incorrer em responsabilidade penal.
3º - Assim, e depois de devidamente advertido, disse não ter outros processos penais contra si pendentes.
4º - No entanto, o arguido sabia, nem podia ignorar, que, nessa data, pendia contra si o inquérito nº186/09.9GAALJ, no qual era arguido e no qual lhe foi imputada a prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada em concurso efectivo com um crime de ameaça agravada.
5º - Ao agir desta forma, o arguido B….. faltou conscientemente à verdade no momento em que se procedeu à sua identificação como arguido, bem sabendo que tinha pendente contra si outro processo-crime, nos termos supra referidos.
6º - Apesar disso, o arguido não se inibiu de prosseguir com tal atitude, tendo plena consciência do teor da advertência que lhe foi feita.
7º - O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente.”
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2. Os fundamentos do recurso
A Constituição e o catálogo dos direitos fundamentais vinculam não só o legislador, como o intérprete dos actos legislativos, procurando-se aí o sentido jus-fundamental da “ratio legis” (8.º, 16.º, 17.º, 18.º, n.º 1 Constituição), de modo não só a compatibilizar a função legislativa e judicial com os efeitos jurídico-fundamentais de natureza “erga omnes” dali provenientes, como a preservar a integridade e a validade do direito (9.º Código Civil).
Daí que toda a interpretação da norma legal penal, cuja estrutura comporta, em regra, uma descrição típica da conduta proibida e a sua consequência jurídico-penal, esteja sujeita e vinculada às “ingerências” constitucionais que para aí se dirigem, com destaque para as respectivas directivas jus-fundamentais. E isto quer se parta da sua estrutura lógica ou estática (norma primária dirigida ao cidadão/norma secundária dirigida ao juiz) ou então, como ultimamente tem sido proposto, da sua estrutura comunicativa ou funcional, decorrente de um sistema de processos de interacção e comunicação entre os seus destinatários (sujeito activo, sujeito passivo, Estado), em que surge uma norma de conduta (“Steuerung”) e uma norma de regulação (“Regelung”).
Assim, ao interpretar-se a lei e quando esteja em causa a eficácia dos direitos fundamentais, não se devem encontrar restrições onde as mesmas não existem no texto legal e onde possam existir espaços de imperceptibilidade em se extroverter o seu sentido legislativo (“austerlegen”), os mesmos devem ser preenchidos pelo conteúdo útil dos direitos fundamentais em concurso. Tudo isto para que, num primeiro momento, se catalisarem os “efeitos de irradiação” (18.º, n.º 1 Constituição) dos direitos fundamentais, de modo que os mesmos não fiquem irremediavelmente bloqueados e, num segundo momento, se preservar o seu “núcleo essencial” (18.º, n.º 3 Constituição), obstando a que os mesmos surjam esvaziados ou completamente inócuos.
Por outro lado, o direito penal, atento o ancoramento que o mesmo tem na actual narrativa constitucional, não é um fim em si mesmo, mas antes um sistema normativo ao serviço da convivência e das necessidades humanas no âmbito de um Estado de Direito Democrático (1.º, 2.º, 17.º, 18.º, 29.º e 30.º Constituição). A isto acresce que a legitimidade do direito penal tem sempre o seu fundamento e validade na Constituição e na própria vigência dos direitos fundamentais, sobressaindo daí e como critério interpretativo o princípio constitucional da proporcionalidade (8.º, n.º2; 19.º, n.º 4 e n.º8; 30.º, n.º 5 parte final; 270.º; 272.º, n.º 2,todos da Constituição; 29.º, n.º 2 DUDH), designadamente quando estão em conflito ou em colisão direitos fundamentais, ainda que sujeitos a critérios operativos de adequação, necessidade e razoabilidade (Ac TC 25/84, 85/85, 64/88, 287/90, 349/91, 363/91, 426/91, 152/93, 634/93, 370/94, 441/94, 494/94, 59/95, 572/95, 574/95, 758/95, 958/96, 1182/96, 195/2003, 594/2003, 38/2004, 219/04, 159/2005, 640/2005, 698/05, 67/2007, 471/2007, 556/2007, 557/2007, 278/2008, 164/2008, 512/2008, 62/2011, 95/2011).[1]
Esse confronto é por demais patente quando, por um lado, está em causa o exercício do “jus puniendi” do Estado, para protecção dos direitos e interesses fundamentais dos cidadãos ou mesmo públicos (bens jurídicos carentes de tutela penal) e, por outro lado, surge a compressão de outros direitos e interesses fundamentais dos cidadãos, seja directamente (individuais) ou indirectamente (colectivos), como sucede quando os mesmos são alvo de medidas coactivas ou de reacções penais restritivas ou excludentes da liberdade.
