Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3266/19.9T8MAI-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: DOMINGOS MORAIS
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
CADUCIDADE DO DIREITO DE ACÇÃO
BOLETIM DE ALTA
FORMULÁRIO OBRIGATÓRIIO
Nº do Documento: RP202107143266/19.9T8MAI-B.P1
Data do Acordão: 07/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I. - A participação do acidente de trabalho é o acto impeditivo de caducidade do direito de acção.
II. - A data da cura clínica, isoladamente considerada, nada releva para o início da contagem do prazo de um ano, previsto no artigo 179.º da LAT.
III. – Tal prazo de caducidade só começa a contar a partir da entrega formal ao sinistrado do boletim de alta, em modelo oficialmente aprovado, e cuja prova cabe à entidade responsável pelo acidente de trabalho.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3266/19.9T8MAI-B.P1
Origem: Comarca Porto-Maia-Juízo Trabalho-J1.
Relator: Domingos Morais – Registo 920
Adjuntos: Paula Leal de Carvalho
Rui Penha

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório
1. – Na acção especial emergente de acidente de trabalho sob o n.º 3266/19.9T8MAI, a correr termos na Comarca Porto-Maia-Juízo Trabalho-J, na qual figuram, como autor, B… e outro(s), e, como ré, Companhia de Seguros C…, no despacho saneador, o Mmo. Juiz proferiu a seguinte decisão:
Da excepção da caducidade invocada pela Ré seguradora na sua contestação:
A Ré seguradora, em sede de contestação veio alegar, em síntese, que, tendo o Autor participado o alegado acidente ao tribunal de trabalho apenas em 12/07/2019, caducou o seu direito de acção, face ao previsto no artº 179º, nº 1 da LAT.
Notificado para responder, o Ministério Público reiterou tudo quanto foi por si alegado e concluiu como na petição inicial e em representação do Autor, requereu a designação de dia e hora para uma Audiência Prévia, reservando-se ao direito de se pronunciar nesta altura sobre a excepção alegada.
Na audiência prévia, depois de se ter frustrado a tentativa de conciliação, o Ministério Público respondeu à excepção da caducidade, considerando não ter sido dado ao sinistrado o boletim de alta clínica, mas apenas o documento apresentado com a participação com a descrição “declaração para a entidade patronal”.
Pela Ré seguradora foi reiterada a sua posição de que deve operar a excepção da caducidade já invocada, considerando, em síntese, que através do documento inserto a fls.6 a alta foi formalmente comunicada ao sinistrado no dia 28/03/2018, sendo que os documentos insertos a fls.37 a 39 são designadamente documentos internos da companhia que foram juntos a requerimento da Ilustre Procuradora do Ministério Público.
(…).
Quanto á excepção da caducidade a apreciar, depois de ter sido enunciada a questão a apreciar, por se ter considerado que a excepção da caducidade invocada depende da leitura dos documentos juntos a fls.6 e do documento que a seguradora qualifica como “boletim da alta” constante a fls.38 e 39, foi determinada a notificação da seguradora para, no prazo de 10 dias, vir aos autos:
a) Remeter cópia do boletim de alta referente ao sinistrado ou confirmar se tal boletim é o que foi remetido a fls.38 e 39 destes autos;
b) Esclarecer a emissão e o envio a estes autos do documento de fls.6, designadamente se o mesmo constitui o boletim de alta como sustenta a seguradora na sua contestação e se assim é o motivo pelo qual o documento de fls.38 e 39 se apresenta intitulado como “boletim de alta”.
Notificada a seguradora, a mesma veio aos presentes autos “em cumprimento ao ora notificado informar o seguinte:
“O boletim de alta já foi remetido a estes autos e encontra-se identificado em fls. 38 e 39.
O documento de fls. 6 trata-se da comunicação de alta emitida em duplicado e é entregue em mão ao sinistrado e assinado por este para formalizar o conhecimento da alta clínica.
Sendo uma destas vias entregue à sua entidade Patronal com indicação da alta clinica a fim de se apresentar ao serviço.”, (sic).
*
Porém, é o seguinte o teor do documento junto a fls. 6 destes autos:
“C…
Acidentes de Trabalho
Apólice nº ………..
Processo nº …………..
