Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
897/10.6TBMCN-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOAQUIM MOURA
Descritores: OMISSÃO DE NOTIFICAÇÃO
ROL DE TESTEMUNHAS
SUBSCRIÇÃO DE LIVRANÇA
AVAL
Nº do Documento: RP20210308897/10.6TBMCN-A.P1
Data do Acordão: 03/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Nos termos do disposto no artigo 201.º, n.º 1, do anterior Código de Processo Civil (que o artigo 195.º do Código actual reproduz, praticamente, na íntegra), não sendo caso de nulidade legalmente tipificada (nos artigos 193.º, 194.º, 198.º, n.º 2, segunda parte, 199.º e 200.º ou em disposição avulsa que comine tal vício à infracção que estiver em causa), a prática de acto que a lei não admita, bem como a omissão de acto ou formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
II - Não deve considerar-se que influiu no exame ou na decisão da causa a omissão da notificação para apresentar rol de testemunhas ou outras provas (nos termos previstos no artigo 512.º do revogado CPC) se a parte, devidamente assistida por advogado, teve múltiplas oportunidades de apresentar requerimento de prova, mas não o fez.
III - A considerar-se que essa omissão produz nulidade, estaremos perante uma nulidade secundária ou atípica que só poderá ser conhecida pelo tribunal mediante reclamação do(s) interessado(s) na observância da formalidade (artigo 202.º do anterior CPC) para o órgão que omitiu o acto e não mediante recurso.
IV - A causa de nulidade prevista na primeira parte da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC apresenta-se como um vício lógico na construção da sentença e verifica-se sempre que a fundamentação de facto e de direito apontam num certo sentido, mas, inesperadamente, surge uma conclusão, um dispositivo que não condiz com as premissas (ocorrerá, então, uma violação do chamado silogismo judiciário).
V – O alegado erro de julgamento, quer em matéria de facto, quer em matéria de direito constitui um error in judicando, que é fundamento de recurso e não cabe na previsão normativa das nulidades da sentença.
VI - Tendo a exequente a seu favor a literalidade, autonomia e abstracção do título cambiário, uma vez este preenchido, não tem que alegar e provar que efectuou o preenchimento com respeito absoluto pela autorização dada, sendo ónus do obrigado cambiário demandado a alegação e prova de que inexistia acordo de preenchimento ou, existindo, foi o título emitido em branco preenchido em desrespeito pelo pacto de preenchimento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 897/10.6 TBMCN-A.P1
(Embargos de executado)
Comarca do Porto Este
Juízo de Execução de Lousada (J1)

Acordam na 5.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

IRelatório
B… e C…, devidamente identificada nos autos, vieram por apenso aos autos de execução ordinária para pagamento de quantia certa[1] que, sob o n.º 897/10.6 TBMCN, correm termos pelo Juízo de Execução de Lousada, Comarca do Porto Este, em que figuram como executados (sendo, ainda, co-executada a sociedade comercial “D…, L.da”), e em que é exequente “E…, S.A.” (E…), deduzir oposição[2] à execução, por embargos, com os seguintes fundamentos:
A assinatura que consta na livrança emitida com data de 07.03.2007 e com vencimento em 28.02.2010 (preenchida com o valor de € 32.257,66) como sendo de B… não foi aposta pelo seu próprio punho, pelo que é uma falsificação.
Esse documento foi entregue à exequente em branco, apenas com a assinatura de C…, e foi preenchida sem o conhecimento nem o consentimento da B….
Acresce que, em 07.05.2010, a exequente debitou a conta de depósitos à ordem n.º …….., de que os executados são titulares, pelo valor de € 32.511,45, operando-se, assim, a compensação integral de créditos.
Também a livrança com o valor de € 9.230,61 foi entregue à exequente em branco, apenas com as assinaturas dos subscritores, e também o valor desta foi pago (parcialmente) mediante compensação com o saldo (no montante de € 1.189,63) existente na mesma conta de depósitos à ordem, efectuada em 11.05.2010.
Lançando mão do mesmo expediente, a exequente debitou, não só naquela conta, mas também na sua conta de depósitos à ordem n.º ………, várias quantias que atingiram o montante global de € 124.000,00.
Com esses débitos, ficaram totalmente compensados os créditos da exequente sobre a “D…, L.da”, à qual deram o seu aval, pelo que está, totalmente, satisfeito o crédito exequendo.
Concluem pela procedência dos embargos e consequente absolvição do pedido.

Por despacho de 09.02.2018, foram os embargos, liminarmente, recebidos e, notificada a exequente, veio esta apresentar contestação, alegando, em síntese
A oposição deduzida é destituída de «todo e qualquer fundamento», mais não constitui do que «uma manobra temerária por parte do Oponente com vista a evitar ou a protelar o cumprimento da obrigação» e os factos alegados são «completamente inócuos, irrelevantes e inoponíveis ao Embargado».
Descreve a «Realidade Contratual Subjacente ao Título dado à Execução», alega que a assinatura aposta na primeira livrança é da autoria da executada B… (sendo «flagrante a semelhança das assinaturas apostas nos vários documentos apresentados»), nega o preenchimento abusivo das livranças (os opoentes autorizaram expressamente o preenchimento pela embargada), tal como impugna a alegação do pagamento.
Concluiu pela total improcedência da oposição.
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Por despacho de 14.12.2018, foi indeferido o pedido de suspensão da instância executiva, dispensou-se a audiência prévia, fixou-se o valor da causa (o mesmo da execução: € 62.007,21) e proferiu-se despacho saneador tabelar, foi identificado o objecto do processo e foram enunciados os temas de prova, admitidos os requerimentos probatórios e programados os actos da audiência.
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Entretanto, já em Setembro de 2019, deu-se conta que, em 30.08.2010, a exequente fez chegar aos autos do processo principal (execução) um requerimento em que desistia parcialmente da execução, reduzindo o pedido executivo ao seguinte[3]:
- a quantia de € 8.040,61 relativa à livrança no montante de € 9.230,61 junta ao requerimento executivo como doc. nº 3, à qual deverão acrescer juros sobre o capital em dívida desde 11/05/2010, bem como o respectivo imposto do selo;
- a quantia de € 5.783,16 relativa à livrança do montante de € 19.074,63 junta ao requerimento executivo como doc. N.º 1, à qual deverão acrescer juros sobre o capital em dívida desde 07/05/2010, bem como o respectivo imposto de selo;
Para tanto, a exequente admitiu alegou que, nos dias 7 e 11 de Maio de 2010, recebeu dos executados a quantia global de € 33.700,98, produto da compensação do saldo credor proveniente do vencimento de um depósito a prazo, o qual foi imputado ao pagamento das livranças vencidas e não pagas, o que implicou a redução da dívida aos valores acima referidos, respeitantes apenas a duas das livranças exequendas, sendo que “a quantia relativa à livrança no montante de capital de € 32.157,66 encontra-se integralmente liquidada”.