Assim, tomando como referência o princípio da dignidade da pessoa humana (1.º; 24.º, n.º 1, 25.º da Constituição; 5.º da DUDH; 3.º, n.º 1 da CEDH; 7.º, n.º 1, 10.º, n.º 1 do PIDCP; 1.º, 3.º, n.º 1, 4.º da CDFUE) e a directriz decorrente do princípio constitucional da intervenção mínima do direito penal (18.º, n.º 2 Constituição), tanto a definição normativa do crime, como a subsequente estatuição de uma reacção penal, apenas encontram justificação se estiver em causa a protecção de um bem jurídico-penal. Tal só sucederá se o mesmo tiver a suficiente importância social para ser protegido (processo de selecção) e se for necessária a correspondente tutela penal (processo de reacção), já que esta sempre implica um controlo social jurídico-penal.
Também deste princípio constitucional da intervenção mínima do direito penal resultam dois limites ao fundamento funcional do direito penal na protecção dos bens jurídico-penais. O primeiro é que o direito penal deve ser sempre uma “ultima ratio” (carácter secundário ou subsidiário) para a tutela do interesses sociais que se pretendem acautelar, só devendo intervir quando não existirem ou sejam insuficientes outros meios ou mecanismos que assegurem essa protecção. O segundo corresponde à natureza fragmentária do direito penal (carácter primacial ou exclusivo), mediante o qual o “jus puniendi” apenas se deve exercer na medida em que for necessário para a protecção da sociedade, excluindo-se, por isso, da sua tutela as lesões insignificantes ou menos relevantes.
Por outro lado, tanto o princípio da legalidade criminal (29.º, n.º 1 e 3 Constituição), como a exclusividade da actividade legislativa (112.º, 161.º, 164.º, 165.º, Constituição) e da separação de poderes (111.º, Constituição), não permitem interpretações dos tipos legais de crime que sejam autênticos actos legislativos sem soberania legislativa (Ac. TC n.º 173/85). A ser assim, atento este princípio constitucional da legalidade e o princípio democrático da reserva de lei, o limite da interpretação da lei penal deve conter-se entre o “sentido possível das palavras” descritas no correspondente tipo legal e o “mínimo de correspondência legal” a que se refere o artigo 9.º do Código Civil.
Em suma, a aprovação da lei penal e as suas opções político-criminais, enquanto norma de valoração negativa de uma conduta humana e norma de determinação que proíbe essa mesma conduta, ao mesmo tempo que estabelece a correspondente reacção penal, são da exclusiva competência do poder legislativo e não do poder judicial.
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O Código Penal no seu artigo 359.º, n.º 1, sob a epígrafe “Falsidade de depoimento ou declaração”, comina “Quem prestar depoimento de parte, fazendo falsas declarações relativamente a factos sobre os quais deve depor, depois de ter prestado juramento e de ter sido advertido das consequências penais a que se expõe com a prestação de depoimento falso, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa” acrescentando-se no seu n.º 2 que “Na mesma pena incorrem o assistente e as partes civis relativamente a declarações que prestarem em processo penal, bem como o arguido relativamente a declarações sobre a identidade e os antecedentes criminais”.
Mediante este ilícito criminal tutela-se a realização ou a administração da justiça, assegurando-se que as declarações prestadas pelos sujeitos aqui referenciados sejam fidedignas, de modo a acautelar o bom funcionamento da actividade jurisdicional, enquanto pilar essencial de um Estado de Direito Democrático.