Processo Connect nº ……
Declaração para Entidade Patronal
Acidente
Sinistrado B…
Data 2018-02-20 Hora 14:30 Local Matosinhos
Dados clínicos
Prestador E…
Médico D…
Data da consulta 2018-03-28
O sinistrado fica na situação abaixo indicada
Alta, Sem Relação – Doença Natural a partir de 2018-03-28
Declaro que tomei conhecimento e recebi o original deste documento
Porto,_2(ilegível), (ilegível),20(ilegível)__
O Sinistrado
_(assinatura manuscrita ilegível)
P/ O Médico
(assinatura manuscrita ilegível).”, (sic).
*
Cumpre apreciar e decidir.
**
“Estabelece o artº 179º, nº 1 da LAT (Lei 98/2009, de 4/9,) que “O direito de acção respeitante às prestações fixadas na presente lei caduca no prazo de um ano a contar da alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado ou, se do evento resultar a morte, a contar desta”.
(…).
No caso do acidente de trabalho referenciado nos autos, a participação do acidente em juízo foi feita no dia 8-06-2011.
Para que o prazo de caducidade do direito de acção ocorresse seria necessário que a alta clínica tivesse sido formalmente comunicada à sinistrada um ano antes dessa data.
(…).
Assim sendo, é completamente irrelevante, para a presente questão, a entrega ao sinistrado do documento junto a fls. 6, intitulado “declaração para entidade patronal”, com o texto supra transcrito, dado que tal documento não se pode considerar como a comunicação formal ao sinistrado da alta clínica, mediante a entrega de duplicado do boletim de alta, de modelo aprovado oficialmente.
Destarte, não estando determinado que a alta clínica tenha sido formalmente comunicada ao sinistrado, não pode concluir-se no sentido de que “caducou o direito de acção”, porquanto a caducidade só começa a correr a partir desse momento.
(…).
Exigências formais que não podem deixar de ser relevadas e que facilmente se explicam e compreendem pela específica natureza jurídica do processo especial emergente de acidente de trabalho, constituído por direitos indisponíveis e dominado por normas de interesse e ordem pública.
Sendo este o entendimento do nosso mais Alto Tribunal, e na sequência dos doutos Acórdãos acabados de citar, (que merecem a nossa total concordância) só nos resta julgar improcedente a excepção de caducidade do direito de acção, devendo os autos seguir os seus ulteriores termos, com a realização, se for caso disso, da audiência de julgamento.
Com efeito, uma vez que o prazo de caducidade do direito de acção só começa a correr depois da efectiva entrega ao sinistrado de duplicado do boletim de alta, de modelo aprovado oficialmente, não bastando o mero conhecimento por parte daquele de que lhe foi conferida a alta, necessariamente que a entrega ao sinistrado do documento junto a fls.6 (acima transcrito), intitulado “Declaração para Entidade Patronal” não consubstanciou a efectiva entrega ao sinistrado de duplicado do boletim de alta, de modelo aprovado oficialmente, não bastando o mero conhecimento por parte do sinistrado de que lhe foi conferida a alta.
Destarte, conclui-se que, neste caso, não caducou o direito de acção emergente do acidente versado nos presentes autos.
(…).
Improcede, pois, sem necessidade de ulteriores considerações, a excepção da caducidade alegada pela Ré Seguradora na sua contestação.
Pelo exposto, e sem necessidade de ulteriores considerações, julgo improcedente por não verificada, a invocada excepção da caducidade do direito de acção e em consequência determino o prosseguimento dos ulteriores termos da presente causa.” – fim de citação.
2. – A ré apresentou recurso de apelação, concluindo:
1. O presente recurso tem por objecto o despacho/decisão com a referência 422581245.
2. Salvo o devido respeito, o despacho/decisão faz uma errada aplicação in casu do disposto nos artigos 35.º e 179.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, que dispõe sobre a caducidade do direito de acção respeitante a prestações emergentes de acidente de trabalho.
3. Tribunal a quo entende que: (i) a data da alta clínica não foi formalmente comunicada ao Sinistrado, e (ii) admite não resultar assente que o mesmo encontrasse curado à data de 28 de Março de 2018, com base no relatório do INML.
4. Quanto à primeira questão, fundamenta o Tribunal a quo que a entrega do documento junto a fls. 6 não se pode considerar "como comunicação formal ao sinistrado da alta clínica".
5. Resulta inequivocamente dos elementos probatórios juntos aos autos, que o Sinistrado teve conhecimento formal da data da sua cura clínica atribuída pelos serviços médicos da Recorrente.
