Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6337/21.8T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANTÓNIO LUÍS CARVALHÃO
Descritores: LEI DA PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS
MEIOS DE VIDEOVIGILÂNCIA
DEVER DE LEALDADE
LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ
Nº do Documento: RP202211286337/21.8T8VNG.P1
Data do Acordão: 11/28/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE; ALTERADA A SENTENÇA.
Indicações Eventuais: 4.ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - O art.º 28º da Lei da Proteção de Dados Pessoais não exige que exista procedimento criminal, sendo a ideia subjacente esta: os meios de videovigilância não podem ser utilizados com a finalidade de controlar o desempenho profissional do trabalhador, antes visando a proteção e segurança de pessoas e bens, pelo que poderão ser utilizados como meio de prova, no apuramento de responsabilidade disciplinar, se não estiver em causa o controlo do desempenho do trabalhador e os factos possam ter relevância criminal, mas independentemente de existir processo no foro criminal.
II - A mútua honestidade da relação laboral não é suscetível de gradações, violando a trabalhadora que leva a sua supervisora a não registar um livro juntamente com compras alegando já o ter pago, independentemente do valor do livro, o dever de lealdade de modo tão grave que quebra de forma irreparável a relação de confiança entre as partes, tornando insubsistente a relação laboral, não sendo a duração da relação laboral sem registo de infrações disciplinares anteriores que afasta o juízo que se formula que é de crer que a Ré passasse a ter a dúvida sobre idoneidade futura da conduta da Autora.
III - Uma coisa é o direito abstrato de ação, outra coisa o direito concreto de exercer atividade processual, podendo ser responsabilizado como litigante de má-fé aquele que profere declarações contrárias ao que subjetivamente sabe ser verdade.
IV - Ainda que o tribunal deva fixar, em caso de litigância de má-fé, a indemnização segundo critérios de equidade, tem de partir de alguma base racional e objetiva, que explicitará.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de apelação n.º 6337/21.8T8VNG.P1
Origem: Comarca do Porto, Juízo do Trabalho de Vila Nova de Gaia – J3


Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
AA (Autora[1]) apresentou formulário para impulsionar ação especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento contra “M..., S.A.”(Ré), manifestando oposição ao seu despedimento, ocorrido em 02/08/2021, juntando cópia de decisão proferida em procedimento disciplinar que lhe foi instaurado.

Realizada «audiência de partes», frustrou-se a conciliação das mesmas.
Notificada a Ré para apresentar articulado de motivação do despedimento (AMD), a mesma apresentou tal articulado, juntando o procedimento disciplinar que instaurou à Autora, sua trabalhador, e alegando que o comportamento da Autora dado como provado consubstancia uma violação muito grave dos deveres de respeito, obediência e lealdade, violando as alíneas a), e) e f) do nº 1 do art.º 128º do Código do Trabalho, integrando justa causa de despedimento, acrescentando que a Autora litiga de má-fé ao deduzir uma pretensão cuja falta de fundamento não ignora, pelo que deve ser condenada em multa e indemnização condignas, a última em valor não inferior a €2.500,00; termina dizendo dever ser reconhecida a licitude e validade do despedimento, e condenada a Autora como litigante de má-fé.

Notificada, a Autora apresentou contestação, com dedução de reconvenção, pedindo que seja declarado ilícito o seu despedimento da Autora, e em consequência:
a) ser a Ré condenada a pagar-lhe indemnização em substituição de reintegração, que nunca poderá ser inferior a €13.369,05;
b) ser a Ré condenada a pagar-lhe as retribuições que deixou de auferir desde 02/08/2021 até ao transito em julgado da sentença, sem prejuízo do disposto no artigo 98-N, nºs 1 a 3, do CPT;
d) ser julgada procedente a reconvenção e, consequentemente, ser a Ré condenada a pagar-lhe a quantia de €5.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais.
Alegou, em resumo, por um lado que o procedimento disciplinar é ineficaz e ilegítimo porque não existe documento a conferir poderes ao seu instrutor, e por outro lado, contrariando os factos imputados, sendo o despedimento ilícito, tendo sofrido danos não patrimoniais com o comportamento da Ré ao longo do procedimento disciplinar.

A Ré apresentou resposta concluindo dever o pedido reconvencional improceder, devendo ser absolvida do mesmo.

Foi realizada «audiência prévia», na qual foram proferidos despachos:
− a admitir a reconvenção;
− a fixar o valor da ação em €5.051,00;
− a fixar o objeto do processo e a enunciar os temas de prova.

Depois de realizada «audiência de discussão e julgamento», foi proferida sentença decidindo julgar a ação improcedente, e, em consequência:
i) declarou lícito o despedimento da Autora, AA, promovido pela Ré “M..., S.A.”;
ii) absolveu a Ré da totalidade dos pedidos contra a mesma formulados pela Autora;
iii) condenou a Autora como litigante de má-fé na multa de 4 UC´s, bem como no pagamento à Ré de uma indemnização no valor de €1.000,00 (mil euros).

Não se conformando com a sentença proferida, dela veio a Autora interpor recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES, que se transcrevem[2]:
…………………………….
…………………………….
…………………………….
Termina dizendo dever o recurso ser julgado procedente, nos termos propugnados, e em consequência ser a sentença recorrida revogada na parte da alteração da matéria dada como não provada, e quanto à multa e à indemnização arbitrada à Recorrida derivada da litigância de má-fé.

A Ré apresentou resposta, formulando as seguintes CONCLUSÕES, que se transcrevem:
…………………………….
…………………………….
…………………………….
Termina dizendo dever o recurso ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se integralmente a sentença recorrida.

Foi proferido despacho a mandar subir o recurso de apelação, imediatamente, nos próprios autos, e com efeito suspensivo.

O Senhor Procurador-Geral-Adjunto, neste Tribunal da Relação, emitiu parecer (art.º 87º, nº 3 do Código de Processo do Trabalho), pronunciando-se no sentido de merecer provimento o recurso, sendo referido essencialmente o seguinte:
3. Salvo melhor opinião, entende-se, também, que deveria alterar-se a matéria de facto dada como não provada, nos termos referidos pela Autora.
Assim, deveria ser alterada a matéria de facto dada como não provada nos pontos 2, 10, 11, 3 e 4, pelas razões e nos termos referidos pela Recorrente, na sua alegação.
Do mesmo modo, salvo melhor opinião, entende-se ser exagerada a condenação da Recorrente como litigante de má-fé, atentos os factos provados,
(ii) A gerente de loja confrontou a Autora com os factos aqui descritos, tendo a Autora afirmado que a supervisora, por lapso, não registou o livro, acrescentando que queria pagar o mesmo;
jj) A gerente de loja informou a Autora que a situação tinha sido reportada e estava sob tratamento do gestor de zona, BB;
kk) A Autora referiu que não havia necessidade de reportar a situação e reiterou que pagaria o livro para a situação ficar resolvida, não havendo necessidade de estar a criar problemas para a supervisora e, inclusive, e na presença da colaboradora CC, mostrou com o seu telemóvel uma foto do código de barras do referido livro;
ll) No dia 15 de junho de 2021 a Autora remeteu uma carta registada para a loja dirigida à gerente de loja, com o seguinte teor: “Venho por este meio solicitar que me informem como poderei proceder ao pagamento do livro “O Monstro das Cores” com o respetivo EAN 9789896652845 que após ser abordada na passada quinta-feira dia 10 de junho de 2021 se o tinha levado no dia 31 de maio de 2021 no qual confirmei, apos análise dos meus movimentos de compras detetei que a colega DD (Permanência no momento da loja) por lapso não efetuou o registo do mesmo e na minha boa-fé não confirmei o respetivo talão no ato da respetiva compra com os restantes artigos. Desta forma e como e minha intenção ficar na posse do respetivo artigo, pretendo que me informem como posso proceder ao respetivo pagamento do referido artigo, pois não me sinto bem em ter um artigo que não foi pago devido a lapso do registo da colega, não querendo o prejuízo para a colega e para a empresa”), atenta a antiguidade da Recorrente na empresa, e o que é dito a seu respeito nas fichas de avaliação, o valor diminuto de €25,90, as circunstâncias em que os factos ocorreram, a “pouca diligência” de outros colaboradores da empresa, a vontade de devolver o valor do livro, etc.