No entanto, enquanto em relação a certos sujeitos processuais existe a obrigatoriedade dos mesmos falarem verdade, salvo se do seu depoimento puder vir a resultar a sua subsequente responsabilização penal, como sucede com as testemunhas, os assistente e as partes civis (128.º; 131.º; 132.º, n.º 1, al. d); 145.º do C. P. Penal), tal já não existe em relação ao arguido (61.º, n.º 1, al. d); 141.º, n.º 4, al. a); 343.º, n.º 1 do C. P. Penal), o que nos pode suscitar algumas perplexidades e dificuldades interpretativas na leitura deste ilícito criminal. Assim e para se traçar o percurso legislativo do crime de falsas declarações, convém ter presente os seus antecedentes, assim como conjugar tal ilícito com as disposições pertinentes do Código de Processo Penal, referenciando o seu posicionamento ao nível do direito comparado e estabelecer os parâmetros da interpretação da lei penal.
Assim, será de recordar que a última parte do n.º 2 do artigo 359.º, correspondia ao precedente artigo 401.º do Código Penal de 1982, mas apenas no que concerne à falsidade das declarações do arguido quanto à sua identidade, porquanto este último normativo não contemplava no seu descritivo as falsas declarações do arguido em matéria de antecedentes criminais. Daí que se entendesse, mesmo após a entrada em vigor do Código Penal de 1982, que o anteriormente previsto no parágrafo 1.º, do artigo 22 do Decreto-Lei nº 33.725, 1944/Jun./21, se mantinha em vigor, quando preceituava que “Aquele que declarar ou atestar falsamente à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções, identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios, será punido com prisão até seis meses”. § 1.º “A pena será de prisão até um ano quando as declarações se destinem a ser exaradas em documento oficial”. E isto porque este preciso segmento normativo não tinha sido revogado, expressa ou tacitamente, pelo artigo 6.º do Decreto-Lei nº 400/82, de 23/09, sublinhando-se a falta de previsão de tal conduta nos artigos 401.º e 402.º daquele Código Penal, conforme orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal de Justiça (Ac.STJ de 1985/Jan./10 e 1986/Dez./03, BMJ 343/253 e 362). Porém, com a Lei n.º 12/91, de 21/Mai., que aprovou a Lei de Identificação Civil e Criminal, mais precisamente com o seu artigo 45.º, n.º 2, al. a), estipulou-se que “Ficam revogados, a partir da entrada em vigor do regulamento previsto no número anterior, os seguintes diplomas ou dispositivos legais: a) Artigos 22.º, 23.º e 24.º do Decreto-Lei n.º 33.725, de 21 de Junho de 1944”.
Por sua vez, o Código de Processo Penal estabelece duas previsões centrais em que o arguido, ao faltar à verdade tanto quanto à sua identidade ou antecedentes criminais, pode incorrer num crime de falsidade de depoimento ou de declarações.
A primeira ocorre com o 1.º Interrogatório Judicial do arguido, estipulando-se no seu artigo 141.º, n.º 3 que “O arguido é perguntado pelo seu nome, filiação, freguesia e concelho de naturalidade, data de nascimento, estado civil, profissão, residência, local de trabalho, se já esteve alguma vez preso, quando e porquê e se foi ou não condenado e por que crimes, sendo -lhe exigida, se necessário, a exibição de documento oficial bastante de identificação. Deve ser advertido de que a falta de resposta a estas perguntas ou a falsidade das mesmas o pode fazer incorrer em responsabilidade penal”. Esta obrigatoriedade pode ser extensível aos interrogatórios não judiciais do arguido. Tal leitura veio a ter acolhimento no Tribunal Constitucional (Ac.TC 372/98, 127/2007) e no STJ (Ac. 9/2007, DR I, n.º 129), no qual se uniformizou a jurisprudência no sentido de que “O arguido em liberdade, que, em inquérito, ao ser interrogado nos termos do artigo 144.º do Código de Processo Penal, se legalmente advertido, presta falsas declarações a respeito dos seus antecedentes criminais incorre na prática do crime de falsidade de declaração, previsto e punível no artigo 359.º, n.º 1 e 2, do Código Penal.”