6. No auto de declarações de 12 de Julho de 2019, prestadas pelo Sinistrado nos presentes autos, o mesmo declara expressamente que "O médico da Companhia de Seguros disse-lhe que tinha uma doença natural, encaminhou-o para o médico de família e deu-lhe alta no dia 28/03/2018."
7. No Boletim de Alta junto aos autos a fls. 6, subscrito pelo Médico Assistente, no qual o Sinistrado assinou declarando ter tomado conhecimento do seu teor e ainda que recebeu o original do mesmo, e de onde consta: "O sinistrado fica na situação abaixo indicada/Alta, Sem Relação – Doença Natural a partir de 2018-03-28."
8. Este documento é o Boletim de Alta aprovado pela Recorrente, subscrito pelo Médico Assistente, impresso em triplicado, com a data da alta e o motivo, uma para ficar no Arquivo da Companhia de Seguros, e em duplicado entregue ao Sinistrado, uma via para si e uma para entregar à sua Entidade Empregadora.
9. Tal documento contém, de forma inequívoca, o conteúdo específico e legalmente determinado no artigo 35.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, composto por três elementos: (i) a declaração da causa de cessação do tratamento, (ii) o grau de incapacidade e (iii) razão justificativa.
10. Do documento junto a fls. 6, resulta claro que estes elementos foram transmitidos ao Recorrido, pelo que ter-se-á de considerar que foi realizada a comunicação formal no dia 28 de Março de 2018, momento a partir do qual o Sinistrado ficou habilitado a exercer os seus direitos, iniciando-se a contagem do prazo constante no artigo 179.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro.
11. A 28 de Março de 2018 o Sinistrado tomou conhecimento Sinistrado de que se encontrava curado das lesões decorrentes do evento participado, que a causa da cessação dos tratamentos advém da inexistência de nexo causal entre as lesões que apresentava a 28 de Março de 2018 (data alta) e o referido evento, sendo as mesmas emergentes de Doença Natural, a ainda, que não padece de qualquer grau de incapacidade permanente.
12. Resulta por demais evidente que tendo a Recorrente emitido documento contendo todos elementos a que alude o artigo 35.º Lei n.º 98/2009 de 4 de Setembro, que entregou ao Sinistrado e que este assinou declarando ter conhecimento do seu teor, encontrava-se o mesma, a partir da data da alta clínica atribuída pelos serviços médicos da Companhia, plenamente habilitado a exercer os seus direitos.
13. A participação foi efectuada ao Tribunal em data posterior ao prazo de um ano a contar da comunicação da alta clínica, devendo ser julgada procedente a excepção peremptória da caducidade do direito de acção do Recorrido.
14. Quanto ao segundo fundamento utilizado pelo Tribunal a quo, o Tribunal admite não estar assente que à data de 28.03.2018 o Sinistrado se encontrasse efectivamente curado.
15. Tanto que identificou tal questão no "Objecto do Litígio", e nos "Temas da Prova" nos pontos 4. e 9.
16. O Tribunal a quo proferiu a decisão que ora se impugna, sustentando-a no resultado da perícia médico-legal que se realizou a 25 de Novembro de 2019, mais de um ano após a data da alta atribuída pelos serviços médicos da Companhia.
17. Isto, após ter admitido que a data da alta clínica não se encontra assente nos presentes autos e de a ter feito incluir no "Objecto do Litígio" e nos "Temas da Prova".
18. Ora, se a data da consolidação das lesões ou cura clínica se mostra controvertida, não poderia de forma totalmente discricionária preterir os elementos clínicos juntos aos autos em detrimento do resultado do INML, decidindo sobre uma questão que apenas estaria apta a conhecer a final.
19. Ou quanto muito, após decisão a proferir no apenso de Fixação de Incapacidade, na sequência do resultado do exame médico a realizar por Junta Médica.
20. O despacho saneador proferido pelo Tribunal a quo, padece de manifesto excesso de pronúncia.
21. Não estava habilitado a conhecer uma excepção peremptória cujo requisito fundamental integrou na matéria de facto controvertida.
22. O douto despacho saneador padece de nulidade, nos termos do artigo 615.°, n.º 1, al. d), 2.ª parte, do CPC.
23. Ao decidir no sentido da improcedência daquela excepção de caducidade, admitindo que a data da consolidação médico legal ou alta clínica não se encontra assente, conheceu de uma questão de não podia tomar conhecimento.
24. O Tribunal a quo, desta forma, fez errada aplicação do disposto nos artigos 35.º, 175.º e 179.º da Lei n.º 98/2009, de 04/09, uma vez que, ao contrário de dar por verificada a excepção de caducidade do direito de acção, fez precisamente o contrário.
25. Deve o despacho saneador ser revogado e substituído por outro em que reconheça que o prazo de caducidade se iniciou a 28 de Março de 2018, pelo que à data da participação de 12 de Julho de 2019, mostrava-se precludido o direito do Sinistrado à reparação das consequências do acidente de trabalho.
26. Sem prescindir, subsidiariamente, para o caso de não se entender que a Recorrente cumpriu a comunicação formal da alta ao Recorrente, e que a mesma não se encontra assente, deverá ser reconhecida a nulidade da decisão impugnada, por excesso de pronúncia, substituindo-a por uma que determine que o conhecimento da excepção de caducidade seja relegado para momento em que a data da cura clínica se encontre assente.
Nestes termos e nos demais de direito, concedendo-se provimento ao presente recurso, assim se fará inteira e sã JUSTIÇA!
3. – O autor contra-alegou, concluindo:
1. Mantemos a posição assumida em sede de tentativa de conciliação e na petição inicial, concordando, na íntegra, com a fundamentação de facto de direito assumida pelo Mmo. Juiz a quo no despacho saneador aqui em causa.
2. Com efeito, em nosso entender e tal como refere o Mmo. Juiz a quo, o documento entregue ao Sinistrado foi apenas um documento apresentado com a descrição “declaração para a entidade patronal” e não, como refere a Recorrente, o boletim de alta clínica.
3. Não se verifica a caducidade do direito de acção se tal alta clínica não ocorreu ou se, tendo ocorrido, não foi formalmente comunicada ao sinistrado, mediante a entrega a este do duplicado do boletim de alta.
4. Pelo que, é completamente irrelevante, para a presente questão, a entrega ao sinistrado do documento junto a fls. 6, intitulado “declaração para a entidade patronal”, dado que tal documento não se pode considerar como a comunicação formal ao sinistrado da alta clínica, mediante a entrega de duplicado do boletim de alta, de modelo aprovado oficialmente.
5. Não estando determinado que a alta clínica tenha sido formalmente comunicada ao sinistrado, não pode concluir-se no sentido de que “caducou o direito de acção”, porquanto a caducidade só começa a correr a partir desse momento.
6. Bem esteve o Mmo. Juiz a quo ao julgar improcedente a excepção de caducidade do direito de acção, determinado que os autos seguissem os seus ulteriores termos, com a realização, se for caso disso, da audiência de julgamento.
7. Na verdade, uma vez que o prazo de caducidade do direito de acção só começa a correr depois da efectiva entrega ao sinistrado de duplicado do boletim de alta, de modelo aprovado oficialmente, não bastando o mero conhecimento por parte daquele de que lhe foi conferida a alta.
8. Destarte, conclui-se que, neste caso, não caducou o direito de acção emergente do acidente versado nos presentes autos.
9. Ao que acresce não resultar assente nos presentes autos que no dia 28-03-2018 o sinistrado se encontrasse real e efectivamente curado ou que as lesões tenham desaparecido completamente.
10. Bem andou o Mmo. Juiz a quo quando julgou improcedente a excepção da caducidade alegada pela Ré Seguradora na sua contestação.
Nestes termos, não violou, a douta decisão recorrida, qualquer dispositivo legal, pelo que deverá ser mantida nos seus precisos termos.
4. - O M. Público, junto deste Tribunal, não emitiu parecer, por patrocínio do autor.
5. - Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. - Fundamentação de facto
A matéria de facto a considerar, no âmbito deste recurso em separado, é a que consta do Relatório que antecede, mais a seguinte:
1. – Com a Participação do Acidente, em 29.09.2019, foi junto documento - a fls. 6 dos autos - intitulado “declaração para a entidade patronal”, com os dizeres expressos na decisão recorrida, supra transcritos.
2. – Por determinação do M. Público, a ré recorrente juntou aos autos, em 17.10.2019, seis documentos, sendo dois: (i) o “Boletim de Exame Médico”, datado de 21.02.2018; (ii) o “Boletim de Alta”, datado de 28.03.2018, e ambos subscritos pelo mesmo médico assistente.
3. – No despacho saneador, o Mmo Juiz consignou:
“Identifica-se o seguinte objeto do litígio (artigo 131º, nº2 do Código de Processo do Trabalho):
c) Se o sinistrado se encontra curado em 28 de Março de 2018.”.

III. – Fundamentação de direito
1. - Atento o disposto nos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis por força do artigo 1.º, n.º 2, alínea a) e artigo 87.º do Código de Processo do Trabalho (CPT), e salvo questões de conhecimento oficioso, o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões da recorrente, supra transcritas.
Mas essa delimitação é precedida de uma outra, qual seja a do reexame de questões já submetidas à apreciação do tribunal recorrido, isto é, o tribunal de recurso não pode criar decisões sobre matéria nova, matéria não submetida ao exame do tribunal de que se recorre.

2. - Objecto do recurso:
- A nulidade da sentença.
- A (im)procedência da excepção da caducidade do direito de acção.

3. - Da nulidade da sentença.
3.1. - A recorrente arguiu a nulidade da sentença nos seguintes termos:
20. O despacho saneador proferido pelo Tribunal a quo, padece de manifesto excesso de pronúncia.
21. Não estava habilitado a conhecer uma excepção peremptória cujo requisito fundamental integrou na matéria de facto controvertida.
22. O douto despacho saneador padece de nulidade, nos termos do artigo 615. °, n.º 1, al. d), 2.ª parte, do CPC.
23. Ao decidir no sentido da improcedência daquela excepção de caducidade, admitindo que a data da consolidação médico legal ou alta clínica não se encontra assente, conheceu de uma questão de não podia tomar conhecimento.”.
As nulidades da sentença podem ser invocadas e fundamentadas nos termos do artigo 77.º, n.º 1 do CPT, na redacção dada pela Lei n.º 107/2019, de 09.09.
O Mmo Juiz pronunciou-se pela inexistência da arguida nulidade da sentença, nos termos do despacho datado de 19.04.2021.
Apreciemos.
2.2. – A recorrente seguradora arguiu a nulidade da sentença por violação do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), 2.ª parte, do CPC.
2.2.1. - Estabelece tal norma: “É nula a sentença … quando o juiz … conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
A nulidade prevista na 2.ª parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º está directamente relacionada com o estabelecido no segundo segmento do n.º 2 do artigo 608.º do CPC, segundo o qual “O juiz não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”.
Esta norma sempre suscitou o problema de saber qual o sentido exacto da expressão “questões” nela empregue. E tem sido resolvido com base no ensinamento do Professor Alberto dos Reis, Cód. Proc. Civil, Anotado, V, pág. 54, que escreve: “… assim como uma acção só se identifica pelos seus três elementos essenciais (sujeitos, objecto e causa de pedir) (…), também as questões suscitadas pelas partes só ficam devidamente individualizadas quando se souber não só quem põe a questão (sujeitos) e qual o objecto dela (pedido), senão também qual o fundamento ou razão do pedido apresentado (causa de pedir)”.
No âmbito deste raciocínio, a doutrina e a jurisprudência distinguem, por um lado, “questões”, e, por outro, “razões” ou “argumentos”, e concluem que só a falta de apreciação ou a ocupação das primeiras – das “questões” – integram a nulidade prevista no citado normativo, mas já não a mera discussão das “razões” ou “argumentos” aduzidos pelo juiz para se pronunciar sobre as questões suscitadas.
[cfr., entre outros, Alberto dos Reis, ob. e vol. cits, pág. 143; Acs. STJ, de 02.07.1974, de 06.01.1977, de 05.06.1985 e de 24.02.1999, este último publicado no BMJ, 484.º-371, bem como os acórdãos do TRP, de 24.09.2020, proferidos nos processos n.º 18604/18.3T8PRT.P1 e n.º 256/19.5T8VFR.P1].
Sobre tal normativo, José Lebre de Freitas, in Código de Processo Civil, Anotado, escreve que “o juiz deve conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excep­ções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer, o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou excepção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da da sentença, que as partes hajam invocado.
Não podendo o juiz conhecer de causas de pedir não invocadas, nem de excepções na exclusiva disponibilidade das partes, é nula a sentença em que o faça.
É também nula a sentença que, violando o princípio dispositivo na vertente relativa à conformação objectiva da instância, não observe os limites impostos pelo artigo 609.º-1, condenando ou absolvendo em quantidade superior ao pedido ou em objecto diverso do pedido.”.
2.2.2. - No despacho saneador, o Mmo Juiz escreveu:
A Ré seguradora, em sede de contestação veio alegar, em síntese, que, tendo o Autor participado o alegado acidente ao tribunal de trabalho apenas em 12/07/2019, caducou o seu direito de acção, face ao previsto no artº 179º, nº 1 da LAT.”.
Quanto á excepção da caducidade a apreciar, depois de ter sido enunciada a questão a apreciar, por se ter considerado que a excepção da caducidade invocada depende da leitura dos documentos juntos a fls.6 e do documento que a seguradora qualifica como “boletim da alta” constante a fls.38 e 39, foi determinada a notificação da seguradora para, no prazo de 10 dias, vir aos autos:
a) Remeter cópia do boletim de alta referente ao sinistrado ou confirmar se tal boletim é o que foi remetido a fls.38 e 39 destes autos;
b) Esclarecer a emissão e o envio a estes autos do documento de fls.6, designadamente se o mesmo constitui o boletim de alta como sustenta a seguradora na sua contestação e se assim é o motivo pelo qual o documento de fls.38 e 39 se apresenta intitulado como “boletim de alta”.
Notificada a seguradora, a mesma veio aos presentes autos “em cumprimento ao ora notificado informar o seguinte:
• O boletim de alta já foi remetido a estes autos e encontra-se identificado em fls. 38 e 39.
• O documento de fls.6 trata-se da comunicação de alta emitida em duplicado e é entregue em mão ao sinistrado e assinado por este para formalizar o conhecimento da alta clinica.
Sendo uma destas vias entregue à sua entidade Patronal com indicação da alta clinica a fim de se apresentar ao serviço.”, (sic).”.
E decidiu:
Pelo exposto, e sem necessidade de ulteriores considerações, julgo improcedente por não verificada, a invocada excepção da caducidade do direito de acção e em consequência determino o prosseguimento dos ulteriores termos da presente causa”.
2.2.3. - O artigo 62.º - Audiência prévia – do CPT dispõe:
1 - Concluídas as diligências resultantes do preceituado no n.º 1 do artigo anterior, se a elas houver lugar, é convocada uma audiência prévia quando a complexidade da causa o justifique.
2 - A audiência prévia deve realizar-se no prazo de 20 dias, sendo-lhe aplicável o disposto no artigo 591.º do Código de Processo Civil, sem prejuízo do preceituado no n.º 3 do artigo 49.º do presente Código.”.
A audiência prévia realizou-se no dia 03.11.2020, conforme consta da respectiva acta, junta aos autos.
Nos termos do artigo 591.º do CPC, a audiência prévia é destinada, além do mais, a “d) Proferir despacho saneador, nos termos do n.º 1 do artigo 595.º;”.
O artigo 591.º do CPC dispõe:
“1 - O despacho saneador destina-se a:
a) Conhecer das exceções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente;
b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.” (negrito nosso).
Ora, tendo a ré seguradora, em sede de contestação, invocado a caducidade do direito de acção do autor, face ao previsto no artigo 179º, nº 1 da LAT, a lei processual, supra citada, permite que o Mmo Juiz dela conhecesse no despacho saneador. Se bem ou mal, já poderá ser enquadrável no erro de julgamento, mas não no âmbito da nulidade invocada pela ré seguradora.
Além disso, a decisão recorrida nada decidiu sobre “a data da consolidação médico legal ou alta clínica”.
Na verdade, como consta do ponto 3. dos factos provados, tal questão foi identificada, no despacho saneador, como integrando o objecto do litígio.
Inexiste, assim, a invocada nulidade da alínea d) - 2.ª parte - do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
4.Da (im)procedência da excepção da caducidade do direito de acção.
4.1. – Como supra transcrito, e para efeitos da apreciação da excepção da caducidade do direito de acção, a decisão recorrida desconsiderou o documento intitulado “declaração para entidade patronal”: “é completamente irrelevante, para a presente questão, a entrega ao sinistrado do documento junto a fls. 6, intitulado “declaração para entidade patronal”, com o texto supra transcrito, dado que tal documento não se pode considerar como a comunicação formal ao sinistrado da alta clínica, mediante a entrega de duplicado do boletim de alta, de modelo aprovado oficialmente.
Destarte, não estando determinado que a alta clínica tenha sido formalmente comunicada ao sinistrado, não pode concluir-se no sentido de que “caducou o direito de acção”, porquanto a caducidade só começa a correr a partir desse momento.”.
4.2. – Nas conclusões 7.ª e 8.ª do recurso, a ré seguradora alegou:
7. No Boletim de Alta junto aos autos a fls. 6, subscrito pelo Médico Assistente, no qual o Sinistrado assinou declarando ter tomado conhecimento do seu teor e ainda que recebeu o original do mesmo, e de onde consta: "O sinistrado fica na situação abaixo indicada/Alta, Sem Relação – Doença Natural a partir de 2018-03-28."
8. Este documento é o Boletim de Alta aprovado pela Recorrente, subscrito pelo Médico Assistente, impresso em triplicado, com a data da alta e o motivo, uma para ficar no Arquivo da Companhia de Seguros, e em duplicado entregue ao Sinistrado, uma via para si e uma para entregar à sua Entidade Empregadora.”.
4.3.Quid iuris?
O artigo 35.º - Boletins de exame e alta - da Lei n.º 98/2009, de 04.09 (LAT), prescreve:
1 - No começo do tratamento do sinistrado, o médico assistente emite um boletim de exame, em que descreve as doenças ou lesões que lhe encontrar e a sintomatologia apresentada com descrição pormenorizada das lesões referidas pelo mesmo como resultantes do acidente.
2 - No final do tratamento do sinistrado, quer por este se encontrar curado ou em condições de trabalhar quer por qualquer outro motivo, o médico assistente emite um boletim de alta clínica, em que declare a causa da cessação do tratamento e o grau de incapacidade permanente ou temporária, bem como as razões justificativas das suas conclusões.
3 - Entende-se por alta clínica a situação em que a lesão desapareceu totalmente ou se apresenta como insusceptível de modificação com terapêutica adequada.
4 - O boletim de exame é emitido em triplicado e o de alta em duplicado.” (negrito nosso).
E o artigo 179.º - Caducidade e prescrição – do mesmo diploma, estatui:
1 - O direito de acção respeitante às prestações fixadas na presente lei caduca no prazo de um ano a contar da data da alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado ou, se do evento resultar a morte, a contar desta.” (negrito nosso).
Nos termos do artigo 329.º do Código Civil (CC), “O prazo de caducidade, se a lei não fixar outra data, começa a correr no momento em que o direito puder ser legalmente exercido”.
E o artigo 331.º, n.º 1, do mesmo código, estabelece que só impede a caducidade a prática, dentro do prazo legal, do acto a que a lei atribua efeito impeditivo.
Nos termos do artigo 99.º, n.º 1 do C. P. do Trabalho (CPT), o processo para efectivação de direitos resultantes de acidente de trabalho inicia-se com a participação do acidente nos serviços do Ministério Público (cf. ainda artigo 26.º, n.º 3 do CPT).
A participação é, pois, o acto que exprime a intenção de exercer o direito de acção e visa desencadear os mecanismos legais para a obtenção, pelo sinistrado ou seus beneficiários, das prestações devidas pelo acidente de trabalho, isto é, a participação é o acto impeditivo de caducidade.
Acontece, porém, que a data da cura clínica, isoladamente considerada, nada releva para o início da contagem do prazo de um ano, previsto no citado artigo 179.º da LAT.
Na verdade, como decorre do citado artigo 35.º, n.º 2, “No final do tratamento do sinistrado, quer por este se encontrar curado ou em condições de trabalhar quer por qualquer outro motivo, o médico assistente emite um boletim de alta clínica, em que declare a causa da cessação do tratamento e o grau de incapacidade permanente ou temporária, bem como as razões justificativas das suas conclusões”. (negritos nossos)
E, esse boletim de alta clínica, deve ser passado em duplicado e “formalmente comunicada ao sinistrado”.
A doutrina e a jurisprudência são coincidentes a considerar que o prazo de um ano, previsto na Base XXXVIII, da Lei n.º 2 127; nos artigos 32.º, da Lei n.º 100/97 e Lei Regulamentar n.º 143/99, de 30.04; e agora no artigo 179.º da Lei n.º 98/2009, de 04.09, só começa a contar da data da entrega formal ao sinistrado do boletim de alta clínica.
[cf. entre outros, Tomás de Resende, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2.ª ed., pág. 67 e segs.; Cruz de Carvalho, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2.ª ed., pág. 162; Carlos Alegre, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2.ª ed., pág. 215; Acórdãos do STJ de 03.06.1992, Acórdãos Doutrinais, 1992, págs. 221 a 225; de 10.07.2013, proc. nº 941/08.TTGMR.P1.S1, e de 22.02.2017, proc. nº 2325/15.1T8OAZ.P1.S1, in www.dgsi.pt; Acórdão d TRC, de 20.10.2005, www.dgsi.pt/trc; Acórdão do TRP de 26.03.2007, proc. n.º 1179/07-1 AT, relatado pelo ora relator].
Por sua vez, o artigo 175.º - Formulários obrigatórios – da LAT estatui:
1 - As participações, os boletins de exame e alta e os outros formulários referidos nesta lei, que podem ser impressos por meios informáticos, obedecem aos modelos aprovados oficialmente.
2 - O não cumprimento do disposto no número anterior equivale à falta de tais documentos, podendo ainda o tribunal ordenar a sua substituição.”. (negritos nossos).
Ora, basta uma simples observação dos documentos juntos aos autos com a Participação do Acidente, intitulado “declaração para a entidade patronal”, e pela ré segurador, intitulado “Boletim de Alta”, para se perceber a diferença do seu formulário.
O documento intitulado “declaração para a entidade patronal” foi elaborado pela própria ré seguradora, como admite na conclusão 8.ª do recurso, e o documento intitulado “Boletim de Alta” corresponde ao modelo aprovado oficialmente, à semelhança, aliás, do “Boletim de Exame Médico”.
Sobre a entrega dos “Boletins de exame e alta”, Carlos Alegre, ob. citada, págs. 214 e 215 escreve:
“2. Os aludidos boletins (de exame e de alta) são passados em vários exemplares - os de exame, em triplicado; os de alta, em duplicado - cujos destinos dependem da qualidade das entidades responsáveis:
a) se a entidade responsável é uma seguradora ou alguma das mencionadas no artigo 59.º,
- dos boletins de exame (emitidos em triplicado) são entregues
- dois à entidade responsável (patronal ou seguradora), que fará chegar um deles a tribunal, quando,
- haja de se proceder a exame médico,
- o tribunal o requisite,
- tenha que acompanhar a participação do acidente,
- o terceiro exemplar é entregue directamente ao sinistrado.
- dos boletins de alta ( emitidos pelo médico assistente em duplicado) são por este entregues
- um à entidade responsável, que, por seu turno, o fará chegar a tribunal, nos casos acima referidos
- o segundo exemplar ao sinistrado. Este boletim é, quanto a nós, o único documento suficientemente capaz de fazer prova de que a alta clínica foi formalmente comunicada ao sinistrado, para os efeitos do disposto no artigo 32.º da Lei-n.º 100/9,7, (caducidade do direito de acção)”. – fim de citação.
Assim, o documento intitulado “declaração para a entidade patronal”, elaborado pela própria ré seguradora, à revelia do artigo 175.º da LAT, irreleva para efeitos da alegada caducidade do direito de acção, tanto mais que não só era dirigido à entidade patronal do sinistrado, como a data manuscrita é ilegível, e está rubricado por médico assistente diferente do médico assistente subscritor dos “Boletins de Exame e Alta”, juntos aos autos pela ré seguradora.
Além disso, embora a ré seguradora tenha junto aos autos o “Boletim de Alta” - modelo aprovado oficialmente -, por determinação do M. Público, não alegou, e muito menos provou, como era seu ónus, que o tenha formalmente comunicado ao sinistrado, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 179.º da Lei n.º 98/2009, de 04.09.
Assim, improcedendo o recurso em separado, é de confirmar a decisão recorrida.

IV.A decisão
Atento o exposto, acórdão os Juízes que compõem esta Secção Social em julgar improcedente o recurso em separado, e, consequentemente, manter a decisão recorrida.
Custas a cargo da ré recorrente, fixando em 3 UC a taxa de justiça.
Porto, 2021.07.14
Domingos Morais
Paula Leal de Carvalho
Rui Penha