A Ré apresentou resposta, manifestando discordância com o parecer, concluindo dever ser decidido pela improcedência do recurso, mantendo-se integralmente a decisão recorrida.

Procedeu-se a exame preliminar, foram colhidos os vistos, após o que o processo foi submetido à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
*
FUNDAMENTAÇÃO
Conforme vem sendo entendimento uniforme, e como se extrai do nº 3 do art.º 635º do Código de Processo Civil (cfr. também os art.ºs 637º, nº 2, 1ª parte, 639º, nºs 1 a 3, e 635º, nº 4 do Código de Processo Civil – todos aplicáveis por força do art.º 87º, nº 1 do Código de Processo do Trabalho), o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação apresentada[3], sem prejuízo, naturalmente, das questões de conhecimento oficioso.
Assim, aquilo que importa apreciar e decidir neste caso[4] é saber se:
● verifica-se erro no julgamento da matéria de facto?
● não devia ter sido aplicada à Autora a sanção disciplinar mais grave prevista pelo legislador?
● a Autora não devia ter sido condenada por litigância de má-fé?
*
Porque tem interesse para a decisão do recurso, desde já se consignam os factos dados como provados e como não provados na sentença de 1ª instância, objeto de recurso.
Quanto a factos PROVADOS, foram considerados os seguintes, que se reproduzem:
a) A Ré é uma sociedade comercial que, na prossecução do seu escopo social, se dedica a todo o comércio retalhista e armazenista, nomeadamente a exploração de centros comerciais, grandes armazéns, charcutarias, confeitarias, cafés, restaurantes, padarias, talhos, relojoarias e ourivesarias, e ainda as indústrias de confeitaria, padaria, charcutaria e outras pequenas indústrias e a distribuição em livre serviço, a importação de todos os bens destinados ao comércio retalhista. A sociedade pode ainda importar e comercializar medicamentos não sujeitos a receita médica e, a título acessório, prestar serviços na área de comércio retalhista e grossista a outros estabelecimentos de livre serviço, bem ainda como a promoção, desenvolvimento e gestão imobiliária, compra e venda de imóveis próprios ou alheios e revenda dos adquiridos para esse fim e arrendamento de imóveis;
b) A Autora, por sua vez, foi admitida ao serviço da Ré a 07 de maio de 2012 e, à data do despedimento, detinha a categoria profissional de Operadora Especializada;
c) À data do despedimento, a Autora exercia as suas funções no estabelecimento da Ré denominado “K...”, sito na Avenida ... (junto ao restaurante C...), no Porto;
d) Por factos ocorridos no dia 31 de maio de 2021, a Autora recebeu uma nota de culpa onde se articularam os factos que lhe eram imputados, tendo sido comunicada a intenção de despedimento com justa causa e concedido o prazo de dez dias úteis para apresentar a sua defesa;
e) Tendo recebido a comunicação e a nota de culpa, a Autora respondeu à mesma, porém não requereu a realização de diligências probatórias;
f) No dia 15 de julho de 2021 foi realizada instrução, tendo sido recolhidas as declarações da aprovisionadora alimentar CC, da gerente de loja EE e da supervisora DD;
g) No dia 02 de agosto 2021 foi entregue à Autora a decisão do processo disciplinar que consistiu no seu despedimento com justa causa;
h) Perante a recusa da trabalhadora em receber tal decisão por entrega em mão própria, foi remetida a mesma decisão por correio, a qual foi recebida no dia 03 de agosto de 2021;
i) No dia 11 de junho de 2021 a aprovisionadora alimentar CC, ao efetuar uma devolução genérica de livros, constatou que faltava um livro, mais concretamente o artigo “Monstro das Cores”, identificado com o sku 8352384 e com PVP Euros 25,90;
j) No dia 31 de maio de 2021 a Autora havia solicitado à aprovisionadora alimentar para reservar esse mesmo livro;
k) A aprovisionadora[5] alimentar reportou a situação à gerente de loja EE que, por sua vez, solicitou que questionasse a Autora se a mesma sempre havia comprado o livro ou se este ainda estava no balcão;
l) Questionada sobre tal, a Autora referiu à aprovisionadora alimentar: “não, o livro é muito caro e por isso fui colocá-lo ao linear dos livros com a supervisora DD”;
m) Às 19h39min desse dia, a Autora, durante o seu horário de trabalho, foi efetuar o pagamento das suas compras na caixa da supervisora DD;
n) O pagamento foi relativo a um boneco da marca “Mega Mighties Avengers”, uma garrafa de água “Água s/Gas Vitalis” e outra garrafa de água “Água s/Gas Font. Vella 33 cl”;
o) De seguida, ambas as colaboradoras conversaram um pouco;
p) Nessa conversa a Autora referiu que o livro tinha sido comprado nesse dia, mas durante o turno da manhã, e, por isso, só faltava pagar os restantes produtos;
q) A supervisora não tinha estado na loja durante o turno da manhã;
r) Face ao alegado pela Autora, a supervisora procedeu então ao registo dos seguintes artigos: água s/Gas Vitalis | Euros 0,27 c/ desconto direto de Euros 0,12; água s/Gas Font. Vella 33 cl | Euros 0,79; Mega Mighties Avengers | Euros 12,99; saco Plas RE CNT | Euros 0,10;
s) Quando a supervisora estava a registar os artigos, a Autora dirigiu-se ao balcão para ir buscar o livro reservado (artigo “Monstro das Cores”, identificado com o sku 8352384), retirou-lhe a etiqueta e colocou-o novamente no balcão;
t) No final do pagamento, a supervisora retirou o livro do balcão e colocou-o no saco de compras da Autora, tendo esta guardado o saco de compras no balcão;
u) Por volta das 21h20min desse dia a Autora dirigiu-se ao balcão para ir buscar o saco de compras, tendo-o pousado no chão;
v) Minutos depois, por volta das 21h33min, a Autora foi buscar o saco e saiu com o mesmo da loja através do cais, e não pela entrada e saída de clientes;
w) Depois de ter sido questionada se tinha comprado o livro e ter afirmado que não, a Autora entrou em contacto com a loja para falar com a aprovisionadora alimentar, afirmando que, afinal, comprou o livro uns dias depois e que não se lembrava que o tinha comprado;
x) A aprovisionadora de loja reportou a situação à gerente;
y) Posteriormente, a Autora telefonou à gerente de loja, referindo sentir-se incomodada com o facto de a aprovisionadora alimentar a ter questionado sobre a compra do livro, acrescentando que comprou o livro uns dias depois do dia 31 de maio de 2021 e que até lhe podia facultar o extrato do banco para comprovar tal situação;
z) De seguida, pelas 17h50min a Autora enviou a seguinte mensagem à aprovisionadora alimentar: “Urgentemente liga-me pf. Liguei a EE peco desculpa mas não fiquei bem com a situação… contudo sempre da para verem pelas cameras como efetuei compras juntamente com os brinquedos. Bjnho e bom descanso”;
aa) A aprovisionadora alimentar respondeu o seguinte: “Só perguntei porque me lembrei de o ter visto contigo e reservá-lo para ti. Podia o livro ter ficado perdido no balcão por estar reservado e assim ia procura-lo nos armários do balcão para ver se tinha ficado lá desde esse dia”;
bb) Seguidamente, a Autora respondeu: “Tranquilo eu disse a EE para ver pelas cameras pois efetivamente fiz mais compras e paguei tudo junto agora ela q veja contudo fiquei numa situação embaraçosa”;
cc) Ainda no dia 11 de junho de 2021 foi dado conhecimento dos factos supra descritos ao Gestor de Zona da loja, BB;
dd) No dia 12 de junho de 2021, pelas 9h30min, a Autora, ao iniciar o seu turno e ao passar pelo balcão de informação, dirigiu-se à gerente de loja, que estava acompanhada da aprovisionadora alimentar, e disse que estava desconfortável com a situação e que, após debater com o seu marido, ambos haviam contactado a linha do Cartão K... para apurar os movimentos do Cartão K...;
ee) A Autora acrescentou que não conseguiu consultar os movimentos com mais de trinta dias;
ff) A gerente de loja questionou a Autora em que dia é que a mesma havia comprado o livro, tendo a Autora respondido que havia comprado o artigo no início de maio;
gg) Perante tal afirmação, a gerente de loja questionou a Autora como é que a mesma havia reservado o livro no dia 31 de maio de 2021 e agora estava a dizer que afinal o tinha comprado no início desse mês;
hh) A Autora referiu que não se lembrava em que dia efetuou a compra;
ii) A gerente de loja confrontou a Autora com os factos aqui descritos, tendo a Autora afirmado que a supervisora, por lapso, não registou o livro, acrescentando que queria pagar o mesmo;
jj) A gerente de loja informou a Autora que a situação tinha sido reportada e estava sob tratamento do gestor de zona, BB;
kk) A Autora referiu que não havia necessidade de reportar a situação e reiterou que pagaria o livro para a situação ficar resolvida, não havendo necessidade de estar a criar problemas para a supervisora e, inclusive, e na presença da colaboradora CC, mostrou com o seu telemóvel uma foto do código de barras do referido livro;
ll) No dia 15 de junho de 2021 a Autora remeteu uma carta registada para a loja dirigida à gerente de loja, com o seguinte teor: “Venho por este meio solicitar que me informem como poderei proceder ao pagamento do livro “O Monstro das Cores” com o respetivo EAN 9789896652845 que apos ser abordada na passada quinta feira dia 10 de junho de 2021 se o tinha levado no dia 31 de maio de 2021 no qual confirmei, apos analise dos meus movimentos de compras detetei que a colega DD (Permanência no momento da loja) por lapso não efetuou o registo do mesmo e na minha boa fé não confirmei o respetivo talão no ato da respetiva compra com os restantes artigos. Desta forma e como e minha intenção ficar na posse do respetivo artigo, pretendo que me informem como posso proceder ao respetivo pagamento do referido artigo, pois não me sinto bem em ter um artigo que não foi pago devido a lapso do registo da colega, não querendo o prejuízo para a colega e para a empresa.”;
mm) A Autora, não obstante ter tirado a etiqueta do PVP do livro, manteve o código “ean”;
nn) O código “ean” não é possível de retirar o livro, pois o mesmo encontra-se impresso na capa traseira do mesmo;
oo) A entrada dos funcionários antes da abertura da loja e a saída dos funcionários depois do encerramento da loja são efetuadas pelo cais.