A segunda sucede com a identificação do arguido, tal como está previsto para a fase de julgamento, estipulando o artigo 342.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, na redacção conferida pela Lei n.º 59/98, de 25/Ago., que “O presidente começa por perguntar ao arguido pelo seu nome, filiação, freguesia e concelho de naturalidade, data de nascimento, estado civil, profissão, local de trabalho e residência, sobre a existência de processos pendentes e, se necessário, pede-lhe a exibição de documento oficial bastante de identificação” (itálico nosso), para depois se consignar no seu n.º 2 que “O presidente adverte o arguido de que a falta de resposta às perguntas feitas ou a falsidade da mesma o pode fazer incorrer em responsabilidade penal”
Como se pode constatar no confronto com as anteriores redacções daquele artigo 342.º e apesar de algumas hesitações, o âmbito da obrigatoriedade do arguido prestar declarações sobre os seus antecedentes criminais e os processos que estiverem contra si pendentes tendo vindo a sofrer uma nítida restrição. Assim com o texto primitivo (Dec.-Lei n.º 78/87, de 17/Fev.) estipulava-se no seu n.º 1 que “O presidente começa por perguntar ao arguido pelo seu nome, filiação, freguesia e concelho de naturalidade, data de nascimento, estado civil, profissão, residência e, se necessário, pede-lhe a exibição de documento oficial bastante de identificação”, para depois se acrescentar no n.º 2 que “Em seguida, o presidente pergunta ao arguido pelos seus antecedentes criminais e por qualquer outro processo penal que contra ele nesse momento corra, lendo-lhe ou fazendo com que lhe seja lido, se necessário, o certificado do registo criminal” (sendo o itálico nosso), seguindo-se depois a cominação do seu n.º 3 de que “O presidente adverte o arguido de que a falta de resposta às perguntas feitas ou a falsidade da mesma o pode fazer incorrer em responsabilidade penal”. Seguidamente, com o Dec.-Lei n.º 317/97, de 28/Nov., este n.º 3 passou a constar como n.º 2 e o primitivo n.º 2 foi totalmente suprimido, atenta a posição assumida pelo Tribunal Constitucional, como sucedeu com o Acórdão n.º 695/95 (DR. II Série, 1996/Abr./24), ao “Julgar inconstitucionais as normas … e do artigo 342º, nº 2, ambas do Código de Processo Penal, por violação do princípio das garantias de defesa ínsito no artigo 32º, da Constituição da República Portuguesa”. A Lei n.º 59/98, de 25/Ago. acrescentou ao n.º 1 apenas a referência ao “local de trabalho”, enquanto a Lei n.º 48/2007, de 29/Ago. aditou ainda a obrigatoriedade de indicação de “processos pendentes”.
Trata-se, no entanto, no que concerne à punição do arguido por não revelar os seus antecedentes criminais e ao nível do direito comparado, de um ilícito criminal “sui generis”, que não tem ressonância legislativa nos países que geograficamente se situam mais próximos do nosso. Assim, o Código Penal Espanhol reserva essa tipificação para a falsidade de testemunho, peritagem ou tradução (458.º e 459.º). O mesmo sucede com o Código Penal Francês (434.º-13, 434.º-14, 434.º-18, 434.º-20), que ainda estende essa incriminação aos casos de abstenção voluntária em depor a favor de um inocente (434.º-11) e ao falso depoimento de parte (434.º-17). E o próprio Código Penal Italiano, que para além de punir o falso depoimento de parte (371.º) ou de testemunho (371.º, bis, 371.º, 372.º), a falsa perícia ou tradução (373.º), cominando ainda as falsas declarações sobre a identidade pessoal e outras relativas à personalidade, seja perante a autoridade judiciária (374.º, bis) ou perante outra autoridade pública (494.º, 495.º, 496.º), acaba por não prever nesse diploma a falsa revelação pelo arguido dos seus antecedentes criminais.