Na sequência dessa desistência, foi determinada a redução do objeto do litígio e dos temas de prova anteriormente enunciados.
De resto, a redução da quantia exequenda já havia sido automaticamente assumida na execução, conforme atualização da quantia em dívida datada de 22.05.2019, onde consta declarado pelo agente de execução, com base no aludido requerimento do exequente, o seguinte:
“…nesta data procedi a alteração da quantia exequenda no montante de - 48.183,44 € . O valor actual da quantia exequenda é de 13.823,77 €.”
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Realizou-se a audiência final, após o que, com data de 21.05.2020, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Nestes termos, vistos os princípios expostos e as indicadas normas jurídicas:
a) Julgo, por inutilidade superveniente da lide, extinta a instância da oposição à execução quanto aos 1º, 2º e 3º fundamentos dos embargos referidos no Relatório e, em concreto, quanto ao pedido de extinção da execução relativamente ao valor em dívida resultante da livrança com o valor de € 32.257,66 e quanto ao pedido de redução da quantia exequenda quanto ao valor em dívida resultante da livrança com o valor de € 9.230,61, pelo alegado pagamento de € 1.189,63 datado de maio de 2010;
b) Julgo a oposição à execução improcedente, na parte não extinta por inutilidade da lide, e, em conformidade, determino o prosseguimento da execução pela quantia global de € 13.823,77 (treze mil, oitocentos e vinte e três euro e setenta e sete cent), a título de capital, acrescida de juros de mora, à taxa legal, e respetivo imposto de selo sobre os juros, contados desde 11.05.2010, quanto ao capital de € 8.040,61 (oito mil, quarenta euro e sessenta e um cent), e contados desde 07.05.2010, quanto ao capital de € 5.783,16 (cinco mil, setecentos e oitenta e três euro e dezasseis cent), até efetivo e integral pagamento.
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Custas da oposição pelos opoentes e pela exequente, na proporção do decaimento, sendo 46,06% a cargo dos opoentes e 53,94% a cargo da exequente.»

Inconformados, almejando a revogação da sentença, os embargantes interpuseram recurso de apelação, com os fundamentos explanados na respectiva alegação, que condensaram nas seguintes conclusões:
«1.º - Entendem os aqui Recorrentes que, sem mais, não poderia o Tribunal “a quo” dar como provados os factos constantes de 1 e 2, da matéria de facto relevante e como não provados os factos constantes das al. a) a i), da matéria não provada, considerando terem sido violadas, nomeadamente, as normas constantes do artigo 6.º, n.º 4, da Lei n.º 41/2013, de 26/6, artigo 3.º, 410.º e ss, 615.º, n.º 1, al. b) e c), do C.P.C., 342.º, 355.º, n.º 1, 356.º, n.º 1 e 358.º, n.º 1, do C.C., 32.º, n.º 1 e 5 da C.R.P.
2.º - Considerando o previsto no artigo 6.º, n.º 4, da Lei 41/2013, de 26/6, o artigo 3.º, 410 e ss do C.P.C. e 32.º, n.º 1 e 5, da C.R.P., deveria o Tribunal “a quo”, ter ordenado a apresentação do requerimento de prova, nos termos previsto no artigo 512.º do C.P.C., preterindo formalidade essencial, que inquina de nulidade o processado e que aqui expressamente se invoca.
3.º - Ao dar como assente a existência de um título executivo, sendo as livranças e pactos de preenchimento, incorre a sentença sub judice em nulidade, por violação do princípio do contraditório, já que tal teor não se encontrava admitido, nem por acordo, nem por confissão das partes (artigo 607.º, n.º 4 do C.P.C.), tão pouco se trata de um facto notório (artigo 412.º do C.P.C), ou se basta com simples prova documental (artigos 362.º e ss do C.C.).
4.º - A Exequente, aqui Recorrida, não invocou quaisquer factos dos quais emergisse o direito ao preenchimento das livranças juntas.
5.º - Pela Exequente, aqui Recorrida, não foi sequer comprovada a interpelação dos devedores para pagamento e resolução do contrato, sendo que, nas dívidas liquidáveis em prestações, de acordo com o regime consagrado no artigo 781.º, do Código Civil, o não pagamento de uma delas não importa a exigibilidade imediata de todas, cabendo ao credor interpelar o devedor para proceder ao pagamento da totalidade da dívida, na esteira do Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15 de Maio de 2012, P. 7169/10.4TBALM-A.L1-7, Relator: Graça Amaral, disponível em www.dgsi.pt. e Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 27 de Janeiro de 2015, P. 517/12.4TBMLD-A.P1.C1, Relator: Jaime Ferreira, in www.dgsi.pt
6.º - Não foi junta qualquer prova, tão pouco foi sequer alegada a interpelação dos aqui Recorrentes para pagamento, desconhecendo os mesmos, quando e como se tornaram vencidas as obrigações principais, uma vez que, não obstante o requerimento sob a referência 34571097, o que se constata é o seguinte:
a) carta alegadamente remetida para a obrigada principal em 19 de fevereiro de 2010, com a aposição de assinatura de F…, que não se confunde nem com C…, nem com B…, Executados ora Recorrentes;
b) carta alegadamente remetida para o avalista e aqui Executado Recorrente, datada de 19 de fevereiro de 2010, com aposição de assinatura de B…, que, como é bom de ver, não se confunde com C…;
Porém, atente-se que, as cartas em causa referem como assunto: Conta Empréstimo Dinâmica nº………… – OCV n.º ………, e relativamente a essa conta dinâmica, nenhum contrato ou documento, senão uma das três livranças dadas à execução se mostra junto aos autos para poder apreender sequer o contrato em causa e que fundamento existiria para a alegada e reclamada divida.
7.º - Foram dadas à execução as livranças constantes de fls. alegadamente para garantia dos contratos ……….. e ……… que não se encontram juntos aos Autos!
8.º - Como se decidiu no Ac. do STJ de 13.04.2011, no processo n.º 2093/04.2TBSTB-A.L1.S1: “O pacto de preenchimento é um contrato firmado entre os sujeitos da relação cambiária e extracartular que define em que termos deve ocorrer a completude do título cambiário, no que respeita aos elementos que habilitam a formar um título executivo, ou que estabelece em que termos se torna exigível a obrigação cambiária, daí que esse preenchimento tenha atinência não só com o acordo de preenchimento (no fundo o contrato que, como todos, deve ser pontualmente cumprido, art. 406º, nº1, do Código Civil); esse regular preenchimento em obediência ao pacto, é o quid que confere força executiva ao título (…)“ (sublinhado e negrito nosso)
9.º - O princípio da boa-fé e o dever de actuação em conformidade com ele consagrado, entre outros, no art. 762º n.º2 do Código Civil, impõe à Exequente, aqui Recorrida, a obrigação de informar aos avalistas dos títulos, simultaneamente partes no pacto de preenchimento, quais os montantes em dívida e as datas de vencimento e em que termos será preenchido o título em caso de não pagamento.