E foram considerados como NÃO PROVADOS os seguintes factos, que igualmente se reproduzem:
1) No dia 31 de maio de 2021, pelas 19h35min, na sua pausa, verbalmente autorizada pela supervisora DD que nesse momento era a Permanência em loja, ou seja, a responsável pela mesma, a Autor tenha-se dirigido ao seu cacifo para ir buscar o seu cartão multibanco e o Cartão K..., tendo de seguida voltado para efetuar o pagamento com a supervisora DD;
2) Nesse dia a Autora encontrasse-se a fazer o turno das 11h30min às 21h30min;
3) A supervisora DD devesse ter registado o livro, ou devesse ter solicitado à Autora o comprovativo do pagamento desse mesmo livro, o que não fez;
4) A Autora haja confiado no trabalho da Colega e não conferiu o talão comprovativo do pagamento, não se tendo apercebido de que o livro em questão não tinha sido registado e, como tal, também não foi pago;
5) Às 21h20min a Autora estivesse a efetuar o fecho da secção de Padaria/Confeitaria, para a qual naquele dia estava escalada, acompanhada por um Colega;
6) No dia 11 de junho de 2021, quando foi questionada pela aprovisionadora alimentar CC sobre se tinha comprado livro, a Autora confirmou que sim, pois fosse essa a sua convicção;
7) À noite, em sua casa, a Autora haja contactado a linha de apoio ao Cartão K..., para que esta analisasse os movimentos do seu cartão, uma vez que como passou o cartão no dia 31 de maio de 2021 seria possível verificar se o livro tinha sido pago ou não, atendendo a que a Autora já não tinha o talão comprovativo do pagamento;
8) A Autora tenha sido informada que nos últimos trinta dias não havia registo da compra desse livro;
9) À data o livro em questão estivesse com 20% de desconto direto em cartão cliente;
10) A Autora, enquanto ao serviço da Ré, nunca tenha sofrido qualquer sanção disciplinar;
11) A Autora sempre haja exercido a sua atividade com correção, diligência e zelo, tendo sempre tido elogios pela sua conduta profissional;
12) Ao longo de todo o processo de despedimento a Autora tenha sido descrita e tratada como se fosse uma ladra experiente e ardilosa, o que lhe haja causado angústia;
13) A Autora tenha-se sentido vexada perante os outros trabalhadores e demais pessoas com quem se relacionava diariamente;
14) A Autora tenha passado a sofrer de ansiedade e depressão, com insónias frequentes, sentindo-se alterada e perturbada.
*
Do erro do julgamento sobre matéria de facto:
Antes da apreciação de direito, há que ver se os factos provados são aqueles que foram considerados como tal em 1ª instância, ou se se impõe a alteração do decidido a esse respeito, como defende a Recorrente, pois será em função dos factos assentes que o enquadramento será feito,
Comecemos por enquadrar, brevemente, os termos em que tem lugar a impugnação da decisão sobre matéria de facto, de modo a ficar claro como é feita a apreciação da mesma pelo tribunal ad quem (este Tribunal da Relação).
No caso de impugnação da decisão sobre matéria de facto com fundamento em erro de julgamento, é necessário que se indiquem elementos de prova que não tenham sido tomados em conta pelo tribunal a quo quando deveriam tê-lo sido; ou assinalar que não deveriam ter sido considerados certos meios de prova por haver alguma proibição a esse respeito; ou ainda que se ponha em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal a quo, assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou assinalando a insuficiência dos elementos considerados para as conclusões tiradas.
É que, a reapreciação pelo Tribunal da Relação da decisão da matéria de facto proferida em 1ª instância não corresponde a um segundo (novo) julgamento da matéria de facto, apenas reapreciando o Tribunal da Relação os pontos de facto enunciados pelo interessado (que circunscrevem o objeto do recurso).
Porém, embora não se trate de um novo julgamento, tendo presente o disposto no art.º 662º do Código de Processo Civil, vem-se entendendo que o Tribunal da Relação na apreciação da impugnação da decisão sobre matéria de facto usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância (art.º 607º, nº 5, do Código de Processo Civil), em ordem ao controlo efetivo da decisão recorrida, devendo sindicar a formação da convicção do juiz, ou seja, o processo lógico da decisão, recorrendo com a mesma amplitude de poderes às regras de experiência e da lógica jurídica na análise das provas, como garantia efetiva de um segundo grau de jurisdição em matéria de facto; porém, sem prejuízo do reconhecimento da vantagem em que se encontra o julgador na 1ª instância em razão da imediação da prova e da observação de sinais diversos e comportamentos que só a imagem fornece[6].
Daí referir o nº 1 do art.º 662º do Código de Processo Civil que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa” (sublinhou-se), ou seja, não basta que os meios de prova admitam, permitam ou consintam uma decisão diversa da decisão recorrida[7].
Assim, a parte recorrente não pode simplesmente invocar um generalizado erro de julgamento tendente a uma reapreciação global dos meios de prova, não podendo a censura do recorrente quanto ao modo de formação da convicção do tribunal a quo assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, simplesmente em defender que a sua valoração da prova deve substituir a valoração feita pelo julgador; antes tal censura tem que assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente por não existirem os dados objetivos que se apontam na motivação ou por se terem violado os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou ainda por não ter existido liberdade de formação da convicção.
Em conformidade, o legislador impõe à parte recorrente, que pretenda impugnar a decisão de facto, um ónus de impugnação, devendo o recorrente expor os argumentos que, extraídos de uma apreciação crítica dos meios de prova, determinem, em seu entender, um resultado diverso do decidido pelo tribunal a quo.
Com efeito, o art.º 640º, nº 1 do Código de Processo Civil, impõe ao recorrente, na impugnação da matéria de facto, a obrigação de especificar, sob pena de rejeição, o seguinte:
a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (tem que haver indicação clara dos segmentos da decisão que considera afetados por erro de julgamento);
b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida (tem que fundamentar as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios de prova constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, implicam uma decisão diversa); e
c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Quanto ao ónus referido na alínea b), manda o legislador (nº 2 do art.º 640º do Código de Processo Civil) que se observe o seguinte:
a) quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
No entanto, ainda que a modificação da decisão da matéria de facto se deva limitar aos pontos de facto especificamente indicados, cumprindo os requisitos que se expuseram, o Tribunal da Relação não está limitado à reapreciação dos meios de prova indicados por quem recorre, devendo atender a todos os que constem do processo[8].
Importa ter presente que a generalidade das provas produzidas na audiência de julgamento está sujeita à livre apreciação do tribunal (como é o caso da prova testemunhal e da prova por declarações de parte – art.º 396º do Código Civil e art.º 466º, nº 3 do Código de Processo Civil).
Importa ainda ter presente que é pacífico que a apreciação a fazer é da questão posta, de saber se houve erro de julgamento sobre a matéria de facto, sem que haja o dever de responder, ponto por ponto, a cada argumento que seja apresentado pela parte recorrente[9].

Antes de se passar à análise dos pontos em concreto impugnados pela Recorrente, importa, previamente, abordar a questão que a mesma suscita, qual seja a de que as imagens gravadas (recolhidas do sistema CCTV[10], sistema de videovigilância) só podem ser utilizadas no âmbito do processo penal (citando o art.º 28º, nº 4 da Lei da Proteção de Dados Pessoais[11]), e no caso a entidade empregadora não apresentou queixa crime, ou seja, alega a Recorrente que as imagens do sistema de videovigilância não podiam ser consideradas.
A Recorrente coloca a questão em abstrato, porquanto não refere qual(is) o(s) ponto(s) de facto cuja decisão devia ser alterada em função do que alega.
Na verdade, decorre do que acima se expôs que a parte recorrente, a par da indicação dos concretos pontos de facto e concretos meios probatórios, deverá também relacionar ou conectar cada facto, individualizadamente, com o concreto meio de prova que, em seu entender, sustentaria diferente decisão (designadamente, caso a discordância se fundamente em depoimentos que hajam sido gravados, identificando as testemunhas por referência a cada um dos factos que impugna).
Ou seja, devia a Recorrente conectar essa alegada proibição de consideração das imagens do sistema de videovigilância com concreta alteração do decidido quanto a matéria de facto que propugna, mas não o faz.
Ainda assim, refere-se o seguinte.
É verdade que o tribunal a quo se suportou nas imagens de videovigilância para dar como provados os factos que constam dos pontos m) a v), mas as mesmas não suportaram só por si a prova de factos, tendo sido feita a conjugação com outros elementos, podendo até dizer-se não terem sido fundamentais tais imagens, apenas corroborando o depoimento da testemunha DD[12], como se retira da seguinte passagem da motivação da decisão de facto, que se transcreve:
Relativamente à facticidade subjacente às alíneas m) a v), o tribunal considerou o depoimento conhecedor da testemunha DD, bem como o teor da PEN junta aos autos por requerimento datado de 07 de outubro de 2021. De facto, da visualização das imagens recolhidas pelo sistema CCTV e que se encontram registadas naquele suporte informático retira-se que a Autora dirigiu-se à caixa na qual operava a supervisora DD, aí apresentando, para registo, as suas compras, das quais excluiu, conforme igualmente se constata do documento de fls. 31 v.º – que corresponde ao talão das compras efetivamente registadas e pagas pela aqui trabalhadora na data de 31 de maio de 2021, às 19h42min –, o livro em presença. Mais se visualiza naquelas imagens que a Autora retirou deste artigo a respetiva etiqueta e colocou-o novamente no balcão da caixa. Convencida, conforme declarou convictamente a testemunha DD, que correspondia à verdade a afirmação da Autora de que havia pago o referido livro da parte da manhã desse mesmo dia, aquela não registou esse artigo, limitando-se o colocá-lo no saco que a ora trabalhadora acabou por recolher por volta das 21h20min, saindo, pelo cais, das instalações da loja na qual laborava. A este propósito, note-se que as testemunhas CC e EE confirmaram que a entrada e a saída dos funcionários do estabelecimento em questão é feita pelo cais nas alturas em que aquele está encerrado ao público.
A Recorrida pronunciou-se no sentido da sua admissibilidade, por um lado porque as imagens de videovigilância foram juntas com o AMD [foi no final referida essa junção e requerida a visualização das imagens em julgamento[13], sendo junta PEN disk no dia seguinte à apresentação do articulado] e a Autora não suscitou qualquer questão oportunamente, e por outro lado porque tinham por finalidade, única e exclusiva, a proteção e segurança de pessoas e bens, não tendo por finalidade controlar o desempenho de qualquer trabalhador.
Refere Lurdes Dias Alves[14] que é consensual a definição de que a videovigilância se traduz na recolha de imagens por meio eletrónico e que constituem dados pessoais desde que recolham imagens de pessoas ou de objetos ou equipamentos que permitam, ainda que de forma indireta, a identificação concreta de pessoas, acrescentando que existe um conflito de interesses entre o direito à privacidade e o interesse público, ou seja, a promoção e garantia de segurança versus o direito à privacidade e o direito à liberdade impõe um exercício permanente, para preservar o bem jurídico e manter o seu equilíbrio.
É verdade que o nº 4 do art.º 28º da Lei da Proteção de Dados Pessoais dispõe que [a]s imagens gravadas e outros dados pessoais registados através da utilização de sistemas de vídeo ou outros meios tecnológicos de vigilância à distância, nos termos previstos no artigo 20.º do Código do Trabalho, só podem ser utilizados no âmbito do processo penal, mas o nº 5 acrescenta que [n]os casos previstos no número anterior, as imagens gravadas e outros dados pessoais podem também ser utilizados para efeitos de apuramento de responsabilidade disciplinar, na medida em que o sejam no âmbito do processo penal.
Guilherme Dray[15] refere que a jurisprudência mais recente tem vindo a admitir a videovigilância como meio de prova em procedimento disciplinar, dando exemplos de jurisprudência (por exemplo o acórdão deste TRP de 26/06/2017, consultável em www.dgsi.pt, processo nº 6909/16.2T8PRT.P1), mas trata-se de jurisprudência anterior à referida Lei da Proteção de Dados Pessoais.
No entanto, não parece que o art.º 28º da Lei da Proteção de Dados Pessoais exija que exista procedimento criminal, estando em causa a gravidade dos factos geradores de responsabilidade disciplinar, remetendo o legislador, na aferição dessa gravidade, para este critério: estarem em causa factos que pudessem ser averiguados no âmbito do processo penal.
No fundo, a ideia é esta: os meios de videovigilância não podem ser utilizados com a finalidade de controlar o desempenho profissional do trabalhador, antes visando a proteção e segurança de pessoas e bens, pelo que poderão ser utilizados como meio de prova, no apuramento de responsabilidade disciplinar, se não estiver em causa o controlo do desempenho do trabalhador e os factos possam ter relevância criminal, mas independentemente de existir processo no foro criminal.
Ou seja, aquilo que está subjacente é a especial qualidade/gravidade dos factos imputados ao trabalhador, não a existência de processo no foro criminal, bastando estarem em causa factos suscetíveis de serem averiguados nesse âmbito.
Sendo assim, estando em causa a apreciação de eventual apropriação por parte da Autora de um livro sem pagar o respetivo preço, dúvidas não há da possível relevância penal dos factos em apreciação, donde poderem as imagens em causa ser consideradas como meio de prova no procedimento disciplinar.

Por outro lado, cita a Recorrente excerto do depoimento da testemunha FF, mas sem fazes qualquer ligação do mesmo com concreta alteração do decidido quanto a matéria de facto, pelo que não se considera o mesmo (sem prejuízo da sua consideração oficiosamente, por não estar o tribunal ad quem limitado à reapreciação dos excertos citados, como acima se disse).

Posto isto, vejamos a impugnação da decisão sobre matéria de facto apresentada pela Recorrente, estando em causa os pontos 2), 3), 4), 10) e 11) dos factos não provados.
A propósito da factualidade não provada, escreveu o tribunal a quo o seguinte na motivação da decisão:
Quanto à matéria de facto tida por não provada e para além de tudo quanto se deixou ínsito, sobre a mesma não foi produzida qualquer prova que a tenha permitido sustentar. Frise-se que a testemunha FF afirmou que, desde que a Autora deixou de laborar para a Ré, nunca mais contactou com a mesma, nem presencialmente, nem à distância. A assim ser, não poderá conhecer dos sentimentos experimentados pela ora trabalhadora decorrentes do processo disciplinar, e sequente sanção, que lhe foi movido pela aqui entidade empregadora.
Vejamos então.

ponto 2) dos factos não provados:
Comecemos por recordar o seu teor, que é o seguinte:
2) Nesse dia [31/05/2021] a Autora encontrava-se a fazer o turno das 11h30min às 21h30min.
Alega a Recorrente que tal facto resulta do documento nº 5 junto pela Ré ao processo em 04/02/2022, sendo o documento da autoria da Ré, pelo que devia ter sido considerado provado.
A Ré pronunciou-se no sentido de que o documento em causa não foi junto para prova desse facto, e que a Autora não trabalha em regime de turnos, mas admite que se dê como provado que no dia em causa a Autora prestou trabalho naquele horário, embora seja redundante por já constar dos factos provados, designadamente dos pontos j) e p).
Ora, está claro que a Autora no dia 31/05/2021 prestou trabalho no horário em causa, pelo que não tem sentido ficar não provado, mas, tendo-se presente que o documento nº 5 referido não comprova que o trabalho seja em regime de turnos, a parte que se refere a que estava a ser realizado turno não é acolhida.
Assim, é eliminado o ponto 2) dos factos não provados e adita-se um ponto pp) aos factos provados com o seguinte teor:
pp) No dia 31/05/2021 a Autora prestou trabalho das 11h30min às 21h30min.

pontos 3) e 4) dos factos não provados:
É o seguinte o seu teor, recordemos:
3) A supervisora DD devia ter registado o livro, ou devia ter solicitado à Autora o comprovativo do pagamento desse mesmo livro, o que não fez.
4) A Autora confiou no trabalho da Colega e não conferiu o talão comprovativo do pagamento, não se tendo apercebido de que o livro em questão não tinha sido registado e, como tal, também não foi pago.
Alega a Recorrente que resulta do depoimento da testemunha DD, de que cita excerto, que a mesma, como supervisora, deveria ter verificado se o livro estava pago ou não.
A Recorrente apenas diz que deve ser alterada a decisão destes pontos, sem concretizar em que termos, mas da leitura da sua alegação resulta discordar com a não prova do segmento “A supervisora DD … devia ter registado o livro … o que não fez”, que devia ser considerado provados.
A Recorrida pronunciou-se pela improcedência da alegação da Recorrente, referindo que aquilo que consta dos pontos m) a r) dos factos provados – que não foram impugnados – contraria a pretensão de a Recorrente de querer reportar à sua colega de trabalho a responsabilidade pelo registo do livro.
Ora, desde logo o excerto do depoimento citado pela Recorrente não justifica a alteração do decidido quanto ao segmento do ponto 3) que foi concretizado, e também não justifica que se passe para os factos provados.
Com efeito, o ponto 3) dos factos não provados não contém a descrição das funções da supervisora DD (em abstrato), mas sim, juntamente com o ponto 4) dos factos não provados, uma versão dos factos contrária àquela que consta dos pontos m) a v) dos factos provados (que não foram impugnados).
Assim, improcede a pretensão da Recorrente, mantendo-se os factos como não provados.

ponto 10) dos factos não provados:
É o seguinte o seu teor, recordemos:
10) A Autora, enquanto ao serviço da Ré, nunca sofreu qualquer sanção disciplinar.
Alega a Recorrente que resulta do documento nº 1 junto pela Ré em 04/02/2022 (“ficha de cadastro de pessoal”) que não consta qualquer processo disciplinar ou infração registada.
A Recorrida pronunciou-se pela manutenção deste facto como não provado porque, embora nunca tenha alegado no processo que a Autora tivesse passado disciplinar, efetivamente é irrelevante na medida em que a gravidade do comportamento da Autora justifica o despedimento.
Ora, saber se a ausência de “passado disciplinar” releva ou não para alterar a sanção disciplinar aplicada é questão a apreciar no enquadramento jurídico dos factos, não em sede de dar como assente ou não determinado facto.
Não constando dos factos provados a existência de sanções disciplinares aplicadas antes, significa que na ponderação da sanção disciplinar a aplicar (da adequação da aplicada) já se considera o desconhecimento de que tenham sido aplicadas sanções disciplinares antes.
No entanto, não constando do documento 1 referido qualquer sanção disciplinar aplicada, mais do que não ficar consignada a aplicação de sanção disciplinar [porque efetivamente tal não foi alegado e não aconteceu], deve ficar provado que não sofreu sanções disciplinares.
É que tal facto é relevante para a decisão da causa, sendo questão diferente saber se leva a considerar a aplicação de outra sanção disciplinar diferente daquela que foi aplicada, o que se apreciará infra.
Assim, é eliminado o ponto 10) dos factos não provados e adita-se um ponto qq) aos factos provados com o seguinte teor:
qq) A Autora, enquanto ao serviço da Ré, nunca sofreu qualquer sanção disciplinar.

ponto 11) dos factos não provados:
É o seguinte o seu teor, recordemos:
11) A Autora sempre exerceu a sua atividade com correção, diligência e zelo, tendo sempre tido elogios pela sua conduta profissional.
Alega a Recorrente que estão juntas ao processo avaliações de desempenho (documentos nº 2, nº 3 e nº 4 juntos em 04/02/2022) que suportam este facto.
A Recorrida pronunciou-se pela manutenção deste facto como não provado, dizendo que as avaliações de desempenho juntas se reportam tão só a 3 dos 9 anos em que a Autora esteve ao seu serviço, não se retirando dos documentos aquilo que consta deste ponto.
Ora, das três “avaliações anuais” juntas (referentes aos anos de 2018 a 2020), não se retira de todo que a Autora tenha tido sempre elogios pela sua conduta profissional, pelo que o segmento final não tem suporte nos documentos.
Quanto ao mais, estando em causa avaliações desempenho referentes a 3 anos não suportam o advérbio “sempre”, ao que acresce que estando em causa um juízo genérico sobre o exercício da atividade (com correção, diligência e zelo), ainda que nos “comentários da chefia” dessas avaliações juntas ao processo conste ser a Autora “zelosa”, não se nos afigura que tal baste, sem outros elementos de prova, para que este ponto passe para os factos provados, ainda que parcialmente.
Assim sendo, este ponto mantém-se como não provado.

Da sanção disciplinar aplicada:
A Recorrente alega que não concorda com a sanção aplicada, uma vez que de todas as sanções disciplinares, que o código de trabalho comporta e são múltiplas, foi-lhe aplicada a mais grave, sem qualquer justificação Apelada deveria ter tido em consideração os sete anos de trabalho, o percurso da Apelada, o seu comportamento, as suas avaliações que a própria Apelada realizou sobre a atividade da Apelante, e o valor diminuto do produto em causa, um livro de €25,00 (cfr. conclusões 10 e 11).
Embora se nos afigure que tal é alegado no âmbito da discordância com a condenação como litigante de má-fé, tanto que no final da alegação/conclusões não se refere à revogação da sentença na parte em que considerou o despedimento lícito, faz-se uma análise da sanção disciplinar aplicada (partindo-se da existência de infração disciplinar, que claramente não é questionada em recurso).
O tribunal a quo considerou a sanção aplicada (de despedimento sem indemnização ou compensação) proporcional à gravidade da situação, concluindo pela licitude do despedimento promovido pela entidade empregadora, perguntando-se agora, tal como subjaz à alegação da Recorrente, se a infração disciplinar não justifica a aplicação da sanção de despedimento sem indemnização ou compensação, antes deveria ter sido aplicada outra menos gravosa.
Ou seja, pergunta-se se não estamos perante infração disciplinar que pela sua gravidade, associada à culpabilidade da Autora, leva a concluir ser proporcional o seu despedimento.
Como se escreveu no acórdão do STJ de 20/05/2009[16], a inexigibilidade da manutenção da relação de trabalho verificar-se-á sempre que, face ao comportamento do trabalhador e às circunstâncias do caso, a subsistência do vínculo fira de modo violento a sensibilidade e liberdade de uma pessoa normal, quando colocada na posição real do empregador, no circunstancialismo apurado, o que pressupõe a necessidade de um prognóstico sobre a viabilidade da relação de trabalho, ou seja, um juízo referido ao futuro sobre a impossibilidade das relações contratuais, do que decorre que, assentando a relação laboral na cooperação e recíproca confiança entre trabalhador e empregador e num clima de boa-fé, a mesma não poderá manter-se se o trabalhador destruir ou abalar, de forma irreparável, a confiança na idoneidade futura da sua conduta.
Pergunta-se então se poderá a Ré confiar que com a Autora em funções esta exerceria as suas funções de forma idónea, leal e plena de boa-fé.
Desde logo há que ter presente que a ausência de antecedentes disciplinares e o tempo que durou a relação laboral são elementos a ponderar no juízo sobre a existência de justa causa, mas têm uma relevância relativa, aferida, em cada caso concreto, face à gravidade da conduta ilícita do trabalhador, já que não reduzem a obrigação daquele se pautar, sempre, pela lisura de comportamentos na sua relação profissional com a empregadora.
Ora, no caso em apreço a Autora manifestou intenção de adquirir um livro [ponto j) dos factos provados], mas depois fez crer aos colegas de trabalho que não ia adquirir o livro dado o seu custo [ponto l) dos factos provados], quando afinal levou o livro sem pagar o respetivo preço, referindo à supervisora que já o pagara [pontos m) a w) dos factos provados].
Vejamos.
Para além de regras de comportamento da contraparte (lealdade ao empregador), exige-se ainda que o trabalhador empreenda uma conduta correta do ponto de vista dos interesses da organização (lealdade à organização do empregador), estando na alínea f) do nº 1 do art.º 128º do Código do Trabalho contido um dever de honestidade que implica uma obrigação de abstenção de qualquer comportamento que possa fazer desaparecer a relação de confiança (enquanto obrigação de conteúdo mais amplo) que se move nas coordenadas impostas pelo princípio da boa-fé.
Acompanhando o que se disse no acórdão do STJ de 11/10/1995[17] (então a propósito do art.º 20º da LCT, mas que mantém atualidade), apesar da redação que a al. f) do nº 1 do art.º 128º do Código do Trabalho tem, esta assume carácter exemplificativo [a letra do corpo do nº 1 é «sem prejuízo de outras obrigações» e a al. f) refere «nomeadamente»] não impedindo que aquele opere como um “dever geral” de conteúdo não especificado.
Escreveu-se em tal aresto que este dever geral de lealdade tem um lado subjetivo que decorre da estreita relação com a permanência de confiança entre as partes, sendo necessário que a conduta do trabalhador não seja, em si mesma, suscetível de abalar ou destruir essa confiança, criando no espírito do empregador a dúvida sobre a idoneidade futura do comportamento do trabalhador. Pelo seu lado objetivo este dever reconduz-se à necessidade do ajustamento do comportamento do trabalhador ao princípio da boa-fé no cumprimento das suas obrigações (art.º 762 C. Civil). / Por outro lado, a diminuição de confiança resultante da violação deste dever não está dependente da verificação de prejuízos nem da existência de culpa grave do trabalhador, já que a simples materialidade desse comportamento, aliado a um moderado grau de culpa, pode, em determinado contexto, levar razoavelmente a um efeito redutor das expectativas de confiança. / E, tendo em conta aquele lado objetivo temos que dele deriva o imperativo de uma certa adequação funcional da conduta do trabalhador à realidade do interesse do empregador, na medida em que este interesse tenha a sua satisfação dependente do cumprimento da obrigação assumida pelo trabalhador[18].
E como refere Nuno Abranches Pinto[19], o dever de lealdade referido na alínea f) do nº 1 do art.º 128º do Código do Trabalho, constitui um conceito indeterminado que o legislador entendeu concretizar exemplificativamente (por um lado com a obrigação de o trabalhador não negociar por conta própria ou alheia em concorrência com o empregador, e por outro lado com a obrigação de não divulgar informações relativas à organização, métodos de produção ou negócios do empregador), mas em temos gerais impõe ao trabalhador uma conduta de afetação do exercício da sua função aos interesses do empregador, não devendo atuar de forma a causar prejuízo desses interesses.
Assim, é clara a violação pela Autora do dever de lealdade, e de modo tão grave [repare-se no procedimento observado pela mesma: solicita a reserva, vai pagar mais tarde as compras com a supervisora que não tinha estado de manhã, referindo-lhe que o pagar de manhã] que quebrou de forma irreparável a relação de confiança entre as partes, tornando insubsistente a relação laboral, não sendo a duração da relação laboral sem registo de infrações disciplinares anteriores que afasta o juízo que se formula que é de crer que a Ré passasse a ter a dúvida sobre idoneidade futura da conduta da Autora.
E não releva o valor do livro, pois tem a jurisprudência entendido, e com isso se concorda, que a mútua honestidade da relação laboral não é suscetível de gradações, e também que importa ver se a conduta do trabalhador cria no espírito do empregador a dúvida sobre a idoneidade futura do seu comportamento independentemente do bom comportamento anterior[20].
Por outro lado, não é o facto de passados dias [ponto ll) dos factos provados] ter pretendido pagar o preço do livro que atenua a gravidade dos factos, pois é um comportamento posterior que certamente surgiu depois de refletir sobre as consequências que o seu comportamento no dia 12/06/2021 poderia ter (como veio a ter).
Pelo exposto, adere-se à sentença recorrida ao concluir ter existido justa causa para despedimento da Autora, despedimento que como tal não foi ilícito.

Da litigância de má-fé:
O tribunal a quo condenou a Autora como litigante de má-fé, referindo, para justificar a decisão, o seguinte:
No caso sub judice, conclui-se pela verificação da atuação da Autora como litigante de má-fé. Com efeito, atentos os autos, cremos que a aludida litigância de má-fé resultou provada, demonstrando-se uma atuação dolosa da parte, com vista a conseguir um objetivo ilegal, a impedir a descoberta da verdade, ou a entorpecer a ação da justiça.
(…)
Ora, nos presentes autos, atento o concreto factualismo dado como provado, consideramos a dedução das pretensões da Autora como atuação dolosa da parte com vista a deduzir pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar. A aqui trabalhadora, para além de bem saber que foi a Autora da subtração ilícita do bem em causa, procurou alijar a sua responsabilidade, colocando em causa o percurso profissional de uma sua colega de trabalho e lançando a confusão quanto à concreta data em que “adquiriu” aquele produto. Em consequência e ao abrigo do preceituado no art.º 542.º, n.º 1 do C. P. Civil e no art.º 27º, nº 3, do R. C. Processuais, condeno a Autora na multa de quatro UC´s e no pagamento de uma indemnização à entidade empregadora no quantitativo de €1.000,00.
Alega a Recorrente que a eventual conduta processual da Apelante é desprovida de qualquer atuação dolosa ou gravemente negligente, com vista a conseguir um objetivo ilegal, a impedir a descoberta da verdade, ou a entorpecer a ação da justiça (cfr. conclusão 12).
Nos termos do art.º 542º do Código de Processo Civil existe má-fé quando se verificar algumas das seguintes atuações:
a) do ponto de vista da atuação substancial:
(i) se a parte tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não ignorava;
(ii) se a parte tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
(iii) se a parte tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
b) do ponto de vista da conduta processual:
(i) se a parte tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável com um de três fins: conseguir um objetivo ilegal; entorpecer a ação da justiça; ou impedir a descoberta da verdade.
A parte tanto pode ter agido com dolo como com negligência grave, sendo que, como consta do sumário do acórdão do STJ de 06/12/2001[21], haverá negligência grave, fundamentadora de um juízo de litigância de má-fé, quando o litigante procede com imprudência grosseira, sem aquele mínimo de diligência que lhe teria permitido facilmente dar-se conta da desrazão do seu comportamento, que é manifesta aos olhos de qualquer um.
Todavia, a conclusão da atuação da parte como litigante de má-fé decorrerá sempre da análise da situação concreta, o que quer dizer que não será apenas por uma ação improceder que se concluirá automaticamente pela litigância de má-fé por parte do Autor, e mais que isso, não basta a não prova de factos para haver litigância de má-fé [note-se que a não prova de um facto não implica a prova do contrário], impondo-se que os factos provados a evidenciem.
Como se diz no acórdão do TRG de 15/10/2015[22], para a condenação como litigante de má-fé exige-se que se esteja perante uma situação donde não possam surgir dúvidas sobre a atuação dolosa ou gravemente negligente da parte, estando reservada a situações em que se demonstre nos autos, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu, conscientemente, de forma manifestamente reprovável, com vista a impedir ou a entorpecer a ação da justiça, litigando de modo desconforme ao respeito devido ao tribunal e às partes.
Há, pois, que ser muito prudente no juízo sobre a má-fé processual[23].
No caso da alínea b) do nº 2 do art.º 542º do Código de Processo Civil – aquela com pertinência ao caso em apreço –, é oportuno referir o acórdão do TRL de 16/12/2021[24], no qual, citando doutrina, está dito que poderá ser responsabilizado como litigante de má-fé não só aquele que profere declarações contrárias ao que subjetivamente sabe ser verdade, mas também aquele que apenas se encontra subjetivamente convencido da verdade de um facto inexistente ou inveracidade de um facto verdadeiro, porque desrespeitou o mínimo de diligência que lhe era exigido, recorrendo ao processo de modo totalmente leviano e imprudente. Do mesmo modo, tanto poderá ser considerado de má-fé aquele que oculta um facto essencial do qual tem perfeito conhecimento, como aquele que não podia deixar de o conhecer caso tivesse empregado o mínimo de diligência exigível a quem atua em juízo. Com efeito, se uma certa incerteza é característica do próprio processo, essa incerteza não poderá ser tal que resulte apenas de uma atuação gravemente negligente na recolha do material fáctico da causa.
O tribunal a quo condenou a Autora como litigante de má-fé, não por ter impugnado o despedimento promovido pela Ré, mas por o ter feito invocando factos que não podia ignorar não corresponderem à verdade [que a mesma levou o livro sem ter pago o respetivo preço, dizendo à supervisora que já o havia pago] e procurar imputar a responsabilidade a colega de trabalho [que a supervisora é que falhou no cumprimento dos procedimentos internos ao não solicitar o comprovativo de pagamento].
Como referia de forma clara o Prof. Alberto dos Reis[25], uma coisa é o direito abstrato de ação, outra coisa o direito concreto de exercer atividade processual. O primeiro não tem limites; é um direito inerente à personalidade humana. O segundo sofre limitações, impostas pela ordem jurídica; e uma das limitações traduz-se nesta exigência de ordem moral: é necessário que o litigante esteja de boa-fé ou suponha ter razão. Portanto, revelada a má-fé, torna-se patente que ele exerceu atividade ilícita.
No caso em apreço, na realidade, a Autora na “contestação” apresentada não diz que tenha referido à supervisora que já havia pago o livro, dizendo que colocou o mesmo em cima do balcão tendo sido a supervisora que o não registou, acrescentando que mesmo que tivesse dito que já o havia pago, o que não admite, cabia à supervisora solicitar-lhe o comprovativo.
Independentemente da verosimilhança desta versão – pouco lógica, diga-se, pois relata o sucedido como se nem houvesse diálogo com a supervisora que estava a registar as “compras” e como se não fosse comum haver confiança entre colegas de trabalho, além de que diz nunca poder ter dito que o comprara de manhã porque apenas entrou ao serviço às 11h30m, como se a essa hora não fosse ainda manhã, e esquecendo que o ser manhã ou tarde é relativo, sendo do conhecimento geral que há quem faça a separação manhã/tarde ao “meio dia” (12 horas) mas outros têm por referência o já terem tomado, ou não, a refeição do almoço –, independentemente dessa verosimilhança, repete-se, a questão é que, em contraciclo ao alegado pela Autora (de que deixou o livro em cima do balcão, sem qualquer intenção de não proceder ao seu pagamento deduz-se, e a supervisora é que não o registou), ficou provado que a Autora teve um papel ativo que determinou o não registo/pagamento do livro por parte da supervisora, como consta de forma clara dos pontos o), p), r) e s) dos factos provados [com efeito, aquilo que se deduz destes factos acabados de referir é que a Autora, sabendo (porque tinha que saber) que a supervisora não esteve na parte da manhã, e que não pagara o preço do livro, porque o achava caro – ponto l) dos factos provados –, alegou perante a supervisora que o pagara no turno da manhã, assim levando o livro sem pagar o respetivo preço].
Assim, a alegação da Autora para fundamentar a sua pretensão de declaração de ilicitude do despedimento passou por alegar factos que tinha necessariamente que saber serem não verdadeiros, alegando conscientemente factos que sabia não serem verdade, estando-se na presença de conduta dolosa, ou seja, nitidamente na presença de litigância de má-fé.
E suma, não merece censura a sentença recorrida quando concluiu por litigância de má-fé por parte da Autora.

Aqui chegados, pergunta-se, como faz a Recorrente, se a multa devia ser do montante de 4 UC e a indemnização no valor de €1.000,00.
Como consta do art.º 542º do Código de Processo Civil, a conduta da parte que integra a litigância de má-fé fá-la incorrer em multa, ficando ainda sujeita a uma pretensão indemnizatória destinada a ressarcir a parte contrária dos danos resultantes da má-fé.
Quanto à multa, a mesma é fixada entre 2 UC e 100 UC, tendo em consideração os reflexos da violação da lei na regular tramitação do processo e na correta decisão da causa, a situação económica do agente e a repercussão da condenação no património deste (art.º 27º, nºs 3 e 4 do RCP).
O tribunal a quo fixou a multa próximo do mínimo, não se vendo motivo para a aproximar mas desse mínimo, pelo que se mantém a mesma.
Quanto à fixação da indemnização, quando peticionada, há que atender ao disposto no art.º 543º do Código de Processo Civil:
- segundo o seu nº 1 a indemnização pode consistir:
a) no reembolso das despesas a que a má-fé do litigante tenha obrigado a parte contrária, incluindo os honorários dos mandatários ou técnicos;
b) no reembolso dessas despesas e na satisfação dos restantes prejuízos sofridos pela parte contrária como consequência direta ou indireta da má-fé (nº 1);
- acrescentando o nº 2 que o juiz optará pela indemnização que julgue mais adequada à conduta do litigante de má-fé, fixando-a sempre em quantia certa.
No caso previsto na alínea a), a parte só tem que pagar a importância correspondente às despesas que o seu adversário teve de fazer como consequência direta da má-fé, limitando-se a indemnização aos danos diretamente emergentes do procedimento doloso.
Quanto à indemnização prevista na alínea b), a responsabilidade traduz-se na fórmula “lucros cessantes e danos emergentes”, quer os danos sejam consequência direta da má-fé processual, quer sejam uma sua consequência indirecta[26].
O critério para optar por uma ou outra indemnização é o grau de má-fé, isto é, a maior ou menor gravidade da conduta, sendo que alguma jurisprudência tem entendido que, atuando dolosamente, deve o litigante ser condenado na indemnização prevista na alínea b), ao passo que, tendo atuado com negligência grave, deve ser condenado na indemnização prevista na alínea a)[27].
Socorrendo-nos novamente do Prof. Alberto dos Reis[28] – ainda que tendo por referência legislação adjetiva revogada tem pertinência –, diz-se que o dolo, do mesmo modo que a culpa, é suscetível de graduação: pode ter revestido feição sumamente escandalosa e revoltante, pode ter-se manifestado em termos menos irritantes e graves, quase a roçar a culpa lata. No 1.º caso deve o juiz condenar na indemnização da alínea a); no segundo está indicado que utilize a espécie de indemnização autorizada pela alínea b).
Ou seja, aderindo ao acabado de citar, ainda que a parte haja atuado dolosamente, impõe-se atender ao grau de culpa, de molde a aferir qual das duas espécies de indemnização legalmente previstas é mais adequada.
Importa ainda ter em consideração que, na fixação da indemnização, não há que tomar em conta a capacidade económica e financeira do condenado ou sequer o valor da ação e muito menos se procura reconstituir a situação anterior, porquanto as regras são distintas das previstas nos art.ºs 562º e ss. do Código Civil.
Posto isto, que dizer do caso dos autos?
Ora, afigura-se-nos que ainda que a conduta (processual) da Autora fosse dolosa, como se disse ser, não assume gravidade extrema, pois, ainda que alegação acabe por ser pouco rigorosa, depreende-se que a par da versão dos factos referida, apela ao seu bom desempenho para defender ser a sanção aplicada excessiva, ou seja, não se funda apenas na versão não verdadeira dos factos.
Assim, a condenação é pela indemnização prevista na alínea a) do nº 1 do art.º 543º do Código de Processo Civil.
A questão está em ver se o montante de €1.000,00 está adequado.
Ora, não se alcança em que critérios se baseou o tribunal a quo para fixar esse montante, e nem se alcançam do processo elementos para tal.
Como refere Paula Costa e Silva, mesmo que o tribunal deva fixar a indemnização segundo critérios de equidade, tem de partir de alguma base racional e objectiva[29].
Dispõe o nº 3 do mesmo art.º 543º do Código de Processo Civil que se não houver elementos para se fixar logo na sentença a importância da indemnização, são ouvidas as partes e fixa-se depois, com prudente arbítrio, o que parecer razoável, podendo reduzir-se aos justos limites as verbas de despesas e de honorários apresentadas pela parte.
Deste modo, não dispondo o tribunal a quo de elementos devia ter procedido dessa forma, ou seja, notificar as partes para se poderem pronunciar e fixar depois o valor.
É revogada, pois, a sentença recorrida nesta parte a fim de proceder o tribunal a quo conforme esta disposição legal.
*
Quanto a custas, procedendo o recurso mas apenas alterando parcialmente o decidido quanto a matéria de facto e relegando a fixação da indemnização para momento após a audição das partes, mantendo-se a declaração de licitude do despedimento e a condenação da Autora como litigante de má-fé, as custas do recurso ficam a cargo da Recorrente (art.º 527º do Código de Processo Civil).
***
DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desembargadores da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência, decide-se:

I) Eliminar os pontos 2) e 10) dos factos não provados e aditar um ponto pp) e um ponto qq) aos factos provados com o seguinte teor:
pp) No dia 31/05/2021 a Autora prestou trabalho das 11h30min às 21h30min.
qq) A Autora, enquanto ao serviço da Ré, nunca sofreu qualquer sanção disciplinar.

II) Revogar a fixação da indemnização no valor de €1.000,00, e em substituição determinar que o tribunal a quo proceda em conformidade com o estabelecido no nº 3 do art.º 543º do Código de Processo Civil.

III) Manter no mais o decidido em 1ª instância.

Custas pela Recorrente (art.º 527º do Código de Processo Civil), com taxa de justiça conforme tabela I-B anexa ao RCP (cfr. art.º 7º, nº 2 do RCP).

Valor do recurso: o da ação (art.º 12º, nº 2 do RCP).

Notifique e registe.
(texto processado e revisto pelo relator, assinado eletronicamente)

Porto, 28 de novembro de 2022
António Luís Carvalhão
Paula Leal de Carvalho
Rui Penha
________________________
[1] Designamos, tal como em 1ª instância, a trabalhadora por Autora, na medida em que impulsiona o processo apresentando formulário com vista a ver declarada a ilicitude ou irregularidade do seu despedimento, e designamos a sociedade empregadora por Ré, na medida em que, ainda que apresentando o primeiro articulado, contesta esse impulso tendente à declaração da ilicitude ou irregularidade do despedimento que promoveu.
[2] As transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo correção de gralhas evidentes e realces/sublinhados que no geral não se mantêm (porque interessa o texto em si), consignando-se que quanto à ortografia utilizada se adota o Novo Acordo Ortográfico.
[3] Vd. António Santos Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 5ª edição, pág. 156 e págs. 545/546 (estas no apêndice I: “recursos no processo do trabalho”).
[4] Seguindo a ordem da precedência lógica, sendo que a solução de alguma pode prejudicar o conhecimento de outra(s) – art.ºs 608º e 663º, nº 2 do Código de Processo Civil (cfr. art.º 87º, nº 1 do Código de Processo do Trabalho).
[5] «Aprisionadora» como constava era lapso, que se retificou.
[6] Vd. António Santos Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 5ª edição, pág. 286.
Também o acórdão da 1ª Secção Cível do TRG de 31/03/2022, consultável em www.dgsi.pt, processo nº 294/19.8T8MAC.G1.
[7] É que, de outra forma ocorreria uma inversão da posição das personagens do processo, mediante a substituição da convicção de quem tem de julgar pela convicção de quem espera a decisão [assim tem também referido o Tribunal Constitucional – vd. por exemplo, o acórdão nº 198/2004, publicado no DR II série nº 129, de 02/06/2004 (na pág. 8546), e também acessível em www.tribunalconstitucional.pt].
[8] Vd. António Santos Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 5ª edição, págs. 292/293.
[9] Vd. António Santos Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 5ª edição, pág. 116.
[10] Closed-Circuit Television, em português Circuito Fechado de Televisão.
[11] Lei nº 58/2019, de 08 de agosto.
[12] Nem podia ser de outro modo, diga-se, pois estão apenas em causa imagens, sem som.
[13] Como aconteceu, como consta da ata da audiência de discussão e julgamento.
[14] In “Proteção de Dados Pessoais no Contexto Laboral – o direito à privacidade do trabalhador”, Almedina, 2020, pág. 38.
[15] In “Direito do Trabalho e Cidadania”, Almedina, 2022, pág. 108.
[16] Consultável em www.dgsi.pt, processo nº 08S3536.
[17] Publicado na CJ/STJ – Associação de Solidariedade Social “Casa do Juiz”, Ano III, tomo 3, págs. 277-279.
[18] Sobre este “dever de lealdade em sentido amplo”, vd. também Maria do Rosário Palma Ramalho, “Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais”, Almedina (julho de 2006), pág. 357-359, que fala na «lealdade pessoal».
[19] In “Instituto Disciplinar Laboral”, Coimbra Editora, págs. 63 a 65.
[20] Vd. a jurisprudência citada por Abílio Neto, in “Processo Disciplinar e Despedimentos – Jurisprudência e Doutrina”, julho 2004, Ediforum, págs. 184 a 205.
[21] Sumário consultável em www.dgsi.pt, processo nº 01A3692.
[22] Consultável em www.dgsi.pt, processo nº 3030/11.3TJVNF.G1.
[23] Cfr. o acórdão do STJ de 28/05/2009, consultável em www.dgsi.pt, processo nº 09B0681.
[24] Consultável em www.dgsi.pt, processo nº 12367/19.2T8LSB.L2-2.
[25] In “Código de Processo Civil Anotado”, vol. II, 3ª edição, Coimbra Editora, 1949, pág. 261.
[26] Vd. Prof. Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. II, 3ª edição, Coimbra Editora, 1949, pág. 277.
[27] Cfr. o acórdão do STJ de 04/04/2002 e o acórdão do TRC de 09/10/2012, ambos consultáveis em www.dgsi.pt, processos nº 02B440 e nº 374/10.5T2AND.C2, respetivamente.
[28] Vd. Prof. Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. II, 3ª edição, Coimbra Editora, 1949, pág. 278.
[29] In “Responsabilidade por Conduta Processual – Litigância de Má Fé e Tipos Especiais”, Almedina, 2022, pág. 568 (para jurisprudência sobre o montante da indemnização, cfr. págs. 374-376).