Por sua vez, a interpretação da lei penal e mormente esta, não está apenas sujeita aos critérios estabelecidos pela lei ordinária (9.º Código Civil e 1.º, n.º 1 Código Penal), encontrando-se primária e rigidamente vinculada à Constituição, sendo aqui de destacar o princípio da legalidade criminal, estabelecido no seu artigo 29.º, n.º 1, segundo o qual “Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude da lei anterior que declare punível a acção ou omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados na lei”.
Tal princípio da legalidade, que já teve o seu eco na “Declaration des droits de l’homme e du citoyen” (1789), mais precisamente no seu art. 8.º, e que vem sendo insistentemente proclamado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), através do seu art. 11.º, n.º 2, pela Convenção Europeia dos Direitos Humanos (1950), com o art. 7.º, pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (1976) no artigo 15.º, n.º 1, e que agora foi veiculado pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (2007), no artigo 49.º, n.º 1 e 2, visa salvaguardar os cidadãos de uma actuação arbitrária por parte do Estado ou dos Tribunais surgindo, assim, como um princípio estruturante e estruturador de um direito penal democrático.
Daqui decorre que o direito penal, ao exprimir um juízo de desvalor da comunidade, deve ter a preocupação de estabelecer um juízo de desvalor legislativo claro, unívoco, íntegro e total, o qual deve estar descrito no respectivo tipo legal de crime, assumindo-se a norma penal como uma estrutura comunicativa que envolve o Estado, os Tribunais e os cidadãos, que são os destinatários dessas normas.
Assim, enquanto o princípio da legalidade criminal tem uma função de garantia do ius puniendi estadual contra o seu exercício ilegítimo, abusivo ou incontrolável, os quais são incompatíveis com a ideia de Estado Democrático de Direito, o princípio da tipicidade tem uma função indiciária da ilicitude, enquanto manifestação ou expressão da justiça penal deste mesmo Estado, tendo ambos por base a dignidade humana (2.º Constituição). Para o efeito, a estatuição do que é crime e a cominação de uma reacção penal, exigem que se assegurem certas dimensões ao princípio da legalidade criminal. A primeira é que só a lei é fonte política e jurídica da incriminação punitiva (nullum crimen, nulla poena sine lege scripta). A segunda é que só a lei anterior à previsão da conduta criminosa tem validade jurídico-penal (nullum crimen sine lege praevia). A terceira é que a lei penal deve ser suficientemente clara na descrição e na punição da conduta criminosa (nullum crimen sine lege stricta), contendo a “ratio cognoscendi” da ilicitude e da punibilidade.
Por isso, o tipo legal de crime é o seu elemento fundamental e delimitador, excluindo-se qualquer interpretação por analogia ou por extensão para integrar o descritivo da ilicitude e da punibilidade. Daí que a conduta proibida deva estar redigida numa linguagem clara, medianamente perceptível e suficiente, com um conteúdo e âmbito de aplicação próprios, ainda que possa remeter para outras normas, de categoria paralela ou mesmo infralegal, como sucede com as normas penais em branco.
O crime de falsidade de declaração da previsão do artigo 359.º, n.º 2 do Código Penal no que concerne ao arguido é totalmente claro e suficiente em apenas prever como conduta aí proibida o facto de o arguido prestar “declarações [falsas] sobre a [sua] identidade e os [seus] antecedentes criminais”, não se aceitando, por ser violador do princípio constitucional da legalidade criminal, que aí se possam integrar as suas declarações sobre a existência de “processos pendentes” contra si, ainda que esta esteja prevista no artigo 342.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, mas para aonde aquele normativo não remete de modo expresso.
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III. DECISÃO
Nos termos e fundamentos expostos, nega-se provimento ao presente recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, mantém-se a sentença recorrida.

Não é devida tributação.

Notifique.

Porto, 12 de Dezembro de 2012
Joaquim Arménio Correia Gomes
Paula Cristina Passos Barradas Guerreiro
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[1]Acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt.