Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1721/20.7T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS GIL
Descritores: DIREITO DE RETENÇÃO
CRÉDITO
RECIPROCIDADE
CONEXÃO OBJECTIVA
Nº do Documento: RP202201241721/20.7T8VNG.P1
Data do Acordão: 01/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Por falta de conexão com a coisa que se pretende reter, a sociedade ré titular de um crédito sobre o autor resultante dos serviços de construção e montagem de uma cozinha não goza do direito real de retenção de um beliche que lhe foi entregue para reparação pelo autor.
II - Embora exista reciprocidade de créditos, não existe conexão entre o crédito do autor de restituição do beliche entregue à ré para reparação e o crédito da ré de obter o pagamento do preço da cozinha cuja construção e montagem foi acordada com o autor, falta de conexão entre os créditos que obsta ao reconhecimento de um direito obrigacional de retenção.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc.º 1721/20.7T8VNG.P1

Sumário do acórdão proferido no processo nº 1721/20.7T8VNG.P1 elaborado pelo seu relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:
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Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório
Em 26 de fevereiro de 2020, no Juízo Local Cível de …, Comarca do …, AA… instaurou ação declarativa sob forma comum contra B…, Lda. pedindo a condenação da ré a entregar-lhe um beliche e a pagar-lhe a quantia de dois mil euros a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, com juros legais desde a citação e até efetivo e integral pagamento.
Para fundamentar as suas pretensões o autor alegou, em síntese, que tem uma pequena loja de móveis, enquanto a ré se dedica, com fins lucrativos, ao fabrico de móveis de cozinha, mobiliário de madeira para salas de estar, quartos de dormir, entre outros; em julho de 2017, o autor foi contactado por um cliente que pretendia uma cozinha, tendo o autor indicado a ré a fim de esta fazer a referida cozinha para o cliente; a ré acertou com o dito cliente os pormenores relativos à cozinha, comprometendo-se aquela a entregá-la no prazo de sessenta dias; em 08 de setembro de 2017 o autor solicitou à ré a colocação de umas ferragens num beliche, tendo a ré aceitado e tendo o autor entregue as ferragens e o beliche; até à propositura da ação a ré não entregou o referido beliche ao autor; mediante carta registada datada de 06 de novembro de 2017, o autor, através do seu mandatário, interpelou o sócio da ré, Sr. CC…, para que procedessem à entrega do beliche, tendo este respondido, via correio eletrónico, referindo, em síntese, que a ré, no exercício do direito de retenção e da exceção de não cumprimento, reteria o referido beliche até que o autor cumprisse todas as obrigações que tem para com a ré e que ascendem a alguns milhares de euros; face à resposta que antecede, foi solicitado à ré que informasse sobre os eventuais trabalhos efetuados e montante a pagar, nada tendo informado a ré; em 03 de janeiro de 2018, a ré foi de novo intimada, mediante carta registada com aviso de receção, para em cinco dias devolver o beliche ao autor e bem assim indicar os trabalhos efetuados e o montante a pagar; o autor não deve qualquer importância à ré, tendo o cliente para quem se destinava a cozinha cujo fabrico o autor intermediou junto da ré entregue a esta um sinal de €750,00; a ré sabia que o beliche servia para uso das netas do autor, à data com dois e cinco anos de idade e de setembro de 2017 a maio de 2018, as netas do autor pernoitaram em casa do autor num colchão colocado no chão; por força da recusa da ré em devolver ao autor o beliche o autor adquiriu um novo pelo preço de €179,00, adquirindo mais tarde dois colchões pelo preço de €160,00; com a sua conduta a ré impediu as netas do autor de pernoitarem confortavelmente e causou transtornos, angústia e sofrimento familiar.
Citada a ré, esta comprovou ter requerido apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo e de nomeação e pagamento de compensação de patrono.
Concedido o apoio judiciário requerido pela ré e nomeada patrona à mesma, foi oferecida contestação.
Neste articulado a ré impugna grande parte dos factos alegados pelo autor na petição inicial e dá deles uma versão diferente, nomeadamente, que foi o autor o destinatário do orçamento para a fabricação de uma cozinha e que foi o mesmo que entregou à ré, como princípio de pagamento, a quantia de €700,00, tendo executado parte dos trabalhos na cozinha no valor de €3.113,00, só não os concluindo por lhe ter sido vedado o acesso à obra.
Na contestação, além da defesa por impugnação e por exceção, a ré deduziu reconvenção contra o autor pedindo que se declare existir direito de retenção da ré sobre o beliche enquanto estiver em dívida a fatura referente aos trabalhos feitos pela ré na cozinha a pedido do autor, devendo este ser condenado a pagar à ré a quantia de €3.793,00, acrescida de juros de mora sobre o capital desde a data da contestação até ao pagamento.
O autor replicou suscitando a extemporaneidade da contestação e impugnou a matéria alegada para substanciar as pretensões reconvencionais, negando a reunião dos pressupostos do invocado direito de retenção do beliche, pugnando pela total improcedência da reconvenção e suscitando a litigância de má-fé da ré, pedindo a condenação desta em multa e indemnização a fixar pelo tribunal.
A ré ofereceu requerimento reafirmando a tempestividade da contestação e negando a verificação dos pressupostos para a sua condenação como litigante de má-fé.
Admitiu-se a reconvenção deduzida pela ré, fixou-se o valor da causa no montante de €5.793,00, dispensou-se a realização de audiência prévia, proferiu-se despacho saneador tabelar, identificou-se o objeto do litígio, especificou-se a factualidade já assente e enunciaram-se os temas de prova, admitindo-se as provas oferecidas pelas partes, designando-se dia para realização da audiência final.
A audiência final realizou-se numa sessão e em 17 de junho de 2021 foi proferida sentença[1] que terminou com o seguinte dispositivo:
Pelo exposto julgo a acção parcialmente procedente e, em consequência, condeno a ré na entrega, ao autor, do beliche descrito na petição inicial, bem como no pagamento, ao autor, da quantia de €339,00 (trezentos e trinta e nove euros), a título de danos patrimoniais, quantia acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, até efectivo e integral pagamento, absolvendo a ré do demais pedido.
Mais julgo totalmente improcedente o pedido reconvencional, absolvendo o autor do pedido.
Mais julgo improcedente o pedido de condenação da ré como litigante de má-fé.
Custas por autor e ré na proporção do respectivo decaimento.
Em 13 de setembro de 2021, inconformada com a sentença, BB…, Lda. interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
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AA… respondeu ao recurso pugnando pela sua total improcedência e requerendo o desentranhamento dos autos dos documentos oferecidos pela recorrente com as suas alegações de recurso e, na eventualidade de assim não ser entendido, pronunciou-se sobre o valor probatório dos mesmos.
Proferiu-se neste Tribunal da Relação despacho a não admitir a prova documental oferecida pela recorrente com as suas alegações de recurso e colhidos os vistos dos restantes membros do coletivo, cumpre agora apreciar e decidir.
2. Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil
2.1 Da reapreciação dos pontos 5, 6, alínea a) e 7 dos factos provados, do aditamento a esta factualidade de um ponto 8 e da reapreciação das alíneas c) a g) dos factos não provados;
2.2 Do direito de retenção da recorrente[2];
2.3 Da indemnização do autor por danos patrimoniais.
3. Fundamentos
4.1 Da reapreciação dos pontos 5, 6, alínea a) e 7 dos factos provados, do aditamento a esta factualidade de um ponto 8 e da reapreciação das alíneas c) a g) dos factos não provados
A recorrente requer a reapreciação dos pontos 5, 6, alínea a) e 7 dos factos provados e das alíneas c) a g) dos factos não provados e o aditamento aos factos provados de um ponto 8 com o teor que indica.
Os pontos de facto cuja reapreciação é requerida têm o seguinte teor:
- Alegando ter direito de retenção enquanto não for resolvido o problema de uma cozinha (ponto 5 dos factos provados);
- Em sede de audiência de julgamento no Juízo Local Criminal de … – Juiz …, Processo n.º 627/18…, cuja certidão da sentença se junta, foram dados como factos provados:
a) Que o autor entregou na empresa supra mencionada o beliche para reparação (alínea a) do ponto 6 dos factos provados);
- A ré emitiu, em nome do autor, a factura …./….., de 22.11.2017, da qual ainda não foi paga a quantia de €3.113,00, relativa a obras de uma cozinha (ponto 7 dos factos provados)
- Que o autor tenha solicitado à ré a realização dos seguintes trabalhos no beliche, a saber: limpeza e lacagem, remoção da tinta existente, aplicação de subcapa (primário), 1.ª demão de pintura, despolimento e aplicação de uma 2.ª demão de tinta, substituição dos ilhargueiros por novos em madeira maciça e aplicação das ferragens a serem fornecidas pela ré (alínea c) dos factos não provados);
- Que o autor tenha acordado com a ré a compra e montagem de uma cozinha para um cliente seu (alínea d) dos factos não provados);
- Que o autor e a ré tenham acordado, entre ambos, o preço (alínea e) dos factos não provados);
- Que o autor se obrigou a pagar o mesmo, à autora (alínea f) dos factos não provados);
- Que o autor tenha entregue à ré, como princípio de pagamento, a quantia de 700,00€ (alínea g) dos factos não provados).
Assim, relativamente ao ponto 5 dos factos provados pretende que se esclareça que a cozinha a que respeita a invocação do direito de retenção é aquela a que se refere a fatura nº …./…… de 22 de novembro de 2017, emitida pela ré.
Quanto à alínea a) do ponto 6 dos factos provados pugna por que se adite que a entrega do beliche foi em dia não apurado de setembro de 2017, beliche já usado, adquirido pelo autor no OLX e de valor concretamente não determinado mas não inferior a €50,00.
No que respeita ao ponto 7 dos factos provados pede que passe a constar do mesmo que a cozinha a que se refere este ponto da factualidade provada foi “negociada entre o Autor e a Ré no mês de Julho de 2017, quanto ao preço e tipologia da intervenção (entretanto com alterações do orçamento/modificações), sendo o Autor a fornecer o bem aplicado na casa do cliente e amigo do Autor – DD… – sendo o Autor o responsável pelo pagamento à Ré, cortando relações comerciais no mês de Outubro com a Ré, a mando do Autor acabada por um terceiro, sendo o 2º negócio realizado entre o Autor e esse terceiro, bem como o pagamento cujo valor se desconhece, não havendo faturação.”
No que respeita à alínea c) dos factos não provados, a recorrente pretende que seja dado como provado que o “autor solicitou à Ré trabalhos num beliche, na sede dessa empresa onde o entregou, num dia concretamente não apurado do mês de Setembro de 2017, para a reparação, o beliche era usado, adquirido pelo Autor no OLX por €50,00.”
Relativamente às alíneas d) a g) dos factos não provados pretende que sejam suprimidas.
Pretende que seja aditado aos factos provados o ponto 8 com o seguinte teor:
- “Entre o Autor e a Ré há correspondência trocada/negociações, sendo o sinal entregue pelo autor à Ré no mês de Julho de 2017, estando o recibo emitido pela Ré mais tarde aquando da faturação da cozinha, quando surgem os desentendimentos e a Ré deixa de poder aceder ao local da obra, recibo não devolvido pelo Autor à Ré, sendo no montante de €700,00.”
A recorrente funda as suas pretensões recursórias em sede de matéria de facto na fatura por si emitida em 22 de novembro de 2017 e na devolução por parte do autor desta fatura, na conjugação da certidão da sentença criminal proferida no processo comum singular nº 627/18… do Juízo Local Criminal de …, Comarca do … com os “emails” oferecidos com a contestação com os nºs 6, 7, 10 e 11 e ainda com base na prova pessoal produzida na audiência final nos segmentos que destaca.
Depois da descrição do conteúdo dos depoimentos produzidos na audiência final, o tribunal a quo fundamentou a sua convicção probatória do seguinte modo:
No que se refere à convicção do Tribunal, importa dizer que a versão da ré não foi confirmada por qualquer outro meio de prova, a não ser pelas declarações de parte. Importa ainda dizer que a carta remetida pelo autor, com a devolução da factura, não faz referência ao facto de este não ser parte no contrato relacionado com a fabricação da cozinha, pondo em causa apenas e só o cumprimento do contrato. Simplesmente, as testemunhas DD… e EE… assumiram que foram os próprios quem acordaram com a ré a fabricação e o pagamento da cozinha, e que o sinal foi entregue pelos próprios (versão confirmada pela testemunha HH…).
Assim, os factos alegados pela ré foram considerados como não provados.
Cumpre apreciar e decidir.
Uma vez que a recorrente observa minimamente os ónus que impendem sobre o recorrente que impugna a decisão da matéria de facto procedeu-se à análise crítica da prova documental junta aos autos e pertinente para a reapreciação requerida, como sejam os documentos nº 2[3] nº 5[4] e certidão da sentença criminal proferida no processo comum singular nº 627/17… do Juízo Local Criminal de …, Juiz …[5], oferecidos com a petição inicial, os documentos nº 1[6], nº 1.1[7], documento não numerado, com data de 29 de novembro de 2017[8], documento não numerado, com data de 10 de janeiro de 2018 e registo postal[9], documento não numerado, aparentemente cópia de mensagem de correio eletrónico, com autoria atribuída a CC… e endereçada a AA…@hotmail.com[10], todos oferecidos com a contestação[11] e procedeu-se à audição da prova pessoal produzida na audiência final.
O autor, AA…, ouvido em declarações de parte, limitou-se a referir que o seu papel foi o de apresentar à ré um amigo que precisava de comprar uma cozinha, não tendo havido qualquer intervenção da sua parte na negociação, pelo que a fatura emitida pela ré é falsa, já que não lhe forneceu qualquer material e por isso não a aceitou devolvendo-a. Mais referiu que o seu amigo e cliente a quem apresentou os representantes da ré entregou a estes, na sua presença, um sinal no montante de setecentos e cinquenta euros.
GG…, também ouvida em declarações de parte, na qualidade de legal representante da ré, pelo contrário, referiu que quem negociou a cozinha foi o autor e que por isso o orçamento do custo da cozinha foi remetido ao autor e não ao cliente deste. O autor ficou de pagar à ré o valor orçamentado, desconhecendo a declarante quanto é que o mesmo iria cobrar aos clientes a que se destinava a cozinha. Aquando da devolução da fatura emitida para pagamento da cozinha, o autor não colocou em causa que fosse o devedor da mesma, nem devolveu o recibo do sinal no montante de setecentos euros pago pelo autor. O autor entregou um beliche para reparação, não se recordando do seu valor, sendo que o autor afirma que o comprou no OLX por €400,00.
DD…, membro do casal a que se destinava a cozinha que constitui um dos pontos em discussão nestes autos, gerente numa empresa de máquinas de costura referiu que o autor lhe apresentou os “réus” como capacitados para lhe fornecerem uma cozinha de que precisava para remodelar a sua habitação. Houve muitos atrasos no fornecimento da cozinha e apenas foi instalado o esqueleto da cozinha adquirida, sendo certo que tinha urgência na instalação da nova cozinha, já que seu filho, com grandes limitações físicas, regressaria dentro em pouco a casa e carecia de uma cozinha adaptada a tais limitações. Dados os atrasos na instalação da cozinha, deu um ultimato ao autor para ele lhe arranjar outro fornecedor, já que ele era o responsável pelo que se estava a verificar. Declarou ter entregue aos “réus”, em julho, setecentos e cinquenta euros em dinheiro para sinalizar a aquisição da cozinha, tendo o autor assumido esse prejuízo da testemunha. A cozinha foi terminada por outra empresa, tendo sido o autor que negociou com esta. Referiu que os trabalhos desta outra empresa não foram faturados e que pagou directamente a esta o custo dos trabalhos realizados.
II…, comerciante de móveis, declarou que relativamente ao litígio dos autos apenas sabe o que o autor lhe contou e que o mesmo lhe apresentou a ré como construtora de cozinhas, que fazia a montagem gratuitamente e, mais tarde, o autor disse-lhe que a ré não tinha montado devidamente uma cozinha num cliente dele, mas nessa altura havia já adquirido cinco cozinhas à ré e tinha pago a esta perto de cinco mil euros de sinal, tendo por isso uma ação contra ré em que pede apenas a devolução dos sinais prestados. Declarou ainda que nas cozinhas que adquiriu à ré era o depoente que as faturava ao cliente a que se destinavam.
HH…, reformado, anteriormente trabalhador da construção civil, declarou ter procedido ao “desmonte” da cozinha que existia na casa a que se destinava aquela que é objeto de discussão nestes autos, a pedido do dono da casa, tendo sido abordado pelo Sr. DD… para lhe indicar quem lhe fornecesse uma cozinha, tendo-lhe indicado o autor. O Sr. DD… disse-lhe que tinha entregado setecentos e cinquenta euros de sinal pela aquisição da cozinha.
JJ…, esposa do autor, técnica de turismo, declarou nada saber da cozinha em discussão nestes autos e que conhecia os “réus” de irem à loja do marido. Trata da “papelada” e como seu marido lhe disse que uma fatura que lhe havia sido remetida pela ré era falsa, por não lhe ter sido entregue qualquer material, deslocou-se à Repartição de Finanças, a fim de avaliar qual o procedimento que devia ser seguido quanto a tal documento, tendo sido aconselhada a devolver a fatura. Declarou que no dia do seu aniversário foi à sede da ré entregar um beliche para reparação. A instância do Sr. Advogado do autor declarou que o prazo para passar recibo de quantias recebidas é de cinco dias.
EE…, gerente, esposa da testemunha DD…, declarou que ela e o seu marido acordaram com um Sr. em julho, no sentido de lhes ser fornecida e montada uma cozinha, tendo sido entregue a quantia de setecentos e cinquenta euros em dinheiro a título de sinal. Porém, dada a demora na montagem da cozinha face ao que havia sido combinado e à urgência dessa situação estar resolvida dada a iminência do regresso de seu filho a sua casa, em outubro disse que já não queria nada com o Sr. com quem haviam negociado o fornecimento e instalação da cozinha, pedindo ao autor para resolver o problema. Declarou desconhecer as contas de seu marido com o autor e bem assim se foi seu marido que pagou a quem concluiu a cozinha ou se foi o autor.
Rememorados os pontos essenciais da prova pessoal produzida em audiência é tempo de proceder à sua avaliação crítica.
A avaliação crítica da prova testemunhal não se deve limitar a um mero confronto de versões, já que, como é da experiência comum, a inverdade campeia na vida social e os tribunais não constituem exceção a tal realidade e, pelo contrário, constituem um campo fértil para tal prática.
Por isso, em ordem a ajuizar, na medida do possível, se alguma das versões é verdadeira, importa proceder a uma avaliação global da prova pessoal e documental produzida, procurando encontrar pontos de corroboração de alguma das versões em presença ou até de partes de qualquer das versões contrapostas.
No caso dos autos, não obstante a frontal divergência do autor e da legal representante da ré sobre a forma como se processou a negociação da cozinha e sobre quem foi parte no negócio que, numa perspetiva simplista, conduziria, como conduziu o tribunal a quo, a um singelo non liquet, existem elementos documentais e pessoais que conferem credibilidade a uma das versões em detrimento da outra.
Começando pelos elementos documentais, destaque-se a remessa da orçamentação da cozinha ao autor e a não devolução por este do recibo relativo ao pagamento do sinal, ao contrário da fatura referente ao fornecimento da cozinha que devolveu, não porque nada tivesse a ver com tal negócio, mas porque a montagem da cozinha não se acharia terminada (veja-se o documento transcrito na nota de rodapé nº 8).
No que respeita aos elementos pessoais corroboradores de uma das versões em presença, destaque-se o depoimento da testemunha DD… que identificou o autor como o responsável pelos incidentes na montagem da cozinha, assumindo o autor o prejuízo da testemunha pelo sinal prestado. Ora, se o autor se tivesse limitado a apresentar esta testemunha aos representantes da ré, como afirmou, como poderia ser considerado responsável pelas vicissitudes na montagem da cozinha?
Também a testemunha II…, colega do autor no comércio de móveis e a quem este indicou a ré como fabricante de cozinhas, referiu que era ele próprio que faturava aos seus clientes as cozinhas adquiridas à ré. Este procedimento é o que se coaduna com a atividade de intermediação de um comerciante de móveis, como também sucede com o autor.
Assim, tudo sopesado, ao invés do que entendeu o tribunal recorrido afigura-se-nos que a prova pessoal e documental produzida na audiência final, avaliada criticamente, é suficiente para conferir credibilidade às declarações de parte da legal representante da ré.
Debrucemo-nos agora detidamente sobre cada um dos pontos de facto cuja reapreciação foi requerida pela ré.
No que respeita ao ponto 5 dos factos provados, a prova produzida é inquestionavelmente no sentido de que o direito de retenção invocado pela ré se prende com a cozinha que a ré faturou ao autor em novembro de 2017, procedendo, nesta parte a requerida reapreciação.
Quanto à alínea a) do ponto 6 dos factos provados, embora a sua pertinência tal como a globalidade da factualidade dada como provada neste ponto 6 dos factos provados sejam mais do que duvidosas, atentos os objetos da ação e da reconvenção, é inequívoco, face ao teor da certidão apresentada da sentença em causa oferecida pelo autor, que deve passar a constar da alínea a) do referido ponto dos factos provados que em dia não concretamente apurado de setembro de 2017, AA… entregou na sede da ré um beliche, no valor não concretamente determinado, mas não inferior a €50,00 (cinquenta euros), para reparação.
No que respeita ao ponto 7 dos factos provados, atenta a prova por documentos relativa aos orçamentos apresentados pela ré ao autor e a fatura emitida pela ré em novembro de 2017[12], a que é feita referência em variada correspondência trocada entre as partes, e a prova pessoal antes analisada criticamente, deve passar a ter a seguinte redação: a ré emitiu, em nome do autor, uma fatura em 22 de novembro de 2017, com o nº …./……, da qual ainda não foi paga a quantia de €3.113,00, relativa à construção e montagem de uma cozinha negociada entre o autor e a ré no mês de julho de 2017, quanto ao preço e tipologia da intervenção (entretanto com alterações do orçamento/modificações), tendo recebido do mesmo autor em julho de 2017 a quantia de setecentos euros, a título de sinal.
A restante matéria que a ré pretende ver incluída neste ponto de facto, além de não ter sido oportunamente alegada, não constituindo matéria passível de ser relevada nos termos previstos na alínea b), do nº 2, do artigo 5º do Código de Processo Civil, antes tendo mero relevo probatório, por isso a considerar nos termos previstos na alínea a), do nº 2 do mesmo artigo.
Reapreciemos agora a alínea c) dos factos não provados.
No que respeita este ponto de facto, atenta a prova pessoal produzida apenas se pode dar como provado que em dia não concretamente apurado de setembro de 2017, AA… entregou na sede da ré um beliche, no valor não concretamente determinado, adquirido no OLX, para reparação, matéria que na sua quase totalidade consta já do ponto 3 dos factos provados da sentença recorrida, devendo manter-se não provada a extensão dos trabalhos no beliche alegadamente solicitados pelo autor à ré e constantes da alínea c) dos factos não provados que por isso se mantém.
No que respeita às alíneas d), e), f) e g) dos factos não provados, face ao conteúdo do ponto 7 dos factos provados, em resultado da reapreciação da decisão da matéria de facto nesta instância, devem eliminar-se, porquanto se provou, no essencial, a matéria julgada não provada vertida nestas alíneas.
Pretende a recorrente que seja aditado aos factos provados o ponto 8 com o seguinte teor:
- “Entre o Autor e a Ré há correspondência trocada/negociações, sendo o sinal entregue pelo autor à Ré no mês de Julho de 2017, estando o recibo emitido pela Ré mais tarde aquando da faturação da cozinha, quando surgem os desentendimentos e a Ré deixa de poder aceder ao local da obra, recibo não devolvido pelo Autor à Ré, sendo no montante de €700,00.”
A matéria que a recorrente pretende ver aditada à matéria de facto, na parte em que é inovadora relativamente à já constante na factualidade provada, é claramente instrumental e por isso, cumpriu já a sua função probatória dos factos essenciais, sendo espúria a sua autonomização em sede de factualidade provada.
Por isso, improcede esta pretensão de aditamento à factualidade provada da aludida matéria.
Pelo exposto, conclui-se pela parcial procedência da reapreciação da decisão da matéria de facto requerida pela ré nos termos que ficaram expostos.
3.2 Fundamentos de facto exarados na sentença recorrida e resultantes da reapreciação da decisão da matéria de facto que precede, expurgados das meras referências probatórias
3.2.1 Factos provados
3.2.1.1
A ré dedica-se com fins lucrativos à fabricação de móveis de cozinha, mobiliário de madeira para salas de estar, quartos de dormir, entre outros.
3.2.1.2
O autor possui uma pequena loja de venda de móveis.
3.2.1.3
O autor, em setembro de 2017, solicitou à ré a reparação de um beliche de valor não concretamente determinado, adquirido no OLX, tendo a ré aceite tal pedido.
3.2.1.4
Até à data, o referido beliche ainda não foi entregue ao autor.
3.2.1.5
Alegando ter direito de retenção enquanto não for resolvido o problema da cozinha que a ré faturou ao autor em novembro de 2017.
3.2.1.6
Em sede de audiência de julgamento no Juízo Local Criminal de … – Juiz …, Processo n.º 627/18…, foram dados como factos provados:
a) Que em dia não concretamente apurado de setembro de 2017, AA… entregou na sede da ré um beliche, no valor não concretamente determinado, mas não inferior a €50,00 (cinquenta euros), para reparação;
b) Que a ré não devolveu o beliche ao autor apesar das diversas insistências para que o restituísse;
c) Que desde setembro de 2017 a maio de 2018 as netas do autor, sempre que pernoitavam na sua residência dormiam num colchão colocado no chão ou com a sua esposa; Que o autor entre maio e junho de 2018, adquiriu um novo beliche e colchões pelo valor de €339,00; Que a ré tem o aludido beliche na sua posse e que tem vindo a recusar a sua entrega;
d) Que a ré pretende com esta conduta forçar o autor a pagar-lhe uma determinada quantia de que se acha credora e que aquele nega dever-lhe.
3.2.1.7
A ré emitiu, em nome do autor, uma fatura em 22 de novembro de 2017, com o nº …./……, da qual ainda não foi paga a quantia de €3.113,00, relativa à construção e montagem de uma cozinha negociada entre o autor e a ré no mês de julho de 2017, quanto ao preço e tipologia da intervenção (entretanto com alterações do orçamento/modificações), tendo recebido do mesmo autor em julho de 2017 a quantia de setecentos euros, a título de sinal.
3.2.2 Factos não provados
3.2.2.1
Que o autor tenha acordado com a ré a colocação de umas ferragens num beliche.
3.2.2.2
Que o autor tenha entregue à ré as respectivas ferragens.
3.2.2.3
Que o autor tenha solicitado à ré a realização dos seguintes trabalhos no beliche, a saber: limpeza e lacagem, remoção da tinta existente, aplicação de subcapa (primário), 1.ª demão de pintura, despolimento e aplicação de uma 2.ª demão de tinta, substituição dos ilhargueiros por novos em madeira maciça e aplicação das ferragens a serem fornecidas pela ré.
4. Fundamentos de direito
4.1 Do direito de retenção da recorrente
A recorrente pugna pela revogação da decisão recorrida na parte em que não lhe reconheceu o direito de retenção sobre o beliche que o autor lhe entregou para reparação.
Para tanto, alegou no corpo da sua apelação e repetiu em sede de conclusões do mesmo recurso o seguinte:
1.
A Ré tem um crédito relacionado, nos termos legalmente previstos, com a coisa retida, que colabora com a função de assegurar que o seu crédito será pago com preferência a outros credores, como pressupostos do direito de retenção pode tão só existir ter uma relação legal ou contratual, como resulta do artigo 755.º do Código Civil, que são os chamados casos especiais, onde não há, necessariamente uma relação direta do crédito e da coisa, sendo o caso, estamos perante um direito real de garantia.
2.
É certo que para o exercício do direito de retenção sem complicação basta uma conexão lógica entre a coisa e o crédito, motivo este pelo qual a coisa passa a se vincular e ser tida como garantidora do crédito, oponível, inclusive, erga omnes, porém em alguns momentos as normas em vigor quanto a esse instituto criam situações diversas, onde se poderá exercer esse direito, mesmo que não haja a conexão requisitada entre coisa e crédito, como é o caso.
Na sentença recorrida julgou-se improcedente a pretensão da ré de reconhecimento de um direito de retenção a seu favor com os seguintes fundamentos:
Desde já importa recordar que os factos alegados pela ré, relativos ao seu reclamado crédito, não foram dados como assentes.
Mesmo que assim não fosse, contudo, importa dizer que, nos termos do artigo 754º do C. Civil, “o devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados.”
Ora a ré fundamentou a retenção do móvel descrito nos factos assentes com uma dívida do autor relacionada com a fabricação de uma cozinha, que nada tinha a ver com aquele pelo que nunca poderia ser considerada como lícita essa conduta.
Cumpre apreciar e decidir.
De acordo com o disposto no artigo 754º do Código Civil, norma que prevê em geral o direito de retenção, “[o] devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados.”
A iliquidez do crédito daquele que invoca o direito de retenção não obsta ao reconhecimento desse direito (artigo 757º, nº 2, do Código Civil).
Além da previsão geral que reconhece o direito de retenção, existem previsões específicas do mesmo direito no artigo 755º do Código Civil.
No caso em apreço, atenta a factualidade resultante da reapreciação da decisão da matéria de facto, pode concluir-se que a ré é titular de um crédito contra o autor.
A recorrente invoca um crédito resultante de uma empreitada (construção e montagem de uma cozinha) para reter um objeto que lhe foi entregue pelo dono da obra para execução de uma outra empreitada (reparação de um beliche).
No seu figurino geral, o direito real de retenção exige que o crédito por ele garantido resulte de despesas feitas por causa da coisa retida ou de danos por ela causados, o que patentemente não se verifica no caso dos autos.
Esta situação não se reconduz a nenhuma das previsões específicas do direito de retenção constantes do artigo 755º do Código Civil e dada a natureza real do direito de retenção, não é legalmente admissível a criação por via analógica de novos casos específicos de direito real de retenção (veja-se o nº 1, do artigo 1306º do Código Civil)[13].
Por outro lado, embora exista reciprocidade de créditos, não existe conexão entre o crédito do autor de restituição do beliche entregue para reparação e o crédito da ré de obter o pagamento do preço da cozinha cuja construção e montagem foi acordada com o autor, falta de conexão entre os créditos que obsta ao reconhecimento de um direito obrigacional de retenção[14].
Os elementos disponíveis são insuficientes para afirmar que o exercício do direito do autor de obter a restituição do beliche entregue à ré é abusivo, nomeadamente por assim proceder, sendo devedor da ré por força de outra relação contratual.
Em todo o caso, deve vincar-se que, fazendo fé nas alegações das partes, o beliche em causa terá um valor diminuto e por isso muito insuficiente para poder eficazmente compelir o autor a cumprir a obrigação de pagamento do preço da cozinha encomendada à ré.
Pelo exposto, conclui-se pela improcedência da pretensão da recorrente de que lhe seja reconhecido o direito de retenção do beliche que o autor lhe entregou enquanto não for embolsada do preço devida pela construção e montagem da cozinha que acordou com o autor, seja enquanto direito real de garantia, seja enquanto direito obrigacional de retenção.
4.2 Da indemnização do autor por danos patrimoniais
A recorrente pugna pela revogação da decisão recorrida no segmento em que foi condenada a pagar ao autor a título de dano patrimonial a quantia de €339,00, correspondente ao valor que despendeu para aquisição de um beliche[15].
Fundamenta esta pretensão recursória com a seguinte conclusão[16]:
C)
No caso dos autos o Autor despendeu €339,00 na aquisição de um novo beliche, não estando apurado o tamanho, a qualidade, o conforto quanto a cada um desses bens, o beliche usado e na posse da Ré e o adquirido pelo Autor, o Tribunal não tem um valor determinado ou correspondente, deverá julgar de acordo com os factos constantes dos autos e de acordo com um juízo de equidade, pecando por excesso e claro abuso de direito fixar um indemnização superior a €200,00 (não esquecer o diminuto valor do beliche que está em causa – €50,00).
Cumpre apreciar e decidir.
A recorrente nesta questão recursória apenas se insurge contra o quantum do dano, não questionando a existência do dano enquanto tal[17], nem sequer que o autor despendeu €339,00 na aquisição de um novo beliche[18], adiantando que uma indemnização de valor superior a duzentos euros peca por excesso e constitui um claro abuso do direito.
Neste contexto, atendendo a quanto se expôs anteriormente, à vinculação do tribunal do recurso ao pedido formulado pelo recorrente (veja-se o nº 2, do artigo 663º do Código de Processo Civil) e ainda à proibição da reformatio in pejus (artigo 635º, nº 5, do Código de Processo Civil), deve a indemnização por dano patrimonial reduzir-se ao montante de duzentos euros, valor que a recorrente aceita pagar.
Pelo exposto, conclui-se pela parcial procedência do recurso interposto pela ré, sendo as custas da ação e do recurso da responsabilidade de ambas as partes na exata proporção do decaimento (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), mas sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia a recorrente e ré.
5. Dispositivo
Pelo exposto, os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto por BB…, Lda. e, em consequência, em alterar a decisão da matéria de facto nos termos antes expostos e em revogar parcialmente a sentença recorrida proferida em 17 de junho de 2021, na parte em que condenou a ora recorrente ao pagamento, ao autor, da quantia de €339,00 (trezentos e trinta e nove euros), a título de danos patrimoniais”, condenando-se antes a mesma recorrente a pagar a AA… a quantia de duzentos euros a título de danos patrimoniais, mantendo-se no mais a decisão sob censura.
Custas da ação e do recurso a cargo de autor e ré na exata proporção do decaimento, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso, mas sem prejuízo do apoio judiciário de que goza a ré e recorrente.
***
O presente acórdão compõe-se de vinte e cinco páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário.

Porto, 24 de janeiro de 2022
Carlos Gil
Mendes Coelho
Joaquim Moura
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[1] Notificada às partes mediante expediente eletrónico elaborado em 17 de junho de 2021.
[2] Sublinhe-se que, com alguma perplexidade da nossa parte, a recorrente pede o reconhecimento do crédito de que afirma ser titular, sendo devedor o autor e que se declare que esse crédito lhe confere o direito a reter o beliche que o autor lhe entregou para reparação até que se mostre satisfeito o seu crédito, mas não pede a condenação do autor ao pagamento do mesmo crédito, pretensão que o tribunal recorrido julgou improcedente e contra a qual não reagiu por via recursória. Na verdade, o simples pedido de revogação da sentença recorrida não implica, implicitamente, o pedido de condenação do autor ao pagamento do crédito de que a ré se afirma credora, sendo o autor o seu devedor e nem nas alegações, nem nas conclusões do recurso se encontra qualquer alusão à pretensão de condenação do autor ao pagamento à ré de tal crédito, nem isso tão-pouco resulta das normas jurídicas que a recorrente afirma terem sido violadas na sentença recorrida.
[3] Trata-se de uma mensagem de correio eletrónico remetida por CC…@carpintariaeinteriores.com para FF… com referência “V\cliente AA…”, com data de 22 de novembro de 2017, pelas 10h45, da qual se destacam as seguintes passagens: “- Como um dos responsáveis pela empresa, tive o cuidado de informar o seu cliente, de que a nossa empresa exerceria os seus legítimos direitos de retenção e de excepção de não cumprimento sobre um beliche que nos foi entregue para reparar e pintar, até que este cumpra com todas as obrigações que tem para com a nossa empresa e que ascendem a alguns milhares de euros. – Também informamos o seu cliente de que logo que cessasse o seu incumprimento para com a nossa empresa de imediato o mesmo lhe seria entregue. Para terminar este assunto do beliche, seria de bom tom que se questionasse a empresa a quem o seu cliente ordenou o serviço, se é devido algum pagamento pelos trabalhos já executados e entretanto suspensos por instruções do seu cliente.”
[4] Trata-se de uma mensagem de correio eletrónico remetida por CC…@carpintariaeinteriores.com para AA…@hotmail.com com referência a “Cozinha Sr. DD…”, com o seguinte teor na parte pertinente à apreciação do objeto do recurso [este documento é também oferecido pela ré e terá sido enviado em 20 de outubro de 2017, também uma sexta-feira]: “Na passada sexta-feira enviei-lhe um e-mail no qual lhe perguntava de que forma pretendia liquidar a empreitada que nos encomendou. Apesar do Sr. AA… ter já falado por diversas vezes com a GG…, após o e-mail que lhe enviei, a verdade é que sobre a questão que lhe colocamos ou sobre a forma como pretende resolver a questão da cozinha que nos encomendou, o Sr. AA… sobre estes assuntos nada disse, como se não existisse qualquer questão a resolver entre as nossas empresas. Parece que a sua única preocupação na relação entre as nossas empresas é o beliche que nos entregou para restaurar e que agora pretende rapidamente levantar sem que o mesmo seja restaurado e sem tratar dos assuntos que carecem de solução urgente. Neste momento existe uma questão pendente na qual a nossa empresa está lesada em mais de um milhar de euros, e que queremos ver resolvida de forma consensual e amigável entre o Sr. AA… e a nossa empresa. Assim e como para o Sr. AA…, a única questão que o preocupa é o dito beliche, informo que exerceremos o nosso direito de retenção sobre o beliche que nos entregou, até que o Sr. AA… nos [dê?] resposta à questão que lhe colocamos na passada sexta-feira e nos informe de que forma pretende resolver o assunto da cozinha que nos encomendou. Logo que estejam resolvidos os assuntos que se encontram por tratar, de imediato poderá o Sr. AA… levantar o beliche se assim o entender.”
[5] Desta sentença destaca-se o ponto 2 dos factos provados, com o seguinte teor: “Em dia não concretamente apurado de Setembro de 2017, o assistente AA… entregou na sede da empresa supra mencionada [trata-se da sociedade ré nestes autos] um beliche, no valor não concretamente determinado, mas não inferior a €50,00 (cinquenta euros), para reparação, o que os arguidos aceitaram.”
[6] Trata-se, aparentemente, de uma cópia de mensagem eletrónica remetida para AA…@hotmail.com, com o título “Orçamento remodelação moveis cozinha Sr DD… e D. EE…”, da autoria de alguém que se identifica como GG… e com o seguinte conteúdo na parte pertinente ao conhecimento do objeto do recurso: “Sr AA… envio o orçamento para a remodelação dos móveis de cozinha, conforme combinado com as seguintes alterações: Substituição de portas e frente de gavetas existentes na cozinha, por portas novas e frente de gavetas em MDF a ser lacado, em cinza Mate cor escolhida pelos clientes, com as seguintes medidas: - 2 portas com 570Altx390Larg – 6 portas com 570Altx43,8Larg – 1 porta com 570Altx348Larrg – 2 frente de gavetas com 12,5Altx390Larg – 6 frente de gavetas com 12,5Altx43,8Larg – 1 frente de gaveta com 12,5Alt.tx348Larg – 1 frente de gaveta com 10Altx595Larg Substituir também – Dobradiças softclose – Puxadores – Colocar rodapé no móvel inferior já existente na cozinha Fabrico de um móvel de parede com 2,30 m composto por os seguintes módulos: - 2 Módulos em aglom 16 mm branco com porta em MDF a ser lacado em cinza mate, cada um com 900x450 - 2 Módulos em aglom 16 mm branco com portas de vidro fosco e aro de alumínio, cada um com 450x700, com abertura basculante. Fabrico de 2 portas de correr em MDF a ser lacado em cinza mate Colocação de 2 calhas para as portas correrem em alumínio O nosso melhor preço para este trabalho 1.700,00€ Transporte e montagem incluída A este preço acresce o IVA à taxa em vigor Condições de pagamento: - 50% de adjudicação E o restante no termino da montagem Com este trabalho consiste na renovação dos móveis existentes, convém ressalvar as seguintes situações: - A garantia dos nossos serviços abrange unicamente os materiais fornecidos. – No que concerne aos móveis existentes, nenhuma responsabilidade pode ser imputada à nossa empresa, uma vez que nenhum trabalho será realizado nos mesmos. – No que diz respeito ás gavetas existentes, os nossos serviços limitam-se à troca das frentes das mesmas por outras objecto do presente orçamento. Em caso algum nos pode ser imputada qualquer responsabilidade por mau funcionamento das ferragens existentes ou danos internos nos móveis.”
[7] Trata-se, aparentemente, de uma cópia de mensagem eletrónica remetida para AA…@hotmail.com, com o título “Aditamento ao orçamento”, com o seguinte teor na parte pertinente ao conhecimento do objeto do recurso: “Sr. AA… envio o aditamento ao orçamentoda cozinha do Sr DD… e D. EE…: Fabrico de moveis novos, para substituir toda a bancada de moveis inferiores em aglom 16mm em branco, de acordo cm o desenho apresentado e combinado com os clientes e agora a confirmar. Neste orçamento não se inclui tampo, lava louça ou qualquer electrodomestico. O nosso melhor preço para este serviço 1 400,00€ Nota: É necessário sensibilizar o cliente que vamos tentar retirar os móveis existentes, sem interferir com a pedra ja existente no local tambem, mas não nos responsabilizamos se a pedra por qualquer motivo partir. Transporte e montagem incluído A este preço acresce o IVA à taxa em vigor Condições de pagamento: 50% de adjudicação E o restante no termino da montagem Quanto á ferragem para as portas de correr logo ja levo informação do preço.”
[8] É uma cópia de uma carta endereçada pelo autor à ré, com o seguinte conteúdo: “Exmo Senhor: Em Referência à vossa carta de 23/11/2017, venho pela presente devolver a vossa factura nº …./……, uma vez que da mesma consta material que não foi entregue. Mais informo que a quantia da factura não poderá ser reclamada, uma vez que só foram entregues 6 caixotes sem portas, sem gavetas e sem ferragens.”
[9] O documento datado de 10 de janeiro de 2018 é uma cópia de uma carta endereçada pela ré ao autor, com referência à “S\comunicação datada de 29/11/2017”, com o seguinte conteúdo: “Exmo. Sr. Pela presente, acusamos a recepção da comunicação cima indicada, a qual no seu interior, além da comunicação que nos remeteu, trazia a nossa factura …./……, composto por duas folhas já libertas do agrafo que as unia. Sobre a intenção de V. Exa. devolver a factura acima indicada, a sua devolução não o exonera da responsabilidade pelo seu pagamento. Sobre o envio da nossa factura, a nossa obrigação está cumprida e por isso mesmo lhe reenviamos a nossa factura …./…….. Caso a mesmo nos volte a ser devolvida, essa é uma responsabilidade de V\exa., e não nossa. No que concerne ao último parágrafo da sua comunicação, o que del consta não é verdade, uma vez que entregamos módulos de cozinha e não caixotes, assim como toda a composição inferior foi entregue, sendo a mesma composta por 7 (sete) módulos e não seis como é afirmado na sua carta, e que foi entregue e montada com a seguinte composição: - 3 Módulos inferiores com gavetas, sendo que destes, um estava completo com gavetas incluídas; os restantes dois módulos foram entregues com as corrediças montadas, faltando apenas as ilhargas das gavetas que estão na nossa posse. – Além dos 3 módulos gaveteiros, foi entregue o módulo para o forno e placa; módulo de canto, módulo de lava-louças e módulo com prateleira e gaveta interior já colocada. Assim, numa cozinha projectada com 9 (nove) módulos, foram entregues e instalados sete, não nos tendo sido possível, por razões a que somos alheios, concluir a montagem, como V. Ex.ª bem sabe.” Os elementos relativos ao registo postal são um impresso em que é identificado como destinatário o autor e remetente a ré, com a referência R. ….. …. . PT e o excerto de uma consulta sobre o estado da distribuição de correspondência registada, no dia 12 de Janeiro de 2018, constando que não foi entregue no dia 12 de Janeiro de 2018 por ter sido recusado.
[10] O seu conteúdo é o seguinte: “AA… boa tarde No seguimento da nossa conversa telefónica de hoje, quero tomar posição sobre o curso dos trabalhos que estamos a realizar em casa do seu cliente. Em primeiro lugar quero recordar-lhe que anteontem, o cliente decidiu á última hora queria colocar um tampo em granito. No entretanto como sabe num dos lados da cozinha já tínhamos colocado móveis novos que tivemos de retirar para podermos retirar o tampo. Com tudo isto, perdemos quase um dia de trabalho á espera que o seu cliente dissesse o que queria. Posteriormente e já com os móveis colocados a esposa do seu cliente disse que não queria móveis com emendas. Como tive oportunidade de explicar aquilo a que a esposa do seu cliente chama “emenda”, eu chamo-lhe remate e serve para permitir que a porta que se encontra junto á parede possa abrir sem embater na parede. Ontem pelas 20h e 45m recebi um telefonema que por estar a conduzir não consegui no momento atender mas que quase de seguida retribui. Nesse telefonema o Sr. DD… informou-me pela primeira vez qual a medida que pretendia para os móveis da despensa. Quando desliguei a chamada, vi que enquanto falava com o seu cliente, chegou um sms do cliente na qual escreve “já que não atendeu”. Como escrevi antes não atendi porque estava a conduzir mas segundos após ter desligado a chamada, de imediato devolvi a chamada. O que retiro da sms é a forma hostil com que o cliente se nos dirige, hostilidade essa que é consubstanciada pela atitude da esposa no momento em que lhe fomos entregar os móveis que dirigindo-se a mim disse “não quero mais nada com aquele senhor”, o que me obrigou por educação a retirar-me para o meu carro. Ontem em conversa que mantive com o Sr. AA… o Sr. relatou-me o comentário que fez ao cliente, ao dizer-lhe que eu não tinha aparecido ainda, isto quando o Sr. AA… sabia que eu estava a trabalhar para o seu cliente na oficina. Nesta prespectiva posso compreender o porquê da reacção da esposa do seu cliente, mas não posso comprrender qual o seu interesse em queimar-nos perante o seu cliente. Isto no mínimo é pouco inteligente da sua parte. Também hoje na conversa que mantive ao telefone com o Sr. AA… o Sr. disse “colocaste mal a banca” e que o HH… já a tinha posto no sítio. Acontece que como lhe transmiti ao telefone, eu não contratei com ninguém a venda ou colocação de qualquer banca ou qualquer serviço de pichelaria. O que fiz, tal como me foi solicitado por si e pelo cliente foi tirar medidas para a pedra e para o fazer tive de centrar a copa da banca pousando-a no móvel, ficando a mesma simétrica dentro do móvel da banca. Mais uma vez não compreendo o porquê de imputar uma carga negativa para uma acção nossa que mais uma vez foi injusta. Deixo-lhe a pergunta porque o faz? Para terminar este assunto do lava-louças quero referir-lhe que após o telefonema que o seu cliente me faz ás 20h 45m, por volts das 23h recebi novo telefonemado seu cliente informando-me que a esposa queria a torneira da banca centrada com a janela e que era necessário deslocar a banca alguns centimetros para a direita. Afinal parece que ao contrário do que me disse hoje a banca estava bem, o que já não era do agrado da cliente era a posição da torneira. Ainda sobre o comentário da esposa do seu cliente, não posso deixar de referir uma das conversas que mantive com o Sr. DD…, o qual me disse ter dito á mulher que só deveria ter falado, depois de ter a cozinha montada. Posto isto e como quem nos encomendou o serviço, foi o Sr. AA…, quero da nossa parte reafirmar o que acordamos consigo e com o seu cliente de que até final da próxima terça-feira a cozinha ficará concluída. Considerando ainda a forma intencional com que se deturpam factos e porque não estou satisfeito com que me é dado observar, agradeço ao Sr. AA… que por escrito me informe sobre a forma como pretende liquidar a empreitada que nos solicitou. Por fim e para terminar, não posso deixar de me referir ao comentário que fez á minha sócia sobre a possibilidade de colocar um carpinteiro a terminar os nossos serviços. Se tal vier a acontecer, não deixarei de fazer valer os nossos legítimos interesses.”
[11] Anote-se que os documentos oferecidos pela ré na contestação não foram impugnados pelo autor na réplica.
[12] Inexplicavelmente esta fatura não foi oferecida como meio de prova. Porém, porque na realidade a recorrente não impugna este ponto de facto no que respeita ao conteúdo da fatura por si emitida, a reapreciação não incidirá sobre essa matéria.
[13] Sobre esta problemática veja-se Da Recusa de Cumprimento da Obrigação para Tutela do Direito de Crédito, em especial na excepção de não cumprimento, no direito de retenção e na compensação, Almedina 2015, Ana Taveira da Fonseca, páginas 348 a 351.
[14] Sobre esta problemática veja-se Da Recusa de Cumprimento da Obrigação para Tutela do Direito de Crédito, em especial na excepção de não cumprimento, no direito de retenção e na compensação, Almedina 2015, Ana Taveira da Fonseca, páginas 501 a 557 e especialmente na página 547.
[15] Na verdade, face ao que foi alegado nos artigos 29 e 30 da petição inicial, esse valor corresponde, alegadamente, ao preço de aquisição do beliche (€ 179,00) e ao preço de dois colchões para o mesmo (€160,00).
[16] Conclusão que reproduz parte do que já havia alegado no corpo das alegações.
[17] Salvo melhor opinião, condenar a ré a restituir o beliche que o autor lhe entregou para reparação e simultaneamente condenar a ré ao pagamento do preço despendido para aquisição de um outro beliche envolve uma duplicação de uma indemnização por restauração natural com uma outra por equivalente e correspondente ao montante pecuniário despendido para aquisição de um outro beliche. Porém, a recorrente não se insurgiu contra esta duplicação, pelo que dela não pode esta instância conhecer.
[18] Atente-se que na alínea c) do ponto 6 dos factos provados consta, além do mais, que “em sede de audiência de julgamento no Juízo Local Criminal de … – Juiz …, Processo n.º 627/18…, cuja certidão da sentença se junta, foram dados como factos provados” que “o autor entre maio e junho de 2018, adquiriu um novo beliche e colchões pelo valor de €339,00”. Não se atentou que não se forma caso julgado sobre os factos dados como provados noutro pleito que envolva as mesmas partes, quando muito, tratando-se de decisão penal absolutória, opera a eficácia probatória prevista no artigo 624º do Código de Processo Civil. De todo o modo, se o beliche cuja restituição o autor pretende foi entregue para reparação, certamente não foram entregues os respetivos colchões, tanto mais que não é pedida a restituição destes, pelo que queda sem explicação a aquisição de mais dois colchões e a imputação dessa aquisição à conduta da ré de não restituição do beliche entregue pelo autor para reparação.