10.º - Tal, nomeadamente, mostra-se essencial, para efeito de invocação da prescrição parcelar das quantias amortizáveis e juros, nos termos previstos no artigo 310.º, al. d) e e) do C.C.. Assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 24/03/2014, P. 4273/11.5TBMTS-A.P1, in www.dgsi.pt “Assim sendo, tendo o reembolso da dívida sido objecto de um plano de amortização, composto por diversas quotas, que compreendem uma parcela de capital e outra de juros remuneratórios, que se traduzem na existência de várias prestações periódicas com prazos de vencimento autónomos, cada uma destas 36 prestações mensais encontrar-se-ia sujeita a um prazo prescricional privativo de cinco anos.”
11.º - É a própria Recorrida que na sua alegação invoca – confissão judicial que se aceita e que o Tribunal “a quo” grosseiramente violou renegando o disposto no artº.355 nº.1, art.º.356 n.º1 e artº.358 n.º1 do CC – que “Dúvidas não restam que a Contestante mais não fez do que preencher a livrança caução de acordo com o clausulado acordado com a aqui Oponente, conforme as Condições Gerais do contrato”, atribuindo a essencialidade que tal pacto de preenchimento detém, designadamente para efeitos de exigibilidade das quantias apostas nas livranças, ut artigos 6.º, 7.º, 28.º e 29.º da Contestação apresentada.
12.º - Confrontando a referida Livrança, com o Doc.1 junto pela Recorrida, verifica-se que o contrato no qual se estriba para preencher a livrança caução, é um contrato correspondente a uma conta (187096123), sem qualquer relação com a Conta Empréstimo Dinâmica nº.45318681786, cujo contrato e alegada autorização para preenchimento de título bancário não se encontra nos autos.
13.º - Aos pactos de preenchimento é aplicável o regime das cláusulas contratuais gerais, aprovado pelo DL n.º 446/85, de 25.10, sendo que, nos termos do art. 5º n.º1 do D.L. n.º 446/85, de 25.10, “as cláusulas contratuais gerais devem ser comunicadas na íntegra aos aderentes que se limitam a subscrevê-las ou aceitá-las.”, estipulando o n.º 3 do art. 5º, expressamente, que o ónus da prova da comunicação adequada e efectiva cabe ao contraente que submeta a outrem as cláusulas contratuais gerais.
14.º - Ao contrário do que parece sustentar a sentença sub judice não é pelo simples facto dos Recorrentes terem alegadamente assinado os respetivos acordos – que não se encontram nos autos - que os deveres de comunicação e informação foram cumpridos pelo beneficiário, o que se hipotisa por mero dever de oficio. Ora, a prova da entrega e explicação que competia à Exequente, aqui Recorrida, com a consequência prevista no artigo 8º al. a) do DL n.º 446/85, de 25.10, “as cláusulas têm-se por excluídas” não foi, por conseguinte concretizada, sequer alegada.
15.º - E, podendo os Recorrentes, enquanto subscritores desse pacto, opor a invalidade do mesmo o que por conseguinte inquinaria o aval, afectando-o do mesmo vício, viu-se coartada, violando-se o exercício do contraditório e mesmo a violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva, violando o disposto, conjugadamente, no art.º 20.º e 205.º n.º 1 e 2, ambos, da CRP.
16.º - Na verdade, ao não carrear para os Autos os pactos de preenchimento que legitimam o preenchimento das livranças dadas à execução, a própria execução fica inquinada, por não se encontrarem preenchidos os requisitos da certeza, exigibilidade e liquidez da obrigação exequenta. Neste sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.11.2018, P. 2272/05.5YYLSB-B, Relator: Paulo Sá, in www.dgsi.pt “I. O pacto de preenchimento é um contrato firmado entre os sujeitos da relação cambiária e extracartular que define em que termos deve ocorrer a completude do título cambiário, no que respeita aos elementos que habilitam a formar um título executivo, ou que estabelece em que termos se torna exigível a obrigação cambiária. II. O regular preenchimento, em obediência ao pacto, é o quid que confere força executiva ao título, mormente, quanto aos requisitos de certeza, liquidez e exigibilidade.” (negrito e sublinhado nosso).
17.º - Refere a sentença “a quo” que “inexiste qualquer prova de que inexistisse pacto de preenchimento das livranças”. Contudo e como é consabido, resulta evidente dos Autos a inexistência dos mesmos, uma vez que a Exequente procedeu à junção aos Autos de 3 livranças, assim como do teor de um contrato, sem que se possa estabelecer a necessária correspondência, lavrando a sentença recorrida em nulidade por falta de fundamentação e encontrando-se a decisão em contradição com os fundamentos invocados, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. b) e c), do C.P.C.
18.º - Do teor das livranças dadas à execução, resulta a existência de três contratos distintos, querendo a Exequente fazer crer que o pacto de preenchimento junto, se reporta às três livranças?! Ora, tal tese não se afigura minimamente credível, pois é do senso comum que as cláusulas estabelecidas em contratos reportam-se a esses mesmos contratos, só não o sendo, se expressamente assim se disser.»

A embargada/recorrida contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
O recurso foi admitido como apelação (com subida imediata, nos próprios autos de embargos e com efeito devolutivo).
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Suscitada em recurso a nulidade da sentença, cabe ao juiz do tribunal a quo, imediatamente antes de ordenar a sua subida, pronunciar-se sobre a nulidade arguida (artigos 617.º, n.º 1, e 640.º, n.º 1, do CPC).
Assim fez o Sr. Juiz, lavrando o seguinte despacho:
«Os recorrentes arguiram a nulidade da sentença, por o tribunal não ter ordenado a apresentação do requerimento de prova e por ter dado como assente a existência do título executivo, sem prova.
Ora, apesar de a arguição em causa não se revelar totalmente percetível quanto aos seus fundamentos, entende o tribunal que não se verifica a nulidade apontada.
Em primeiro lugar, o tribunal não se pode/deve substituir-se às partes na apresentação do requerimento de prova.
Em segundo lugar, os factos provados resultam apenas da evidência de que os documentos aí retratados foram juntos aos autos pela exequente, com o teor que deles consta, não se vislumbrando qual a lógica argumentativa dos recorrentes a este propósito. Depois, se os ditos documentos constituem título executivo, tal é matéria de direito; e, se os documentos foram preenchidos abusivamente, tal configura matéria de facto (e de direito) que teria de ter sido invocada/provada.
Assim sendo, entendo não ocorrer a nulidade invocada.»
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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

Objecto do recurso
São as conclusões que o recorrente extrai da sua alegação, onde sintetiza os fundamentos do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) e, portanto, definem o âmbito objectivo do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso. Isto, naturalmente, sem prejuízo da apreciação de outras questões de conhecimento oficioso (uma vez cumprido o disposto no artigo 3.º, n.º 3 do mesmo compêndio normativo).
Como decorre do antecedente relatório, servem de base à execução de que estes autos de embargos são apenso três livranças subscritas pela co-executada “D…, L.da”, a saber:
- uma, com data de vencimento de 28.02.2010, no valor de € 32.157,66;
- a segunda, com data de vencimento de 28.02.2010, no valor de € 9.230,61.
- a terceira, com data de vencimento de 23.06.2009, no valor de € 19.074,63;
No entanto, a exequente veio desistir da execução relativamente à primeira das referidas livranças, pelo que todas as questões suscitadas que visavam pôr em causa esse título cambiário (nomeadamente a genuinidade da assinatura da avalista B…) deixaram de ter qualquer interesse para este processo.
Relativamente às outras duas livranças, os embargantes, ora recorrentes, na petição de embargos, admitem, expressamente, que nelas apuseram as suas assinaturas (imediatamente por baixa dos dizeres “bom por aval à firma”) e que as entregaram, em branco, à exequente. A sua oposição à execução assenta na alegação de que os créditos que essas livranças titulam estão integralmente satisfeitos por compensação.
Lendo as conclusões do recurso, fica-se com a ideia de que os recorrentes preferem ignorar essa realidade.
Se bem percebemos o ponto de vista dos recorrentes, a questão essencial que pretendem debater e submetem à apreciação deste tribunal de recurso é a de saber se as referidas livranças são títulos de crédito válidos que sirvam de base à execução, o que passa por saber se a exequente estava legitimada para proceder ao seu preenchimento.
Antes, porém, há que apreciar a arguição de nulidades, quer da sentença, quer do processado posterior ao despacho saneador por alegada violação do contraditório.

IIFundamentação
1. Fundamentos de facto
Na primeira instância, foram considerados assentes os seguintes factos:
1. A exequente é portadora da livrança junta com o requerimento executivo e que se dá por integralmente reproduzida, com o valor de € 19.074,63, com referência a “contrato de locação financeira n.º ………”, com data de emissão de 2007-09-19, com data de vencimento de 2009-06-23, com identificação do subscritor como “D…, Lda.”, contendo, no verso, a seguir à expressão “Bom por aval à firma”, as assinaturas dos opoentes desenhando os seus nomes.
2. A exequente é portadora da livrança junta com o requerimento executivo e que se dá por integralmente reproduzida, com o valor de € 9.230,61, com a referência a “conta empréstimo dinâmica n.º ………..”, com data de emissão de 2006-08-17, com data de vencimento de 2010-02-28, com identificação do subscritor como “D…, Lda.”, contendo, no verso, a seguir à expressão “Bom por aval à firma”, as assinaturas dos opoentes desenhando os seus nomes.

Como factos não provados, foram elencados os seguintes:
a) Os opoentes foram gerentes da sociedade “D…, Lda.” até 22.10.2007,
b) Data em que renunciaram à gerência.
c) Desde 22.10.2007 que os opoentes deixaram de ter conhecimento da vida da sociedade ou qualquer contacto com a sua gestão e ou administração.
d) O incumprimento dos contratos subjacentes às livranças referidas nos factos provados por parte da sociedade executada ocorreu numa altura em que o executado C… adoeceu gravemente,
e) Diminuindo-lhe as capacidades mentais e impossibilitando-o de acorrer aos assuntos da vida profissional e relacionadas com as instituições bancárias.
f) Nessa altura, a exequente debitou nas contas bancárias de depósitos à ordem tituladas pelos executados diversos montantes,
g) No valor global de € 124.000,00,
h) Que utilizou para pagamento das dívidas subjacentes às livranças referidas nos factos provados,
i) Assim liquidando todos os valores em dívida.

2. Fundamentos de direito
2.1 Nulidade processual por violação do contraditório
Alegam os recorrentes que foi cometida nulidade processual por preterição de formalidade essencial porquanto são aplicáveis a este processo as normas do anterior Código de Processo Civil e, nos termos do disposto no seu artigo 512.º, o tribunal devia ter-lhe ordenado a apresentação de requerimento de prova, o que não fez (conclusão 2.ª).
O artigo 6.º da Lei n.º 41/2013, de 26/6 (que, como é sabido, aprovou o actual Código de Processo Civil) contém normas sobre a aplicação da lei no tempo, especificamente dirigidas à acção executiva, e estabelece a regra da aplicação imediata do novo CPC a todas as execuções pendentes em 01 de Setembro de 2013.
Não assim quanto aos procedimentos e incidentes de natureza declarativa (como é a oposição à execução por embargos de executado), pois o n.º 4 daquele artigo 6.º determina que o novo CPC é aplicável, apenas, aos deduzidos após 01 de Setembro de 2013.
Apesar de liminarmente recebidos, apenas, em 09.02.2018, os presentes embargos foram deduzidos em 17.09.2010.
Por isso, têm razão os recorrentes quando afirmam que lhes é aplicável, ainda, o anterior Código de Processo Civil[4] que, no artigo 512.º, sob a epígrafe “Indicação das provas”, dispunha no seu n.º 1:
«1 Quando o processo houver de prosseguir e se não tiver realizado a audiência preliminar, a secretaria notifica as partes do despacho saneador e para, em 15 dias, apresentarem o rol de testemunhas, requererem outras provas ou alterarem os requerimentos probatórios que hajam feito nos articulados e requererem a gravação da audiência final ou a intervenção do colectivo.»
Os embargantes foram notificados (por expediente electrónico elaborado em 20.12.2018) do despacho saneador (datado de 14.12.2018), mas não para apresentarem o rol de testemunhas ou alterarem os requerimentos probatórios que tivessem feito nos articulados, pelo que foi omitida uma formalidade que a lei prescreve.
Vejamos quais as consequências dessa omissão.
Nos termos do disposto no artigo 201.º, n.º 1, do Código de Processo Civil[5], não sendo caso de nulidade legalmente tipificada (nos artigos 193.º, 194.º, 198.º, n.º 2, segunda parte, 199.º e 200.º ou em disposição avulsa que comine tal vício à infracção que estiver em causa), a prática de acto que a lei não admita, bem como a omissão de acto ou formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
O contraditório (ou contraditoriedade) é, hoje, entendido como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontram em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão[6].
Ora, a referida omissão não obstou a que os embargantes indicassem as suas provas. Estavam assistidos por advogado e por isso sabiam que era altura para o fazer. Aliás, subsequentemente ao despacho saneador, na mesma data, foi proferido despacho a admitir a prova documental, bem como o rol de testemunhas apresentado pela embargada, e a ordenar a realização de perícia para apurar se a assinatura aposta numa das livranças foi feita pelo punho da embargante B….
Se era intenção dos embargantes apresentar rol de testemunhas ou outras provas, bem podiam tê-lo feito logo nessa altura.
Por isso, cremos não poder afirmar-se que aquela omissão influiu no exame ou na decisão da causa, pois não foi preterido o direito dos embargantes a um processo justo e equitativo.
Mas, que assim não seja, a considerar-se que a omissão produz nulidade, estaremos perante uma nulidade secundária ou atípica que só poderá ser conhecida pelo tribunal mediante reclamação do(s) interessado(s) na observância da formalidade (artigo 202.º do CPC) para o órgão que omitiu o acto e não mediante recurso[7].
Para tanto, para a dedução de reclamação, dispunham os embargantes do prazo de dez dias (artigos 205.º do CPC), sendo o termo inicial de tal prazo o dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum acto praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele.
Ora, os embargantes tiveram múltiplas oportunidades para deduzir a reclamação, mas nem quando foram notificados da designação da data para a audiência de discussão e julgamento (o momento por excelência da produção de prova) o fizeram.
Só em sede de recurso é que se decidiram pela arguição, mas, estando a irregularidade já sanada, não pode ser aqui atendida.

2.1 A alegada nulidade da sentença
Alegam os recorrentes que a sentença é nula por falta de fundamentação e porque a decisão está em contradição com os fundamentos invocados, «nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. b) e c), do C.P.C.» (que só pode ser do actual CPC, apesar de antes terem defendido não ser aplicável neste processo).
Se bem compreendemos, a falta de fundamentação e a contradição que originariam a nulidade revelar-se-iam na circunstância de a sentença referir que não há prova de que inexistisse pacto de preenchimento das livranças, mas, no entendimento dos recorrentes, essa inexistência é evidente «uma vez que a Exequente procedeu à junção aos Autos de 3 livranças, assim como do teor de um contrato, sem que se possa estabelecer a necessária correspondência» (conclusão 17.ª).
A tal propósito, na sentença posta em crise discorreu-se assim:
«Os opoentes invocam o pagamento total das dívidas subjacentes às livranças exequendas, mediante compensação com os montantes de contas bancárias dos executados, no montante global de € 124.000,00, sendo que, nas alegações, sustentaram que a exequente também não fez prova da existência de pacto de preenchimento das livranças.
Vejamos:
Os títulos executivos dados à execução e que ora relevam são duas livranças, as quais, por força da abstração inerente ao título de crédito, valem por si como título executivo, sem necessidade, para este efeito, de invocação e prova da relação causal subjacente à sua emissão, contendo todos os elementos exigíveis pelo disposto no art. 75.º da LULLiv – neste sentido se tem pronunciado unanimemente a jurisprudência, citando-se, a título exemplificativo, o Ac. RG de 09.10.2014, disponível em www.dgsi.pt.
Por outro lado, a emissão de livrança em branco mostra-se consentida pelo disposto no art. 10.º da LULLiv, estando, por natureza, subjacente à mesma uma autorização do seu preenchimento posterior, o qual, como vem sendo sustentado de forma tendencialmente unânime na doutrina e jurisprudência, não necessita de ser formal/expresso, podendo ser simplesmente consensual e implícito.
Além disso, como referido no Ac. RP de 17.03.2016 (proc. 7133/12.9YYPRT, disponível em www.dgsi.pt), no caso da emissão de títulos cambiários em branco e seu subsequente preenchimento pelo credor, no quadro previsto pelo art. 10.º da LULLiv, “cabe ao subscritor em branco demonstrar o quid com o qual o preenchimento é desconforme. Por conseguinte, se não lograr reconstruir em juízo os termos do acordo de preenchimento, o credor será admitido a exercer o seu direito cartular tal como o título o documenta.”.
Revertendo ao caso dos autos, cumpre desde logo salientar que, ao contrário do que foi invocado pelos opoentes nas alegações, não era à exequente que competia alegar e provar a existência de pacto de preenchimento das livranças, mas antes aos opoentes que competia demonstrar o contrário, para que se pudesse concluir pela ilegitimidade do preenchimento das livranças, conforme jurisprudência uniforme.
De facto, nesta matéria, para que a exceção de preenchimento abusivo pudesse proceder, teriam os opoentes de ter alegado e provado factos reveladores de que o portador da livrança não estava legitimado a preencher as livranças nos termos em que o fez, nomeadamente por inexistir pacto de preenchimento, expresso ou tácito, ou por o valor aposto nas livranças não corresponder àquele que se mostrava vencido e exigível na sequência dos contratos subjacentes, o que passaria pela alegação e prova dos termos do pacto de preenchimento (explícito ou, na sua falta, implícito) e pelo confronto com o seu efetivo preenchimento.
Como se escreveu no Ac. RP de 09.04.2013 (proc. 199/12.3YYPRT-A, em www.dgsi.pt), “Ainda que a emissão da livrança exequenda tenha sido acompanhada da celebração de um pacto de preenchimento expresso e reduzido a escrito…, a livrança exequenda, constitui, por si só, título suficiente e bastante para fundamentar a execução. Com efeito, ainda que a mesma possa ter sido emitida e assinada pelo avalista/oponente em branco, como é comum no comércio bancário, quando a execução foi instaurada, a livrança encontrava-se devidamente preenchida, apresentando todos os requisitos definidos pelos arts. 75º e 76º da LULL, podendo servir de base à execução. Face à presunção de existência do direito contido num título executivo, o executado/oponente não se pode refugiar numa defesa conclusiva ou genérica… e ficando-se pela alegação de que não deve ou que desconhece se o valor aposto no título de crédito corresponde ou não ao valor em dívida ao exequente. Ou seja, e ainda que adoptássemos as teses mais favoráveis ao oponente relativamente a cada uma das questões por si suscitadas, os factos por este alegados mostram-se insuficientes e inócuos para afastar a responsabilidade do ora oponente quanto ao pagamento da livrança exequenda.”.
Destarte, as questões suscitadas pelos opoentes “apenas” nas alegações, a propósito do pacto de preenchimento, são irrelevantes, pois a verdade é que inexiste qualquer prova de que inexistisse pacto de preenchimento das livranças. E, como se disse, cabia aos opoentes ónus de alegação e prova da inexistência desse pacto, sob pena de responderem nos termos resultantes da obrigação cambiária corporizada no título.
Seja como for, o certo é que a exceção de inexistência de pacto de preenchimento teria de ter sido alegada nos articulados, o que não sucedeu, precludindo, assim, o direito de defesa, nessa matéria.»
É a propósito das causas de nulidade da sentença invocadas pelos recorrentes (falta de fundamentação e contradição entre os fundamentos e a decisão) que mais frequentemente se confunde (deliberadamente ou não) a nulidade da sentença com o erro de julgamento e daí a grande frequência com que é invocado esse vício (não constituirá exagero afirmar que recurso em que não seja arguida a nulidade da sentença é quase uma raridade)[8].
Este caso é bem ilustrativo desse equívoco.
Como é de primeira evidência, salvaguardando o devido respeito, no mínimo, é uma grande ousadia afirmar que falta a especificação dos fundamentos que justificam a decisão.
Pela leitura do trecho da fundamentação que ficou transcrito podemos verificar que o tribunal justificou, de forma linear, transparente, consistente e perfeitamente inteligível, a decisão de julgar improcedente a oposição deduzida.
A decisão sob escrutínio revela, claramente, qual o iter lógico e racional seguido pelo tribunal a quo no seu processo de decisão e só não o entende quem não quer entender.
A fundamentação contida na sentença cumpre cabalmente a dupla função que se lhe assinala: garantia do controlo crítico da lógica da decisão, permitindo, por um lado, às partes, o recurso da mesma decisão com conhecimento da situação e ao tribunal de recurso o reexame da causa; reforço do autocontrolo do julgador, servindo de instrumento de ponderação e legitimação da própria decisão judicial, sendo um elemento fundamental na transparência da justiça.
A causa de nulidade prevista na primeira parte da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º apresenta-se como um vício lógico na construção da sentença e verifica-se sempre que a fundamentação de facto e de direito apontam num certo sentido, mas, inesperadamente, surge uma conclusão, um dispositivo que não condiz com as premissas (ocorrerá, então, uma violação do chamado silogismo judiciário).
Nada disso se verifica na sentença recorrida.
O que é patente é a discordância do recorrente quanto ao enquadramento jurídico dos factos que foi feito na sentença, pois que, na sua óptica, as livranças não servem como títulos executivos, ou seja, na realidade, imputa ao tribunal erro na aplicação do direito.
No entanto, o erro de julgamento, quer em matéria de facto, quer em matéria de direito não gera a nulidade da sentença. Uma coisa, é decidir mal, quer porque se apreciou e valorou erradamente a prova, quer porque se interpretou e aplicou mal o direito aos factos apurados. Outra coisa, bem diversa, é não observar as prescrições que a lei estabelece para a prática dos actos processuais, inobservância que pode originar vícios formais. No primeiro caso, temos o error in judicando, que é fundamento de recurso e não cabe na previsão normativa das nulidades da sentença, nomeadamente na disciplina da sua impugnação específica; no segundo caso, temos o error in procedendo, que pode, por si só, ser fundamento de recurso.
A arguição de nulidade da sentença revela-se, pois, manifestamente infundada.

2. Fundamentos de direito
Não tendo a execução por base uma sentença ou requerimento de injunção ao qual tenha sido aposta fórmula executória, o executado pode deduzir oposição com os fundamentos especificados no artigo 729.º do Cód. Proc. Civil (naturalmente, na parte aplicável) e, ainda, quaisquer outros que lhe era lícito deduzir como defesa em processo de declaração (artigo 731.º do mesmo diploma legal).
A execução de que aqui se trata baseia-se (agora) em duas livranças - uma, no valor de € 19.074,63, com vencimento em 23.06.2009, e outra, no valor de € 9.230,61, com vencimento em 28.02.2020 - emitidas (subscritas) e entregues, em branco, por “D…, L.da”, à qual deram o seu aval os aqui embargantes B… e C… que, como se constata pela simples inspecção do título (e por eles foi admitido na petição de embargos), no seu verso, apuseram, pelo seu próprio punho, a sua assinatura imediatamente a seguir aos dizeres “Bom por aval à firma”.
Os recorrentes vêm, agora, em sede recursiva, alegar que o tribunal não podia dar como assente “a existência de um título executivo”, já que tal não está admitido, nem por acordo, nem por confissão, nem é facto notório, e a exequente «não invocou quaisquer factos dos quais emergisse o direito ao preenchimento das livranças juntas» e, ao contrário do que se afirma na sentença recorrida, «como é consabido, resulta evidente dos Autos a inexistência» de qualquer pacto de preenchimento (conclusões 3.ª, 4.ª e 17.ª).
Porém, a realidade é bem diversa daquela que os recorrentes têm, para si, como adquirida.
Como se faz notar na sentença impugnada, uma das características das livranças (tal como das letras de câmbio, dos cheques, etc.), como títulos de crédito cambiários que são, é a sua abstração, o que é dizer que valem por si e o seu legítimo portador, para fazer valer o direito que incorporam, não tem que alegar e provar a relação subjacente à sua emissão.
Ainda, a literalidade dos títulos de crédito significa que o direito neles incorporado vale, quanto ao seu conteúdo e extensão, nos precisos termos que constam do próprio documento, independentemente da forma como foi constituído, ou seja, sem dependência da relação que lhe subjaz, e essa é uma característica fundamental para a segurança do portador na circulação destes títulos.
Também é sabido que uma livrança consubstancia uma promessa de pagamento de determinada quantia feita pelo seu emitente ou subscritor (o devedor) ao beneficiário (o credor) ou à sua ordem.
Assim, a emissão e entrega de uma livrança importa o reconhecimento de obrigação pecuniária pelo montante nela inscrito e, por força do disposto no artigo 458.º, n.º 1, do Código Civil (que consagra uma inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental), ao executado que deduz oposição cabe alegar e provar a inexistência de qualquer obrigação subjacente à sua emissão, ou então a sua extinção.
O regime jurídico da livrança é moldado pelas normas relativas às letras de câmbio, pois que, como decorre do artigo 77.º da L.U.L.L., são aplicáveis às livranças grande parte das disposições relativas às letras, designadamente as respeitantes ao aval.
A função do aval é a de garantir o cumprimento pontual da obrigação cambiária ou cartular do avalizado[9]. Mas se, para uns, é uma garantia pessoal que «apresenta os traços da fiança»[10], para outros, «o carácter autónomo do aval, de certo modo, descaracteriza-o como uma verdadeira garantia pessoal, pois o avalista passa a responder – solidariamente com o avalizado – como devedor de uma obrigação própria»[11].
Como ensinava o Professor Antunes Varela[12], durante muito tempo, houve na doutrina e na jurisprudência uma forte tendência para equiparar o regime do aval à fiança, mas, com a entrada em vigor da Lei Uniforme relativa às Letras e Livranças, essa posição conheceu uma alteração substancial por virtude do disposto no artigo 32.º deste diploma.
Nos termos deste preceito, «o dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada», o que é dizer que o avalista fica na situação de devedor cambiário perante aqueles subscritores em face dos quais o avalizado é responsável, e na mesma medida em que ele o seja.
É pacífico o entendimento de que, ao contrário do que acontece na generalidade dos casos de fiança, a responsabilidade do avalista não é subsidiária da do avalizado. É, isso sim, uma responsabilidade solidária e o avalista não goza do benefício da excussão prévia[13].
Os avalistas são solidariamente responsáveis para com o portador e este a todos pode demandar, individual ou colectivamente (artigos 32.º e 47.º da L.U.L.L.).
Na petição de embargos, os ora recorrentes alegaram que, efectivamente, deram o seu aval à subscritora nas livranças em causa, mas estas foram assinadas e entregues em branco e, já na audiência de julgamento, através do seu ilustre mandatário, alegaram a inexistência de qualquer acordo que autorizasse a exequente a preenchê-las e daí a sua afirmação de que o tribunal não podia concluir pela existência de título executivo, tese em que insistem em sede de recurso.
Mas, também nesta questão, não lhe pode ser reconhecida razão.
Frequentemente, aos contraentes não convém, por razões várias (mas quase sempre relacionadas com o desenvolvimento da relação subjacente), estabelecer, de imediato, uma obrigação cambiária, limitando-se a criar as condições para a emissão futura de uma letra de câmbio ou de uma livrança.
Exigências mínimas para que tal aconteça são, por um lado, que o instrumento (letra ou livrança) contenha, desde logo, a assinatura de, pelo menos, um dos obrigados cambiários e, por outro, que, com a sua entrega, o legítimo portador seja investido em poderes de preenchimento dos elementos em falta (normalmente, o montante e a data de vencimento). Para tanto, o adquirente imediato do título e o subscritor (geralmente, o aceitante na letra de câmbio e o emitente na livrança) definem as condições de preenchimento e obrigam-se a respeitá-las através de um pacto que, frequentemente, é reduzido a escrito, mas que pode, simplesmente, resultar das circunstâncias do negócio[14], ou seja, o acordo de preenchimento pode ser expresso ou tácito, verbal ou meramente consensual.
Era imperativo que a exequente, no requerimento executivo, alegasse e provasse a existência de um pacto de preenchimento das livranças e que as preencheu com respeito pelas cláusulas do acordo, como defendem os recorrentes?
Quem emite uma letra em branco atribui àquele a quem a entrega o direito de a preencher em certos e determinados termos.
O Professor Pedro Pais de Vasconcelos (“Aval em branco” in Revista de Direito Comercial) é, a este respeito, taxativo e bem claro:
«O artigo 1º da LULL não pode ser isolado do artigo 10º da mesma lei. E do artigo 10º resulta com clareza que o saque, o aceite, o endosso, o aval na letra e a subscrição na livrança vinculam os seus autores ainda antes do preenchimento completo do título.
(…)
O artigo 10º da LULL admite mesmo que, após criado o título em branco, o primeiro portador o transmita ainda em branco, por endosso, e ele circule em branco, podendo ser preenchido por qualquer dos sucessivos portadores.
Conjugados os artigos 1º e 10º da LULL, tem de se admitir que todos os que aponham a sua assinatura numa letra ou livrança em branco ficam imediatamente vinculados duplamente:
Por um lado, ficam numa situação jurídica de sujeição ao exercício do poder potestativo de preenchimento do título por qualquer dos portadores, situação que aceitaram e na qual se colocaram conscientemente ao assinarem o título em branco e ao entregarem voluntariamente;
Por outro lado, ficam ainda obrigados ao seu pagamento pelo valor e na data de vencimento com que o título vier a ser preenchido, conforme a qualidade em que o assinam e a sua posição na cadeia cambiária, só podendo opor a quem exige o seu pagamento uma convenção executiva, que com ele tenham celebrado.»
Diversamente do que defendem os recorrentes, tendo a exequente a seu favor a literalidade, autonomia e abstracção do título cambiário, uma vez este preenchido, não tem que alegar e provar que efectuou o preenchimento com respeito absoluto pela autorização dada.
É sabido que a doutrina e a jurisprudência têm afirmado, generalizadamente, que o ónus da prova do preenchimento abusivo do título incumbe àquele que o invoca - o que sucede normalmente em sede de embargos, quando o obrigado cartular é executado.
Com efeito, é uniforme o entendimento, na doutrina como na jurisprudência, de que, nos casos em que os avalistas podem opor ao portador da livrança avalizada em branco o desrespeito pelo acordo de preenchimento (quando foram intervenientes no pacto), é ao obrigado cambiário demandado que cabe fazer a demonstração de que o título emitido em branco foi depois preenchido em desconformidade com a vontade dos intervenientes no pacto, competindo-lhe alegar e provar, oportunamente, os factos integradores dessa excepção peremptória ou de direito material[15].
Basta que não se demonstre que o pacto de preenchimento foi incumprido (ou que inexiste) para que a oposição, com esse fundamento, necessariamente, improceda.
No caso, só em relação à livrança com a valor de € 32.257,66 alegaram os embargantes que foi preenchida sem o conhecimento ou consentimento da B….
Quanto às outras duas livranças (aquelas em que agora se baseia a execução), os embargantes, apenas, alegaram o pagamento integral.
A oposição à execução configura-se como uma acção[16], com as suas especificidades, é certo, mas em que tem de ser alegada uma causa de pedir (algum dos fundamentos legalmente previstos cuja demonstração conduz, necessariamente, à extinção da execução) e formulado um pedido (a extinção, total ou parcial, da execução).
Não tendo os embargantes alegado que a exequente não estava autorizada a preencher as livranças, ou que as preencheu com violação do pacto de preenchimento, há que concluir, como se concluiu na primeira instância, que precludiu o direito de defesa dos embargantes relativamente a essa matéria de excepção peremptória.
Por isso, é mera afirmação conclusiva, sem nada de substancial que a sustenta, a alegação de violação dos artigos 20.º e 205.º, n.º 1, da CRP e dos princípios do contraditório e da tutela jurisdicional efectiva.

III - Dispositivo
Pelo exposto, acordam os juízes desta 5.ª Secção Judicial (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso de apelação interposto por B… e C… e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas do recurso a cargo dos recorrente (artigo 527.º, n.os 1 e 2, do Cód. Processo Civil).

(Processado e revisto pelo primeiro signatário).

Porto, 8 de março de 2021
Joaquim Moura
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
_____________
[1] Instaurada em 05.07.2010.
[2] Em 17.09.2010 e não em 17.09.2020 como, certamente, por lapso, consta da sentença recorrida.
[3] Reproduz-se aqui, no essencial, o que, a este propósito, consta da sentença recorrida.
[4] É a esse Compêndio Normativo revogado pela Lei n.º 41/2013, de 26/6, que, de ora em diante, nos reportaremos.
[5] À semelhança do que dispõe o artigo 195.º do actual CPC, que reproduz, praticamente na íntegra, o artigo 201.º do anterior CPC
[6] Cfr. José Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Conceitos e Princípios Gerais à luz do Código Revisto, pág. 96.
[7] Cfr, entre outros, o acórdão de 11.04.2019 (processo n.º 2749/17.0 T8MAI-A.P1) desta Relação e desta Secção, de que foi Relatora a Sra. Desembargadora Dra. Ana Paula Amorim, que aqui intervém como Adjunta.
[8] Vale a pena reproduzir aqui o que, a este propósito, escrevem A.S. Abrantes Geraldes, L.F. Pires de Sousa e P. Pimenta, ob. cit., pág. 736, notas 2 e 4: «É verdadeiramente impressionante a frequência com que, em sede de recurso, são invocadas nulidades da sentença ou de acórdãos, denotando um número significativo de situações em que o verdadeiro interesse da parte não é propriamente o de obter uma correta apreciação do mérito da causa, mas de “anular” a toda a força a sentença com que foi confrontada».
E mais adiante: «Acresce ainda uma frequente confusão entre nulidade da decisão e discordância quanto ao resultado, entre a falta de fundamentação e uma fundamentação insuficiente ou divergente da pretendida ou mesmo entre a omissão de pronúncia (relativamente a alguma questão ou pretensão) e a falta de resposta a algum argumento dos muitos que florescem nas alegações de recurso.».
[9] O artigo 30.º da L.U.L.L. define o aval como o acto pelo qual alguém garante o pagamento da letra (ou livrança, ex vi artigo 77.º do mesmo diploma) por parte de um dos seus subscritores.
[10] J.H. Pinto Furtado, ob. cit., 154.
[11] Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, Almedina, 4.ª edição, pág. 114.
[12] “Das Obrigações em Geral”, vol.II, 4.ª edição, pág. 468.
[13] Cfr., por todos, Ferrer Correia, “Lições de Direito Comercial”, Vol.III, Letra de Câmbio, 1975, pág. 214.
[14] Segundo J.H. Pinto Furtado, Títulos de Crédito, Almedina, 2000, pág. 146, «A letra em branco deve ser preenchida de harmonia com os termos convencionados pelas partes (acordo expresso) ou com as cláusulas do negócio determinante da sua emissão (acordo tácito)».
[15] É abundante a jurisprudência sobre esta questão. A título de exemplo, indicam-se as seguintes acórdãos, todos acessíveis em www.dgsi.pt:
- Ac. STJ de 27.05 2003
«2. Quem emite uma livrança em branco atribui a quem a entrega o direito de a preencher de acordo com as cláusulas convencionadas entre ambos, em jeito de delegação de confiança, incumbindo ao emitente a alegação e a prova do facto impeditivo do seu preenchimento abusivo.»
- Ac. STJ de 12.10.2017
«III. No âmbito de uma livrança emitida em branco, incumbe aos obrigados cartulares, no domínio das suas relações imediatas com o portador daquela, alegar e provar a violação do respetivo pacto de preenchimento, como decorre do disposto no artigo 10.º, a contrario sensu, aplicável ex vi do artigo 77.º ambos da LULL e do artigo 378.º do CC.»
- Ac STJ de 19.06.2019:
“conforme é hoje posição pacífica da jurisprudência, encontrando-se o título nas relações imediatas (sem entrar em circulação) e tendo o mesmo avalista outorgado no pacto de preenchimento (configurando-se, assim, uma relação tripartida, entre o portador, o subscritor/aceitante e o avalista), como ora sucede, ao avalista é reconhecida legitimidade para efeitos de arguição da excepção de preenchimento abusivo, ainda que lhe caiba, naturalmente, em conformidade com a regra geral prevista nos artigos 342º, n.º 2 e 378º, do Cód. Civil, a alegação e prova dos factos concretos que fundamentam esta excepção material contra o portador do título)».
- Ac. TRP de 10.10.2019
«II - Cabe ao executado o ónus de alegar e provar os factos integradores da concreta excepção de preenchimento abusivo que consubstancia a sua oposição à execução.»
- Ac. TRC de 14-09-2020
«3 - Intervindo no pacto de preenchimento e encontrando-se o título no domínio das relações imediatas, pode o executado/embargante/subscritor ou avalista opor ao exequente/beneficiário a violação desse preenchimento, ou seja, a exceção material (perentória) do preenchimento abusivo do título, sendo sobre o opoente que incumbe/incide o ónus de alegação e prova desse abusivo preenchimento.»
- Ac. STJ de 02-12-2008
«II - A livrança em branco destina-se, normalmente, a ser preenchida pelo seu adquirente imediato ou posterior, sendo a sua entrega acompanhada de poderes para o respectivo preenchimento de acordo com o denominado “pacto ou acordo de preenchimento”. III - É indiferente que o avalista tenha dado ou não o seu consentimento ao preenchimento da livrança. Com efeito, esse acordo apenas diz respeito ao portador da livrança e ao seu subscritor, não sendo o avalista sujeito da relação jurídica existente entre estes, mas apenas sujeito da relação subjacente à obrigação cambiária do aval, relação essa constituída entre ele e o avalizado e que só é invocável no confronto entre ambos.»
E como se assinala no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2006-12-14, nada obsta, «antes aconselhando a que se aceite como válido para as letras e livranças» a doutrina do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 14/05/96, relativo aos cheques, de acordo com o qual: «Em processo de embargos de executado é sobre o embargante, subscritor do cheque exequendo emitido com data em branco e posteriormente completado pelo tomador ou a seu mando que recai o ónus de prova da existência de acordo de preenchimento e da sua inobservância».
[16] Para uns, uma acção de simples apreciação negativa, para outros, uma acção declarativa constitutiva (cfr. Rui Pinto, A Acção Executiva, AAFDL, 2020, Reimpressão, pág. 372).